Superior Tribunal Militar: entre o autoritarismo e a democracia
INTRODUÇÃO
Quando os militares e seus aliados na sociedade civil se convencem ou são
convencidos de que devem devolver as rédeas do poder à oposição civil, é
natural que vários atores políticos, sejam civis e/ou militares, procurem
negociar a proteção de seus interesses ante o novo governo que se avizinha.
Neste artigo, os atores que nos interessam são as Forças Armadas e o
Judiciário. O interesse a ser defendido é a continuação da presença castrense
no Judiciário. Mais especificamente, a atuação do Superior Tribunal Militar
STM como uma corte que defende, primordialmente, os interesses institucionais
das Forças Armadas relativos aos bens tutelados que lhes são importantes:
hierarquia, disciplina e dever militar.
Diferentemente de outros atores políticos, as Forças Armadas detêm a capacidade
de reverter, pelas armas, o processo de democratização. Por isso mesmo, seu
peso na barganha política é maior do que o dos outros atores, em especial, no
caso brasileiro, em que as Forças Armadas negociaram sua saída do governo em
bom estado político ao contrário, por exemplo, da Argentina, onde os
militares perderam fragorosamente a Guerra das Malvinas, foram protagonistas de
vários golpes palacianos e gozavam de grande impopularidade, mercê da feroz
repressão praticada pelas Forças Armadas.
A manutenção de graus de autonomia política pelos militares, variando de
intensidade de acordo com cada país, é o preço pago pelos democratas para
assegurar a concordância castrense em devolver o governo aos civis1. Essa
autonomia, todavia, deve ser temporária caso se almeje avançar rumo a uma
democracia plena. Plena no sentido de que não apenas as instituições eleitorais
funcionem democraticamente, mas também as instituições coercitivas. Para o
presente artigo, as Forças Armadas e o Judiciário.
Este artigo procurará mostrar como, decorridos quase vinte anos do fim do
regime autoritário, os militares seguem exercendo esse tipo de autonomia no
aparelho de Estado. Uma das provas desse poder castrense reside no fato de o
STM continuar sendo um enclave autoritário2 incrustado estrategicamente no
Judiciário. Ou seja, o STM é um tribunal com características híbridas, pois
apresenta traços tanto do regime autoritário como da frágil democracia em que
vivemos3. Tentaremos mostrar como esse hibridismo se manifesta e suas
implicações danosas para o avanço da democracia. Ao final, procuraremos
explicar o porquê dessa situação.
O ESTADO DA ARTE
Nos estudos sobre transições do autoritarismo para a democracia, a dimensão
militar tem sido constantemente negligenciada. Isto se deve, em boa medida, ao
conceito de Schumpeter (1942) sobre democracia. Para ele, a democracia é
minimalista no sentido de que "pode suportar, na melhor das hipóteses, apenas
um envolvimento político mínimo: aquele tipo de envolvimento que poderia ser
considerado suficiente para legitimar o direito das elites políticas em
condições de competir para governar" (Held, 1987:153).
Os adeptos da concepção minimalista focam sua atenção nas eleições. Confundem
democracia eleitoral com regime democrático. E por isso não dão importância às
instituições coercitivas, como as Forças Armadas e o Judiciário, pois elas não
são submetidas ao crivo da competição eleitoral. Desse modo, é comum encontrar-
se a afirmação de que a democracia brasileira está consolidada, haja vista os
avanços obtidos no nosso sistema eleitoral. Por exemplo, Bresser Pereira
escreveu que "em 1985 o país completou sua transição democrática; em 1988
consolidou-a com a aprovação da Constituição" (1998:240).
Discordamos da ênfase dada ao componente eleitoral da democracia. Eleição é
condição necessária, mas não suficiente para se dizer que há uma democracia
consolidada. Há outros fatores a serem levados em consideração. Limitar-nos-
emos a um deles: o controle civil democrático sobre os militares4. Para os
propósitos deste artigo, realçaremos o notável poder de interferência que as
Forças Armadas possuem no trato de seus interesses institucionais no âmbito do
Poder Judiciário.
A importância de existir o controle civil sobre os militares reside, portanto,
no fato de se garantir aos governantes eleitos a efetiva capacidade de
governar. Przeworski et alii (2000), influenciados por Schumpeter, rechaçam
esse critério. Para eles, as classificações dos regimes não se devem basear em
juízos sobre o exercício real do poder. Chegam a afirmar que,
"[...] em algumas democracias (de que Honduras e Tailândia são
protótipos), o governo civil não é mais que uma delgada camada
encobrindo o poder militar que é, de fato, exercido por generais
reformados. Mas enquanto os governantes forem eleitos em eleições nas
quais outros grupos tenham a chance de vencer e enquanto não usarem o
poder dos seus cargos para eliminar a oposição, o fato de o chefe do
Executivo ser um general ou um serviçal de general não acrescenta
nenhuma informação relevante" (idem:35).
Mainwaring et alii (2001), por sua vez, discordam da visão de Przeworski e
chamam sua concepção sobre democracia de subminimalista. Uma concepção
dicotômica, pois só admite dois mundos possíveis: democracia e não-democracia.
Para Mainwaring, há uma situação intermediária que ele define como sendo semi
(democracia)(autoritarismo)5. Ou seja, há países que não podem ser definidos
como democracias plenas nem como totalmente autoritários. São regimes híbridos,
por apresentarem características tanto democráticas como autoritárias no
funcionamento de suas instituições.
Nessa zona híbrida entre o autoritarismo e a democracia, advogamos, encontra-se
o Brasil. Zaverucha (1994; 2000) já indicou vários exemplos de como os
militares brasileiros dificultam e, às vezes, impedem a efetiva capacidade de
civis governarem. No entanto, não existe nenhum estudo sobre o comportamento do
STM, visto sob essa perspectiva. É o que nos propomos a fazer.
A ORIGEM DO STM
O Superior Tribunal Militar tem suas origens no Alvará de 1º de abril de 1808,
do então príncipe regente de Portugal, Dom João, que criou o Conselho Supremo
Militar e de Justiça, com sede na cidade do Rio de Janeiro. Tal Conselho
exercia funções administrativas e judiciárias, julgando, em última instância,
os processos criminais dos réus sujeitos ao foro militar.
O Conselho Supremo Militar e de Justiça era integrado por treze membros: quatro
conselheiros de Guerra e do Almirantado de Portugal, seis oficiais nomeados
como vogais (os quais, na maioria das vezes, galgavam à posição de Conselheiro
de Guerra) e três juízes togados, um dos quais para relatar os processos. Todos
nomeados livremente pelo monarca6. A Constituição do Império, de 1824, não
trouxe disposições acerca da jurisdição militar, sendo a matéria regulada no
âmbito da legislação ordinária.
Após o advento da República, deu-se a extinção do Conselho Supremo Militar. A
Carta republicana, de 1891, não inseriu, no título destinado ao Poder
Judiciário, nenhuma referência à Justiça Militar, apenas prevendo, em seu
artigo 77, foro especial para os crimes militares, estruturado em um Supremo
Tribunal Militar e Conselhos destinados ao julgamento de delitos. A organização
da corte seria estabelecida em lei ordinária. Criavam-se, assim, órgãos
judicantes de natureza especial, não integrados ao Poder Judiciário, fato que
viria a se repetir em 1934, com a instituição da Justiça do Trabalho, de
natureza administrativa.
Segundo Bastos (1981), até 1893, a presidência do Conselho era exercida pelo
chefe de Estado; por ela passaram, portanto, o príncipe regente Dom João, os
imperadores Pedro I e Pedro II, e os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano
Peixoto.
Em 18 de junho de 1893, pelo Decreto Legislativo nº 149, foi criado o Supremo
Tribunal Militar, com a mesma competência antes atribuída ao Conselho Supremo
Militar, mas com composição de quinze ministros, sendo quatro da Armada, oito
do Exército e três togados. Também foi regulado, pelo mesmo decreto, o
exercício da presidência do Tribunal, que coube ao "general" mais graduado que
dele fizesse parte (idem).
O Decreto nº 14.450, de 30 de outubro de 1920, que instituiu o Código de
Organização Judiciária e Processo Militar, reduziu a nove o número de ministros
do STM, sendo dois da Armada, três do Exército e quatro togados, estes
escolhidos entre os auditores de segunda entrância ou entre bacharéis em
direito com seis anos de prática, de preferência magistrados. O mesmo decreto
inovou ao prescrever a eleição do presidente e do vice-presidente da corte.
Em 1926 ocorreu nova alteração. O Decreto nº 17.231-A, que baixou o Código de
Justiça Militar, aumentou para dez o número de ministros, agora três do
Exército, dois da Armada e cinco entre magistrados e bacharéis em direito.
Foi a Constituição de 1934 que atribuiu ao Supremo Tribunal Militar o status de
órgão do Poder Judiciário. Com isso foi eliminada a competência administrativa,
mantendo-se a função jurisdicional. Permaneceu, todavia, na esfera
infraconstitucional o disciplinamento de sua estrutura e funcionamento. Nesse
mesmo ano, o número de ministros foi, mais uma vez, aumentado, passando a onze
(Decreto nº 24.802, de 14 de julho): quatro do Exército, três da Armada e
quatro civis, dos quais três escolhidos entre auditores e um, entre cidadãos de
notório saber em ciências sociais.
A criação do Ministério da Aeronáutica, em 1941, exigiu nova modificação na
estrutura do Supremo Tribunal Militar, para inclusão de integrantes daquela
Força. O Decreto nº 4.235, de 6 de abril do mesmo ano, manteve em onze o número
de membros, sendo três do Exército, dois da Armada, dois da Aeronáutica e
quatro civis.
Com a redemocratização, a corte de cúpula passou a se denominar Superior
Tribunal Militar, por força da mudança promovida pela Carta Constitucional de
1946. Permaneceu na esfera ordinária o disciplinamento quanto à estrutura da
corte.
Em 1961 foi instituído, pelo próprio Tribunal, o rodízio entre as três Armas na
presidência do órgão7.
O Ato Institucional nº 2, de 1965, modificou o texto da Constituição de 1946,
ampliando para quinze membros a composição do STM, tal como no início do
período republicano (Decreto nº 149/1893), sendo quatro do Exército, três da
Marinha, três da Aeronáutica e cinco civis. A Constituição de 1967 incorporou o
texto do AI-2, transferindo para o corpo constitucional o disposto sobre a
composição do STM (Soares, 1994/1996).
Em maio de 1965 ocorreu fato inédito na história da corte: um ministro civil
assumiu, ainda que interinamente, sua presidência. O ministro Washington Vaz de
Mello ocupou o cargo por três meses, em virtude de doença do então titular, até
a eleição do sucessor8.
A organização e o funcionamento da Justiça Militar são disciplinados pela Lei
nº 8.457, de 4 de setembro de 1992. No referido diploma, o artigo 1º define
como órgãos da Justiça Militar: o STM; a Auditoria de Correição; os Conselhos
de Justiça; os Juízes-Auditores; e os Juízes-Auditores Substitutos9. Todas as
Auditorias, bem como o STM, têm jurisdição mista, competindo-lhes, portanto,
processar e julgar os crimes militares praticados por civis e/ou militares
integrantes das Forças Armadas (Costa Filho, 1994/1996).
A INSÓLITA COMPOSIÇÃO DO STM
Até 1934, o então chamado Supremo Tribunal Militar tinha atribuições
administrativas concorrentes com a função jurisdicional, herança do Conselho
Supremo Militar. Com a Constituição daquele ano, a corte passou a integrar o
Poder Judiciário da União, abandonando a feição administrativa10.
Não é de estranhar que, no exercício de funções administrativas, "coadjuvando o
governo em questões referentes a requerimentos, cartas-patentes, promoções,
soldos, reformas, nomeações, lavratura de patentes e uso de insígnias, sobre as
quais manifestava seu parecer" (Bastos, 1981:21), fosse o Conselho e, depois,
o Supremo Tribunal Militar constituído majoritariamente por militares.
Para o julgamento dos processos criminais, aos militares juntavam-se três
ministros togados um relator e dois adjuntos , para o despacho de todos os
processos remetidos ao Conselho de Justiça11. Como não poderia deixar de ser, a
matéria jurídica era enfrentada e relatada por magistrados com formação
jurídica. Os militares apenas votavam.
Com a prevalência da função jurisdicional do Supremo Tribunal Militar, a partir
de 1893, observou-se natural tendência à redução do número de ministros
militares e à ampliação da quantidade de ministros civis, levada a cabo em
1920. Além disso, a norma que regia a matéria estabelecia a exigência de
conhecimento jurídico aos membros civis, que deveriam ser escolhidos entre
auditores e advogados com ao menos seis anos de prática, de preferência
magistrados. Na mesma linha seguiu a Constituição de 1926, que igualou o número
de membros civis ao de militares. Aqueles seriam advindos da magistratura,
podendo, ainda, ser escolhidos entre auditores, membros do Ministério Público
ou membros da advocacia. Nítida, por razões óbvias, tratando-se de um tribunal,
a opção prioritária por magistrados de carreira nesse período.
Sob a ditadura Vargas, dá-se uma reversão na tendência; curiosamente, quando a
Justiça Militar passa a integrar o Poder Judiciário e se elimina a vertente
administrativa de sua atividade, portanto, no instante em que nada mais
justificaria a presença de militares em sua composição, desequilibra-se a
relação numérica em favor destes. A Constituição de 1934 não faz mais menção à
preferência por magistrados, dispondo que a escolha dos membros civis se dará
entre auditores e um cidadão de notável saber na área de ciências sociais.
Injustificadamente, a redemocratização do país, em 1946, não alterou o quadro.
Mantiveram-se os critérios e as quantidades. Sob novo regime autoritário, a
partir de 1965, amplia-se drasticamente o número de ministros militares e, na
prática, elimina-se a participação de magistrados de carreira na composição do
então Superior Tribunal Militar.
Por sua vez, a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, seguida
pela de nº 7/77, permitiram que o STM funcionasse em turmas. Isto,
infelizmente, não foi posto em prática até os dias de hoje. O STM é a exceção
em relação aos outros tribunais superiores12. Outro aspecto curioso diz
respeito ao quórum mínimo para a reunião plenária da corte. Existindo,
atualmente, dez ministros militares e cinco ministros civis no STM, nas sessões
de julgamento ou administrativas, nos termos do Regimento Interno do Tribunal,
artigo 65, é necessária a presença mínima de oito ministros, sendo, no mínimo,
quatro militares e dois civis. Isto embora os ministros civis sejam os
detentores dos conhecimentos técnicos. O presidente da sessão pode ser tanto um
ministro militar quanto um ministro civil. Significa dizer que se, por exemplo,
estiverem presentes três militares e cinco civis não haverá sessão. Mas, a
sessão pode ser iniciada com a presença de seis militares e dois civis. Com tal
regra, a tendência é a de que não se realizem sessões sem a garantia da maioria
dos militares, salvo na remota hipótese de estarem presentes todos os cinco
ministros civis e apenas quatro ministros militares.
Findo o regime militar, a Constituição de 1988 conservou a hegemonia castrense
e a exclusão da magistratura. No Superior Tribunal Militar, dos quinze
ministros, dez são oficiais-generais e cinco são civis. Destes, três são
escolhidos entre advogados; dos outros dois, um virá do Ministério Público
Militar, o outro será escolhido entre os juízes-auditores (o único juiz de
carreira, portanto). E mais: somente militares no mais alto grau da carreira
podem se tornar ministros do STM. Ou seja, um general-de-exército sem qualquer
conhecimento jurídico está apto a ser ministro, mas um coronel da ativa
bacharel em direito não pode ser indicado. É a hierarquia militar prevalecendo
sobre o conhecimento jurídico em um órgão do Poder Judiciário. Não se pode
olvidar, ainda, que o presidente da República, na condição de comandante-em-
chefe das Forças Armadas, situa-se em posição hierárquica superior aos
ministros militares já que estes mantêm as patentes , o que não deixa de ser
situação deveras curiosa, considerada a independência que deve marcar o
relacionamento entre os Poderes da República.
Mesmo perdendo competências desde 1979, quando deixou de apreciar crimes
políticos, o STM continua, basicamente, com a mesma estrutura criada durante o
regime militar. Ser nomeado para o STM é, na caserna, como adquirir a "quinta
estrela"13. O ministro ganha cerca do dobro do que ganharia na caserna, passa a
ter remuneração superior à do presidente da República, além de se aposentar
como magistrado, em vez de militar. Nos gabinetes do STM, contarão com os
préstimos de praças cedidos pelo Exército, situação que já lhes gerou
constrangimentos. O ex-ministro do Exército Zenildo Lucena, ao saber que o STM
decidira não aceitar a indicação do coronel da reserva João Fagundes para uma
vaga civil14, requisitou trinta militares que trabalhavam no STM como
estafetas, motoristas etc.
O ALIJAMENTO DO JUDICIÁRIO NO PROCESSO DE ESCOLHA
No sistema constitucional brasileiro, excluída a hipótese de nomeação para o
Supremo Tribunal Federal STF e o Superior Tribunal Militar, da escolha dos
membros dos tribunais, inclusive os superiores, participa, necessariamente, a
própria corte. A idéia é a da participação do três Poderes na seleção dos
integrantes das cortes. No Superior Tribunal de Justiça e no Tribunal Superior
do Trabalho, as vagas que surgem são preenchidas por juízes togados, ocasião em
que os próprios tribunais elaboram listas tríplices a serem encaminhadas ao
presidente da República, ou por integrantes da carreira da advocacia ou do
Ministério Público quinto constitucional , circunstância em que os tribunais
recebem listas sêxtuplas dos órgãos corporativos respectivos, para redução a
listas tríplices. No STM nada disso ocorre. A corte não participa do processo
de escolha. Tanto os ministros militares quanto os civis são indicados à
revelia do STM.
Propostas no sentido de que a própria corte viesse a participar da escolha dos
seus membros os civis, diga-se malograram na reforma do Judiciário que
acaba de ser aprovada na Câmara, como será explicitado adiante, de modo que o
STM continuará sendo bizarra estrutura judiciária, de cuja composição o Poder
Judiciário não participa.
Será que o argumento de resguardar os princípios da hierarquia e da disciplina
que devem reger as Forças Armadas justifica a existência de estrutura
judiciária especial para os militares, vis-à-vis os demais cidadãos civis? Como
se pode assegurar imparcialidade a uma corte composta, de forma majoritária,
pelos pares do réu?
Os critérios constitucionalmente fixados para o recrutamento de juízes para a
Justiça Militar operam contra a garantia da independência judicial. Procura-se
assegurar a preponderância dos militares nas cortes, criando-se ambiente
propício para ingerências da caserna, com natural ameaça à imparcialidade. Como
bem lembra Dallari "Ainda perdura a situação privilegiada do Exército na
organização nacional, inclusive pela garantia de tratamento diferençado quanto
à responsabilidade perante a justiça [...] que se estendeu aos demais ramos das
Forças Armadas" (1996:134).
Se com a interveniência dos tribunais na seleção dos seus membros a
interferência política é notória, quando se exclui a participação das cortes
tal ingerência se potencializa. Isto porque a base de escolha é elastecida. É o
que se verifica com facilidade no STM, principalmente quando se trata de
ministro oriundo da classe dos advogados. Equipara-se, assim, no particular
aspecto da absoluta discricionariedade do presidente da República, o STM ao
STF, órgão de cúpula do Poder Judiciário. Ao se comparar o STM às demais cortes
de competência similar, nota-se a omissão de importantes requisitos fixados
constitucionalmente para o acesso aos demais tribunais superiores, como veremos
a seguir.
FUGINDO À REGRA: A PERMANÊNCIA DO MINISTRO-OFICIAL NA ATIVA
O artigo 9º da Lei nº 6.880/80, que instituiu o Estatuto dos Militares, dispõe
que os oficiais-generais nomeados ministros do Superior Tribunal Militar são
regidos por legislação específica. Ainda assim, cumpre examinar as regras a que
se submetem os militares para que se demonstre que a permanência dos oficiais
nomeados ministros do STM na atividade constitui casuísmo inexplicável.
O artigo 3º, § 2º, da mesma lei determina que o militar somente pode se
encontrar em duas situações: na ativa ou na inatividade. Na ativa encontram-se
os de carreira; os incorporados às Forças Armadas para prestação de serviço
militar inicial; os componentes da reserva das Forças Armadas quando
convocados, reincluídos, designados ou mobilizados; os alunos de órgão de
formação de militares da ativa e da reserva; e, em tempo de guerra, todo
cidadão brasileiro mobilizado para o serviço ativo nas Forças Armadas.
Já na inatividade se situam os da reserva remunerada, quando pertencem à
reserva das Forças Armadas e percebem remuneração da União, estando porém
sujeitos à prestação de serviço na ativa, mediante convocação ou mobilização, e
os reformados, quando, tendo passado por uma das situações anteriores, estejam
dispensados, definitivamente, da prestação de serviço na ativa, mas continuem a
perceber remuneração da União.
Prevê o Estatuto dos Militares, no artigo 80, a hipótese da agregação,
"situação na qual o militar da ativa deixa de ocupar vaga na escala hierárquica
de seu Corpo, Quadro, Arma ou Serviço, nela permanecendo sem número". O artigo
81 enumera os casos em que a mesma ocorrerá, sendo uma delas a do militar que
"houver ultrapassado 6 (seis) meses contínuos na situação de convocado para
funcionar como ministro do Superior Tribunal Militar" (inciso V). Logo, o
oficial convocado para substituir o ministro do STM em seus impedimentos,
permanecendo nesta situação por mais de seis meses, considerar-se-á agregado.
Nos termos do artigo 82, o militar será, ainda, agregado quando for afastado
temporariamente do serviço ativo, entre outros, por motivo de:
"XII ter passado à disposição de Ministério Civil, de órgão do
Governo Federal, de Governo Estadual, de Território ou Distrito
Federal, para exercer função de natureza civil;
XIII ter sido nomeado para qualquer cargo público civil temporário,
não-eletivo, inclusive da administração indireta;"
Significa dizer que o militar que exerça função de natureza civil ou cargo
público em qualquer órbita da administração será agregado, podendo, a qualquer
tempo, ser determinada a sua reversão à Força.
O oficial-ministro do STM não fica agregado, nem passa à reserva. A situação é
curiosa. Em outras hipóteses, a permanência em afastamento por mais de dois
anos, "agregado em virtude de ter passado a exercer cargo ou emprego público
civil temporário, não-eletivo, inclusive da administração indireta", determina
a transferência para a reserva remunerada, ex officio, conforme dispõe o artigo
98 do Estatuto dos Militares.
O artigo 3º da Lei nº 8.457/92 repete os termos do artigo 123 da Constituição
Federal, com o acréscimo de apenas um parágrafo, que assim dispõe: "§ 2º Os
Ministros militares permanecem na ativa, em quadros especiais da Marinha, do
Exército e Aeronáutica". Tal disposição cria situação em tudo distinta do
regramento geral fixado para os militares que exercem funções ou cargos de
natureza civil, em qualquer esfera da administração pública, vide o caso do
ministro Carlos de Almeida Batista. Após presidir o STM, foi nomeado, pelo ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso, comandante da Aeronáutica, com o que se
deu a sua passagem para a inatividade, seguida de convocação para o serviço
ativo. A contradição está em que para ser ministro do STM o militar precisa
estar em atividade, mas para comandar a Arma, não.
O que justifica a situação híbrida de ser magistrado, do órgão de cúpula da
Justiça Militar e, ao mesmo tempo, ocupar o posto mais elevado da carreira
militar? Por que se conjuga, de modo único, a experiência da farda com os
conhecimentos jurídicos da toga? Na visão dos militares, é a hierarquia que
deve reger as suas relações. Assim, não poderia o oficial julgar outro oficial
se estivesse em situação de inferioridade hierárquica, o que seria provocado
pela inatividade. Olvida-se, entretanto, o aspecto óbvio de que, no STM, não
mais se processam os feitos de natureza administrativa, como fazia o antigo
Conselho Supremo Militar. Sendo a corte órgão jurisdicional, não há como falar
em vínculo hierárquico entre julgador e jurisdicionado. Assim deve ser no
Estado de direito democrático.
MILITARES NOS QUARTÉIS E, QUANDO CONVENIENTE, NO TRIBUNAL
Não está em discussão, aqui, a legitimidade da Justiça Militar. Admitindo-se a
necessidade da existência da legislação penal militar, da Justiça Militar e de
tribunais militares, o que justifica serem os mesmos constituídos por
militares? É isso o que se pretende examinar.
Obtempera o ministro Moreira Alves que "o juiz singular, por mais competente
que seja, não pode conhecer as idiossincrasias da carreira das armas, não
estando em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na
hierarquia e disciplina das Forças Armadas"15.
O argumento é semelhante ao utilizado pelos defensores da representação
classista para justificar sua permanência nos órgãos da Justiça do Trabalho:
tratando-se de estrutura especializada da Justiça, destinada a julgar os
conflitos decorrentes da relação entre capital e trabalho, imprescindível seria
a existência de representantes de empregados e empregadores, para trazer a
experiência da relação de trabalho para o seio do órgão julgador.
Nada mais equivocado. A aplicação da hipótese legal aos fatos não pressupõe o
conhecimento prévio destes pelo julgador. Tampouco intimidade com o ambiente
onde eles ocorrem. Nem hierarquia entre julgador e jurisdicionado. Se assim
fosse, os crimes cometidos por padres teriam de ser julgados pelo bispo; por
funcionários públicos, pelo chefe da repartição; por agentes da Polícia Civil,
pelo delegado (Melo Filho, 2002).
No caso dos militares, se lhes sobra conhecimento da realidade da caserna,
faltam-lhes, por completo, conhecimentos jurídicos, preparo técnico, este sim
essencial. No STM, os ministros militares, em geral, não têm formação jurídica.
Tanto é que os pareceres técnicos são preparados por suas assessorias,
compostas por bacharéis em direito. Entre os civis, salvo o magistrado de
carreira e o membro do Ministério Público, nada assegura que os advogados
tenham profundo conhecimento do Direito Penal Militar.
O ministro Carlos Alberto de Almeida Batista, em discurso na Câmara dos
Deputados, afirmou que "a questão da competência técnica dos membros dos
tribunais castrenses encontra fácil resposta na composição dos Tribunais e dos
Conselhos de Justiça [...]. O senso de justiça não pertence somente aos
bacharéis em Direito; ele é inerente ao ser humano [...]"16. Ora, assim como ao
arquiteto não basta saber desenhar, ao julgador não basta o senso de justiça.
Ele é necessário, mas não suficiente. A técnica é imprescindível.
O reconhecimento de tal evidência fez com que, desde o nascedouro, na corte
militar, o relato dos feitos coubesse unicamente aos juízes togados. Os
militares apenas votavam, salvo raras exceções. Somente com o regime militar e
a atribuição aos tribunais castrenses da competência para julgar os crimes
ditos contra a segurança nacional é que os ministros militares passaram a
relatar os feitos, por razões óbvias.
Prova da prescindibilidade da participação de militares no julgamento dos
crimes militares encontra-se na órbita da Justiça Militar Estadual. Se na
primeira instância os órgãos julgadores, nos estados, se organizam de maneira
semelhante aos Conselhos de Justiça da Justiça Militar da União, sob a forma de
escabinato17, o segundo grau de jurisdição é exercido, na maioria das unidades
da Federação, pelo Tribunal de Justiça. Com efeito, apenas nos Estados de Minas
Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo, onde o efetivo das Polícias Militares
supera os 20 mil homens, há tribunais militares. Nos demais, é o próprio
Tribunal de Justiça que julga, em grau de recurso, os crimes militares. Não há
militares entre os julgadores e não consta que haja qualquer desvirtuamento
nem poderia haver nos pronunciamentos jurisdicionais. A corte de civis
aplica, sem problemas, a legislação penal militar (Melo Filho, 2002).
A verdade é que o modo de funcionamento da Justiça Militar no Brasil, em
particular o da União, constitui-se em injustificável exceção. Nela, disciplina
e hierarquia militares transcendem os limites dos quartéis para terem assento
no Poder Judiciário, que, via de regra, deveria estar adstrito aos limites do
justo. De que importa a graduação se o que se pretende é a aplicação do direito
onde se tem assegurado, por força constitucional, o princípio da isonomia? Além
do mais, cumpre reconhecer que a atividade jurisdicional somente se perfaz de
forma plena quando aqueles que devem exercê-la os juízes, cuja missão lhes
foi delegada pelo Estado a realizam de forma imparcial e independente (Moura
de Carvalho, 2002). Imparcialidade e independência que, com efeito, são
vulneradas pelo critério de escolha dos integrantes do STM.
Na verdade, trata-se de típico caso de enclave autoritário no aparelho de
Estado. Extinta a representação classista da Justiça do Trabalho, hoje, no
Brasil, somente nos tribunais militares há a participação de leigos nos
pronunciamentos jurisdicionais. A outra exceção é o Tribunal do Júri, que se
destina exclusivamente ao julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Ainda
assim, não são poucas as críticas ao júri popular.
O STM funciona como ator político relevante, não apenas pelo fato de seus
membros serem juízes, mas também por serem militares da ativa. O ex-ministro da
Justiça José Carlos Dias sentiu na pele o poder castrense. Dias, em fevereiro
de 2000, anunciou18 que patrocinaria alterações no Código Penal Militar CPM
que foi editado pela Junta Militar em 196919. Inclusive criou uma comissão para
este fim20. Partes do CPM não se ajustam à Constituição em vigor. Afora isto,
há tipos penais que merecem revisão. O artigo 235, por exemplo, pune com prisão
de seis meses a um ano quem praticar, em estabelecimento militar, "ato
libidinoso, homossexual ou não".
Assim que o Diário Oficial publicou os nomes dos integrantes da referida
comissão, o STM partiu para o ataque. O então presidente do STM, brigadeiro
Sérgio Xavier Ferolla, não gostou de saber que a comissão havia sido criada sem
que o tribunal fosse previamente consultado21. Em face da reação, e com receio
de deflagrar uma crise militar, Dias optou por dissolver a comissão22. A
decisão foi tomada às pressas. Tanto é que as passagens aéreas para seus
membros virem a Brasília já haviam sido emitidas23. Lamentando a perda da
primeira oportunidade, na história do país, de discussão pública do Código
Penal Militar, a advogada Sheila Bierrenbach foi taxativa: "Os fatos
demonstram, inequivocamente, que a democracia no Brasil não se encontra
consolidada. Antes os pit bulls andavam soltos. Agora, estão escondidos sob a
pele de cordeiro"24.
Um outro episódio notório, fora da seara jurídica, envolveu o ministro
brigadeiro Ferolla. Em novembro de 2000, o presidente Fernando Henrique Cardoso
enviou tropas do Exército para proteger sua fazenda, localizada em Buritis
(MG), contra possível invasão por parte do Movimento dos Trabalhadores Rurais
sem Terra. O governador de Minas, Itamar Franco, interpretou esta medida como
uma tentativa de desestabilizá-lo. Julgou que a polícia mineira é que deveria
ser acionada. Preocupado, procurou apoio entre militares em Brasília. Dentre
eles, o presidente do STM, brigadeiro Ferolla (Meireles e Miranda, 2000). Mais
recentemente, Ferolla defendeu a criação da Agência Nacional de Aviação Civil,
que retiraria a aviação civil do controle da Aeronáutica (Barbosa, 2004).
Outro exemplo revela a disparidade que pode haver entre decisões tomadas por um
tribunal composto por militares e a posição de outra corte, integrada por
civis, sobre um mesmo assunto.
A Lei nº 9.299 foi sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 7 de
agosto de 1996. Tal lei dispõe que a competência para o julgamento de crime
doloso cometido por militares contra civis é da Justiça Comum. Ante a reação
dos militares federais, treze dias depois o presidente Fernando Henrique
Cardoso enviou ao Congresso o Projeto de Lei nº 2.314, propondo a exclusão dos
militares federais mas não dos militares estaduais da Lei nº 9.299/96.
Enquanto o Congresso não vota tal projeto de lei, o STM considerou
inconstitucional a Lei nº 9.299/96 e militares federais acusados de crime
doloso contra civis continuam sendo julgados pelas Auditorias Militares25.
Por sua vez, o Superior Tribunal de Justiça, que julga, em grau de recurso, os
crimes cometidos por policiais e bombeiros militares, não vislumbrou nenhuma
inconstitucionalidade na lei. Tanto é assim que os policiais militares
envolvidos na suposta chacina de Eldorado dos Carajás foram julgados pela
Justiça Comum do Estado do Pará.
Evidencia-se, aqui, sintomática divergência jurisprudencial, em decorrência da
qual se estabelece curiosa distinção prática: a existência de dois tipos de
militares, sendo os de primeira categoria os militares federais e os de segunda
categoria, os militares estaduais. Embora ambos sejam militares, mesmo que
cometam crime idêntico, serão julgados por tribunais e segundo leis penais
distintas. Trata-se de decisão política, pois não há explicação ontológica para
a distinção entre crime militar praticado por militar federal e crime militar
praticado por militar estadual. Estranha quebra da isonomia, em um Estado de
direito.
Merece registro, ainda, a transposição do princípio hierárquico para a
jurisdição, como evidencia o fato a seguir narrado. No dia 4 de fevereiro de
1998, o então presidente do STM, general Soares Moreira, mandou lacrar a 4ª
Auditoria Militar Federal do Rio de Janeiro. Os prazos dos processos em
tramitação foram suspensos, e os réus cujos prazos de prisão se esgotassem
seriam liberados. O fio da história foi a punição administrativa da juíza
Rosaly Cunha Machado Lira, que fora transferida para Bagé, por ter supostamente
ofendido o presidente do STM durante diálogo telefônico. A juíza ficou
conhecida em 1995, por ter denunciado o sumiço do livro de registro de armas e
bens de presos políticos dos cartórios da Justiça Militar do Rio de Janeiro26.
Inconformada com a punição, a juíza recorreu à Justiça Comum e o juiz da 26ª
Vara Federal proferiu duas sentenças a ela favoráveis: uma anulando o processo
administrativo e outra, em ação cautelar, garantindo o seu direito de voltar ao
trabalho enquanto o recurso oposto contra a decisão na ação principal não fosse
julgado. Rosaly Lira reassumiu suas funções no dia 8 de janeiro de 1998. O juiz
que a substituiu, Mena Barreto Assunção, se encontrava de férias. Ao retornar,
em 4 de fevereiro de 1998, deu-se o impasse: dois juízes para a mesma vaga.
Não se está analisando quem está correto, mas sim o fato de o presidente do
STM, antes de esgotar os recursos legais, ter passado o cadeado na porta da
Auditoria. Como lembrou Dias (1998), o Brasil é um país estranho: uma corte de
Justiça presidida por um general da ativa desacata decisão judicial27.
Riocentro
De acordo com a legislação penal militar, o arquivamento de um inquérito não
impede a instauração de outro, se novas provas aparecerem. Novas provas
surgiram dezoito anos depois daquele que poderia ter sido o maior atentado
terrorista urbano da história brasileira: as explosões no Riocentro28. Mesmo
assim o caso não foi reaberto.
Em 1999, o legista Elias Freitas, responsável pela necropsia do sargento do
Exército Guilherme Pereira do Rosário, revelou, pela primeira vez, ter dito na
ocasião ao encarregado do Inquérito Policial Militar do Riocentro, coronel Job
Lorena, que a bomba explodira no colo do sargento. Lorena, todavia, divulgou
(a) que o artefato explodira entre o banco e a porta direita do carro onde
estava o militar e (b) que a bomba fora colocada por algum grupo terrorista
(Otávio, 1999). Afora isto, o coronel da reserva da Polícia Militar, Ile
Marlen, garantiu que, momentos depois da explosão da bomba, cinco agentes
militares o procuraram. Queriam autorização para desmontar duas bombas
instaladas no interior do pavilhão onde se realizava o show musical (idem).
Ante os novos fatos, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados
solicitou a reabertura do caso Riocentro. A procuradora da República Gilda
Berger aceitou o pedido. Para Berger, o caso nem fora alcançado pela Lei da
Anistia nem estava prescrito29, sem esquecer que o inquérito jamais se
transformou em processo, condição sine qua non para os efeitos da Lei de
Anistia. Diz o parecer da procuradora que a decisão do STM, em 1988, de
enquadrar o caso na Lei de Anistia foi um autêntico erro in procedendoprovocado
pelo Ministério Público Militar (Seleme, 1999). Afinal, a validade da Lei de
Anistia era até 1979, e o caso do Riocentro ocorrera em 1981.
A aprovação do relatório do Inquérito Policial Militar sobre os acontecimentos
do Riocentro não fora algo pacífico. O almirante-de-esquadra Julio de Sá
Bierrenbach, em 2 de outubro 1981, na qualidade de ministro do STM, votou
contra o relatório elaborado pelo coronel Job Lorena. Logo após o voto, o
ministro general-de-exército Reynaldo Mello de Andrade solicitou uma sessão
secreta "na qual pudessem os ministros oriundos do Exército se manifestar de
forma veemente contra o modo profundamente desrespeitoso como foram tratados,
pelo Exmo. Sr. Ministro Bierrenbach, os chefes militares e, por extensão, o
Exército durante sua manifestação em Sessão Pública" (Bierrenbach, 1996). No
final da nota à imprensa então redigida, o ministro general-de-exército Carlos
Alberto Cabral Ribeiro deixou claro o caráter castrense do STM: "Resta-me,
ainda, e finalmente, tornar bem claro que, nesta Egrégia Corte Castrense,
continuo como General-de-Exército da Ativa e, nesta condição, com este
protesto, tomo o meu efetivo lugar junto à Instituição ofendida injustamente
[...]" (idem, ênfases nossas)30.
Diante da decisão da procuradora Berger de reabrir o caso, Bierrenbach assim se
expressou:
"Infelizmente vivemos numa republiqueta e o caso nunca foi apurado
com seriedade. Na ocasião, declarei que se o capitão Machado não se
sentasse no banco dos réus31, como indiciado, o Ministério Público
Militar ficaria desmoralizado. Meu desafio se renova agora, quando o
órgão ganha nova oportunidade de passar esta história toda a limpo"
(Otávio, 1999).
O STM, todavia, não atendeu, mais uma vez, às expectativas do almirante. Em 4
de maio de 1999, o caso Riocentro foi, mais uma vez, arquivado pelo ministro
civil do STM Carlos Alberto Marques Soares32. Soares alegou razões técnicas: a
existência de uma decisão do STM de 1988 que enquadrou o caso na Lei de
Anistia. Como não houve recurso do Ministério Público Militar, permitiu-se a
ocorrência do trânsito em julgado do acórdão33. O poder de punição do Estado
teria cessado, pois a decisão tornou-se definitiva (Galucci, 1999). Ou seja, na
visão de Soares, mesmo que surgissem novas provas, nada mais poderia ser feito,
já que a sentença era definitiva.
A Procuradora-Geral da Justiça Militar Adriana Carneiro recorreu ao STM contra
a decisão do ministro Soares34. O STM, no entanto, manteve a decisão do
ministro-relator por dez votos a um. O único voto contra veio de seu decano, o
ministro civil Aldo Fagundes, que argumentou haver, tecnicamente, um fato novo:
os militares, que antes eram apontados como vítimas, passaram a ser, em tese,
supostos agentes, justificando a reabertura do caso. O argumento do ministro
Fagundes foi repelido pelo ministro militar Arnoldi Pedrozo35 com uma
argumentação política, em vez de jurídica. Para o general, já não existia a
mesma preocupação em elucidar fatos como seqüestros de embaixadores feitos por
organizações de esquerda durante o regime militar36. Só que tais seqüestros
foram feitos durante o período abarcado pela Lei da Anistia, ao contrário, como
visto, dos acontecimentos do Riocentro.
Volta Redonda
No dia 9 de novembro de 1989, com o intuito de pôr fim à greve dos funcionários
da Companhia Siderúrgica Nacional CSN, em Volta Redonda, o general José Luiz
Lopes da Silva e suas tropas invadiram a siderúrgica37. Da operação resultou a
morte de três operários que, por sinal, estavam trabalhando para manter os
altos-fornos em atividade38. Dez anos depois, o presidente Fernando Henrique
Cardoso, atendendo a uma solicitação do Exército, indicou o general Lopes para
o cargo de ministro do STM. Quem poderia ter sido indiciado pelas mortes dos
operários se tornaria juiz.
A Ordem dos Advogados do Brasil, por intermédio de seu presidente, Reginaldo de
Castro, enviou um telegrama a FHC protestando contra a indicação39. Segundo
Castro,
"[...] a reputação ilibada que exige a Constituição Federal para a
nomeação de magistrados impede a nomeação de quem teve qualquer
envolvimento com ato criminoso passível de condenação judicial [...].
Estão os advogados brasileiros convencidos de que tais razões
motivarão a substituição de seu nome para a composição do Superior
Tribunal Militar"40.
Durante a sabatina na Comissão de Constituição e Justiça CCJ do Senado, o
general reafirmou que a operação, "sob o ponto de vista militar, foi plenamente
bem-sucedida", que sua "paciência foi enorme" e que o "radicalismo" ocorreu do
lado dos sindicalistas (Marques, 1999). Indagado pelo senador Eduardo Suplicy
sobre o motivo de não ter utilizado balas de borracha, o general disse que o
Exército não possui balas de borracha para reprimir protestos41. Mesmo assim,
teve sua indicação aprovada por doze votos a favor, três contra e um em branco.
O bispo da diocese de Volta Redonda, Dom Waldir Calheiros, não se conteve ante
a decisão da CCJ.
"O mais estarrecedor [afirmou] é que na mesma noite do massacre, eu,
o prefeito da cidade e o presidente do sindicato fomos chamados pelo
general para um encontro no hotel Bela Vista. Lá, questionamos a
atuação do Exército e ouvimos dele que a morte dos trabalhadores pelo
menos serviu de lição para o Brasil. Era um recado para os
trabalhadores" (Pinheiro, 1999).
A cidade recolheu 15 mil assinaturas em um abaixo-assinado, enviado ao
presidente da República, protestando contra a indicação do general (Guaraciaba,
1999).
Participou da pressão política para a aprovação do nome do general Lopes o
então ministro extraordinário da Defesa, Élcio Álvares. Juntamente com o
senador Antonio Carlos Magalhães, Álvares conseguiu alterar a tendência
contrária à indicação de Lopes. Ante os parlamentares, Álvares argumentou que a
não nomeação de Lopes deixaria o Exército em situação delicada (Lima, 1999). O
general teve seu nome aprovado no Senado por 41 votos contra 24 e quatro
abstenções. O novo ministro chegou ao STM como um lídimo representante do
Exército no Judiciário.
FARDADOS VS. TOGADOS
Foi demonstrado que, em todos os momentos à exceção de breve período, entre
1926 e 1934 , os militares sempre foram maioria no STM. Sempre se buscou
assegurar o predomínio dos militares, "ao mesmo tempo em que se procurou criar
uma imagem de neutralidade, incluindo juízes civis [...] para criar a aparência
de um tribunal misto" (Dallari, 1996).
A predominância de leigos, que se observa, também, no primeiro grau de
jurisdição, inclusive da Justiça Militar Estadual, constitui exemplo único na
estrutura do Poder Judiciário brasileiro. Mesmo na Justiça do Trabalho, à época
em que existia a representação classista, os juízes togados sempre formaram a
maioria nas cortes. No Tribunal Superior do Trabalho eram dezessete contra dez
ministros classistas, proporção que se repetia nos tribunais regionais.
Outro aspecto de grande relevância é que, na Justiça do Trabalho, os leigos
nunca estiveram no comando. A presidência, a vice-presidência e a corregedoria
dos tribunais somente podiam ser exercidas por juízes togados, o mesmo
ocorrendo nas Juntas de Conciliação e Julgamento, primeiro grau de jurisdição,
onde a presidência cabia ao juiz de carreira.
Na Justiça Militar, seja da União, seja dos estados, a presidência dos
Conselhos (órgãos do primeiro grau de jurisdição) é exercida pelo militar de
patente mais elevada. No STM, a eleição de um ministro civil para a presidência
da corte somente veio a ser concretizada no ano de 2001, 193 anos após a sua
criação.
De fato, até 1996 não havia sequer a hipótese de eleição de ministro civil para
a presidência da corte. Eram eleitos, invariavelmente, para a vice-presidência.
Foi nessa condição que, em 1963, o ministro Washington Vaz de Mello assumiu a
presidência, exercendo-a por menos de três meses, em face da doença do titular.
Emenda regimental de 1996 determinou o ingresso de civis no rodízio,
instituído, para os militares, em 1961. O primeiro ministro civil eleito
presidente do STM foi o advogado Aldo Fagundes, que permaneceu no cargo por
apenas dois meses. Para completar o biênio, foi eleito o ministro Olympio
Pereira da Silva Júnior, empossado em 20 de junho de 2001. Ainda assim, cumpre
ressaltar que o tribunal jamais foi presidido por um juiz de carreira, o que
não deixa de ser estranho, tratando-se de uma corte de Justiça.
A REFORMA DO JUDICIÁRIO E A JUSTIÇA MILITAR
A Proposta de Emenda Constitucional PEC nº 96/92-A, de autoria do deputado
Hélio Bicudo, do Partido dos Trabalhadores PT de São Paulo, não prescrevia
nenhuma modificação na estrutura da Justiça Militar Federal42.
O primeiro relator da PEC da reforma do Judiciário foi o deputado Jairo
Carneiro, do Partido da Frente Liberal PFL da Bahia. Em seu substitutivo,
apresentado ainda em 1995, propunha alterações significativas não apenas na
estrutura do STM, como também na sistemática de escolha dos seus membros.
Em primeiro lugar, previa como órgão da Justiça Militar, em tempos de guerra,
um tribunal especial, mencionado no artigo 47, § 7º. Depois, dispunha que o STM
teria, no mínimo, onze ministros e não mais o número fixo de quinze , sendo
sete militares, dos quais três do Exército, dois da Marinha e dois da
Aeronáutica com o que se reduziria um cargo para cada Força , e quatro
civis. A indicação de todos os ministros necessitaria de aprovação do Senado
Federal "em votação secreta, procedida, obrigatoriamente, avaliação
circunstanciada do currículo e submetido o indicado a argüição pública para
aferir o conhecimento e experiência compatíveis ao cargo"43.
Pelo substitutivo, os ministros militares seriam indicados em listas tríplices
pelo Estado-Maior das respectivas Forças e os civis, entre brasileiros com mais
de 35 e menos de 60 anos de idade, sendo dois entre advogados e dois entre
juízes-auditores e membros do Ministério Público Militar da União. No caso dos
advogados, para cada vaga seria elaborada uma lista sêxtupla pela OAB
observada a exigência de dez anos na carreira, notório saber jurídico e
reputação ilibada , a qual seria reduzida a três nomes pelo próprio STM. Os
três nomes seriam então submetidos ao presidente da República, que indicaria um
à aprovação do Senado. Tratando-se de juiz-auditor ou membro do Ministério
Público, o próprio STM elaboraria a lista tríplice, procedendo-se, em seguida,
da mesma forma já indicada. Haveria aí significativo avanço, porque, ao menos,
haveria a participação da OAB e do próprio tribunal na escolha.
Esse relatório não foi aprovado. Diversas irregularidades formais e materiais
foram apontadas e a PEC foi arquivada na Comissão Especial criada para o seu
exame. Em 1999, a reforma do Judiciário foi retomada, com a instalação de
Comissão Especial na Câmara. Designou-se para relator o deputado Aloysio Nunes
Ferreira, do Partido da Social-Democracia Brasileira PSDB de São Paulo.
A magistratura brasileira, por intermédio da Associação Nacional dos
Magistrados AMB, ofereceu sua contribuição para a reforma do Judiciário.
Devem ser compreendidos os limites de ação da AMB neste caso, considerando-se
que os juízes militares, da União e dos estados participam ativamente das
deliberações da entidade. Ainda assim, não pode ser posto em discussão o
caráter reformador de sua proposta.
De acordo com as sugestões da AMB (1999:127), seria reduzido para onze o número
de ministros do STM, sendo seis militares e cinco civis. Destes, três seriam
juízes de carreira indicados em lista tríplice pelo próprio tribunal. A
presidência dos Conselhos de Justiça passaria aos juízes de carreira. Os crimes
impropriamente militares seriam julgados, monocraticamente sem a participação
dos militares , pelo juiz togado.
Outros segmentos da sociedade organizada, especialmente os partidos políticos e
a OAB, buscaram participar ativamente, apresentando propostas integrais para a
reforma. O Partido dos Trabalhadores, por exemplo, entregou a sua em abril de
1999. Nela propunha a extinção pura e simples da Justiça Militar, com a
revogação dos artigos 122 a 124 da Constituição44.
Em audiência pública realizada no dia 28 de abril de 1999, o então presidente
do STM, tenente-brigadeiro do Ar Carlos de Almeida Batista, fez vibrante defesa
da Justiça Militar. Àquela altura, era palpável a possibilidade de extinção
desse ramo especializado do Judiciário. Sabedor de tal risco, o presidente
admitiu toda sorte de alterações, desde que mantida a estrutura por ele
chefiada. Foram suas palavras:
"A Justiça Militar da União, desculpem-me a ênfase, não deve ser
absolutamente extinta. Aceito, e até vejo como salutar, alguns
ajustes que possam se mostrar necessários, como, por exemplo, uma
adequação na composição da Corte, no método da escolha dos Ministros,
na outorga da Presidência dos Conselhos de Justiça aos Juízes-
Auditores"45.
O efeito da atuação do ministro Almeida Batista foi notável. O deputado Marcelo
Deda, do PT, um dos signatários da proposta de extinção da Justiça Militar,
assim se pronunciou:
"[...] sem dúvida alguma, a forma simples, direta e objetiva com que
V. Exa. tratou da singularidade da função dos militares representou o
primeiro argumento nesse debate que me levou a refletir sobre a
convicção que já havia formado. [...] quero dizer sinceramente a V.
Exa. que esse documento, pelo menos neste deputado, provocou a
necessidade de rever minhas posições e verificar se elas resistem aos
argumentos de V. Exa. [...] para justificar a existência do STM"46.
A partir de então, praticamente formou-se na Comissão Especial certo consenso
quanto à redução da corte, sem extingui-la. O que terminou sendo proposto pelo
relator.
Entre as diversas polêmicas alterações propostas em seu substitutivo, Aloysio
Nunes Ferreira encaminhou alterações na estrutura da Justiça Militar47. Reduziu
para sete o número de ministros, sendo quatro militares (um da Aeronáutica, um
da Marinha e dois do Exército) e três civis. Não sugeriu nenhuma alteração para
a indicação dos militares. Para os civis, entretanto, propôs mudanças
relevantes: seriam dois juízes titulares da magistratura de carreira,
indicados, em lista tríplice, pelo próprio tribunal, e um ministro escolhido,
alternadamente, entre advogados e membros do Ministério Público Militar,
observado o disposto no artigo 94 da Constituição Federal48.
A atuação do deputado Aloysio Nunes Ferreira e a reação ao seu substitutivo,
aliadas à necessidade de se promover a substituição do secretário-geral da
Presidência da República, Eduardo Jorge Caldas, determinaram o afastamento do
parlamentar da relatoria em 1999. Designou-se para substituí-lo a relatora
Zulaiê Cobra Ribeiro, também do PSDB de São Paulo.
Novas modificações foram então propostas. Dentre elas, a redução do número de
ministros para nove, igualando-se a participação das três Forças, pois seriam
dois representantes de cada e três civis. Estes seriam escolhidos entre
brasileiros com mais de 30 e menos de 65 anos de idade, sendo um advogado de
notório saber jurídico e reputação ilibada e dois selecionados, por escolha
paritária, entre juízes-auditores e membros do Ministério Público Militar49.
Tais alterações foram adotadas na Comissão Especial e aprovadas em plenário. A
partir de junho de 2000, a PEC passou a tramitar no Senado sob o nº 29/00.
Depois dos pareceres de dois relatores, senadores Bernardo Cabral (PFL/AM), que
mantivera a redação adotada na Câmara, e José Jorge (PFL/PE), e muitas
discussões, deu-se por encerrado o trabalho na Comissão de Constituição e
Justiça do Senado, em abril de 2004. Os representantes do STM conseguiram que o
relator José Jorge fixasse em onze (e não em nove, como fora aprovado na
Câmara), o número de ministros, sendo sete militares e quatro civis. Após
aprovação em plenário, em dois turnos, a reforma foi parcialmente promulgada em
8 de dezembro de 2004. Em 31 de dezembro do mesmo ano foi publicada a Emenda
Constitucional nº 45/04. Tendo em vista que não houve coincidência entre os
textos aprovados na Câmara e no Senado, no que respeita à composição do
Superior Tribunal Militar, a matéria foi devolvida à Câmara dos Deputados. Caso
seja rejeitada, a composição permanecerá inalterada, com quinze ministros. Uma
vez aprovada, em dois turnos, o STM passará a ter onze ministros, sendo certo
que disposição transitória determina que a adequação à nova composição se dará
paulatinamente, com a vacância dos cargos.
CONCLUSÃO
Um dos indicadores de uma relação civil-militar democrática é a existência de
clara linha institucional de separação entre as jurisdições civil e militar
(Rice, 1992). Stepan (1988) sugeriu que países que alcançaram reduzir a
jurisdição militar antes da emergência de regimes autoritários e onde civis não
estão sujeitos a julgamentos em tribunais militares conseguiram fazer a
democracia avançar.
Por isso mesmo, as Justiças Militares de países democráticos não julgam civis
em tempo de paz e só julgam os militares que cometeram crimes propriamente
militares (Zaverucha, 1999). Ou nem possuem Justiça Militar em tempo de paz
(Dinamarca, Finlândia, Noruega, Áustria, Alemanha). Constata-se que, quanto
mais autoritário ou menos democrático for o país, maior a abrangência da
jurisdição militar. A Justiça Militar, nestes casos, é usada como instrumento
autoritário de controle social da população civil. De acordo com a Comisión
Nacional de Verdad y Reconciliación, criada no Chile em 1990 pelo presidente
Patrício Aylwin, um fator que facilitou os abusos cometidos durante a era
Pinochet foi o Código Penal Militar50. Vários de seus artigos facilitaram a
violação dos direitos humanos de muitos chilenos51.
No Brasil, a transição do autoritarismo rumo à democracia não teve o condão de
determinar a redução da excepcional competência instituída pelo regime militar,
mantendo a sua ampla jurisdição sobre civis em tempo de paz. Inalterada, restou
a elástica tipificação do crime militar, construída no período de maior
recrudescimento do regime autoritário, que permite, de um lado, a sua aplicação
a civis e, de outro, a discriminação injustificável entre os integrantes das
Forças Armadas e militares estaduais das Polícias Militares52.
Mas aqui não se pretendeu investigar as razões e as conseqüências de tais
aspectos. Constituiu nosso foco de interesse não apenas a manutenção da Justiça
Militar, da qual o STM faz parte, mas, principalmente, a conservação de grande
parte da estrutura estabelecida no auge do regime militar, pelo Ato
Institucional nº 2, de 1965. E dos mesmos critérios de atuação e recrutamento
de seus membros, marcado por elevado grau de interferência política.
Acresça-se que, em pleno século XXI, o STM continua a julgar civis por crimes
militares cometidos em período de paz. Isto constrange o processo de criação de
um Estado de direito no Brasil, pois os julgamentos militares tendem a
favorecer a eficiência e certeza sobre a razoabilidade (Dershowitz, 2003).
Afora que, em caso de dúvida, tais julgamentos favorecem, mais freqüentemente,
os acusados do que os acusadores (idem).
O caráter híbrido da democracia brasileira, do qual o STM é um indicador,
precisa ser explicado. Por que não avançamos rumo a uma democracia plena nem
retrocedemos ao autoritarismo? Como explicar essa instabilidade que se vem
mantendo ao longo de duas décadas?
Sugerimos introduzir a variável risco político. Como assim? Quando os
conservadores acham que a esquerda ainda é, mesmo que parcialmente,
revolucionária e que sua adesão à democracia é instrumental, procuram manter um
relacionamento privilegiado com os militares (Alexander, 2002). Vínculo
estreito que possa se reverter em apoio, quando necessário.
As invasões de terra por parte do Movimento dos sem Terra e o receio de que o
mesmo caia na clandestinidade; a ocupação de prédios públicos pelo Movimento
dos sem Teto e as greves das Polícias Militares, em especial das praças, são
exemplos de fatos atuais que induzem desconfiança nos segmentos conservadores,
prontos a se insurgirem contra qualquer risco de desmanche da economia de
mercado, base da democracia liberal. Nesse contexto, a cultura do medo trabalha
contra a democratização, pois induz desconfiança entre os atores políticos, em
vez de cooperação. Quem tem medo tende a procurar segurança, como a propiciada
pelo poder armado.
O receio decorrente da suposta imprevisibilidade da esquerda, em termos de
atitudes democráticas, impele os atores políticos de direita a concordarem com
a manutenção de espaços políticos significativos sob o controle militar, na
expectativa de que tais arenas concorrerão, naturalmente, para a preservação
dos seus interesses. Recentemente, o senador Antonio Carlos Magalhães defendeu
com vigor, na tribuna do Senado, o aumento dos vencimentos dos militares.
Alertou ele o governo Lula de que "essa defasagem salarial deve ser corrigida
até para que, na hipótese de insubordinações populares, as Forças Armadas
estejam prontas para defender as instituições"53. O senador voltaria ao tema
dias depois, para afirmar que os militares são "o sustentáculo da
democracia"54.
Em síntese, a direita cuida de manter um bom relacionamento com as instituições
coercitivas para que possam reprimir possíveis insubordinações populares e, no
limite, golpear a frágil democracia existente55. Os militares entendem a
natureza do jogo e cristalizam a estratégia de manter o seu protagonismo em
arenas políticas não militares. Assim sendo, tornam mais explícita a
simultaneidade dos interesses castrenses com os da sociedade.
Um desses espaços é o Superior Tribunal Militar. Não é à toa que a corte
conservou praticamente inalterados sua estrutura, seu funcionamento e,
principalmente, os critérios de recrutamento de seus membros durante o processo
de redemocratização do país e na atual reforma do Poder Judiciário,
oportunidade ímpar para a definição de novos parâmetros estruturais do tribunal
e, até mesmo, para sua extinção. O que revela, de forma eloqüente, o poder de
veto que detêm os conservadores, maioria no Congresso e interessados na
manutenção do status quo, quando o assunto é a reformulação da Justiça Militar.
O STM, considerados os modelos competencial, funcional e estrutural vigentes,
extrapola os limites de ação de um órgão do Judiciário, restritos à resolução
de conflitos, para se erigir como instrumento de controle de importante aspecto
da vida social. Em matéria criminal, o STM constitui-se em braço jurídico dos
interesses institucionais das Forças Armadas, como evidencia o desfecho do caso
Riocentro. Isto contribui para fortalecer, no Brasil, a existência de um
governo pela lei (rule by law) em vez de um governo da lei (rule of law)
(Holmes, 2003).
Tanto é que as Forças Armadas fazem questão de que a maioria dos juízes do STM
seja composta por militares da ativa, exatamente porque, desse modo, podem
controlar mais facilmente suas decisões. Este arranjo institucional, portanto,
distribui poder em favor dos interesses das Forças Armadas, como instituição. E
tais juízes são escolhidos com o fito de representá-las. Isto não impede que
haja casos isolados de desafio à cúpula da instituição. Afinal, nem sempre os
interesses das Forças Armadas são sinônimos dos interesses de todos os
militares56. Aí incluídos os juízes do STM.
Há o conhecido caso do general Peri Bevilaqua que, em pleno regime militar,
tomou atitudes independentes, em relação aos interesses das Forças Armadas57.
Seu comportamento não é a regra, mas a exceção. Tanto é que foi o único
ministro afastado compulsoriamente do STM, em 1979, por medida baseada no AI-5,
três meses antes de se aposentar por chegar à idade-limite para aposentadoria
(Lemos, 2004)58. Do mesmo modo, ministros civis do STM podem, eventualmente, se
comportar mais "militarmente" do que ministros fardados. Se assim o fizerem,
colaborarão, ainda mais, para manter o STM como uma corte que defende, antes de
tudo, os interesses das Forças Armadas relativos aos bens tutelados que lhes
são fundamentais: hierarquia, disciplina e dever militar.
O Brasil situa-se em uma zona política cinzenta onde não se avança,
definitivamente, no sentido de uma democracia sólida, nem se faz um retorno à
ditadura. O STM é um típico exemplo desse hibridismo institucional, por possuir
tanto características democráticas como autoritárias. Como vertente de
ingerência castrense em área extramilitar , no caso, o Judiciário , o STM
produz decisões eivadas de parcialidade, em um desvirtuamento de sua função
jurisdicional, terminando por contribuir para postergar a consolidação da
democracia no Brasil.
A eliminação do caráter militar do STM representaria mais do que mera filigrana
constitucional. Antes, constituiria transformação de importante alcance
político, considerando ser o Judiciário um dos Poderes do Estado. E poderia
impulsionar outras mudanças institucionais no sentido de provocar o
fortalecimento do Estado de direito e, conseqüentemente, o aprofundamento da
democracia brasileira.
NOTAS
1. O comportamento militar é politicamente autônomo quando os militares têm
objetivos próprios, que podem ou não coincidir com os interesses de outros
grupos políticos, e capacidade institucional de executá-los, em detrimento de
regras democráticas que proíbam a consecução desses mesmos objetivos.
2. O conceito de enclave autoritário refere-se a uma instituição que possui uma
competência específica ou uma série específica de competências autônomas
(Moyano, 1995). Em torno da instituição há leis, escritas ou veladas, que
proíbem a interferência de forças políticas democráticas. Pode-se argumentar
que as democracias procuram criar instituições imunes à influência de
políticos, como no caso do Banco Central independente (Valenzuela, 1992). No
entanto, o "enclave democrático" distingue-se do "enclave autoritário",
principalmente, pela capacidade de as autoridades democráticas decidirem pela
sua permanência ou não, sem receio de uma reação armada.
3. Recente pesquisa do PNUD, intitulada "A Democracia na América Latina",
revela que o país vai bem em termos de democracia eleitoral, mas mal quanto à
confiança na democracia. Apenas 30,6% dos brasileiros se consideram democratas;
42,4% são ambivalentes e 27% são não-democratas. Estes índices são os piores da
América Latina. Vide http://www.pnud.org.br/
index.php?lay=news&id01=286&are=cid, "Brasil Consolida Eleições, mas
População Tem Pouca Confiança na Democracia"; http://www.pnud.org.br/
index.php?lay=news&id01=287are=cid, "AL Prefere Expansão a Regime
Democrático".
4. Para uma ampla revisão da literatura sobre este tema ver Zaverucha e
Teixeira (2003).
5. Ele apenas registra os conceitos, não fazendo uma diferenciação conceitual
entre semidemocracia e semi-autoritarismo.
6. Artigo 70 do referido alvará.
7. A ser exercida pelo mais antigo na respectiva Arma. Até então, e desde 1920,
como não havia aposentadoria compulsória e era permitida a reeleição, os
eleitos permaneciam por muitos anos no exercício da presidência. O critério foi
quebrado, na primeira oportunidade, em 1963, com a reeleição do tenente-
brigadeiro Álvaro Hecksher, quando a presidência deveria caber a integrante da
Marinha.
8. O tenente-brigadeiro Álvaro Hecksher, reeleito em dezembro de 1963, não
concluiu o segundo biênio. Foi sucedido pelo almirante-de-esquadra Diogo Borges
Fortes. A partir de então, e até hoje, tem sido respeitado o rodízio entre as
Forças. A antiguidade nas Forças foi quebrada em 1979.
9. Existem 21 Auditorias, nas doze Circunscrições Militares existentes. Em cada
Auditoria há um juiz-auditor e um juiz-auditor substituto, admitidos por
concurso público de provas e títulos.
10. Informa Bastos (1981) que, à época, o Almanaque Anual do Exército trazia,
além de outros assuntos, a composição de todas as repartições, entre as quais
se incluía o Conselho Supremo Militar. Eis aí um forte argumento quanto à
prevalência de sua feição administrativa.
11. Nos termos do artigo 7º do Alvará de 1º de abril de 1808.
12. Sem dúvida, o funcionamento em turmas democratiza as decisões, na medida em
que poderão surgir posicionamentos divergentes dentro da própria corte.
Julgadas em órgão único, as mesmas matérias tendem a ter a mesma solução,
sempre. Se há duas turmas, por exemplo, teoricamente poderá haver dissenso
entre elas, o que quebra a rigidez jurisprudencial.
13. Na linguagem coloquial, "quarta estrela" é o posto mais alto que um oficial
pode obter dentro da caserna.
14. A indicação do presidente Fernando Henrique Cardoso foi ilegal e
inconstitucional. Tanto a Constituição como o Estatuto dos Militares dizem que
um militar na reserva continua sendo um militar, e a legislação brasileira
impede a presença de parentes em uma mesma sessão de julgamento. No caso, o
irmão do coronel Aldo Fagundes já era juiz do STM. Como o STM é o único dos
tribunais superiores que não é formado por turmas, não haveria modo de separar
os dois irmãos.
15. Citado por Carlos de Almeida Batista. Cf. notas taquigráficas da Audiência
Pública nº 208/99 da Comissão de Reforma do Judiciário, p. 44.
16. Cf. notas taquigráficas da Audiência Pública nº 208/99 da Comissão de
Reforma do Judiciário, p. 47.
17. Forma de composição híbrida, integrada por civis e militares.
18. "Código Penal Militar Vai Ser Mudado", Jornal do Brasil, 13/2/2000.
19. Os Códigos Penal e de Processo Penal foram criados pelos Decretos-Leis nos
1.001 e 1.002, datados de 29 de outubro de 1969. Portanto, criados no auge da
repressão militar. Tais códigos, todavia, se encontram em pleno vigor em uma
ordem dita democrática. Salvo engano, caso único no mundo.
20. Faziam parte da comissão o procurador da Justiça Militar João Rodrigues
Arruda; a advogada Sheila Bierrenbach, representante da Ordem dos Advogados do
Brasil; o ministro do STM Carlos Alberto Marques Soares; o juiz da 6ª Auditoria
Militar do Rio de Janeiro, Cláudio Amim Miguel, e o defensor público Ariosvaldo
de Góis Costa Homem.
21. Ferolla, mesmo sendo ministro do STM, também costumava discorrer sobre
temas nada jurídicos. Por exemplo, nacionalista convicto, criticou publicamente
a privatização de empresas como a Vale do Rio Doce e a Telebrás; a globalização
exagerada; a elite brasileira, que, segundo ele, tem a "cabeça lavada" pelo
"inimigo" (os Estados Unidos), e propôs que a Petrobras fosse uma empresa de
energia e não apenas de petróleo (Rocha, 2000).
22. "STM Leva Ministro a Dissolver Comissão", Jornal do Brasil, 17/2/2000.
23. "STM Admite que Pressionou Ministro", Jornal do Brasil, 18/2/2000.
24. "Advogada Acusa Primo", Jornal do Brasil, 18/2/2000. Segundo a advogada, o
intermediário da pressão sobre o ministro da Justiça teria sido seu primo,
Flávio Bierrenbach, que fora recém-indicado para o STM por Dias, e que era
compadre do mesmo.
25. O STM também entendeu inaplicável à Justiça da União a Lei dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais: "Súmula nº 9 A Lei nº 9.099, de 26.09.95, que
dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências,
não se aplica à Justiça Militar da União". Vide www.stm.gov.br.
26. "STM Manda Fechar Auditoria Onde Juíza Denunciou o Sumiço de Armas e
Presos", O Globo, 12/3/1998.
27. O conflito de titularidade ficou de ser dirimido pelo Tribunal Regional
Federal. Enquanto isso, o procurador-geral da República recebeu ofício do
procurador-chefe da Procuradoria da República no Rio e do procurador do caso,
solicitando providências. Cf. "Magistrados Dão Apoio à Juíza que Foi
Transferida", Jornal do Brasil, 13/3/1998.
28. O atentado do Riocentro ocorreu na noite de 30 de abril para 1º de maio de
1981.
29. A anistia abrange apenas os crimes cometidos entre 2 de setembro de 1961 e
15 de agosto de 1979. A prescrição somente se daria em 30 de abril de 2001.
30. Por conta da nota, o ministro Ribeiro recebeu um telex do então ministro do
Exército, general Walter Pires, felicitando-o pela defesa do Exército, "cujos
quadros V. Exa. honra e dignifica" (Bierrenbach, 1996).
31. No IPM do coronel Lorena, Machado foi ouvido três vezes, como testemunha.
32. Para chegar ao STM, Soares, além de seus elevados conhecimentos jurídicos,
contou com o apoio do então vice-presidente da República, Marco Maciel, e do
ministro do Exército, general Zenildo Lucena.
33. O acórdão decretou a extinção da punibilidade dos responsáveis pela
tentativa de atentado de 30 de abril de 1981. Teve por base a anistia geral
concedida pela Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985.
34. "Procuradora Recorre ao STM contra Arquivamento do Caso Riocentro", O
Globo, 20/5/1999.
35. Quando tenente-coronel, Pedrozo era o encarregado da segurança do
presidente Geisel. Foi ele quem contou a Geisel o destino de quatro argentinos
e três chilenos capturados no Paraná. Gaspari (2003) reproduz o diálogo que
teria havido entre Geisel e Pedrozo. O presidente diz ser preciso "agir com
muita inteligência, para não ficar vestígio nesta coisa".
36. "STM Mantém Resolução que Arquivou o Caso Riocentro", Tribuna da Imprensa,
24/5/2000.
37. A Polícia Militar do Rio de Janeiro é quem ficou na retaguarda do Exército,
quando deveria ter sido o contrário.
38. Na ocasião, o ministro da Justiça quis abrir um inquérito para apurar as
mortes, mas o ministro do Exército vetou o inquérito, contando com o apoio do
presidente José Sarney.
39. "OAB Critica Escolha de General para o STM", O Globo, 9/10/1999.
40. "OAB Reprova Nome para o STM", Consultor Jurídico, 8/10/1999.
41. "Indicação de General para STM Gera Polêmica, mas é Aceita pela CCJ",
Jornal do Senado, 7/10/1999.
42. Proposta de Emenda à Constituição nº 96, de 1992, do deputado Hélio Bicudo,
publicada no Diário do Congresso Nacional, 1/5/1992, pp. 7.857-7.947.
43. PEC 96-A de 1992, resumo do substitutivo do relator Jairo Carneiro, 5 de
dezembro de 1995, p. 38.
44. Proposta da bancada do Partido dos Trabalhadores na Câmara dos Deputados
para a Reforma do Poder Judiciário, Assessoria Técnica do Partido, Brasília, 30
de abril de 1999, f. 24.
45. Notas taquigráficas da Audiência Pública nº 208/99, p. 48.
46. Notas taquigráficas da Audiência Pública nº 208/99, p. 111.
47. PEC 96-A de 1992, substitutivo do relator Aloysio Nunes Ferreira, 31 de
maio de 1999, p. 55.
48. Exigência de dez anos de carreira, notório saber jurídico e reputação
ilibada.
49. Reforma do Judiciário (PEC 96/92 e apensadas), substitutivo adotado pela
Comissão Especial, deputada Zulaiê Cobra Ribeiro, novembro de 1999.
50. Para mais detalhes sobre a Justiça Militar no Chile, ver Pereira e
Zaverucha (no prelo).
51. Informe de la Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación. Santiago, 1991,
p. 837.
52. A Emenda Constitucional nº 18, de 5 de fevereiro de 1998, extinguiu a
expressão "policial militar", substituindo-a por "militar estadual". Algo que
nem o regime militar foi capaz de fazer.
53. "ACM Alerta para os Baixos Salários das Forças Armadas", Jornal do Senado,
17/6/2004, ênfases nossas.
54. "ACM Defende Reajuste dos Vencimentos dos Militares", Jornal do Senado, 30/
6/2004.
55. Em julho de 2003, um dos proprietários da Folha de S. Paulo, ante a onda de
invasões de propriedades rurais e urbanas, alertou para a possibilidade de o
presidente Lula ser derrubado (Frias Filho, 2003). O líder do PSDB no Senado,
Arthur Virgílio, comparou Lula ao ex-presidente Goulart (Dualibi, 2003). A
mesma Folha de S. Paulo, na edição de 29 de julho de 2003, publicou afirmação
do senador do PFL Romeu Tuma de que, se a situação ficasse incontrolável,
pediria a intervenção militar.
56. Por exemplo, militar que assassinou colega dentro de quartel preferirá ser
julgado por corte civil, pois, provavelmente, receberá sanção mais leve. Já
para as Forças Armadas há o interesse em puni-lo exemplarmente.
57. Bevilaqua apoiou o golpe de 1964, mas se opôs à política repressiva do
regime militar. Quis que o governo fosse logo devolvido aos civis.
58. A ira do regime militar contra Bevilaqua foi tanta que cassaram suas
condecorações militares. Ele só as reaveria, postumamente, em 2002.