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BrBRHUHu0011-52582009000200005

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National varietyBr
Year2009
SourceScielo

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Privatização e processo decisório

INTRODUÇÃO A reconsideração da estratégia de intervenção direta do Estado na economia como produtor de bens e serviços foi em grande parte impulsionada pela crise econômica mundial que eclodiu na década de 1970, contribuindo também para colocar a venda das empresas estatais na agenda política de diferentes países.

A privatização passou a ser apresentada como peça fundamental da reforma ou da reestruturação do Estado,que não se resumiu à retração do setor produtivo estatal. O receituário reformista, que em sua forma mais acabada ficaria conhecido como Consenso de Washington, abrangia também a liberalização do comércio, as reformas fiscal e previdenciária, e a estabilidade econômica (Williamson, 1990).

Neste artigo examino os determinantes políticos da privatização do setor de telefonia em quatro países a partir de uma abordagem neoinstitucionalista histórica e do método comparado. Todos esses países se depararam com pressões similares favoráveis à privatização das operadoras de telefonia fixa. Essas pressões, oriundas das crises econômica efiscal do Estado, das mudanças tecnológicas e das organizações internacionais, apontaram para uma aparente convergência na organização do setor em torno de um novo arranjo institucional centrado na tríade privatização, concorrência e regulação. Apesar de os quatro países terem, em alguma medida, aderido à privatização, sua adoção se deu em momentos e com escopos distintos, guardando cada país certas características particulares que podem ser atribuídas à peculiaridade do contexto institucional e das preferências dos atores envolvidos no processo.

A exposição do trabalho está dividida em cinco partes. Na primeira, apresento uma pequena introdução à privatização, ressaltando os principais argumentos presentes na literatura sobre o tema. Na segunda, delineio a abordagem utilizada, bem como os critérios que orientaram a seleção dos casos analisados, e apresento as hipóteses gerais investigadas. Na terceira, descrevo o setor de telecomunicações e indico as possíveis causas da crise do modelo de intervenção baseado na empresa estatal, dentro do que chamo de pressões convergentes para mudança. Na quarta, confronto as hipóteses gerais de pesquisa a partir da análise comparada da privatização das telecomunicações em quatro países, sendo dois da América Latina - Brasil e Argentina - e dois da Europa - Inglaterra e França. Por fim, encerro com uma breve conclusão comparativa.

EM BUSCA DO IMPACTO DAS INSTITUIÇÕES SOBRE A POLÍTICA DE PRIVATIZAÇÃO A política de privatização é um dos principais pontos da chamada agenda de reformas estruturais do Estado. A sistematização mais conhecida dessa agenda foi realizada por Williamson (1990) a partir de um conjunto de políticas advogado pelas "instituições sediadas em Washington" e endereçado principalmente aos países em desenvolvimento durante a década de 1990. Boa parte de suas prescrições, contudo, foi testada antes, "em casa", durante os governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, ainda no início da década de 1980 (Smith, 1987)1. A "nova direita" que ascendia ao poder encontrou, nesse con-junto de políticas orientadas para o mercado, tanto uma resposta pragmática para a crise fiscal do Estado quanto um programa ideológico contra o intervencionismo estatal (King, 1987).

No entanto, a crise do padrão de intervenção estatal que vigorou desde 1930 não pode ser atribuída exclusivamente à nova direita, embora esta se tenha dela aproveitado. Suas raízes podem ser encontradas nas transformações econômicas e sociais que alteram o equilíbrio de poder entre os atores que davam suporte ao "consenso do pós-guerra", ou desenvolvimentista, como ficou conhecido na América Latina (Hall, 1992; Sallum Jr. e Kugelmas, 1993). A crítica desse padrão, bem como o anúncio de seu fracasso, pode ser encontrada também em alguns autores marxistas, como O'Connor (1973) e Offe (1994), que atribuem a crise às contradições do próprio capitalismo. Da mesma forma, a necessidade de se encontrar uma solução para a crise do intervencionismo estatal desafiou tanto a esquerda quanto a direita em países desenvolvidos e atrasados.

Apesar de a crise fiscal e a globalização fornecerem um mote comum paraamudança do papel do Estado, alimentando o consenso quanto às diretrizes gerais da reforma, este rapidamente desaparece quando olhamos para as características específicas do desenho das políticas implementadas em cada país. Essas diferenças são explicadas ora pelo sucesso ou fracasso do padrão de intervenção anterior, ora pela crise fiscal, ou ainda pelas características do sistema político e de intermediação de interesses que influenciam a capacidade de os governos se adaptarem a novos contextos. Esse último ponto conduziu à visão de que as reformas poderiam ser solapadas pelos interesses estabelecidos (vested interests) de pequenos grupos orientados para a obtenção de renda extraordinária (rent-seekers), levando alguns autores a formular, de maneira equivocada, os determinantes das reformas, bem como o impacto da concentração do poder político sobre o processo.

Na discussão acadêmica sobre o tema, dois argumentos em torno do sucesso ou do fracasso das reformas que deixam transparecer esse engano. O primeiro diz respeito à necessidade ou não de concentração de poder no Executivo para que a reforma ocorra, dado o alto custo de mudança do status quo. Esses custos estão diretamente ligados às características institucionais que determinam a relação entre os poderes Legislativo e Executivo. O segundo argumento está relacionado à possível resistência dos grupos articulados em torno do setor produtivo estatal, na forma de coalizões distributivas, o que remete a análise à consideração das características do sistema de intermediação de interesses e seu impacto sobre as reformas e as estratégias perseguidas pelo governo e pelos sindicatos durante o processo.

Determinantes Políticos das Reformas A centralização de poder político em torno do chefe do Executivo aparece em diversos trabalhos como um ponto fundamental para explicar a adoção das reformas e da privatização. Entretanto, um claro viés na literatura ao abordar a questão em países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Apesar de utilizarem as variáveis pertinentes na análise do processo político decisório, os estudos de caso sobre a América Latina geralmente acabam por explicar o sucesso ou o fracasso na adoção das reformas pela fraqueza ou falha das instituições políticas nesses países, e não por seu êxito. O ponto comum desses trabalhos é justamente a aceitação da insuficiência das explicações centradas em aspectos puramente econômicos para determinar o sucesso ou o fracasso, e mesmo o formato das reformas empreendidas em cada país.

Ao analisarem a adoção das reformas na América Latina, Haggard e Kaufman (1995: 9) concluem que seu sucesso está positivamente relacionado ao grau de insulamento do Executivo. As maiores centralização e coesão do Executivo, apoiadas por sistemas eleitorais pouco fragmentados e polarizados, permitiriam contornar a oposição à reforma, inclusive dentro da própria burocracia governamental. Um argumento semelhante para explicar o andamento das reformas na região é formulado por Geddes (1991), mostrando que sistemas eleitorais com representação proporcional e alta fragmentação partidária dificultaram a adoção das reformas2. Essas conclusões podem surpreender aqueles familiarizados com a literatura sobre a adoção da privatização nos países desenvolvidos, ao singularizarem os efeitos dessas variáveis no caso dos países subdesenvolvidos.

A importância da centralização de poder no Executivo e da fragmentação e da polarização dos sistemas eleitoral e partidário que surgem das análises do tema na América Latina permite um interessante paralelo com a análise do impacto do sistema político sobre a privatização entre os países desenvolvidos. Boix (1997), por exemplo, mostra que governos de coalizão ou divididos, em que a capacidade de ação autônoma do Executivo é restrita, estiveram associados a programas de privatização mais moderados, enquanto governos "unitários" estiveram mais aptos a promover programas de privatização mais "radicais", ao concentrarem mais autoridade no chefe do Executivo.

Por trás dessa análise está a concepção de que o partido ou a coalizão no poder não podem implementar suas políticas a seu bel-prazer, mas devem seguir certas regras e se submeter a um conjunto de procedimentos que fazem parte do jogo político. Dentre essas regras e procedimentos se destacam aquelas que definem o sistema eleitoral e a divisão constitucional de poder entre os diferentes ramos do governo, e suas consequências para o sistema político, como o grau de fragmentação interna dos ministérios (ibidem:480). Contudo, essas regras não agem sozinhas. Como mostra o autor, as preferências dos partidos são também importantes para determinar a capacidade de o governo implementar sua plataforma, assim como para explicar as diferenças nos programas de privatização entre países.

Ao comparar a adoção da privatização em países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre 1978 e 1993, Boix (ibidem:473) mostra que governos divididos tenderam à conservação do status quoe governos conservadores, ou de direita, estiveram mais propensos a adotar a política de privatização que governos social-democratas. Não se deve inferir dessa conclusão que governos de esquerda, ou populistas, não privatizam, mas apenas que governos de direita tenderam a privatizar mais e a realizar programas mais abrangentes. No entanto, essa associação entre a privatização e a ideologia do governo parece ter arrefecido ao longo do período, o que se refletiu na rápida difusão da privatização na década de 1990 e na adoção de medidas privatizantes por governos dominados por partidos de esquerda, ou social-democratas.

Para além das pressões econômicas e político-ideológicas, o processo de difusão da política de privatização está também associado a uma espécie de efeito demonstração em que fica clara a capacidade de os atores aprenderem com a experiência ao longo do tempo (própria e alheia) e assim reconsiderarem suas preferências. Essa hipótese foi discutida inicialmente por Ikenberry (1990), que apresentou três fatores de difusão: a) estímulo externo; b) cópia; e c) aprendizado. Entretanto, a análise de Ikenberry falha ao buscar generalizar a tese de que, nos países subdesenvolvidos, a adoção da privatização seria motivada pela cópia, em virtude da suscetibilidade de suas elites às pressões externas e de sua falta de expertise(capacidade técnica), enquanto, nos países desenvolvidos, poderia ser explicada pelo aprendizado, devido justamente à grande capacidade técnica e ao alto grau de interação de suas elites, sem fornecer nenhuma prova convincente para tanto.

Apesar das diferenças apontadas, um amplo consenso na literatura de que a motivação para a adoção da privatização deriva basicamente da frustrante performanceeconômica, dos déficits orçamentários e da internacionalização das economias nacionais (Boix, 1997; Bortolotti, Fantini e Siniscalco, 2001; Megginson e Netter, 2001). Mas essa relação não é automática; algumas variáveis importantes ligadas ao sistema político interferiram no processo. A conclusão de Boix (1997:496; tradução do autor) nesse sentido é clara e encontra ressonância na literatura sobre "variedades de capitalismo": "[...] mesmo que os governos, pressionados por fatores externos, sejam levados a adotar políticas macroeconômicas similares, eles provavelmente perseguirão estratégias econômicas divergentes do lado da oferta (supply side)".

Tanto os trabalhos qualitativos quanto os quantitativos, que partem de uma abordagem neoinstitucionalista para explicar a adoção e o formato da privatização, apresentam uma clara convergência em torno de quais variáveis independentes serão utilizadas. Nos dois casos, uma percepção de que as variáveis convergentes têm um papel importante para explicar a privatização, mas essa explicação pode ser completada pela introdução de variáveis propriamente políticas aos modelos. Ainda assim, mesmo nesse grupo de autores, é possível encontrar divergências. Enquanto Hulsink (1999:316), da mesma forma que Boix, também rejeita a hipótese da convergência, afirmando que as pressões externas não conduzem necessariamente a políticas uniformes, autores como Thatcher (1999) acabam por descartar a forte hipótese institucionalista de path dependenceem favor da ideia da convergência.

Apesar de chegar a uma conclusão similar à de Boix, Hulsink (1999) utiliza uma metodologia distinta ao incorporar à análise das características do sistema político o que chama de "ambiente político legal". Assim, em vez de lidar com as variáveis do sistema político de forma "desagregada", como fazem os estudos quantitativos, o autor trabalha com a ideia de que os sistemas políticos cristalizam diferentes estilos de fazer política. Entre as características centrais que diferenciam os países edeterminam seu "estilo"estariaa"força relativa e a autonomia do Estado vis-à-visa sociedade" (ibidem:20; tradução do autor), inferida a partir da distribuição de poder entre Estado, empresas e sindicatos. Segundo Hulsink, o padrão específico de interação desses três con- juntos de atores pode "acelerar ou impedir o desenvolvimento e a difusão de inovações e desenvolvimentos tecnológicos [...]" (ibidem), entre os quais a própria privatização e liberalização.

A partir dessa ideia, o autor identifica três modelos ou estilos de fazer política que explicam as diferenças no ritmo e no andamento das políticas de mudança no setor de telecomunicações. O primeiro é o modelo "liberal- pluralista", no qual se encaixam os países anglo-saxões. O segundo é o modelo ou estilo "voltado para a negociação", característico dos países com estruturas corporativistas de intermediação de interesses. O terceiro, por sua vez, seria o modelo "dirigista ou estatista", em que a burocracia estatal e o governo central atuam de forma decisiva no direcionamento, na articulação e no planejamento da economia. Cada um desses modelos estaria associado a um padrão específico de ajuste do setor de telecomunicações.

Assim, enquanto na Inglaterra teríamos um ajuste orientado para o mercado, promovido por um governo relativamente insulado das pressões sociais, na Holanda teríamos um caso de ajuste negociado de forma abrangente com a sociedade por meio das instituições e dos atores que integram o arranjo corporativista. A França, por sua vez, adotaria um exemplo da mudança política liderada pelo Estado, em que este permaneceria como ator decisivo no novo arranjo do setor.

As diferenças metodológicas e de recorte temporal entre os trabalhos, sobretudo na definição e na mensuração das variáveis dependentes, acabam permitindo que, mesmo nos trabalhos de cunho neoinstitucionalista, haja certa divergência quanto ao papel das instituições e sua influência sobre os resultados políticos observados. Thatcher (1999:319), por exemplo, inicialmente adere à tese da resistência institucional ao mostrar que, apesar das motivações econômicas e da forte pressão internacional por mudanças, os arranjos institucionais do se-tor de telecomunicações em cada país resistiram ao processo, contribuindo para que as reformas seguissem "caminhos nacionais específicos". Em uma análise posterior, porém, o próprio Thatcher (2003:26; tradução do autor) mostra que, na década de 1990, "[...] desenvolvimentos econômicos e tecnológicos transnacionais, combinados com reformas pelo mundo, e o desenvolvimento de instituições supranacionais de regulação ofereceram um poderoso coquetel para rápida e abrangente convergência da reforma institucional".

Bartle (2002) é outro autor que procura, por meio da análise de dois setores - telecomunicações e energia -, explorar a hipótese do impacto das instituições nacionais em oposição à hipótese da convergência entre setores. Tomando França, Alemanha e Inglaterra como casos paradigmáticos, Bartle oferece duas alternativas às explicações centradas nas instituições expostas por Thatcher e Hulsink. A primeira se baseia na primazia das variáveis ligadas às forças econômicas, incluindo o avanço tecnológico; a segunda, nas ideias que orientam os principais atores relevantes em cada setor; sua intenção não é invalidar a hipótese institucionalista, mas pôr em xeque o que seria um certo espírito fundamentalista nos trabalhos que utilizam essa abordagem. Na visão do autor, a aversão do neoinstitucionalismo ao pluralismo, ou ao que ele chama de "impustismo", teria levado alguns autores a negligenciar, ou simplesmente a subdimensionar, a influência dos determinantes econômicos e sociais, particularmente o papel do avanço tecnológico e das ideias sobre a intervenção.

Nos três países analisados, o ímpeto reformista teria vindo de uma pequena elite tecnoburocrática e de partidos comprometidos com os ideais liberais, ao que parece um ponto comum entre as reformas na Europa e na América Latina (Haggard e Kaufman, 1995; Haggard e Webb, 1994; Kay, 2001). As instituições, por sua vez, foram capazes de influenciar "o andamento e o tempo" da privatização nos dois setores, mas não os resultados do processo no longo prazo. A quebra do consenso em torno do monopólio e do controle direto do Estado no setor de telecomunicações se explicaria a partir das mudanças tecnológicas e de uma espécie de lobbyinternacional, que teriam contribuído para alterar o interesse dos atores envolvidos, bem como a constelação desses atores. A maior relevância desses fatores, no setor de telecomunicações, e a menor, no setor de energia, explicariam por que a privatização foi mais rápida e abrangente no primeiro.

Em seu conjunto, esses trabalhos indicam um apanhado importante de variáveis institucionais para explicar a adoção da privatização. Contudo, nem sempre são capazes de mostrar, de forma convincente, o impacto das instituições sobre o andamento do processo em diferentes países, apontando que mecanismos institucionais permitiram aos diversos grupos envolvidos converter ou não suas preferências em disposições legais presentes no desenho final da política implementada. Tampouco são capazes de mostrar, de forma convincente, a origem das diferenças do processo entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos sem precisar recorrer às características excepcionais desses países.

Os Sindicatos em Face da Privatização Na tentativa de explicar essa variação e apontar a influência dos grupos sobre as reformas, seja na tentativa de apoiá-las, seja na de rejeitá-las, duas ideias são recorrentes na literatura. A primeira diz respeito à possibilidade de alterar a preferência dos grupos envolvidos no processo por meio da modificação dos custos e benefícios com que eles se deparam quando enfrentam as reformas (Nelson, 1990). A segunda se refere à questão do "poder sindical", que pode ser avaliada de duas maneiras: 1) pelo arranjo institucional do sistema de intermediação de interesses, que determina grande parte da capacidade de ação coletiva dos sindicatos; e 2) pelos recursos de poder das organizações sindicais, que os pluralistas identificam como certos atributos conjunturais, tais como o número de filiados, sua localização setorial e geográfica, e os recursos financeiros.

As decisões a respeito da adoção de políticas compensatórias e do formato da privatização são contingentes à capacidade de influência dos sindicatos ligados às estatais em face da capacidade de o governo agir com autonomia; portanto, à habilidade que eles têm para organizar e exercer pressão em favor de seus objetivos. Da ótica do governo, não vale a pena adotar esse instrumento se os sindicatos não se mostram capazes de exercer uma pressão efetiva sobre o processo, uma vez que tais políticas são custosas e seu ônus tem de ser absorvido pelos compradores, ou pelo próprio governo, na forma, por exemplo, de uma redução no preço de venda. Dessa forma, como observa Przeworski (1994:243- 244), os governos se veem diante de duas opções: "Para levar adiante as reformas, os governos têm que buscar o apoio mais amplo possível dos sindicatos, dos partidos de oposição e outras organizações abrangentes e centralizadas, ou procurar enfraquecê-los e torná-los ineficazes".

A capacidade de influência dos sindicatos sobre o processo de privatização aparece de forma interessante na formulação de Duch (1991:260; tradução do autor), para quem "políticas de liberalização das barreiras de entrada ou de privatização das empresas estatais são mais prontamente adotadas em nações com instituições pluralistas, em oposição às com instituições estatistas ou corporativistas". Sua conclusão está em linha com outros trabalhos, como os de Hulsink, que explicam as diferenças nos processos de privatização a partir da configuração de certos estilos de "fazer política". Duch enquadra ainda a influência dos grupos no paradigma corporativista de análise das políticas públicas, que fornece uma importante ferramenta teórica para a análise comparada.

Duch parte de uma abordagem marcada pela literatura sobre corporativismo, na qual a influência dos sindicatos é inferida basicamente por meio de certos atributos estruturais, como o grau de monopólio, o número de sindicatos em um mesmo setor ou indústria e a existência de canais institucionalizados de acesso aos sindicatos no sistema político decisório. Essa abordagem fornece um arcabouço interessante para a análise comparada do processo de privatização entre os países das diferentes regiões analisadas pelos autores, o que permite uma maior generalização do argumento. Nas páginas que seguem, procuro reunir os argumentos destaseção edaanterior, epor meio destasíntese formular dois conjuntos de hipóteses investigadas.

METODOLOGIA, ABORDAGEM E HIPÓTESES DE PESQUISA A adoção da política de privatização em diferentes países pode ser mais bem compreendida a partir de uma abordagem neoinstitucionalista e do método comparado (Immergut, 1996; Lijphart, 1975:164). Como procurei mostrar, tanto nos trabalhos qualitativos quanto nos quantitativos sobre o tema, as variáveis independentes são extraídas do arranjo institucional específico de cada país, incluindo o sistema político formal e o sistema de intermediação de interesses3. Entretanto, nem todos esses trabalhos pressupõem que a relação entre as variáveis e seu efeito sobre o comportamento do sistema é a mesma, havendo uma diferença entre os que analisam países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

A seleção dos casos analisados obedeceu a dois critérios. Primeiro, garantir a variação institucional do sistema político formal e de intermediação de interesses, assim como a variação do nível de desenvolvimento. Depois, garantir também certa homogeneidade analisando apenas o setor de telecomunicações e países distintos com o mesmo nível de desenvolvimento. Nesse sentido, a seleção de países na América Latina e na Europa permite manter certo grau de controle sobre variáveis não consideradas e, ao mesmo tempo, aproveitar a variação entre países, misturando tanto o que Mill chamou de most similar systems designquanto de most different systems design.

Essa opção possibilita explorar uma importante falha na literatura sobre o tema, que, por analisar separadamente países desenvolvidos e subdesenvolvidos, não consegue unificar suas conclusões a respeito do impacto do arranjo institucional sobre a privatização (Levi-Faur, 2003; Larangeira, 1993; Thatcher, 2003; Murillo, 2002). A seleção dos países segundo o nível de desenvolvimento, conforme o método da máxima semelhança, tem conduzido os pesquisadores a incorrer sistematicamente em dois equívocos. Por um lado, essas análises tendem a superestimar as diferenças no processo de reforma de cada um desses países. Por outro, elas tendem a subestimar importantes relações comuns entre as principais variáveis explicativas que condicionaram o processo em ambos os casos.

Não , contudo, por que esperar que um menor ou maior número de jogadores com capacidade de veto ou que governos de partido único versusgovernos de coalizão tenham impacto distinto sobre o processo decisório nos dois conjuntos de países. Também não por que atribuir a privatização e a quebra do monopólio nos países da América Latina à "incapacidade de os governos financiarem o desenvolvimento do setor em razão da crise fiscal que abala as finanças desses países desde meados dos anos de 1970", como faz Larangeira (1993:90). É como se apenas nesses países "periféricos" os "monopólios no setor de telecomunicações" fossem de "propriedade estatal ou controlados pelo Estado". Essa conclusão se baseia em um controle errôneo dos casos, pois, de um lado, nos países desenvolvidos, o Estado também controlava as empresas do setor; de outro, a crise fiscal atingiu tanto a América Latina quanto a Europa, embora com intensidades distintas4.

Para evitar esse equívoco, abordo as duas regiões tomando como exemplo Inglaterra e França, de um lado, e Argentina e Brasil, de outro. Essas duplas permitem a comparação de diferentes pares definidos pelas similaridades e diferenças, tal como sugerido por Collier e Collier (2002). Para não comprometer o alcance da explicação, a seleção dos casos contempla tanto países onde o Estado se retirou completamente da empresa operadora quanto nos quais o Estado se retirou parcialmente5. O controle estatal sobre a empresa varia conforme a quantidade de ações mantida pelo Estado e o arranjo institucional após a venda, podendo ir da nomeação de diretores e do presidente da empresa até o poder de veto sobre fusões e incorporações. A análise dos casos que apresentam o mesmo resultado para variável dependente é útil para excluir variáveis explicativas sistematicamente ausentes quando esse resultado ocorre.

Em todos esses países, o Estado atuou de maneira decisiva no setor de telecomunicações, como regulador e como empreendedor. A escolha do setor de telecomunicações se justifica pelo fato de este ser um dos principais setores privatizados e um dos mais polêmicos, por se tratar de um bem público cujo acesso deve, a princípio, ser universal. O setor passou também por mudanças tecnológicas significativas e por uma expressiva internacionalização, o que favorece os argumentos em favor da convergência, a despeito das diferenças no contexto institucional de cada país. As alterações tecnológicas foram evocadas pelos grupos favoráveis à liberalização e à privatização nos quatro países, contribuindo para quebrar a ideia de que as telecomunicações são um "monopólio natural" e alterando os "preços relativos" que caracterizavam o equilíbrio institucional anterior (Noam, 1987; North, 1991).

Todos os casos partilham de um mesmo período inicial, ou herança comum, em que as principais operadoras se encontravam nas mãos do Estado, seja como empresa estatal controlada, seja como departamento ligado ao ministério responsável. A privatização aparece, nesses países, não apenas como um fato isolado, mas também como partedareforma do Estado. No setor de telecomunicações, essa mudança se expressa pela passagem de um modelo institucional em que o Estado atuava como produtor direto para um modelo em que a atuação estatal se concentrava cada vez mais na regulação. O momento da reforma pode ser entendido a partir do que Collier e Collier (2002) chamam de "caso crítico", um período de mudanças significativas que ocorrem de diferentes maneiras em cada país e está associado a diferentes heranças ou legados.

Assim, a variável dependente a ser explorada para que se possa compreender o impacto das instituições que compõem o sistema político sobre a mudança do papel do Estado não será apenas a adoção ou não da privatização, mas também o formato da privatização adotado em cada país, caracterizado principalmente pela abrangência, timing. As diferenças observadas nos resultados mostram que, ao contrário da mera convergência, o que se é uma miríade de alternativas políticas perseguidas pelos principais atores envolvidos em contextos institucionais distintos. A observação da variável dependente se concentrará no tempo decorrido, desde a tramitação da lei de privatização até o momento da venda, e na porcentagem vendida.

Abordagem e Hipóteses de Pesquisa A insuficiência das explicações centradas nos fatores convergentes mencionados deixa em aberto o desafio de explicar diferenças relevantes entre os processos de privatização de cada país. Para ser aprovada, a privatização deve percorrer um extenso caminho ao longo do processo político decisório; percurso que, por sua vez, não é neutro. Ao contrário, como mostra Immergut (1992), as regras do processo decisório influenciam diretamente a agregação desses interesses e os resultados políticos, podendo indicar quais atores e estratégias terão maior chance de sucesso, sem, contudo, determinar o resultado político. Dessa forma, as políticas adotadas não representam o puro equilíbrio da disputa entre os grupos sociais, como seria de se esperar em uma abordagem pluralista tradicional, nem são resultado exclusivo das motivações externas à esfera política.

A análise da capacidade de adoção de políticas públicas pelo governo, independentemente da pressão dos grupos e da capacidade de influência dos grupos sobre essas políticas, não pode focar apenas o comportamento ou a preferência do grupo, ou as restrições externas expostas pela literatura que defende a tese da convergência. Para compreender essa capacidade, é preciso também atentar para a comparação do que Immergut (1996:143) chama de "dinâmica institucional do processo político decisório". Por meio da análise dessa dinâmica, em contextos institucionais distintos, é possível observar se as instituições, ao estruturar incentivos e restrições ao comportamento dos agentes políticos, assim como às possibilidades que se abrem para sua ação ao longo do processo político decisório, foram importantes ou não para a definição da política de privatização e quais são as variáveis institucionais relevantes.

A capacidade dos governos para conduzir as reformas é restringida por dois conjuntos de variáveis que compõem o que a autora chama de "contexto institucional" (Immergut, 1992:3). De um lado, pelas regras constitucionais que organizam a relação entre os poderes e como são preenchidos os postos decisórios; de outro, pelos resultados eleitorais que definem a distribuição de poder entre os atores. Esse contexto confere ao Executivo e ao Legislativo, assim como aos grupos de interesse, capacidades distintas de implementar determinada política ou de influenciar seu formato, ao determinar onde se localizam as oportunidades de veto e quais são os atores com capacidade de veto ao longo do processo decisório (idem, 1996:160).

Essa formulação guarda semelhança com a de Tsebelis (1995), para quem o sucesso do governo, ao implementar políticas de mudança que rompem com o status quo, é contingente não apenas ao "contexto institucional", referido por Immergut, mas também à congruência e coesão entre os atores em cada uma dasinstâncias de veto existentes. Isso porque, em alguns casos, a congruência e a coesão podem contribuir para a supressão dos "pontos de veto institucionais" que compõem o arranjo institucional do processo político decisório (Tsebelis, 2002).

Quanto maiores o número de jogadores com capacidade de veto necessário para aprovar determinada política e o número de pontos de veto localizados ao longo do processo decisório, menores as chances de concretizar sua adoção. Da mesma forma, quanto maiores a incongruência e a falta de coesão interna entre os atores com capacidade de veto, menores as chances de adoção da política em questão. Por exemplo, se o Poder Executivo conta com uma maioria coesa no Legislativo, e ambos têm preferências semelhantes em torno da política em questão, os dois poderes podem ser contados como apenas um ponto de veto, ou jogador com capacidade de veto.

Uma variável-chave para identificar o número de jogadores com capacidade de veto é o número de partidos políticos, no ministério ou no Legislativo, que compõem a base do governo vis-à-visa oposição. Neste trabalho, foram utilizados como indicadores para esse ponto tanto o número de partidos efetivos no Congresso, calculado pela fórmula consagrada por Laakso e Taagepera (1979), quanto o número de partidos no ministério e o tamanho do partido ou coalizão governista. Entretanto, é preciso explorar ainda as regras decisórias internas ao Poder Legislativo, que, como mostram alguns estudos, também podem afetar a congruência e a coesão entre os atores (Cox, 1987; Figueiredo e Limongi, 1998).

O trabalho de Immergut tem o mérito de adicionar os grupos de interesse ao modelo de Tsebelis e de mostrar que o espaço para a influência dos grupos se abre dentro de um contexto institucional específico. A autora mostra que não são as características organizacionais, mas as oportunidades institucionais que conferem aos grupos de interesse uma maior ou menor influência sobre as políticas públicas (Immergut, 1996:146). Entretanto, a evidência apresentada em seu estudo para mostrar a similaridade entre os recursos organizacionais dos grupos de interesse apoia-se quase que estritamente em uma visão pluralista do poder sindical. Mas, para se compreender a influência dos grupos de interesse sobre o processo de reforma, é preciso olhar também para as variações estruturais entre os grupos, como na análise institucional vinda da tradição corporativista (Schmitter, 1979). Dessa perspectiva, a capacidade de influência dos sindicatos deve ser investigada tanto a partir da estrutura da organização sindical, particularmente as regras que favorecem ou dificultam sua capacidade de coordenação, quanto das estratégias e preferências do movimento sindical.

Essa ideia foi desenvolvida também por Lijphart (1999), para quem os diferentes arranjos institucionais democráticos existentes conduzem a diversas formas de governar. A identificação, pelo autor, dos modelos Majoritário e Consensual, é uma função da combinação entre as instituições que definem o regime político, as regras eleitorais e a divisão de poderes. Lijphart foi também um dos pioneiros em relacionar a literatura sobre democracia e sobre corporativismo, trazendo a ideia de que cada um desses modelos de democracia está associado a um padrão específico de intermediação de interesses. Como mostra, "o sistema de grupos de interesse típico da democracia majoritária é um pluralismo não coordenado e competitivo composto de grupos independentes", enquanto o sistema típico da democracia consensual é coordenado e "orientado para o compromisso" (ibidem:171; tradução do autor).

Tal abordagem responde a um desafio da política comparada, que busca na utilização de categorias mais amplas, como governos de coalizão e governos divididos, ou jogadores com capacidade de veto e posições de veto, ampliar o escopo das comparações. Assim, a relação entre governo, sindicatos e arranjo institucional pode ser observada sob uma dupla perspectiva, da qual decorrem duas hipóteses gerais de pesquisa (Quadro_1). A primeira afirma que, quanto menor o número de posições de veto e jogadores com capacidade de veto no sistema político, maiores as chances de o governo adotar a privatização, independentemente da oposição. A segunda hipótese afirma que a capacidade de influência dos sindicatos sobre o processo é positivamente relacionada ao grau de concentração e de centralização do movimento sindical.

Essas hipóteses revelam uma perspectiva interessante para a análise da capacidade de o governo implementar políticas de mudança e para a análise da influência dos sindicatos sobre as políticas públicas, ao combinar características específicas do sistema político com aquelas do sistema de intermediação de interesses na explicação das variações entre os processos de privatização em diferentes países. Neste artigo, contudo, apresento apenas parte do argumento, restringindo-me aos efeitos desses dois conjuntos de variáveis sobre o andamento e o escopo da privatização. Em outra oportunidade, pretendo concentrar-me em seu efeito sobre o formato, quando fica mais clara a influência do arranjo do sistema de intermediação de interesses sobre o processo.

HISTÓRICO DO SETOR DE TELECOMUNICAÇÕES Embora a maior parte dos estudos sobre a formação do setor produtivo estatal se tenha concentrado no período posterior à crise econômica de 1929, a intervenção direta do Estado no setor de telecomunicações é bem mais antiga e remonta ao aparecimento das primeiras empresas americanas Bell, na Europa, no fim do século XIX. Inicialmente, as empresas de telecomunicação na Europa e na América Latina funcionaram como concessionárias, geralmente regulamentadas pelo ministério que cuidava dos telégrafos. Nessa fase, quase todos os países da Europa Ocidental apostaram no investimento privado para desenvolver seus setores de telefonia, mas essa política rapidamente deu lugar à crescente intervenção estatal, com a nacionalização e a estatização das empresas (Holcombe, 1911:393).

Na América Latina, a história do avanço da intervenção estatal no setor foi temporalmente distinta da Europa, mas seguiu etapas similares.

Inicialmente, o desenvolvimento do setor se deu por meio do estabelecimento de concessões públicas reguladas pelo Estado, ao passo que os serviços ficaram geralmente a cargo das empresas multinacionais. No quadro a seguir, é possível ver o escopo e o ano de estatização do setor nos países selecionados. Enquanto alguns países adotaram a estatização integral, vinculando as empresas diretamente à estrutura ministerial, outros optaram, desde o início, por um modelo misto a fim de capitalizar a empresa e garantir certa autonomia gerencial.

Até o início dos anos 1980, dos dezesseis países que compõem as Américas Central e do Sul, somente Argentina, México e Brasil possuíam capital privado no setor, ainda que minoritário. Na Europa, das treze maiores economias, apenas Espanha, Itália e Finlândia contavam com participação privada, também minoritária. No restante dos países, o controle do capital das operadoras estava inteiramente nas mãos do Estado (Levi-Faur, 2003). Nesse período, o setor foi dominado pelos ministérios dos Correios e das Telecomunicações, conhecidos na Europa como PTT (Post, Telegraph, and Telecommunication Administration). O ministério era responsável pela produção, pelo controle dos serviços e, muitas vezes, também pela produção de equipamentos.

Na França, a Direção Geral de Telecomunicações (DGT) era uma agência do governo subordinada ao ministério responsável pelos correios e pelas telecomunicações, e seus empregados eram considerados servidores públicos. Na Inglaterra, a British Telecom (BT) foi um departamento do Estado até 1969, ligado ao respectivo ministério (PTT), e seus empregados também eram considerados servidores públicos. Essa situação se alterou nesse ano, quando a empresa passou a ter statusde corporação pública, o que implicou a perda da condição de servidor público por parte dos funcionários (Duch, 1991). No entanto, a empresa manteve-se integrada aos correios, e o ministério continuou com a função de nomear os diretores e o presidente, embora com restrições para demitir (Thatcher, 1999).

Até a metade da década de 1980, em vez de serem objeto da privatização, as operadoras de telefonia fixa estatais figuraram como peças importantes do planejamento do Estado e da política industrial.Nos países desenvolvidos e subdesenvolvidos, as empresas ajudaram a impulsionar o desenvolvimento econômico, sendo muitas vezes utilizadas como instrumento para controlar a inflação e equilibrar as finanças públicas (Saunders e Harris, 1994; Nowotny, 1982; Hulsink, 1999; Bancel, 1995:27).

Cerca de duas décadas mais tarde, em 2002, todos os países da Europa Ocidental, com exceção de Luxemburgo, privatizaram ao menos parte das ações do Estado no setor. Poucos privatizaram a totalidade das ações. No caso da América Latina, alguns países mantiveram as operadoras sob controle total do Estado, enquanto em outros elas foram totalmente privatizadas. Contudo, ao contrário dos países europeus, que optaram pela economia mista, praticamente todos os países latinoamericanos que privatizaram suas operadoras optaram pela retirada total do Estado (ITU, 2002).

Se essas diferenças não podem ser explicadas inteiramente pelas pressões econômicas e fiscais, também não podem ser explicadas por aspectos intrínsecos ao setor, como procurou fazer Thatcher (2003). Mesmo a União Internacional das Telecomunicações (UIT), que atuou a favor da liberalização do setor desde a privatização da BT, permaneceu neutra em relação à privatização até o fim dos anos 1990 (Hulsink, 1999). Em um encontro promovido pela entidade em 1994, seu presidente deixava em aberto duas formas de lidar com os problemas decorrentes dasregrasambíguas(unclear guidelines) aplicadas às empresas de telecomunicações em virtude da interferência política. A primeira opção era negociar contratos de gestão entre o Estado e as operadoras públicas, a segunda era vender as ações das empresas para o público (Müller, 1995).

A tensão entre o papel do Estado como provedor e, ao mesmo tempo, como regulador não demoraria a aparecer nas discussões da Comissão Europeia. Segundo o European Policy Committee, "problemas devidos à tensão potencial entre o duplo papel do governo como regulador e proprietário precisam ser reduzidos" (2002:6; tradução do autor). No mesmo trabalho, o órgão afirma ser preciso monitorar a ação das empresas do setor de telecomunicações e considerar em que medida a continuidade do modelo de propriedade estatal é compatível com well- functioning, liberalised markets. A recomendação do European Policy Committee a partir daí é clara: "Em muitos casos, a privatização, combinada com medidas que assegurem a contestabilidade dos mercados (concorrência), pode contribuir para um arranjo regulatório mais transparente e eficaz" (ibidem).

A participação da UITdando assistência técnica aos processos de privatização foi extremamente relevante nos dois continentes, assim como a do Fundo Monetário Internacional (FMI) e a do Banco Mundial, que chegou a montar uma cartilha e dar ajuda técnica e financeira para viabilizar os programas de privatização entre os países devedores. A importância dessas e de outras organizações internacionais, como o Instituto Adam Smith e a Reason Foundation, sediadas na Inglaterra, na difusão da privatização como alternativa ao modelo intervencionista foi salientada por diversos autores, como Hall (1986) e Ikenberry, para quem "agências multilaterais e outros atores externos forneceram informação e recursos que serviram para criar e reforçar as coalizões reformistas. Uma espécie de aliança reformista tripla enraizada entre agências governamentais de fora (outside), oficiais do Estado e grupos do setor privado" (1990:100; tradução do autor).

PAÍSES PIONEIROS E PAÍSES ATRASADOS: O ANDAMENTO E O ESCOPO DA PRIVATIZAÇÃO A Inglaterra foi pioneira na adoção da política de privatização, tendo privatizado a BT logo no início da década de 1980, como apresentado na figura a seguir. A Argentina seguiria pelo mesmo caminho alguns anos depois, privatizando sua empresa de telefonia no início da década de 1990. Ao contrário da Inglaterra, que abdicou da golden shareapenas em 1997 e adotou um modelo de venda gradual, a Argentina não optou por manter ações de classe especial após a privatização do controle acionário. Por seu turno, França e Brasil privatizaram suas empresas apenas na segunda metade dos anos 1990, quando o ambiente de concorrência internacional estava mais claro e se podia aproveitar da experiência dos países pioneiros. Na França, entretanto, a privatização foi apenas parcial. A societização da empresa, como foi chamado na época, lembra de certa forma o modelo adotado no Brasil antes da privatização.

A venda do controle acionário da BT, conduzida pelo governo do Partido Conservador inglês, dificilmente se concretizaria sem a concentração de poder nas mãos da primeira-ministra, Margaret Thatcher, dada pelo contexto institucional. O sistema político do tipo majoritário inglês, ou o "modelo Westminster", como é conhecido, caracteriza-se pela alta concentração de poder no chefe do Executivo, o primeiro-ministro, que detém o "monopólio virtual" das iniciativas executiva e legislativa (Cox, 1987). As iniciativas de lei partem geralmente do ministério ou Gabinete, composto quase que exclusivamente de membros do partido com maior número de cadeiras na Câmara Baixa. Na Inglaterra, são raras as vezes em que o Gabinete agrega membros de partidos minoritários para compor governos de coalizão. De modo geral, o Gabinete é claramente dominante em relação ao Parlamento, o que equivale a falar em um Executivo dominante (Lijphart, 1999:10).

O primeiro-ministro tem a prerrogativa de nomear e de demitir os membros do Gabinete, o que favorece seu controle sobre as iniciativas de lei e incentiva a congruência entre os membros do partido do governo e o ministério. A fidelidade partidária é reforçada também pelo controle do partido sobre as candidaturas em cada distrito, apresentando candidatos únicos, e sobre a nomeação dos membros das comissões permanentes e extraordinárias no interior do Parlamento. As regras eleitorais que definem o uso do voto majoritário para o Legislativo, conhecido com single-member district plurality, inibem a fragmentação partidária, favorecendo a formação de um sistema bipartidário. Esse arranjo levou Lijphart (1999) a classificar o sistema político inglês como uma elective dictatorship, o que pode soar um pouco estranho para os que reservam esse tipo de diagnóstico para as democracias recentes da América Latina. Nesse sistema, o ministério é geralmente formado por um único partido, com maioria apertada para governar (minimal winning cabinets), ao contrário de sistemas como o francês, no qual o governo geralmente é formado por coalizões ampliadas (oversized coalitions) (Lijphart, 1999).

Apesar de contar com esses dispositivos institucionais, o governo fracassou em sua primeira tentativa de promover a privatização da empresa, após introduzir o projeto, na segunda metade de 1982. É importante mencionar que a privatização da BT não havia sido incorporada ao programa do partido nas eleições para o primeiro mandato de Thatcher; e durante o mandato pouco se discutiu a respeito do assunto com a sociedade. Como mostra Kay (2001), a privatização como uma política consistente de governo parece ter surgido inicialmente nos corpos técnicos localizados na burocracia estatal, universidades e institutos de pesquisa, para somente depois ser incorporada ao discurso e à prática políticos6. A privatização era uma novidade das mais controversas, o que colaborou para que as discussões dentro do próprio Partido Trabalhista acabassem por retardar o processo no Parlamento.

Para se entender o fracasso dessa primeira tentativa, é preciso também observar a importância da regra que permite que um projeto de lei caduque no Parlamento caso não seja aprovado no período de doze meses, o que, na prática, confere à Câmara Alta certo poder de barganha, embora não possa introduzir nem vetar leis. Foi justamente essa ação dos lordes, preocupados sobretudo com os subsídios para áreas rurais e com a questão da universalização dos serviços e da concorrência, que atrasou as discussões (Moon, Richardson e Smart, 1986).

Além disso, o governo pecou ao introduzir a proposta no último ano do mandato, o que serviu para acalorar o debate durante a campanha eleitoral.

Se, no primeiro mandato, a privatização do controle da BT não havia sido previamente discutida na campanha eleitoral, no segundo termo ela aparecia como um dos pontos principais do programa do Partido Conservador. A vitória eleitoral, em junho de 1983, conferiu aos conservadores uma ampla maioria, aumentando a concentração de poder no primeiro-ministro. A grande desproporcionalidade na distribuição de cadeiras permitida pelo sistema eleitoral possibilitou que o Partido Conservador levasse 61% das vagas no Parlamento, apesar de receber "apenas" 42% dos votos. Ao todo foram conquistadas 397 cadeiras, 58 a mais que na eleição anterior, contra 253 da oposição, dividida basicamente entre Partido Trabalhista (209) e SDP-Aliança Liberal (23).

Compondo sozinho o ministério, e com uma ampla maioria, o governo introduziria o novo projeto de lei ainda em junho de 1983. Contudo, apesar do enorme poder concentrado em um único partido, o projeto seria intensamente debatido no Parlamento. Ao todo, foram mais de trezentas emendas, muitas das quais advindas dos próprios conservadores, que modificavam principalmente temas relativos à noção de serviço público, à indústria de equipamentos e ao serviço em área rural (ibidem). A tática da oposição, procurando atrasar o andamento da matéria, também se ressentia de seu menor peso no Parlamento e da distância das novas eleições, perdendo sua eficácia.

As emendas aprovadas buscaram contornar a forte oposição à privatização, que contava com uma ampla mobilização dos sindicatos. A ação destes contou, inclusive, com o boicote à operadora Cable & Wireless, que foi criada inicialmente para cuidar da telefonia fora do país, mas que, na época, foi privatizada e teve seu regime alterado para competir com a BT. No entanto, apesar da aparente centralização e concentração sindical na Inglaterra, e da alta taxa de sindicalização, os sindicatos pouco podiam fazer contra o projeto do Partido Conservador, que se aproveitou de sua posição para dividir o movimento de forma pioneira ao oferecer ações aos empregados da empresa em condições especiais (Ferraz, 2005).

Inicialmente o Estado manteve uma participação significativa na empresa, uma vez que a lei de 1984 abria espaço para a privatização sem impor limites de tempo ou escopo para venda das ações. A privatização total da BT, sem que outra lei precisasse ser votada, ocorreria no governo de John Major, que deu sequência aos quase vinte anos de hegemonia conservadora na Inglaterra.

Contudo, somente em 1997, durante o governo do Partido Trabalhista, o Estado abdicaria da "ação de ouro", criada em 1984, que lhe conferia o poder de bloquear a venda de ações da empresa e possíveis fusões, além de permitir a indicação de dois membros para o conselho de administração. As ações restantes, ao redor de 4% do capital, foram vendidas em junho de 2000, liquidando inteiramente a participação do Estado na empresa.

Embora nem fosse cogitada na França e no Brasil, a Argentina chegou a apresentar uma tentativa fracassada de adoção da política de privatização da telefonia fixa ainda na década de 1980. O presidente Raúl Alfonsín fracassou em sua tentativa de privatizar a Entel, apesar do incentivo que a grave crise econômica e fiscal trazia para que o Estado buscasse recursos extras com a venda da empresa. Esse fracasso pode ser atribuído à incapacidade de o governo formar uma maioria consistente, ou uma coalizão de apoio, que lograsse a aprovação da privatização. Essa coalizão viria a se consolidar no fim de 1989, com a formação de um novo governo comandado pelo Partido Judicialista, sob a liderança do presidente Carlos Menem.

O estudo de caso da privatização na Argentina se aproxima da experiência inglesa no sentido de que o contexto institucional favoreceu a concentração de poder nas mãos de um único partido coeso, capaz de conduzir a privatização, a despeito da oposição. Essa aproximação é interessante, pois, apesar de a Argentina ter ao menos três pontos institucionais de veto, dados pela separação dos poderes, e de contar com um sistema bicameral no Legislativo, essa aparente fragmentação foi contornada pelo governo durante a presidência de Menem.

A chave para entender como o presidente argentino conseguiu concentrar ainda mais poder que a primeira-ministra inglesa está no conceito de contexto institucional formulado a partir dos trabalhos de Immergut (1992) e Tsebelis (2002). Ao contrário do que ocorreu na Inglaterra, onde a lei de privatização foi extensamente discutida e emendada ao longo do processo decisório, obedecendo ao rito ordinário, a lei que possibilitou a privatização da Entel passou no Legislativo em regime de urgência, sem nenhuma alteração, e conferiu poderes discricionários ao governo que seriam impensáveis no caso inglês. Na lei de privatização da BT, estão definidas todas as regras de privatização, ao passo que, no caso da Entel, a maior parte dessas regras foi definida por decreto, durante um período de delegação extraordinária de poder ao presidente por parte do Parlamento.

Alguns autores chamam o regime político argentino de "hiperpresidencialismo" em virtude da enorme concentração de poder no chefe do Executivo definida pela Constituição (Llanos, 2001). Na época da privatização da Entel, a Constituição em vigor dava ao presidente uma série de instrumentos legislativos, como o poder de emitir decretos sobre quase todas as matérias, obedecendo aos critérios de necessidade e urgência, de introduzir projetos de lei, utilizar-se do veto total e parcial, e nomear e demitir ministros. Entretanto, assim como no Brasil, a concentração de poder no chefe do Executivo não implica necessariamente uma atrofia do Poder Legislativo, que conserva a última palavra em quase todas as matérias, podendo votar a pertinência dos decretos, emendar propostas de lei e reconsiderar o veto do Executivo.

A concentração de poder nas mãos do presidente Carlos Menem no momento da privatização não se reduz, contudo, a esses instrumentos institucionais dispostos na Constituição. Por meio de decreto emitido em setembro de 1989 e aprovado em abril de 1990, Menem alterou a Constituição, mudando o número de membros da Suprema Corte de cinco para nove, de forma que pudesse nomear quatro novos juízes7. Ademais, o presidente pôde ainda nomear outro membro, depois que um dos juízes que se havia manifestado contrário à privatização e à Lei de Reforma do Estado pediu demissão.

Nas eleições de 1989, os peronistas conquistaram a maioria nas duas Casas, bem como o maior número de governadores nas províncias. Após a eleição que definiu a composição da Câmara até 1992, o Partido Judicialista (PJ) ficou com 122 cadeiras; a União Cívica Radical (UCR), com 90; e a União de Centro Democrático (UCeDé), com 13, totalizando 88,5% dos votos na Casa (Payne, Zovatto e Diaz, 2002). Para obter a maioria dos 254 deputados, os peronistas contaram com a ajuda dos pequenos partidos e da UCeDé, embora aqueles compusessem sozinhos o ministério (Llanos, 2001). No Senado, a situação era ainda mais favorável ao PJ, que passou a contar, sozinho, com 27 senadores, representando 58,7% das 46 cadeiras (Payne, Zovatto e Diaz, 2002).

A guinada de Menem encontrou apoio imediato na UCR, que poucos meses antes havia amargado uma série de derrotas na tentativa de privatizar a Entel. Em 12 de julho de 1989, pouco tempo depois de assumir, o novo presidente determinou a intervenção na empresa por um período de 180 dias, com o objetivo explícito de prepará-la para a privatização, designando como interventora María Julia Alsogaray, ligada à UCeDé. Logo após a intervenção, o governo introduziu o projeto que originaria a Lei da Reforma do Estado, determinando a privatização da Entel, entre outras empresas, e o provimento dos serviços de telecomunicações sob o regime de concessão. A Lei nº23.696 foi aprovada em 17 de agosto de 1989, poucas semanas depois de entrar no Legislativo8.

A Lei da Reforma do Estado favorece claramente o poder discricionário do presidente e do ministro de Obras e Serviços Públicos, José Roberto Dromi, na determinação das condições de privatização a serem definidas por decreto e oficializa a figura do interventor. Entre outros pontos os decretos regulavam a prerrogativa de compra de 10% das ações por parte dos empregados e especificavam as bases do leilão e as obrigações das novas concessionárias, que ficavam sujeitas a um plano de metas e outorga.

Antes da privatização, em agosto de 1990, Menem prorrogou o "estado de emergência", que lhe dava poderes excepcionais, por mais três meses. Avenda de 75% das ações da Entel foi concretizada em 8 de novembro de 1990; os 25% restantes seriam privatizados em dezembro de 1991 e entre março e abril de 1992 por meio de oferta pública na bolsa de valores. Das ações vendidas na oferta inicial, 60% de cada empresa foi para o consórcio que formou o núcleo duro de acionistas, 10% para os empregados e 5% para as cooperativas que atuavam no setor desde a década de 1960.

Antes de ser vendida, a Entel foi dividida em duas empresas, possibilidade aberta pela lei de privatização, cada uma ficando responsável por uma região.

Assim como no Brasil, essa medida era vista como uma possibilidade para elevar os ganhos do leilão. No Brasil, no entanto, esse ponto se liga também à possibilidade de maior concorrência, o que nãotransparece comtanta clarezanocasoargentino,emque omonopólio foi mantido por sete anos, com possibilidade de prorrogação por mais três anos. A concessionária responsável pela região sul, chamada de Telefônica Argentina, foi arrematada pelo consórcio Nortel, liderado pela France Telecom (FT, 18%) e pela STET International Netherlands, controlada pela Itália (18%), com a participação da JP Morgan (6%) e de um importante grupo local que comprou empresas em diversas privatizações, a Perez Company (18%). A concessionária responsável pela região norte, Telecom Argentina, ficou com a operadora espanhola Telefônica (34%), juntamente com o Citibank (20%) e outro grupo local, a Techint (6%).

Apesar de a privatização na Argentina estar associada a uma concentração de poder ainda maior que no caso da Inglaterra, ela não foi conduzida por um partido ideologicamente comprometido com o liberalismo, como o Partido Conservador, de Thatcher. Ao contrário, o partido de Menem possuía um claro corte populista e laços estreitos com uma parte significativa do movimento sindical. Em vez de trabalhar no sentido de bloquear o processo, contudo, o governo se aproveitou dessa ligação para contornar possíveis resistências ao processo.

Esses casos se diferenciam significativamente dos casos de Brasil e França, que possuíam sistemas políticos caracterizados por uma maior fragmentação do poder e pela necessidade de mudança constitucional, com quórum de três quintos para aprovação da privatização total da empresa. A Constituição francesa determinava que qualquer nacionalização ou "transferência de propriedade para o setor privado" deveria ser regida por lei específica, aprovada pelo Parlamento. Na Tabela_1, são mostradas algumas características que aproximam esses dois países em relação aos três outros casos, bem como o tempo de tramitação das leis de privatização e da passagem das leis até a primeira oferta em cada um dos países.

Nos dois casos, os custos de transação advindos do contexto institucional tornavam bem mais difícil a tarefa de buscar a aprovação da lei de privatização. No caso francês, em particular, a possibilidade de dissolução da Assembleia pelo presidente e a eleição descasada entre o Legislativo e o Executivo favorecem frequentes mudanças de maioria, encurtando o horizonte de ação dos governos, que, se por um lado podem ser considerados mais responsáveis perante o eleitorado, por outro, têm menos autonomia para tomar atitudes impopulares, uma vez que, em um curto período, estão sujeitos a novas eleições.

Ao contrário do que possa parecer, o presidente não é uma figura decorativa no "semipresidencialismo" francês e tem diversos poderes garantidos constitucionalmente, embora não possa introduzir nem vetar projetos de lei.

Entre esses poderes estão a dissolução da Assembleia, convocando novas eleições; a possibilidade de introduzir referendo; e de pedir ao Parlamento que reconsidere uma lei antes de promulgá-la para que tenha validade. O primeiro- ministro, por sua vez, é o responsável de fato pelo processo legislativo e detém a iniciativa de lei juntamente com a Assembleia. Entre outros poderes, ele pode pedir urgência e tornar a passagem de um projeto de lei questão de "confiança", oque obrigaaque ogoverno seja dissolvido caso a Assembleia não o aprove. Além do mais, o primeiro-ministro não pode ser demitido pelo residente, que também não pode demitir os ministros sem sua autorização (Guyomarch e Machin, 2001).

Outra característica importante do arranjo francês são os sistemas eleitoral e partidário. Na França, os membros da Assembleia são escolhidos segundo o sistema majoritário de dois turnos, o que ocorre apenas quando nenhum candidato atinge a maioria absoluta dos votos no primeiro (Lijphart, 1999). Na prática, como mostrou Duverger (1970:274), esse método favorece a criação de um sistema multipartidário. Essas regras eleitorais fazem da França um caso interessante por permitir a conjugação de uma alta fragmentação partidária com fidelidade partidária e o controle dos partidos sobre os políticos individuais (Carey, 1997).

Esse arranjo leva a duas situações, ou dinâmicas, diversas do processo político decisório naquele país. A primeira se caracteriza pela fusão de Executivo e Legislativo em um único ponto de veto, quando o presidente eleito conta com a maioria dos deputados no Parlamento. A segunda ocorre quando o presidente convive com uma maioria hostil na Assembleia, chamada de coabitação. Para fugir dessa situação, o presidente pode antecipar as eleições para a Assembleia, dissolvendo-a, mas pode fazer isso uma vez a cada termo. Ou seja, sempre queum presidente eleito encontra uma maioria hostil no Parlamento existe um forte incentivo para que ele dissolva a Assembleia e convoque novas eleições.

Quando o partido gaullista Refundação pela República (RPR) assumiu a maioria em 1986 e implementou o primeiro programa de privatização, logo teve de se acertar com o eleitorado. Dois anos depois, após o encerramento de seu primeiro mandato como presidente, Mitterrand conseguiu ganhar novamente as eleições presidenciais, tomando a iniciativa de dissolver a Assembleia dominada pela oposição. Nesse período, o governo aprovou a Lei nº90.568/1990, que determinou a mudança do estatuto da FT, apesar da defecção dos comunistas. Em seu art. I, a Lei Rocard-Quilès reitera a obrigação do Estado de manter, "direta ou indiretamente", a maioria do capital da nova empresa. As outras alterações transformavam a FT de autarquia ministerial em uma empresa nacional de direito público e determinavam sua separação dos correios, mas não levavam à corporativização completa, uma vez que ainda não permitiam que seu capital fosse aberto na bolsa de valores.

Nas eleições seguintes, em 1993, os socialistas perderam mais uma vez o poder no Legislativo, dessa vez para uma coalizão de centro-direita liderada pelo partido RPR e por uma confederação de partidos liberais chamada União pela Democracia Francesa (UDF). Mitterrand, que havia usado o artifício de dissolver a Assembleia, teve de nomear Édouard Balladur (29/3/1995 a 10/4/1995) como primeiro-ministro, seguindo a indicação da maioria do Legislativo. Nesse período, foi significativa a dimensão da vitória da coalizão entre a RPR e a UDF, conquistando 460 cadeiras, ou 80% do total, a maioria mais folgada das décadas de 1980 e 1990, apesar de ter conquistado "apenas" 38% dos votos (Gallagher, 1997).

O governo liderado por Balladur aprovou uma "nova" lei de privatização, em 1993, emendando a antiga lei de 1986 (Bancel, 1995). A nova lei estendia o campo das empresas privatizáveis, mas mantinha grande parte das características da anterior, como a Comissão de Privatização, a venda de ações em condições especiais aos empregados e a restrição ao capital estrangeiro, e a versão francesa da golden share, as "ações de interesse específico" (Vauplane, 1995).

Nessa época, o governo colocou a proposta da privatização da FT na agenda, apesar de mantê-la fora da lista das empresas privatizáveis contidas na lei, como fica claro no Relatório Roulet, encomendado por Gérard Longuet quando esteve à frente do Ministério dos Correios e Telecomunicações (Bartle, 2002).

Ainda em 1993, antes da passagem da lei, o governo chegou a formalizar uma consulta ao Conselho do Estado, que se havia manifestado contrário à privatização do controle acionário da empresa (Larcher, 2002). Pelo menos nessa fase, o governo conservador se eximiu de forçar a privatização total, o que implicava a revisão da Constituição, apesar de a coalizão entre a RPR e a UDF ter quórum suficiente para sua aprovação na legislatura que vigorou de 1993 a 1997. As discussões em torno da privatização da empresa se mostraram por demais desgastantes para o governo, e as demonstrações de protesto contrárias à venda da empresa promovidas pelos sindicatos, entre 1993 e 1995, chegaram a derrubar o presidente da FT.

Ao contrário do que ocorrera anteriormente, a aliança liderada pela RPR ganhou a eleição de maio de 1995, quando Jacques Chirac foi eleito presidente, acabando com o período de coabitação. Chirac (5/1995 a 5/2007) manobrou para substituir Balladur, formando um novo governo com Alain Juppé (5/1995 a 6/1997) como primeiro-ministro e Alain Madelin, do partido Democrático Liberal (DL), no Ministério da Economia e Finanças. O novo líder da Assembleia era um dos principais apoiadores da privatização da empresa, sob o argumento de que a re- forma era necessária para adaptar o setor às "evoluções tecnológicas, econômicas e jurídicas" (L'Humanité, 19/3/1996). Logo que assumiu, o primeiro- ministro trocou seu presidente, nomeando Michel Bon para o lugar de Marcel Roulet, que havia fracassado na tentativa de preparar a empresa para uma possível venda.

Por meio de iniciativa de François Fillon, na época ministro das Telecomunicações, o governo introduziu na Assembleia o Projeto de Lei nº2.698, em abril de 1996, que daria origem à Lei de Regulamentação das Telecomunicações. Essa lei visava basicamente à reorganização do se-tor com o objetivo de criar as condições para a abertura do mercado, tal como estipulado pela União Europeia. O projeto foi discutido na Comissão de Produção e recebeu o parecer do relator Claude Gaillard (RPR). O governo logo pediu urgência para a matéria, praticamente suprimindo as discussões na Assembleia e levando-a ao plenário, onde foi aprovada com poucas modificações (Larcher, 1996).

Em maio de 1996, o texto recebeu o parecer favorável do senador Gérard Larcher (RPR), em nome da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado. As discussões no plenário se iniciaram em junho, e novamente o governo recorreu ao pedido de urgência, levando o projeto para votação em apenas uma sessão, sendo aprovado com poucas modificações em menos de uma semana. Na segunda leitura, o projeto seguiu para uma comissão mista entre as duas Casas, o que está previsto pelo regimento interno em caso de pedido de urgência, sendo votado e aprovado sem novas modificações nos dias 13 e 18 de junho pela Assembleia e pelo Senado, respectivamente.

A Lei 96.659 foi promulgada em 26 de julho de 1996 pela dupla Chirac-Juppé, após aprovação do Conselho Constitucional. Na etapa de discussão da lei, foi fundamental o papel do senador Gérard Larcher (RPR), apoiando a abertura do capital da empresa. Em seu parecer na CAE, o senador deixou claro que a privatização total não seria apropriada, uma vez que feria a Constituição, preferindo falar em "societização" do capital. A posição do governo expressa no relatório procurou o tempo todo atrelar a abertura do capital à necessidade da privatização parcial, sob pena de o país perder o bonde da história no setor (ibidem).

As modificações no texto da lei alteraram basicamente o antigo "código dos correios e de telecomunicações", liberalizando a indústria de equipamentos e a política de compras da FT, e retirando o monopólio da empresa (Charbit, 1999).

Outras modificações importantes do projeto original, feitas no Legislativo, foram a que obrigou a empresa a assumir a tarefa de fornecer o "serviço universal" de telecomunicações e a que impôs o limite de 20% para a participação estrangeira no setor, assim como nos outros casos, em que uma parcela das ações deveriam ser reservadas aos trabalhadores para venda em condições especiais, no caso, 10% do capital. Para completar a nova regulação de abertura do mercado, a lei criava uma agência reguladora independente para o setor, a Autoridade de Regulação das Telecomunicações (ART).

A nova estrutura institucional do setor foi completada pela Lei nº96.660, de julho de 1996, e pelo Decreto nº1.174, de dezembro de 1996, que determinavam a reorganização da FT como uma sociedade anônima de capital majoritariamente estatal a partir de 31 de dezembro de 1996. François Fillon mandou o projeto para a Assembleia no início de junho, e após a primeira leitura o governo solicitou urgência, levando-o no mesmo mês para votação, quando foi aprovado e encaminhado ao Conselho Constitucional, que julgou que a venda minoritária não feria a Constituição. A privatização parcial da FT foi finalmente autorizada por decreto em janeiro de 1997, mas a proximidade das eleições e a resistência ao projeto, vinda sobretudo dos sindicatos, adiaram a venda da empresa.

Mesmo com uma maioria amistosa na Assembleia, Chirac resolveu dissolvê-la em 21 de abril de 1997, adiantando em um ano a eleição, a fim de ganhar legitimidade, uma vez que seu governo amargava uma forte oposição popular. No entanto, Chirac não teve a mesma sorte que Mitterrand em suas duas dissoluções da Assembleia, e as eleições acabaram por levar uma maioria de centro-esquerda ao poder. Em junho de 1997, Chirac nomeou o líder da oposição, Lionel Jospin, o novo primeiro-ministro - o mesmo Jospin que ele havia derrotado nas eleições presidenciais de 1995. A eleição levou a um novo período de coabitação, e Chirac teve de conviver com uma Assembleia hostil durante os últimos cinco anos de seu mandato.

A aliança intitulada "esquerda plural" conquistou 315 cadeiras, das quais 225 pertenciam ao Partido Socialista, o que garantia a maioria folgada para governar, entretanto, sua grande heterogeneidade interna dava certa instabilidade ao governo. A vitória do centro-esquerda não barrou a venda parcial da empresa, apesar da posição contrária à privatização manifestada pelo líder da coalizão e pelo novo primeiro-ministro durante toda a campanha. Jospin chegou a afirmar que renacionalizaria a empresa, posição dividida com outros membros de seu partido, que achavam que a empresa deveria se manter com capital 100% estatal (Larcher, 2002). Quando candidato, Jospin assinou um termo com os sindicatos da empresa em que afirmava seu repúdio ao projeto de mudança do estatuto e à venda da participação acionária do Estado, ainda que minoritária.

Na reta final da campanha, em maio, o discurso de Jospin começou a ficar ambíguo, dando sinais de que o novo primeiro-ministro se mostraria suscetível à ideia da "societização" e à possibilidade de geração de receitas extraordinárias, com o objetivo de aliviar a crise fiscal do Estado (Larcher, 2002). Apenas um mês após assumir, Jospin pediu ao ministro do Trabalho, Michel Delabarre, para conduzir a discussão sobre a privatização parcial com os sindicatos e trabalhadores da empresa. Essas discussões resultaram no Relatório Delabarre, em que o novo governo deixava clara a sua nova posição, diferenciando a abertura de capital da privatização. Finalmente, em 8 de outubro de 1997, o Estado se desfaria de 23,2% do capital da empresa. Entre 1998 e 2002, a porcentagem de ações do Estado na empresa flutuou pouco acima dos 51% demandados pela lei.

Em 2002, houve eleições praticamente simultâneas para a presidência e para a Assembleia. Chirac obteve 82,2% dos votos no segundo turno das eleições presidenciais, em junho, contra Le Pen, após um primeiro turno apertado entre os três primeiros candidatos em maio. Ainda em junho, a coalizão liderada por Chirac conseguiu uma vitória expressiva nas eleições para a Assembleia, interrompendo o período de coabitação. A coalizão foi formada por RPR, UDF e DL, criando um novo partido, a União por um Movimento Popular (UMP), sob a liderança de Jean-Pierre Raffarin (ex-UDF).

No ano seguinte, o governo passaria uma lei autorizando a privatização do controle acionário da FT, o que necessitava de uma lei específica para não ferira Constituição. A Lei nº1.365, de dezembro de 2003, colocava a empresa na lista anexa da lei de privatização de 1993. Para aprovar essa mudança na Constituição, o governo precisou do voto de três quintos dos representantes nas duas Casas do Legislativo, conforme o disposto no art. 89 da Constituição, até então o maior empecilho para a privatização do controle da empresa. Entretanto, a UMP contava com nada menos que 399 das 577 cadeiras, representando 69% do total. Apesar da mudança, contudo, o governo continuou a controlar a FT, mas as vendas que se seguiram levaram a uma diminuição do capital estatal na empresa de mais de 50%, em 2005, para cerca de 32% em 2007.

A postura pragmática de Jospin e do Partido Socialista após as eleições de 1997, afastando-se da posição histórica em favor da nacionalização, revela a importância das pressões convergentes em direção à privatização. O sistema político francês, contudo, dificultou a formação de um consenso em torno da privatização ao multiplicar os pontos de veto ao longo do período. Essa configuração favoreceu a trajetória seguida pela França em direção a um processo de privatização lento e gradual, em que o Estado manteve um papel de destaque tanto durante o período de transição institucional do setor quanto no novo arranjo pós-privatização e liberalização9.

No caso brasileiro, como no francês, as regras institucionais favorecem a dispersão do poder, consolidando um sistema caracterizado por inúmeros pontos de veto. O Brasil possui um regime presidencialista federativo bicameral, com eleição proporcional. Em princípio, essas regras dificultam a adoção de políticas de mudança, mas não levam necessariamente à paralisia decisória, à falta de governabilidade ou à incapacidade de o sistema político gerar políticas públicas eficientes (Figueiredo e Limongi, 1998). Aresposta do país à reorganização do setor foi, em grande parte, conformada por essas restrições institucionais, o que tornou o processo mais lento, embora abrangente - o que não quer dizer que a resposta tenha sido inadequada.

No "presidencialismo de coalizão" existente no Brasil, para usar o termo cunhado por Abranches (1988), o Poder Executivo é praticamente obrigado a buscar aliados no Legislativo para que possa governar. Isso porque a obtenção da maioria dos votos nas duas Casas do Legislativo pelo partido do presidente é extremamente improvável, dada a utilização do sistema eleitoral proporcional para a Câmara dos Deputados. Na legislatura correspondente ao período em que se processou a privatização, empossada em 1995, havia dezoito partidos no Congresso, sendoque o número de partidos efetivos chegavaa 8,2 (calculado pelo autor a partir de LEEX/IUPERJ, 2009).

Ao assumir o poder em 1995, Fernando Henrique Cardoso contava com uma forte legitimidade, fruto do sucesso do Plano Real, que ajudou o governo principalmente no momento inicial e mais difícil da re-forma, quando se alterou a Constituição. O governo foi eleito com o apoio de uma ampla coalizão eleitoral, logo ampliada após as eleições, com as adesões do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), do Partido Progressista Brasileiro (PPB) e do Partido Popular Socialista (PPS). Com isso a coalizão governista passou de 231 cadeiras, ou 45% dos votos na Câmara dos Deputados, para 390 cadeiras, ou 76% dos votos. No Senado, o governo passou de 40 para 68 cadeiras, totalizando 84% dos votos (Ferraz, 2005).

Apesar de maioria folgada da coalizão governista para aprovar as reformas, o governo brasileiro se viu obrigado a enfrentar uma longa e tortuosa negociação dentro de sua base de apoio (ibidem;Velasco Jr., 2006). A oposição, embora não pudesse bloquear o processo, agiu como pôde para retardá-lo. O governo, por sua vez, soube manobrar para manter o texto da lei o mais próximo possível de seu projeto inicial, retendo a tramitação do projeto anterior ao seu no Legislativo, quando conveio, e pedindo urgência na tramitação do mesmo, quando necessário. Esses fatores somados contribuíram para o longo tempo de tramitação da lei, mas nem por isso impediram sua aprovação.

Para se entender essa dinâmica, é necessário voltar o olhar não somente para os poderes do presidente, como normalmente têm feito os trabalhos sobre o processo decisório no Brasil, mas também para os poderes do Legislativo, incluindo os determinados pelos regimentos internos (Figueiredo e Limongi, 1995:198). A adoção da privatização no governo Fernando Henrique Cardoso foi favorecida pelo contexto institucional, entendido como regras constitucionais e eleitorais e os resultados eleitorais, mas também pelasregrasdefuncionamento inter-no do Legislativo, que acabaram por contribuir para a centralização do processo decisório e para a garantia da primaziadas iniciativas do Executivo (ibidem; Ferraz, 2005).

O controle do governo sobre o processo decisório pode ser feito pelas lideranças dos partidos pertencentes à base aliada, que, por meio do Colégio de Líderes, podem influir na sequência e no andamento das matérias. O governo também pode controlar os trabalhos por meio da presidência da Câmara, retirando o trabalho das comissões permanentes, e escolher a agenda de votação. É importante notar que, ao falar em governo, estou me referindo ao Poder Executivo e à sua base de sustentação no Legislativo, sem aqual não pode governar.

Para controlar a base, o presidente conta com diversas moedas de troca, como a prerrogativa de nomear e de demitir os ministros, o controle sobre a liberação de verba e as nomeações para os cargos de confiança. Esses mecanismos lhe permitem, enquanto líder do governo, controlar o processo decisório no interior do Legislativo. Figueiredo e Limongi (1995:85) mostram também que "o Executivo domina o processo legislativo porque tem poder de agenda, e esta agenda é processada e votada por um poder Legislativo organizado de forma altamente centralizada e em torno de regras que distribuem direitos parlamentares de acordo com princípios partidários". Essa perspectiva adotada pelos autores para analisar a relação entre os poderes permite vê-los não como adversários, mas como parceiros, capazes de adotar uma estratégia cooperativa ao longo do processo de privatização.

A tramitação das emendas constitucionais que possibilitavam a que-bra dos monopólios estatais foi extremamente polêmica, reunindo na oposição sindicatos e setores nacionalistas. A quebra do monopólio logrou rachar a própria base do governo, principalmente o PMDB, que era marcadamente associado a uma posição mais nacionalista e um dos partidos com menor grau de fidelidade, tanto aos líderes da sigla quanto à coalizão. A reestruturação do setor seguiu três etapas: inicialmente, a ação do Poder Executivo se dirigiu à aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) de suaautoria, que retirava do art. 21 da Constituição a exclusividade do Estado sobre o fornecimento dos serviços de telecomunicações; em seguida, a aprovação da chamada "Lei Mínima"; e, por fim, a ação do Executivo voltou-se para a aprovação da LGT.

Apesar da dificuldade de emendar a Constituição, que requeria a aprovação de três quintos da Câmara e do Senado em dois turnos, multiplicando os pontos de veto, o governo ganharia com ampla margem de votos. No plenário da Câmara, o substitutivo da Comissão Especial (Cesp) à PEC proposta pelo governo seria aprovado em primeiro turno por 348 votos contra 140. No segundo turno, os votos favoráveis seriam ainda mais numerosos, 357, o que indica que o texto final atingiu uma dose maior de consenso entre os deputados. No Senado, o projeto foi aprovado em plenário por 62 votos contra 12, no primeiro turno, e 63 votos contra 11 no segundo.

A votação da liberalização do monopólio das telecomunicações em plenário mostrou a coesão da base do governo e, de certa forma, o sucesso da discussão no interior da Cesp, ao contrário do que acontecera na mesma época com a emenda da previdência (Melo, 1997). Como era de esperar, o PMDB foi o partido da base que apresentou a menor coesão (ibidem). Apesar de o projeto original do Executivo ter sido modificado, as mudanças foram propostas pela própria base aliada, tendo sido vetados todos os recursos da oposição para retirar o projeto da pauta. Esse movimento permitiu a redução significativa da distância entre as preferências da base da coalizão de governo, como indicado pela maior votação recebida em segundo turno pela PEC nas duas Casas. Finalmente, no dia 15 de agosto, as mesas da Câmara e do Senado aprovaram a emenda constitucional nº8, depois de tramitar por 175 dias no Congresso, sendo 105 na Câmara e setenta no Senado.

A partir daí o governo, na figura do Ministério das Comunicações, buscou tempo para formular seu projeto de lei, pronto no fim de novembro, quando foi distribuído às lideranças da base. O projeto de lei, de autoria do Executivo, seria enviado para a Câmara em novembro de 1996 e defendido na Casa pelo então ministro Sérgio Motta. A Cesp formada para analisar o projeto teve como relator o deputado Alberto Goldman (PMDB-SP), que agregaria centenas de emendas a seu parecer. Em junho de 2007, um acordo das lideranças retirou o projeto da comissão para ser discutido e votado em plenário. A manobra seguinte do governo foi pedir urgência assim que o projeto entrou na Câmara, o que limitava o tempo de discussão para uma única sessão. O substitutivo da Cesp foi aprovado em plenário no dia 18 de junho de 1996, por 312 votos contra noventa, em votação nominal requerida pela oposição, depois de receber outras tantas emendas.

Uma vez no Senado, a proposição foi distribuída pela mesa às comissões, todas controladas pela base do governo. Para apressar a tramitação da matéria, o governo utilizou-se novamente do pedido de urgência. Com uma maioria ainda mais confortável no Senado, o governo conseguiu a aprovação rápida da matéria, e sem alterações. O texto aprovado não diferia muito daquele proposto pelo Ministério das Comunicações, mesmo algumas emendas da própria base foram derrotadas, como a que obrigava o Estado a manter o controle acionário da empresa. A maior defecção do governo veio do deputado Domingos Leonelli (PSDB-BA), que propôs uma emenda obrigando o Estado a manter o controle majoritário do capital da Telebrás, que seria transformada em empresa única, além de limitar a participação do capital estrangeiro.

A participação do capital estrangeiro, regra incluída na Lei Mínima, foi um dos principais pontos que racharam a base governista, sobretudo o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Aposição favorável foi defendida pelo PPB, com o apoio do Partido Liberal (PL) e do Partido da Frente Liberal (PFL), que propôs, com sucesso, a retirada do art. 18, incluído na Cesp, que delegava ao Poder Executivo a definição dos limites para participação estrangeira. Outro ponto importante foi a alteração do art. 190, que obriga a regulamentação da privatização a prever "mecanismos que assegurem a preservação da capacidade de pesquisa e desenvolvimento tecnológico existente na empresa", indicando as alternativas para o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD) após a privatização, e as fontes de financiamento (Velasco Jr., 2006).

As discussões na Câmara e no Senado mostram claramente que a oposição foi posta à margem, o que de certa forma era facilitado por sua posição "intransigente" contra a privatização. Curiosamente, a proposta de Leonelli foi formulada com a ajuda de Marcos Dantas, consultor da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações-Central Única dos Trabalhadores (Fittel-CUT), mas essa não era a proposta da Federação, que, apesar de contrária à privatização, passou a formular propostas alternativas, buscando compatibilizar a liberalização do mercado com a manutenção da estatal. No entanto, o isolamento foi favorecido pela divisão da oposição, tanto no Legislativo quanto no movimento sindical10.

A LGT foi sancionada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em julho de 1997, praticamente após sete meses da introdução do projeto. As regras para venda foram determinadas pelo edital de privatização elaborado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pelo Ministério das Comunicações. A União tinha, na época, 21,44% do capital da empresa; o objetivo do governo era privatizar o bloco de controle, representando 19,26% das ações ordinárias, que por sua vez equivaliam a 51,79% do capital votante de cada companhia. Fora esse montante, foi colocado à venda mais 2,18% das ações preferenciais para os empregados. Antes da venda, a empresa foi dividida em quatro, sendo que cada compradora teria o monopólio da telefonia fixa em sua área por cerca de quatro anos.

CONCLUSÃO Neste artigo procurei mostrar algumas evidências do impacto do sistema político e de intermediação de interesses sobre o processo de privatização. As diferenças entre os processos analisados não podem ser atribuídas unicamente ao subdesenvolvimento de parte dos países, ou à ineficiência na gestão das empresas, ou à suscetibilidade dos países às pressões internacionais. A análise dos casos revela que a tese da convergência do novo arranjo do setor em face daspressões comuns por mudança está longe de ser observada, a menos que se fique na análise superficial da variável dependente, ou seja, todos privatizaram.

A insuficiência desta abordagem para explicar as variações no timinge no escopo da privatização em cada país reforça a tese concorrente de que, apesar dessas pressões, ainda existe uma margem de manobra disponível para que cada país busque sua resposta diante da crise do Estado. As variações observadas podem ser, em grande parte, explicadas pelo contexto institucional em que a reforma se realiza e pela preferência dos principais atores envolvidos. A concentração de poder nas mãos do chefe do Executivo contribuiu paraaadoçãodaprivatização em um período mais curto que nos países onde essa concentração é menor, e também para que o processo fosse iniciado "precocemente" ou, de maneira inversa, para que, nos países onde a concentração é menor, a adoção da privatização viesse com atraso.

A análise dos casos apresentados permitiu também mostrar que a concentração de poder se em vários graus. Mesmo na Inglaterra, onde o sistema é caracterizado como fortemente centralizado, a necessidade de barganha no interior do próprio Partido Conservador conduziu a um processo significativamente mais lento que nos outros dois países, onde o contexto institucional também permitiu uma forte centralização do poder. A existência de múltiplos pontos de veto e de jogadores com capacidade de veto, por sua vez, não inviabiliza a reforma, mas apenas aumenta o custo de esta ser adotada unilateralmente, obrigando a negociação e a formação de certo consenso, ao menos dentro da coalizão de governo e entre os principais atores institucionais.

A necessidade de mudança constitucional para promover a privatização na França e no Brasil contribuiu para multiplicar os pontos de veto e os jogadores com capacidade de veto nesses países, aumentando os custos de formação de uma coalizão estável em torno de um novo formato para o setor. Isso também se refletiu na aparente demora desses países na adoção da privatização. A instabilidade do contexto institucional, em virtude da troca de poder entre situação e oposição a cada dois anos, observada no caso francês em especial, contribuiu para que o processo fosse muito mais lento e suscetível às pressões dos atores contrários à privatização naquele país. Aquestão da interação dos dois conjuntos de variáveis, político e sindical, contudo, é passível de ser explorada em outra oportunidade.

A análise dos efeitos das instituições sobre as políticas públicas é repleta de limitações embutidas nas escolhas das variáveis dependentes, independentes, do universo analisado e do corte temporal. A abordagem utilizada neste trabalho, embora centrada nas regras institucionais, confere às instituições um papel de certa forma modesto, que contribui para explicar o andamento e o escopo da privatização, mas não seu formato específico ou sua eficiência. Diferentes arranjos político-institucionais são mais ou menos permeáveis a políticas de mudança, assim como diferentes contextos institucionais são mais ou menos propícios à concentração de poder necessária à sua adoção, mas nem o arranjo nem o contexto dizem algo a respeito do conteúdo específico dessas políticas.

NOTAS 1. É importante notar que a agenda do Consenso de Washington é praticamente igual à da União Europeia, como fica claro nos documentos do European Policy Committee (2000:16).

2. Essa tese da necessidade da centralização do poder é duramente criticada por Bresser-Pereira, Maravall e Przeworski (1993) e Evans (1996), que afirmam que, além de não ser necessária para a adoção das reformas, a centralização e o insulamento podem ser prejudiciais ao longo do processo de consolidação das novas políticas.

3. Fora o trabalho de Boix, outros estudos quantitativos importantes que procuram trabalhar com variáveis do sistema político, como os de Bortolotti, Fantini e Siniscalco (2001), Li e Xu (2002) e Levi-Faur (2003).

4. Se alguns países latino-americanos usaram a privatização para mostrar aos credores que se esforçavam para melhorar sua posição fiscal, os países da União Europeia procuravam fazer o mesmo para a Comissão Europeia.

5. Como observam Przeworski e Teune (1970:78), "se as nações não diferem na variável dependente, o problema a ser explicado não é de cunho comparativo".

6. Mesmo depois das eleições, a maioria dos eleitores se mantinha contrária à medida, indicando que sua adoção não partia da demanda popular, mas sim das elites do Partido Conservador, que viam na medida um remédio para os males econômicos e um "ativo eleitoral" (McAllister e Studlar, 1989:174).

7. A nomeação dos magistrados na Argentina funciona como no Brasil, sendo uma prerrogativa do presidente, sempre que o cargo estiver vago, que deve contar com a aprovação do Senado.

8. Com ela foi aprovada também a Lei de Emergência Econômica 23.697, de 1989, contendo outros pontos importantes do plano de estabilização peronista.

9. Não quero dizer com isso que a tradição "estatista" francesa não tenha trabalhado no mesmo sentido, mas boa parte dessa tradição se expressa nas regras institucionais que procurei explorar (Hall, 1986).

10. De um lado, projetos alternativos ao do governo foram apresentados tanto pelo Partido dos Trabalhadores (PT) quanto pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT). De outro, mesmo no interior do movimento sindical, a oposição se dividiu entre a proposta do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações (Sinttel) e a da Federação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Telecomunicações (Fenattel).


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