Revisitando Germani: a interpretação da modernidade e a teoria da ação
INTRODUÇÃO
A sociologia foi originalmente um empreendimento europeu e norte-americano,
consistindo em uma resposta a mudanças de largo alcance que varriam o mundo
ocidental. A sociologia clássica, ou ao menos o clássico corpo da sociologia
clássica está, portanto, vinculado a essa região, embora problemas importantes
de conceitualização tivessem de ser tratados aqui de modo que um argumento mais
substancial fosse desenvolvido. Pode-se vê-la como se estendendo da obra de
Marx, Weber e Durkheim a Parsons e o interacionismo simbólico, por exemplo. Já
no século XX, a assim chamada América "Latina" se juntou à linha de frente da
expansão da sociologia, incluindo nomes como os de Florestan Fernandes e Gino
Germani, entre outros. Será sobretudo em algumas idéias pioneiras e seminais
deste último que nos deteremos aqui.
Por volta da década de 1950, Germani produziu algumas análises históricas e
ferramentas analíticas que apenas mais recentemente foram desenvolvidas pela
sociologia contemporânea. A liberdade, a "ação eletiva", a contingência e a
escolha foram os eixos em torno dos quais se concentrou a sua teorização mais
original. Decerto, essas idéias estavam estreitamente articuladas a uma
perspectiva funcionalista estrutural e a uma abordagem próxima à teoria da
modernização, questões que têm sido o principal foco de atenção até agora em
relação à obra de Germani, embora certos aspectos de seu projeto mais geral já
tenham sido destacados, especialmente por Alejandro Blanco (1998; 1999; 2003a;
2003b). Após esboçar esse quadro mais geral de sua perspectiva sociológica,
neste artigo nos concentraremos em algumas de suas idéias teóricas mais
heterodoxas, algumas das quais parecem ser uma contribuição ainda, em certos
aspectos sutis, incomparável à teoria sociológica à teoria da ação e à
interpretação da modernidade.
Procederemos por meio de três passos. Primeiro, reveremos sua discussão
funcionalista da modernidade, na qual a noção de "populismo" ocupa lugar de
destaque, localizando-se aí sua face mais conhecida. Em seguida, nos deteremos
em sua compreensão da liberdade em uma perspectiva histórica e sociológica,
principalmente no que diz respeito a como a questão se punha na sociedade
argentina de sua época, articulando isto a seu projeto intelectual mais amplo.
Trataremos, então, de sua contribuição teórica original, especialmente de seu
conceito de "ação eletiva". Ela será relacionada a contribuições mais recentes,
tais como a teoria da estruturação de Anthony Giddens, estendendo-se ainda a
seu conceito de "desencaixe", bem como à teoria neopragmatista da ação de Hans
Joas. É nossa intenção demonstrar que existem ainda certos aspectos da
abordagem de Germani que podem ser úteis para a construção de teorias da ação e
a conceitualização da modernidade. Antes disso, vale destacar alguns aspectos
fundamentais da trajetória de Germani, uma vez que este autor passou por um
certo ostracismo que de modo algum faz jus a sua obra e às diversas intuições
importantes que legou à sociologia.
Germani nasceu em Roma, em 1911. Começou a estudar na Itália, mas logo decidiu
emigrar para a Argentina, após ser preso pelo governo fascista de Mussolini por
causa das suas inclinações socialistas. Em 1938, inscreveu-se na Universidade
de Buenos Aires para estudar filosofia. Ali participou ativamente da vida
estudantil. Trabalhou no Ministério da Agricultura, conhecendo ainda Ricardo
Levene, historiador e professor de sociologia na Faculdade de Filosofia e
Letras, que estava organizando o Instituto de Sociologia e projetava estudos
sobre a Argentina contemporânea. Germani trabalhou com Levene até 1945. Durante
o período peronista, fora da universidade, dedicou-se a ler e preparar uma
grande quantidade de traduções e publicações de autores desconhecidos no país e
na região, entre os quais se destacavam Raymond Aron, Margaret Mead, Erich
Fromm, Bronislaw Malinowski e Kurt Lewin. Além de dar palestras e seminários,
nesse período começou a trabalhar na sua grande obra, Estructura Social de la
Argentina, de cunho essencialmente empírico (Germani, 1955).
A origem da sociologia na Argentina, em termos institucionais, esteve
fortemente vinculada ao retorno de Germani à universidade. É em 1956 que começa
um projeto sólido e coerente de construção de conhecimento científico, somente
possível graças à energia de um grupo de pesquisadores sob a sua direção.
Germani, segundo Giarraca, estava convencido de que se estava criando uma
sociologia universal, nova, guiada pelos padrões de procedimento científico e
por estritas regras internacionais; nesse sentido, ele reconhecia na sociologia
norte-americana a configuração mais avançada da sociologia científica
(Giarraca, 1991; ver, também, Germani, 2004). No entanto, suas matrizes
teóricas foram bastante amplas e incluíram um espectro bastante plural.
Embora a sociologia científica não tenha nascido, no sentido cabal do termo,
com a sua intervenção (Di Tella, 1979; Giarraca, 1991), é a partir de sua
atividade na universidade e como editor que mudam temas e vocabulário (Blanco,
2003b), assim como os métodos e as técnicas de pesquisa e medição (Di Tella,
1979), constituindo-se um "campo" intelectual específico (Neiburg, 1997). Mas
Germani não só é importante porque constitui uma personificação fundamental da
institucionalização da sociologia na Argentina, porém porque se pode reconhecer
nele um importante teórico. Muitas vezes, todavia, foi percebido como um
exemplo de aplicação da teoria parsoniana. De fato, Parsons está bastante
presente em sua produção intelectual, a partir de um certo momento; apesar
disto, alguns trabalhos recentes desmistificaram uma suposta relação mecânica e
unívoca entre as abordagens de Parsons e Germani, bem como contribuíram para se
compreender como o primeiro foi recebido pelo segundo (Blanco, 2003a; 2003b).
Germani não só foi reconhecido socialmente como o fundador da sociologia
"científica" na Argentina, como também foi a personificação de um tipo
específico de construção de uma perspectiva segundo a qual as ciências sociais
assumiriam o papel da geração do conhecimento dos meios da ação social, da
produção da racionalidade instrumental, ou seja, nas palavras de Mannheim, das
ferramentas para o planejamento e a "reconstrução racional da sociedade".
Contudo, suas preocupações vão muito além desse limite: o próprio Germani
afirma que o problema da racionalidade final encerra nada menos que o futuro da
civilização moderna e da liberdade, sem que ele seja capaz de perceber se a
análise desse tema será enfrentada pela sociologia, pela filosofia ou por um
domínio próprio do conhecimento não racional (Germani, 1946). Emerge, assim, um
Germani mais complexo do que as leituras que enfatizavam sua vinculação com o
funcionalismo estrutural permitiam discernir1. Se esta é a imagem que ele criou
de si mesmo a partir de um certo momento, marcando uma posição específica no
campo intelectual mais amplo, suas preocupações são bem mais abrangentes e
heterogêneas do que isso permitiria supor.
RUMO ÀS SOCIEDADES INDUSTRIAIS
É importante inicialmente delinear a teoria de Germani em seus termos gerais,
no que a influência do funcionalismo é bastante clara. Primeiramente, porque
foram essas idéias que se estabeleceram como o legado mais visível de Germani.
E, em segundo lugar, pois o próprio leitor poderá contrastá-las com outros
elementos, de colorido distinto, que mais tarde introduziremos. Antes de dar
esse passo, deve-se precisar o papel do funcionalismo no curso da evolução
intelectual de Germani. Na verdade, previamente ao encontro com as correntes
principais do funcionalismo norte-americano, sobretudo com Parsons, é patente a
influência do funcionalismo mais simples de Durkheim em seu pensamento. Foi em
grande medida com esse arcabouço teórico que ele abordou, já em 1956 (Germani,
1965, cap. 9), a crise e a suposta anomia da sociedade argentina de meados do
século XX e a emergência do peronismo, questões sobre as quais nos debruçaremos
na próxima seção. Continuidades e inflexões, de caráter teórico e político,
podem ser encontradas nessa evolução. Por ora, para delinear sua teoria geral e
da transição à modernidade, não nos deteremos em maiores precisões no que tange
à data de publicação de seus trabalhos, uma vez que já em meados dos anos 60 o
arcabouço mais geral do funcionalismo estrutural organizava claramente seus
argumentos. Mais adiante, ao contrário, a ordem de publicação de seus trabalhos
se mostrará decisiva.
Segundo Germani, devia-se abordar a estrutura social como uma totalidade, a
qual define como mundo "sociocultural", como um conjunto de partes vinculadas
entre si e interdependentes. A noção de interdependência não supõe, contudo,
necessariamente a integração, o equilíbrio ou a harmonia entre as diferentes
partes. Nas relações entre elas ou em si mesmas, como construções
sociohistóricas em contínua mudança, existe a possibilidade de desarticulações,
conflitos, tensões, desintegrações e assimetrias. A idéia de interdependência
salienta que modificações em alguma das partes afetarão, embora não de forma
imediata, as outras partes e a estrutura social em geral (idem:37). Germani
(idem:19-23) sugere analisar a estrutura social a partir de três níveis que não
podem ser considerados nem de maneira isolada nem dissociados uns dos outros,
mas sim como três momentos inseparáveis quais sejam, o plano da organização
social, o da morfologia social e o da psicologia social. O primeiro está
constituído pela dimensão imaterial e não manifesta do mundo sociocultural: as
normas, os valores, os conhecimentos em si, abstraídos dos portadores humanos.
O segundo plano, o da morfologia social, tem como ponto focal a superfície
material do mundo sociocultural, implicando os grupos sociais. O terceiro é o
plano da psicologia social, que enfoca os conteúdos psíquicos; o alvo central
da análise é a indagação a respeito das pautas de comportamento, as normas e os
valores, tal qual incorporados pelos indivíduos e pelos grupos sociais
(Maneiro, 2002:67-69).
É muito claro que o modelo apresentado no que foi provavelmente o último texto
escrito para figurar em Política y Sociedad en una Época de Transición, visando
analisar a estrutura social, possui grandes similitudes com aquele que propõe
Talcott Parsons em The Social System (1979), que Germani, entretanto, somente
cita com referência à definição de sociedade como delimitada pelo Estado-nação
e quanto à questão dos status e papéis, e não no que tange a suas distinções
analíticas fundamentais (Germani, 1965:20-24). O plano da organização social
tem muitas semelhanças com a cultura, o da morfologia social com o sistema
social, e o plano da psicologia social com a personalidade. Além disso, as
relações entre eles também têm muitas afinidades, já que ambos os autores
enfatizam as relações do plano da organização social (a cultura) com o da
psicologia social (a personalidade), definindo-o como um processo de
internalização, embora a direção oposta não esteja ausente. Esse processo de
internalização da cultura pela personalidade é um dos principais elementos de
manutenção da integração em uma estrutura social, porém não o único. Contudo,
em toda sociedade empírica se registra certo grau de "desintegração", havendo
períodos em que esta será particularmente intensa ou abarcará áreas
fundamentais da atividade humana. Este é o caso da transição das sociedades
"tradicionais" às sociedades "industriais" (idem:117-126).
O modelo teórico de Germani tentava compreender e interpretar as transformações
da sua época. Ele pretendia utilizá-lo para dar conta do que nomeava como a
emergência do populismo, cuja matriz de análise logo depois será aprofundada. O
populismo constitui, segundo ele, um tipo particular de movimento social e
político que é produto de uma modalidade assincrônica dos processos de
transição da sociedade. O conceito de assincronia (idem:17, esp. 98-109)
refere-se à co-presença de grupos sociais, atitudes, formas culturais,
instituições e tipos de personalidades correspondentes a diversas fases dos
pólos da oposição entre a sociedade calcada na ação adscritiva e a sociedade
industrial.
Toda transição social inclui um processo de mobilização social. Esta é
entendida por Germani (1969:59-69) como possuindo uma série de momentos que
podem produzir-se de forma sucessiva ou simultânea. O ciclo começa com um
estado de integração em direção a um processo de quebra ou desintegração, que
resultaria enfim em uma nova integração, passando por um deslocamento de
indivíduos ou grupos sociais, postos em "disponibilidade", uma resposta a esse
processo (que pode ser ora uma retração, ora uma mobilização psicológica) e uma
mobilização objetiva. No momento em que a disponibilidade se traduz em
participação mais intensa do que se produzia anteriormente, deve-se falar em
mobilização. Quando por fim se tenham produzido as mudanças que permitam
legitimar e oferecer possibilidades efetivas de realização do aumento agregado
da participação dos grupos mobilizados se falará de integração. A partir do
processo de mobilização social, pode produzir-se desde uma transformação na
estrutura do mundo sociocultural até uma assimilação desse processo que iniba
sua potencialidade de transformação. Logo, o resultado é contingente, não está
garantido (idem:passim, esp. 67).
Em geral supõe-se que, nos processos de mobilização social, as elites assumem
um papel mais ativo que as massas, tanto na iniciativa como na liderança e na
organização. Mas nem todo processo de mobilização social alude à existência de
uma elite. Pelo menos analiticamente devem-se delinear três situações
possíveis: a mobilização com intervenção ativa de uma elite externa à massa; a
mobilização com intervenção de uma elite interna ao grupo deslocado; e a sem
liderança. Concretamente essas três possibilidades não se apresentam em forma
pura, mas sim articuladas e combinadas. Nessa perspectiva, a articulação entre
elites disponíveis e massas disponíveis poderia oferecer elementos mais
favoráveis ao surgimento de movimentos em prol de uma mudança social. Embora
nas tipologias que estabelecem os elementos de diferenciação entre as
sociedades de tipo "tradicional" e as de tipo "industrial" Germani apresente
uma grande pluralidade de aspectos, três deles jogam um papel fundamental no
processo de mudança social: o tipo de ação e a preponderância, na modernidade,
das ações eletivas; a institucionalização da mudança (versus a
institucionalização da tradição); e a diferenciação e a especialização
crescente das instituições (Germani, 1965:71-75).
Claramente, esses três elementos derivam de fortes tradições teóricas, surgindo
do legado das grandes escolas da sociologia clássica. As duas últimas, sem
dúvida, ecoam a obra de Parsons, embora não seja correto identificar nele o
único porta-voz dessa recuperação da sociologia clássica. A especialização e a
diferenciação crescentes já se encontravam presentes, por exemplo, na
referência de Durkheim à passagem da solidariedade mecânica à orgânica tema
que posteriormente as correntes funcionalistas adotaram como decisivo
(Domingues, 1999, cap. 4). No segundo ponto, a proximidade com Parsons também é
forte, mas a idéia de institucionalização da mudança não alude apenas a ele, e
sim a toda uma forma de compreender esse tipo de processo, característico de
sua época, o qual encontrava diversos referentes na sociologia e,
especialmente, na antropologia norte-americana, entre eles Robert Redfield,
Ralph Linton e Melevile Jean Herskovits (Blanco, 2003b). Ainda quanto àquele
primeiro elemento, vale notar que, apesar de poder-se perceber certo ar de
família no que se refere a uma das "variáveis de orientação" (pattern
variables) parsonianas (como ferramentas eficazes para as distinções entre
tipos de ações), é claro que Germani também se distancia disto quando afirma
explicitamente que, em relação às variáveis de orientação, somente a
diferenciação entre as formas adscritiva particularista e de desempenho
universalista parece ser convincente no que tange à sua aplicabilidade a outras
formas históricas de sociedades industriais (Germani, 1965:79).
Enfim, a teoria das elites, atores coletivos que têm papel crucial na
interpretação de Germani da transição e do peronismo, embora ele não elabore de
modo algum o tema, possivelmente foi incorporada mais diretamente das obras de
Pareto e Mosca, autores italianos que escreveram já na primeira metade do
século XX e lhe eram decerto familiares nas publicações originais. É também a
partir dessa perspectiva que ele introduz o tema do totalitarismo, tão em voga
naquele momento entre os opositores liberais do fascismo e do comunismo, ainda
que tampouco aí Germani apresente uma contribuição mais elaborada
conceitualmente. De qualquer forma, ainda que o modelo que serve de medida para
a realidade específica latino-americana seja dado pelo desenvolvimento da
sociedade moderna liberal européia, Germani afasta-se em parte da teoria do
totalitarismo, ao perceber que a participação das massas se constitui em um
fator central para o surgimento e legitimação do "populismo" (ver Barboza
Filho, 1980).
Sabe-se que a análise do peronismo, a preocupação com os totalitarismos e as
relações destes com as classes trabalhadoras são inquietações primárias no
pensamento de Germani. Para tentar dar conta dessas questões é que ele
procuraria um modelo teórico que, como dito, encontrou no funcionalismo
estrutural seus pontos de apoio. Contudo, parece possível crer que suas
preocupações originárias não conseguem se encaixar totalmente nele. Na verdade,
a interpretação histórica de Germani já estava em grande medida pronta e
acabada quando ele introduziu o funcionalismo estrutural em sua discussão. Ele
a superpôs àquela interpretação histórica, de certa forma confundindo um pouco
o leitor na medida em que o quadro teórico do funcionalismo terminaria abrindo
o livro, localizando-se suas discussões mais diretamente atinentes ao
imaginário e à história em capítulos posteriores na organização do volume,
conquanto não no que diz respeito às datas originais de publicação (ver Blanco,
2003b). Na verdade, os artigos transformados em capítulos de Política y
Sociedad en una Época de Transición são os seguintes, por ordem de publicação
ou preparação original: capítulo 9 (1956), capítulo 4 (1957), capítulo 6
(baseia-se em um artigo de 1960), capítulo 3 (reelaboração de diversos
trabalhos de 1958 até 1960), capítulo 8 (1961), capítulo 7, (1961), capítulo 5
(baseia-se em um artigo de 1961). Os capítulos 1 e 2 mais tardios antes de
sua publicação no livro em tela circularam apenas privadamente entre estudantes
dos cursos ministrados por Germani. Ainda que essa disparidade de datas seja
camuflada de certo modo na disposição sem maiores detalhes dos artigos no
livro, deve-se notar que uma certa tensão no que tange à interpretação do
peronismo em termos estruturais e políticos se patenteia em suas páginas.
Quanto mais o funcionalismo estrutural se impõe, por cima da matriz
funcionalista durkheimiana original, mais Germani interpreta o peronismo de
forma univocamente negativa, produzindo uma certa heterogeneidade em sua
argumentação. A essas razões de ordem teórica, que podem ter influenciado esta
inflexão, é mister acrescentar outras, de ordem propriamente política, que
remetem ao endurecimento do debate sobre o peronismo e provavelmente às
disputas práticas que dividiram profundamente a sociedade argentina desde o
período em que ocorreu a publicação de seus primeiros trabalhos até a redação
de seus textos posteriores sobre o tema.
A LIBERDADE E A HISTÓRIA, O PERONISMO E O RECONHECIMENTO
Em termos muito resumidos e esquemáticos se poderia traduzir o modelo mais
cristalizado e duro de explicação do peronismo proposto por Germani (1965,
caps. 5, 7 e 8) da seguinte maneira. Inicialmente, a situação de brutal
deslocamento da população, gerada por volumosas migrações internas do campo à
cidade, produz uma radical "disponibilidade" dessas massas populares. Como
efeito desse processo, tem lugar a mobilização psicológica dessas massas, que
deságua em uma mobilização objetiva, isto é, em uma irrupção na vida social e
na busca de espaços na vida política. Simultaneamente, ocorriam enormes
mudanças no mundo, como resultado da crise econômica de 1930, a qual impacta
fortemente a Argentina, bem como a expansão do fascismo pela Europa. A elite
conservadora buscou, então, voltar a limitar a participação das massas,
tentando retroceder o tempo às formas políticas anteriores excludentes, social,
política e economicamente. Contudo, isso já não era factível, e "uma nova
intervenção militar com objetivos totalitários interrompeu a experiência
conservadora de 'democracia limitada por meio da fraude'" (idem:231).
Certo é que, se a participação era inevitável, não havia uma só forma para que
ela fosse exercida. Poder-se-iam definir diversos equivalentes funcionais de
"integração" desses agentes à vida política. Esse processo de integração
poderia ter ocorrido no contexto de uma via democrática, o que seria o
desejável e esperável em uma situação "normal" de transição à sociedade
industrial. Mas isso não aconteceu. Na Argentina, produziu-se uma via
"nacional-popular" específica, sem que se tenha, porém, gerado uma verdadeira
integração. Para Germani, a problemática argentina apresenta então extrema
complexidade, porque esta outra via não é propriamente um equivalente funcional
de integração social. Origina-se, assim, uma "integração" das massas populares
no contexto do totalitarismo, sendo esta, para Germani, a tragédia argentina. O
regime peronista, como típico movimento "nacional-popular", pela origem, pelo
caráter da sua liderança, pelas circunstâncias de seu surgimento, estava
destinado a representar um ersatzde participação política para as classes
populares, representando uma manipulação por parte das novas elites argentinas.
Sua queda só foi possível pelas suas limitações internas, e a principal delas
foi que ele deveria transformar a participação ilusória em uma intervenção
real, transformando-se profundamente, o que implicava problemas insuperáveis
por causa da sua própria natureza. Dados esses problemas e limites, Germani
estava longe de achar que essa segunda vertente operara de forma similar às
funções de integração possível por meio da via democrática2.
Deve-se notar, todavia, que em outras passagens do livro, escritas
anteriormente e menos indispostas politicamente com o peronismo, bem como menos
marcadas pelo funcionalismo norte-americano, Germani oferece uma interpretação
mais complexa e sutil daquele regime. Nessas passagens, já encontramos a
interrogação posterior sobre as funções desse tipo de "integração trágica", mas
ela está longe de ser exclusiva. Pelo contrário, entram em cena outras
indagações sobre possíveis determinações históricas, sobre como operam as
memórias que abrem, mas também limitam, as possibilidades políticas e sociais
em sociedades concretas e temas como os efeitos dos processos rápidos de
industrialização, migração e urbanização massiva, e os fatores que afetam as
características fundamentais dos grupos sociais, tanto das classes populares
(com escassas experiências sindicais) como das classes médias (sem tradições de
prestígio, porém ainda não proletarizadas) (idem:241-242). Ao mesmo tempo, no
que tange à questão da integração das massas populares, ele inclui em sua
exposição a importância e necessidade de seu reconhecimento, emprestando
centralidade à problemática da construção da própria liberdade dessas massas.
Para Germani, as massas populares não obtiveram nenhum avanço no que diz
respeito à necessidade de realização de reformas estruturais sob o peronismo.
No entanto, o balanço é muito diferente com relação a outros dois elementos
centrais no processo de integração real: a aquisição da consciência de seu
poder e o reconhecimento de seus direitos trabalhistas. Tomando como matriz os
escritos de Simone Weil La Condición Ouvrière , Germani desenvolve reflexões
interessantes acerca do exercício do poder dos trabalhadores e de sua
autoconsciência, tanto no contexto do 17 de outubro como nas lutas sindicais em
geral e, especialmente, nas greves que promoviam3.
Haverem as massas ganho a liberdade a liberdade imediata dos trabalhadores de
poderem afirmar seus direitos ante os patrões, de vivenciarem a organização
sindical, de sentirem-se donos de si próprios, de serem reconhecidos como
iguais consiste no elemento central das teses de Germani, àquela altura,
acerca do peronismo. Posicionando-se contra a interpretação que nomeia como a
teoria do "prato de lentilhas", segundo a qual o apoio popular aos movimentos
nacionais-populares, concretamente o peronismo, derivava da suposta priorização
de interesses e vantagens materiais pelos trabalhadores, Germani afirma que os
resultados mais importantes se devem buscar no reconhecimento dos direitos, e
na circunstância fundamental de que desde esse momento as massas populares
precisam ser levadas em conta. O que importa realmente é a sua "experiência de
participação". Por isso elas apoiaram tão entusiasticamente o regime de Perón.
Para os intelectuais e as classes médias, o regime podia mostrar-se como
sumamente autoritário. Em particular para os primeiros, a liberdade de
expressão era uma "liberdade concreta". Mas este não era o caso dos
trabalhadores, para quem ela queria dizer pouco. A limitação da liberdade de
expressão podia coexistir como outras "significativas experiências de
liberdade". Afinal, os trabalhadores nunca participaram de fato da "alta
política", sentindo, em contrapartida, que haviam ganho a "liberdade concreta
de afirmar seus direitos contra capatazes e patrões [...]". Isso não derivou
apenas, portanto, de uma "pseudoliberdade" oriunda da demagogia do ditador, já
para não falar de que o peronismo não atingiu a "perfeição técnica do
totalitarismo" (o nazismo e fascismo italiano, deve-se supor) (Germani, 1965:
161 e 240-244)4.
Na verdade, na comparação e diferenciação que Germani constrói entre o fascismo
e os movimentos nacionais-populares latino-americanos, é esse tipo de questão
que faz com que a opção das massas populares nestes últimos não seja
efetivamente "irracional", como fora a opção das classes médias naquele
primeiro. Apesar de reconhecer que nesses movimentos nacionais-populares
existia um certo grau de irracionalidade, e que a opção racional mais profunda
teria de ter sido a democrática em sentido mais amplo, também admitia que, como
observado acima com referência aos elementos de "liberdade concreta" que
expressavam, esses movimentos continham alguns aspectos de democracia
substantiva ausentes nos regimes europeus. Ademais, uma via democrática
efetiva, nas condições em que se encontrava a Argentina depois do golpe de
Estado de 19305, era impossível (idem:251). Germani tece esse argumento a
partir das características subjetivas que apresentavam as classes populares na
década de 1940, seu ingresso recente à vida urbana e às atividades industriais,
sua débil ou nula experiência política, seu baixo nível educativo, suas
precárias possibilidades de informação e os limites que as circunstâncias
objetivas opunham à sua ação política, assim como as resistências oferecidas
pelas elites tradicionais, cegas ante a necessidade de mudanças e avessas à
democracia.
Deparamo-nos aqui com um tema central na obra de Germani, o qual permeava todas
as discussões intelectuais da época, no contexto da ascensão do peronismo, e
para o qual ele, como tantos outros, procurou uma resposta específica,
produzindo um de seus textos na verdade mais citados: "A Crise das Sociedades
Modernas". Publicado também muito antes do encontro de Germani com Parsons, ele
acabaria incluído em Política y Sociedad en una Época de Transición, como seu
capítulo 9 (Neiburg, 1997, cap. 5). Vale notar que Germani (1946:12) já havia
inclusive definido a sociologia como a "ciência das épocas de crise", e,
naquele contexto, tratava-se na verdade de uma crise total, individual e
coletiva:
"As tensões psíquicas a que está submetido o homem contemporâneo, a
chamada crise da personalidade, vinculam-se sem dúvida a esta
necessidade de escolher em condições demasiadamente mutáveis, sem
possuir, por outro lado, uma formação espiritual adequada para essa
escolha. Isto não significa [...] que a passagem do tradicional a um
sistema que requer do indivíduo uma crescente capacidade de
autodeterminação não deva ser considerada um avanço [...]. No começo
esta liberdade foi patrimônio somente das elites[...] ela se estende
agora à grande maioria, ao homem comum, e isto representa um
progresso magnífico. Mas ao mesmo tempo representa um grave perigo,
pois para que essa liberdade possa ser efetivamente exercida é
necessário contar com as condições objetivas e subjetivas adequadas,
e tais condições na atualidade não existem [...]" (Germani, 1965:
234).
Em um mundo em mutação constante, em que a tradição perdera seu poder sobre as
pessoas, a reflexividade que ele trata como sinônimo de racionalidade, como
sói acontecer em toda a tradição ocidental passa a ter uma importância
enorme, sem que possa ser contudo efetivamente exercida por todos. Mesmo a
democracia política não oferecia de forma generalizada as possibilidades reais
"de utilizar efetivamente a liberdade e de exercer os direitos que formalmente
pertencem a todos", para além de uma concepção abstrata e retórica. Ao
contrário, era necessário que ela fosse sentida como algo "real e concreto". A
comunidade local, solução de sabor tocquevilliano, surge então em seu argumento
como sendo de fundamental importância para isso. Ademais, a empresa impõe-se
como um domínio crucial para que a liberdade e a responsabilidade assumam um
caráter de experiência concreta, eficaz, sobretudo mediante a participação dos
trabalhadores em sua direção, ao lado mas de forma mais avançada que o aspecto
meramente sindical (com o que, aliás, antecipa as idéias de co-gestão que a
social-democracia alemã viria a adotar). As elites argentinas deveriam admitir
esses passos se não queriam a perpetuação do peronismo, ao mesmo tempo um
ersatz de participação e possibilidade de participação efetiva, embora
limitada, e liberdade concreta para os trabalhadores (idem:236-237).
A caracterização das condições objetivas e subjetivas da liberdade é proposta
de forma mais ampla em textos do mesmo período, em que ele prefacia as obras de
Erich Fromm e Harold Laski com o que a correção da tese de Blanco (2003a) a
respeito da relevância de sua atividade editorial se evidencia sobejamente. Em
relação à tradução para o castelhano do livro de Laski, La Libertad en el
Estado Moderno, Germani introduzia o tema da crise total da sociedade
ocidental. Porém, em vez de conformar-se com a sua decadência e ocaso, ele
demandava a sua ampliação para além da sociedade e do Estado liberais. Tratava-
se agora de conquistar a "liberdade positiva" do socialismo, baseada não na
propriedade, mas nos direitos próprios da personalidade, compatibilizando-a com
a planificação (Germani, 1966, cap. XI). Já no prólogo a Las Condiciones
Subjetivas de la Libertad, de Fromm, Germani (idem, cap. XII) assinalava que,
do ponto de vista da personalidade, a democracia só se podia expandir caso
aquela se desenvolvesse de modo a tornar-se autônoma e capaz de decisões
racionais. Havia muitas possibilidades abertas, mas se estava perto também de
uma catástrofe, uma vez que se vivia uma crise da individualização e se
impunham fortes tendências à homogeneização, de retorno a posições adscritivas
e de entrega dos indivíduos a uma liderança forte. É interessante observar que
essa temática marcou desde sempre a abordagem de Germani, em confluência com
seu funcionalismo originário de corte durkheimiano.
Em seu primeiro texto relevante sobre a modernidade de modo geral, Germani
enfrentara o problema da anomia e da desintegração social que resultavam da
transição para uma sociedade diferenciada, na qual a "atomização" dos
indivíduos era um sintoma e conseqüência de uma integração social incompleta.
Mas a crise era sobretudo de "crescimento", pois o processo de individuação
gerado pela evolução social era em si positivo, devendo ser contudo
"harmônico", o que não ocorria naquele momento em função dos ritmos diversos
que eram impressos às distintas partes do organismo social no processo de
transição. Apoiando-se em Mannheim, Germani afirmava que em particular as
faculdades humanas se haviam desenvolvido desigualmente a técnica e a ciência
haviam avançado muito mais que a ordem moral e social, sem que o domínio
racional da sociedade se estabelecesse; tampouco era o indivíduo capaz de
controlar seus impulsos e sustentar uma "personalidade autônoma". Via-se,
assim, em disponibilidade, pois as estruturas sociais, em particular a
educação, não se mostravam ainda capazes de prepará-lo para lidar com mudanças
extremamente rápidas. Além de tudo, oscilações profundas e problemáticas da
técnica e da economia geravam fenômenos como inflação e desemprego em massa,
logo instabilidade e insegurança. As pessoas viam-se privadas de "mapas"
capazes de guiar-lhes socialmente; uma grande angústia, sem "objeto definido",
derivava dessa situação de desorientação. Assim, a "massa dos homens 'comuns'"
era obrigada a "escolher", em condições mais ou menos livres, "consciente e
deliberadamente os valores e as normas que hão de regê-los", sem recursos
adequados para uma tarefa tão complicada. Essa situação se dramatizava ao serem
eles por outro lado expostos a "técnicas tipificadoras", tema que descobrira em
Fromm (citado ainda da edição original), e complementava sua leitura de
Mannheim (Germani, 1945:55-62).
Esses temas seriam retrabalhados ao longo do desenvolvimento de sua obra.
Germani tecia, assim, em especial à medida que avançava intelectualmente sua
perspectiva sociológica, tomando como ponto de partida um dos temas centrais,
se não o mais central, do imaginário moderno: a liberdade (ver Domingues, 2002,
caps. 1-2). Metodologicamente, embora não discuta a questão de maneira nenhuma,
pode-se mesmo sugerir que, em lugar de ou ao menos paralelamente a uma
descrição estrutural, o que realiza é uma abordagem hermenêutica de caráter
geral. Por outro lado, se não avançou realmente em direção ao existencialismo,
por exemplo, até mesmo um certo colorido quase sartriano pode ser divisado em
seus textos. É verdade que o próprio funcionalismo parsoniano, como veremos
adiante, não desconheceu essa questão. Secundarizou-a, contudo, ao abraçar
preferencialmente a questão da ordem. Germani não dá esse passo, ao contrário.
Sua discussão sobre a passagem da sociedade "tradicional" à "industrial", em
que pesem as referências, por outro lado de modo algum descabidas ao tema da
integração social (que em seu caso poderia ser traduzida por um outro termo,
também ele crucial para o imaginário moderno: a solidariedade) e, bem mais
problemáticas ao "populismo", põe ênfase na questão da liberdade, portanto da
contingência acrescida que caracteriza essa civilização e da demanda de
autodeterminação por parte de indivíduos e grupos, não obstante os problemas
que ameaçavam esses desenvolvimentos. Inclusive sua própria tipologia da ação
social, que seria utilizada decisivamente em seu esquema funcionalista, tem em
seu núcleo o tema da liberdade, referida de outra forma quando ele alude à
questão da "ação eletiva". É precisamente a ela que devemos agora nos remeter.
AÇÃO ELETIVA E LIBERDADE
A influência de Parsons no esquema geral da ação de Germani é, explicitamente,
bastante grande. Ele define a ação com ênfase, para começar, no "marco
normativo", tema sempre de grande peso na obra parsoniana, embora destaque
também que o "fim" da ação é decisivo e que toda ação afinal tem resultados.
Três feixes conceituais organizam o esquema de Germani: 1) o ator, que seria o
"indivíduo" ou o "grupo"; 2) a situação, que se comporia de fins, meios e
condições; 3) e o marco normativo, incluindo normas e pautas, valores e
conhecimentos. Quanto ao ator individual, no que parece ser um plano mais
concreto de análise, trata-se, por um lado, de pessoa, de um ser socializado
no que ele explicitamente reconhece a relevância das formulações de Georg Mead,
cuja obra fez publicar em castelhano e prefaciou; e, por outro, de um feixe de
status e papéis , o que se aproxima da categorização parsoniana no plano
analítico (Germani, 1965:49-53).
Antes de seguir com a exposição desse esquema analítico, algumas ponderações se
fazem necessárias. De início deve-se observar que ele é muito simplificado em
comparação com o esquema parsoniano, muito mais completo e sofisticado6.
Curiosamente, ademais, nessa passagem decisiva Germani cita do autor norte-
americano apenas The Structure of Social Action (1949) e Toward a General
Theory of Action (1962), escrito em colaboração com vários outros autores. Ora,
se no primeiro o esquema da ação parsoniano é ainda incipiente, embora alguns
de seus elementos permanentes já fossem introduzidos na definição analítica do
"ato unidade", no segundo apresenta-se apenas um resumo dos argumentos da
teoria da ação. Ausente encontra-se, sobretudo, The Social System (1979), no
qual o esquema da ação de Parsons atinge sua formulação mais completa. Além de
tudo, é neste livro que o funcionalismo estrutural é proposto de forma
sistemática como um second best inspirado pela biologia, uma vez que a "física
social" postulada em seu primeiro livro se mostrava àquela altura inalcançável.
Em contrapartida, é preciso observar que as formulações da ação de Parsons no
começo da década de 50 incorporavam fortemente o pragmatismo e o
"interacionismo" de Mead. Se Parsons não menciona esses autores, à exceção de
Thomas, as razões para isto são de ordem da disputa acadêmica no campo da
sociologia, no qual, nesse momento, se opunham ao funcionalismo de Harvard e ao
"interacionismo simbólico" de Chicago, capitaneado por Herbert Blumer. Enfim,
deve-se notar que ao contrário do conceito de "ator coletivo" parsoniano, em
que pese seu excessivo "centramento" a priori a noção de "grupo" é pouco
clara no contexto geral na teoria germaniana, tendendo teoricamente a um
conceito sobretudo descritivo, não obstante poderem desfrutar de uma identidade
coletiva (Germani, 1965:29-30) e referir-se a ele em sua obra com freqüência a
atores desse tipo (como as elites), sem elaboração conceitual.
A contribuição realmente decisiva e inovadora de Germani expressa-se na
introdução do conceito de "ação eletiva", que ele opõe tipologicamente à "ação
prescritiva". É inclusive por meio dele que Germani recupera, emprestando-lhe
centralidade em seu esquema propriamente teórico, a questão da liberdade, tema
crucial em sua interpretação original da modernidade, a qual permanece vigente
a despeito de sua avaliação mais severa e tendencialmente unilateral do
peronismo. A ação prescritiva calcar-se-ia em marco normativo "rígido", ao
passo que na ação eletiva a normatividade seria mais flexível. Na ação
prescritiva, meios, condições e fins são "internalizados" pelo ator. Ao
contrário, a ação eletiva impõe uma certa "escolha" (elección) no lugar de um
curso fixo para ação, embora as condições em que ela se processa tenham sempre
de ser levadas em conta pelo ator, não havendo "liberdade absoluta" para
escolher. A eleição torna-se, assim, um "mandato normativo". De fato há uma
certa variabilidade na própria ação prescritiva, uma vez que concretamente
adaptações e desvios são necessários e inevitáveis. Nada se compara nela,
todavia, ao que na ação eletiva deriva de "uma prescrição para escolher, a uma
afirmação da liberdade individual (e da responsabilidade quanto ao exercício
dessa liberdade), como um valor sustentado pela cultura (o 'individualismo')"
(Germani, 1966:57). Isso nada teria a ver com a anomia, que se caracteriza pela
ausência de normas, a qual emerge como conseqüência estrutural e psicológica da
mudança social rápida (Germani, 1965:58-60).
Germani lança-se então, apresentada sua distinção entre os dois tipos de ação,
a buscar os antecedentes de sua proposição. Acha-os principalmente em Weber,
sugerindo uma leitura bastante curiosa e heterodoxa de sua tipologia da ação
(idem:60-64). Ele retoma, assim, a oposição weberiana entre "ação tradicional"
e "ação racional", com relação a valores e a fins. Esta seria, cria ele, um
tipo de ação eletiva. A ação racional com relação a fins implicaria uma
avaliação "racional" e "consciente" dos meios que se deve utilizar para atingir
certos fins, enquanto na ação racional com relação a valores predominaria um
mandato ético, religioso, estético, que deve ser elaborado conscientemente pelo
ator perante a sua situação. Isto demanda reflexão, racionalidade, ao contrário
do que se passa com a ação tradicional7. A diferença entre a formulação de
Weber e a sua, diz Germani, é que esta partiria do marco normativo, não
explícito naquela. No que tange à "ação habitual" weberiana, Germani observa
que ela implicaria um certo automatismo e a ausência de reflexão. Contudo,
distintamente da ação tradicional, muitas ações habituais se incluem no marco
eletivo, ao passo que outras se confinam ao prescritivo. Quando ocorre o
primeiro caso, teve lugar um desenvolvimento "por baixo do nível consciente,
sem etapa reflexiva ou deliberativa", com a ação eletiva tendo sido repetida,
tornando-se hábito após uma escolha haver sido realizada pela primeira vez. Na
verdade, acrescenta Germani, as ações habituais correspondem à maioria das
ações humanas. Por seu turno, a ação afetiva é paralela à distinção entre
eleição e prescrição, implicando "afetos e estados sentimentais" (idem:61-65).
Em que consiste a novidade e relevância da formulação de Germani? Há de fato um
aspecto trivial, quando se toma a sociologia clássica e mesmo a sociologia de
boa parte do século XX, na tipologia e na oposição que Germani propõe entre a
ação eletiva típica das "sociedades industriais" e a ação prescritiva que
remete ao que em princípio convencionalmente se chamou de "sociedade
tradicional", conquanto Germani não utilize este termo, falando em vez disso de
posições e status "adscritos" e não adquiridos (idem:56-57). Certas inovações
são, não obstante, bastante interessantes e frutíferas. Se a comparação é feita
com a discussão weberiana, à qual o próprio Germani atribui destaque, um forte
deslocamento pode ser percebido. Weber estava interessado acima de tudo no
processo de racionalização do "Ocidente" e nas formas de dominação a que isso
dava origem, dando pouca atenção à questão da liberdade, inclusive em sua
avaliação do protestantismo e das religiões mundiais de maneira geral (ver
Domingues, 2002:76). É precisamente a racionalização que sobressai em sua
tipologia da ação (Weber, 1994, vol. 1, parte I, cap. 1). Germani, ao
contrário, constrói sua tipologia com aquela questão ocupando o centro de sua
preocupação. Afinal, sua interpretação historicamente orientada da modernidade
já havia destacado exatamente a liberdade.
Se comparamos, por outro lado, a tipologia de Germani com o esquema da ação
parsoniano em sua forma mais sofisticada, ou seja, aquele presente em The
Social System (1979, cap. 1), vemos que, de uma forma sub-reptícia, a questão
da liberdade, de certo modo anteriormente fraseada como a "questão da ação" em
The Structure of Social Action(1949, caps. 2 e 3), acaba subordinada ao que
este livro também definira como a "questão da ordem", consistindo ambas, na
formulação daquele momento, nas mais importantes para a sociologia. Parsons
percebe de fato que a vida social e a interação entre os atores individuais e
coletivos são permeadas pelo que chamou de "dupla contingência". Contudo, a
estabilidade social, relativa decerto, seria garantida pela socialização dos
atores e a internalização das normas sociais, com o que as possibilidades
diruptivas se fazem de antemão reduzidas, com a liberdade presente
potencialmente na ação desde sempre controlada (ver Domingues, 2001). Germani
escolhe outro caminho: vinculando fortemente com efeito excessivamente a
ação eletiva à modernidade, ele mantém em seu esquema a liberdade do ator como
essencial para esse tipo de formação social. Seria apenas mais recentemente que
esse tipo de problema e solução emergiria fortemente na teoria social8.
De um ponto de vista geral, a teoria da estruturação de Giddens (1976; 1979;
1984), não por acaso influenciada por Sartre, buscou uma síntese própria de
teorias que ele chamou de "objetivistas" e "subjetivistas". Em sua "dualidade
da estrutura", mediante a qual articularia aqueles dois campos, a ação implica
sempre a possibilidade de o ator agir de uma outra maneira. Quer dizer, para
Giddens o ator mantém sempre um certo grau de autonomia e liberdade perante as
"estruturas", que são um "limite" (constraint) mas que ele, por outro lado,
utiliza como um "recurso" para forjar sua própria conduta. Todavia, foi somente
mais tarde que Giddens articulou isso, de forma difusa de fato, à modernidade.
Os mecanismos de "desencaixe" da modernidade (sistemas de peritos e fichas
simbólicas como o dinheiro) retiram as pessoas dos contextos imediatos de sua
existência, obrigando-as a um trabalho mais sustentado em termos reflexivos
(que ele descreve de forma cabalmente cartesiana, implicando uma "dúvida
radical" e a quase transparência do ator para si próprio) de modo a situarem-se
no mundo (Giddens, 1990; 1991). Sua teoria da ação, e a relação desta com a
estrutura, cumpre contudo um papel vago em sua teoria da modernidade, embora a
atmosfera da liberdade de resto nunca realmente nomeada envolva seus
argumentos aqui como em seus trabalhos anteriores. Já Joas (1996) busca dar
conta da "criatividade da ação", contra o normativismo de Parsons, recorrendo
para isso ao pragmatismo. Ele não teoriza a modernidade, tampouco se referindo
à liberdade. Mas a possibilidade permanente de o ator contingentemente mudar
seus cursos de ação permeia sua teorização, que tem a vantagem de avançar para
além do cartesianismo presente na teoria de Weber e em parte na de Parsons.
Isso é verdadeiro ainda que ele não considere que Parsons tende a substituir o
"ato unidade" de The Structure of Social Action por algo como uma "unidade de
ação" mais difusa em The Social System (1979:8-9), quando então os fins se
tornam, sob a influência oculta do pragmatismo, em muitos casos difusos e
imprecisos. Assim, é na "situação" concreta em que se encontra, com seu corpo,
lidando com outros atores e condições materiais, que o ator navega com pouca
clareza de si mesmo e do que o envolve, com fins e meios se confundindo, tendo
consciência pontual de seu fazer concreto. Ambos os autores, Giddens e Joas,
apesar do diálogo inevitável e frutífero com Parsons, descartam
liminarmente o funcionalismo.
Em relação a essas duas abordagens, em que pese suas limitações, no sentido de
reivindicar a clareza dos fins e meios, de pôr ênfase na racionalidade, de
entender a modernidade de forma excessivamente diferenciada de outras formações
sociais, pensando os processos sociais sob a ótica do funcionalismo estrutural
quando buscou dar-lhes precisão teórica, Germani apresenta a distinta
contribuição de pensar a "ação eletiva" nos termos de uma formação social
específica, a civilização moderna, e relacioná-la diretamente a um dos núcleos
fundamentais de seu imaginário a liberdade. Seria necessário, contudo, pensar
a questão da escolha levando-se em conta os processos de desencaixe, de tipos
semelhantes ou diferentes, apontados por Giddens, bem como pensá-la fora dos
quadros do cartesianismo, com uma outra construção do conceito de reflexividade
e considerando a racionalidade sob um prisma que requer um ego menos
transparente e dominador que aquele implicitamente presente na teoria de
Germani.
Seria, ademais, preciso descartar a oposição que Germani retoma entre
modernidade a sociedade "industrial" e sociedades baseadas na ação
adscritiva, pensando-se em lugar disso na ampliação, por conta de mecanismos
sociais, do âmbito da ação e o imperativo de fazê-lo. Por outro lado, isso não
deveria implicar que se abraçasse a ideologia moderna que vê nessa civilização
uma mudança total, cujo resultado seria, pela primeira vez na história, o
estabelecimento da contingência social, perante a qual os processos de
integração não podem ser tampouco pensados em termos funcionalistas. Uma
perspectiva mais interativa que a de Germani, Giddens e Joas (a despeito desse
falar da situação como incluindo outros autores), a exemplo do que se encontra
em Mead e Parsons, ajudaria por outro lado a fugir de uma teoria da ação
excessivamente centrada no ator individual. Além disso, os "grupos" de que fala
Germani, inspirado de forma limitada nos "atores coletivos" da teoria
parsoniana, teriam de ser mais bem teorizados e incorporados ao argumento
nuclear para que uma conceituação mais completa do tema da "subjetividade
coletiva", em geral e na modernidade, pudesse ser alcançada. Talvez assim,
inclusive, sua discussão do papel das "elites", e da relação destas com as
"massas", pudesse assumir forma mais sofisticada e adequada, levando em conta
uma hermenêutica interpretativa presente de algum modo em seus primeiros
textos, a questão da liberdade e a articulação criativa entre as lideranças e
os setores populares. Nem por isso as questões delineadas por Germani perdem em
significado e relevância, e tampouco em originalidade.
CONCLUSÃO
A sociologia de Gino Germani foi uma das mais rigorosas e inventivas da
América, despontando em um dos períodos mais produtivos da disciplina. Nosso
objetivo neste artigo foi destacar alguns de seus aspectos teóricos mais
interessantes, os quais não têm recebido a devida atenção. Não cremos que haja
uma sociologia especificamente regional, sobretudo do ponto de vista da teoria,
embora sejam necessárias adaptações conceituais e sugiram-se também novos
caminhos, a partir dos temas e processos sociais concretos de cada região e
país sobre os quais se debruçam os pesquisadores. Aliás, o próprio Germani
(1964:4-5 e 136) acreditava que seria com a consolidação da disciplina mais ao
sul da América, em princípio e em sua época no plano nacional, que poderíamos
contribuir, sem nacionalismos ou regionalismos limitadores, para o
desenvolvimento universal da disciplina, despregando-nos outrossim de uma
relação de dependência intelectual. Foi exatamente isto que buscamos destacar
aqui: tanto sua teoria da ação quanto sua reflexão sistemática acerca da
liberdade em nossa modernidade consistem em um patrimônio mais geral das
ciências sociais que pode, e deve, ser absorvido na corrente principal de
teorização de nosso tempo.
NOTAS
1. Entre os autores que relacionam as interpretações de Germani com o
funcionalismo estrutural se destacam Dennis (1964), Delich (1977), e
parcialmente Verón (1974) e De Ípola (1989).
2. Murmis e Portantiero (1969) ofereceram a principal crítica, teórica e
empírica, à interpretação de Germani sobre o peronismo, com referência em
particular a suas teses sobre as migrações internas. Ver, ainda, Ramos (1957),
Peña (1971), Di Tella (1965), Laclau (1978) e Torre (1989), entre outros.
Aparentemente o próprio Germani, por razões políticas e talvez pelo
endurecimento do debate, enfatizaria a questão das migrações e as limitações da
nova classe trabalhadora, abraçando também cada vez mais os aspectos
funcionalistas de seu argumento e aproximando-se depois da "teoria da
modernização" (Germani, 1969; 1973; 1978; 1992). Em contrapartida, outros
elementos que destacaremos adiante, sobretudo a liberdade "concreta" que o
peronismo significou para os trabalhadores, são esquecidos.
3. O 17 de outubro é considerado amiúde a data de "fundação" do peronismo, o
dia dos descamisadose da lealdade. Foi então que ocorreram cenas jamais vistas
em Buenos Aires. Subitamente chegaram dos bairros suburbanos os trabalhadores
pobres que se foram concentrando nos pontos mais importantes do centro da
cidade com o grito de liberdade para Perón, que havia sido encarcerado poucos
dias antes. A oposição nomeou essa multidão que tomou o espaço público de
"aluvião zoológico", uma vez que em seu imaginário aqueles acontecimentos não
faziam sentido. O caráter e a manufatura dos episódios foram por anos temas de
debate entre os historiadores e cientistas sociais. Em um pólo encontram-se os
autores que salientam o caráter espontâneo da jornada e a pouca experiência
política dos participantes; no outro estão aqueles que enfatizam o papel dos
sindicatos e seus quadros nesse dia.
4. É nesse sentido que Inés Izaguirre afirma que "talvez porque a busca da
liberdade o tinha obcecado desde a sua adolescência, Germani soube ver estes
significados diferentes do peronismo para as distintas classes: reconheceu
sempre o conteúdo libertador que tinha para o trabalhador e para o militante
sindical perante os patrões e como lhes permitia sentirem-se não submetidos, à
diferença do que ocorria com as camadas médias e particularmente com suas
frações ilustradas" (Solari, 2000:498).
5. Em setembro de 1930, produz-se na Argentina um golpe de Estado com o qual
assume a presidência José Félix Uriburu, dando começo ao que seria conhecido
como a "década infame", caracterizada pelo autoritarismo e pela fraude
eleitoral.
6. Para a obra de Parsons, ver Domingues (2001).
7. Mais adiante ele nota que na modernidade a ação econômica é eletiva, mas que
se prescreve como elegê-la, e que isto fixa o "princípio da racionalidade
instrumental" (Germani, 1965:73).
8. A exceção nesse sentido se encontraria em alguns aspectos da obra de Simmel
(1978), que enfatiza o tema da liberdade, sem atingir sistematicidade
conceitual com relação à teoria da ação, o que, por outro lado, ocorre no que
diz respeito à contingência e à criatividade na obra de Blumer (1969), sem que
a discussão da modernidade vis-à-vis a liberdade seja nela aventada. De todo
modo, esses autores não comparecem à bibliografia germaniana.