Estado Novo no Brasil: Um Estudo da Dinâmica das Elites Políticas Regionais em
Contexto Autoritário
No Brasil, a passagem da hegemonia dos grupos políticos regionais -
as"oligarquias"- para a supremacia dos partidos nacionais foi uma operação
longa e difícil. Essa ação, que ocorreu basicamente entre 1930 e 1945, exigiu
hierarquizar, uniformizar e integrar os diversos grupos rivais das classes
dirigentes, garantindo ao sistema político nacional três coisas: um grau
razoável de coesão inter-regional (unidade),apoio contínuo ao presidente
nacional (legitimidade)e equilíbrio institucional (governabilidade).
Esses 15 anos são, portanto, um momento excepcional para se perceber as
diversas modificações operadas na estrutura da elite política brasileira. Não
porque esta seja, em termos muito genéricos, "uma época de transformação
social", e sim porque, nesse período, a questão da hierarquia no universo das
elites tornou-se algo central na política brasileira. O interlúdio do Estado
Novo (1937-1945), aliás, nunca fez nenhum mistério sobre isso: seus ideólogos
anunciavam esses propósitos -"a expropriação política das potências privadas",
para falar como Weber_(1994) - como uma verdadeira política de Estado, tal qual
as políticas industrial, trabalhista, cafeeira etc. A finalidade era "restaurar
a autoridade nacional" (Vargas,_1938:23). É esse subperíodo, pouco analisado do
ponto de vista da dinâmica especificamente política, que estudaremos aqui1. O
objetivo deste artigo é explicar a lógica política subjacente à política de
Getúlio Vargas para lidar com as oligarquias regionais no pós-1937.
Como se recorda, em 10 de novembro de 1937 o presidente dos Estados Unidos do
Brasil anunciou, pelo rádio, a decretação de uma nova Constituição. Junto com
este ato, foram fechadas as Casas Legislativas do país: câmaras de vereadores,
assembleias estaduais, câmara federal e senado da República. Os mandatos dos
parlamentares foram cassados e as eleições presidenciais, programadas para o
começo de 1938, foram canceladas. Os governadores dos estados foram destituídos
e em seus lugares foram nomeados "interventores federais". No início de
dezembro de 1937, todos os partidos políticos e milícias cívicas foram extintos
(Decreto-Lei no 37).
Essa nova realidade pôs três problemas para o novo regime: i) como organizar a
representação política regional, de maneira a permitir a expressão, ainda que
de forma controlada, das várias correntes políticas oligárquicas sem aumentar o
grau de conflito no interior do sistema e sem restituir completamente suas
importâncias respectivas?; ii) como remontar uma estrutura administrativa
impedindo que o interventor (indicado pelo presidente) formasse sua própria
clientela (junto aos prefeitos municipais, por exemplo) e constituísse um
"partido" estadual em oposição aberta ou velada ao próprio presidente?; e, por
fim, iii) como garantir, para o "chefe político nacional", na expressão do
regime, o poder arbitral e inconteste entre os interventores federais e as
elites estaduais?
Menos de dois anos após o golpe de Estado, em abril de 1939, Getúlio Vargas
instituiu, em cada um dos estados, um "departamento administrativo"2. Compostos
por um número variável de quatro a dez integrantes, esses departamentos
deveriam aprovar ou recusar os decretos-lei baixados pelo interventor. Esse
sistema de governo que somava Interventoria e Departamento Administrativo
substituía, formalmente,o Executivo e o Legislativo estaduais3. O propósito do
presidente, que escolhia e nomeava livremente tanto os interventores quanto os
conselheiros desses departamentos, foi dotar o sistema político de um mecanismo
de contrapeso ao poder dos interventores, no qual ele próprio surgisse como o
árbitro final das disputas intrarregionais. Aqueles três problemas mencionados
anteriormente - a representação das várias facções estaduais, o controle
estrito dos interventores e a supervisão constante do presidente da República
sobre a política regional-foram, em princípio solucionados assim.
Contudo, permanece uma questão: quais os critérios ou quais os cálculos
políticos que orientam a nomeação dos ocupantes das cadeiras do Departamento
Administrativo do estado e dos interventores federais? Para responder a essa
questão, examinam-se os princípios políticos de seleção da nova classe política
que vigoraram em São Paulo entre 1937 e 1947.
É provável que o caso paulista, em função de todas as questões específicas que
envolvem (a força dos partidos oligárquicos, a influência nacional das
lideranças políticas estaduais, o conflito aberto com o governo federal em
1932, o monopólio da produção do café etc.), não seja representativo da lógica
que comanda esse processo de circulação de elites de cada estado da Federação.
Ainda assim, o interesse em estudá-lo deriva do fato dele ser um caso-limiteem
que as ocorrências do problema são mais intensas - um "exemplo dramático", por
assim dizer4.
Na seção seguinte, apresenta-se os integrantes dessa "nova" elite paulista. É
mostrado ano a ano a formação do Departamento Administrativo de São Paulo
(Daesp) e a sequência de interventores no estado. O ponto mais notável aqui é a
filiação antivarguista de todos os seus integrantes. Na segunda e na terceira
seções procura-se compreender e explicar como essa classe governante é
constituída - não os princípios legais dessa constituição, mas sua coerência
política. Avançamos neste artigo duas ideias: 1) a degeometria variável,para
caracterizar a inconstância desse sistema de relações políticas e as mais
variadas conexões entre, de um lado, a elite que comanda o Estado nacional e as
elites políticas regionais e, de outro, as ligações cambiantes entre as
próprias facções das elites regionais; e 2) a ideia de personalismo
institucionalizado.Esse personalismo não se confunde com o arbítrio pessoal do
ditador: ainda que a arquitetura administrativa e a ideologia autoritária do
Estado Novo prevejam a concentração do poder de decidir no chefe político
nacional, ele mesmo se vê condicionado pelos contextos políticos sobre os quais
age e pelas regras e instituições de um governo burocrático. Nas considerações
finais, avalia-se a amplitude desse processo de circulação de elites e discute-
se a validade ou não da noção usual empregada pela literatura para descrever
esse fenômeno de acomodações sucessivas entre as elites no poder: "cooptação".
Antes, são necessárias algumas notas sobre as fontes históricas e o seu
tratamento.
Muito embora o grande volume de documentação disponível hoje (arquivos
privados, correspondências pessoais, documentos oficiais, discursos de
autoridades, relatórios de governos, depoimentos de protagonistas etc.) trate
quase exclusivamente das disputas políticas intrar-regionais e inter-regionais,
praticamente inexistem estudos sobre os políticos profissionais desse período
ou sobre as relações entre Getúlio Vargas e a "oligarquia paulista", como se
poderia esperar5.Osagentes políticos são tema de dois tipos de trabalhos:
biografias, memórias e autobiografias, ou estudos focados em acontecimentos,
motivos e propósitos. Nesses casos, o que conta são os feitos e os fatos da
história de um indivíduo, mais que a estrutura política na qual estão
inseridos. Essa ocorrência na literatura se deve menos a opções teóricas e mais
à metodologiados estudoseànatureza"factual" dasfontes6.
Por outro lado, trata-se aqui de pensar a história política desse período não
apartir das relações interpessoais entre o ditador e os oligarcas,e sim numa
perspectiva mais sociológica, como relações entre um grupo de elite nacional e
outro, regional. Essas relações podem também ser percebidas como relações
interinstitucionais, isto é, entre instituições políticas federais e estaduais,
na crença de que estudos de elites funcionam, conforme Robert D. Putnam
indicou, "como uma espécie de sis-mógrafo para detectar mudanças políticas mais
profundas" (1976:43).
O PESSOAL POLÍTICO-ADMINISTRATIVO DO ESTADO NOVO
Após o golpe de 10 de novembro de 1937, abolida a Constituição de 1934 e
decretado o Estado Novo, o presidente da República tornou-se todo-poderoso.
Entre os lances à disposição do ditador estavam incluídos aqueles cujas regras
ele mesmo determinava, e sua jogada mais inspirada consistiu em submeter a
elite política à sua política pessoal servindo-se dos quadros provenientes da
própria elite. Explico.
A coerência das sucessivas nomeações para as interventorias federais ou para os
departamentos administrativos deveria orientar-se menos por preferências
pessoais e mais pelos fins que se desejava alcançar. Em termos abstratos,
estabilidade institucional, legitimidade política e "unificação do Estado
nacional" (isto é, a integração social e econômica dos subsistemas regionais e
sua submissão ao Catete). Em termos mais específicos,as indicações para os
cargos estaduais estavam sujeitas às intenções de enquadrar política e
administrativamente a oligarquia.
Aparentemente, valia para os interventores o mesmo preceito que, de acordo com
Carone, estava em vigor para a composição dos ministérios: "a ação política de
Getúlio Vargas" não se caracteriza por princípios ideológicos definitivos, mas
"pelo jogo de equilíbrio de forças - o que lhe permite atuar segundo suas
conveniências" (Carone, 1976:264). No caso específico das interventorias, as
escolhas seguiam, em geral, três critérios diferentes, mas sempre adaptados
sejam às conveniências federais sejam às circunstâncias políticas locais.
A escalação do governante poderia recair "num elemento estranho ao estado", sem
ligações com a oligarquia, ou seja, um outsider. Foi o caso do Rio Grande do
Sul (general Daltro Filho), da Bahia (Juraci Magalhães), do Rio de Janeiro
(Amaral Peixoto), do Paraná (Manoel Ribas) e de Goiás (Pedro Ludovico). Uma
alternativa também muito utilizada pelo regime era a seguinte: o indicado seria
já um "elemento do estado"; todavia, ele deveria ser uma figura menor e menos
importante dos partidos reinantes na cena política local. Benedito Valadares,
em Minas Gerais, e Ademar de Barros, em São Paulo, são exemplos típicos dessa
políticaaparentementeerrática. Por fim, a instituição do interventor federal
nos estados menores e/ou menos problemáticos poderia recair "em elemento da
oligarquia dominante do estado", como Nereu Ramos em Santa Catarina (Carone,
1976:151; Codato,_2013). Em comum em todas essas escolhas era a lealdade
pessoal que os nominados passavam a dever a quem os nomeou.
Todavia, um sistema de governo baseado exclusivamente nas inter-ventorias
federais mostrou-se pouco eficaz para o tamanho da tarefa a que o regime se
propunha. Ao fechar os parlamentos, eliminar o sufrágio universal e os direitos
individuais, os direitos políticos e a liberdade de imprensa e, posteriormente,
tornar ilegais os partidos, reduziram-se nesse movimento não somente as bases
de apoio do regime, mas também os canais de vocalização de interesses, fazendo
do sistema político uma estrutura rígida e inflexível. Assim, mesmo controlando
os interventores e tendo a expectativa de, por meio deles, controlar os
prefeitos municipais, ainda restava o problema: o que fazer com to-
dososoutros"carcomidos"?7
Sem que seja preciso descrever a sucessão dos muitos órgãos políticos,
aparelhos burocráticos e posições institucionais do regime ditatorial, a
limitação das autonomias regionais pode ser compreendida quando se tem em mente
os mecanismos de enquadramento e harmonização das elites regionais. Entre eles
estão os departamentos administrativos.
Vejamos o caso do departamento de São Paulo. Ele deve permitir apreender o
sucesso de um filtro institucional que combinou certo grau de abertura a alguns
indivíduos, com determinadas exigências políticas dirigidas aos velhos grupos
políticos remanescentes da República Oligárquica.
O art. 13 do Decreto-Lei no 1.202/1939 havia estipulado que cada departamento
seria "constituído de 4 a 10 membros". Na prática, esse número variou bastante,
e nenhum estado chegou a contar com mais de sete integrantes. O total de
conselheiros divergia de acordo com a importância econômica do estado, o tipo
de conflito político que Getúlio Vargas deveria enfrentar e o grau de intriga
pessoal entre as várias facções da oligarquia local. São Paulo, Minas Gerais e
Rio Grande do Sul ficaram com sete membros cada; Rio de Janeiro, Bahia,
Pernambuco, Ceará e Pará, cinco; os demais estados, quatro8.
Esses indicados deveriam ser brasileiros natos e maiores de 25 anos, sendo
"nomeados pelo presidente da República", e não pelo interventor. O art. 14
fixava algumas restrições importantes à regra geral. As indicações não poderiam
recair em quem tivesse contato direto ou contrato com a administração pública
federal, estadual ou municipal, fosse funcionário público estadual ou municipal
(caso dos professores, por exemplo, exceto se estivessem em disponibilidade),
fosse proprietário de empresa concessionária de serviço público, recebesse
rendimentos "do poder público" ou embolsasse, a qualquer título, remuneração de
empresas que prestassem serviços ao governo, orientação que, na prática,
afastava os empreendedores que faziam ou desejavam fazer negócios com o Estado.
As consequências dessa disposição foram barrar intelectuais financiados pelo
governo e também demover empresários privados e dirigentes de associações de
classe, reforçando a opção não pelos técnicos (Lowenstein,_1944; Graham,_1968),
mas pelos políticos profissionais, justamente aqueles que deveriam ser, em nome
da racionalidade da administração e do espírito de união nacional, evitados.
Horácio Lafer, designado em junho de 1939 para integrar o departamento paulista
aparentemente sem ser consultado, escreveu ao ministro da Justiça Francisco
Campos dois dias depois alegando outras ocupações e solicitou a nomeação de um
substituto9. Nesses casos, o ministro declarava "sem efeito" as indicações e
imediatamente conduzia aos cargos outros colaboradores10.
Tendo presentes essas orientações formais e esses limites burocráticos, no caso
da unidade mais problemática do país, quem compôs o departamento administrativo
de São Paulo? O Quadro_1, a seguir, apresenta ano a ano a formação política do
departamento paulista. O Daesp, formado por sete membros (número máximo
estipulado), possuía um presidente e seis conselheiros, sendo um deles também o
seu vicepresidente.
Quadro 1 Composição do Departamento Administrativo do Estado de São Paulo por
Ano e Filiação Política dos seus Integrantes. (1939-1947)
Interventoria de Ademar de Barros (27 Interventoria de Fernando Costa (4 de junho de 1941-27 de Interventoria de Macedo Soares (3 de novembro de 1945-14
de abril de 1938-4 de junho de 1941) outubro de 1945) de março de 1947)
1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947
Gofredo Gofredo da Gofredo Gofredo Gofredo Gofredo Gofredo da
da Silva PRP Silva PRP da Silva PRP da Silva PRP da Silva PRP da Silva PRP Silva Telles PRP Sebastião Nogueira de Lima PRP Cristiano PD
Telles Telles (P) Telles Telles Telles Telles (P) (P) Altenfelder (p)
(P) (p) (P) (P) (P)
Marcondes Marcondes Marcondes Miguel Miguel Miguel João Carvalhal João Carvalhal
Filho PRP Filho (VP) PRP Filho PRP Reale AIB Reale AIB Reale AIB Filho PRP Cristiano Altenfelder (VP) PD Filho PRP
(VP) (VP)
Cirilo PRP Cirilo PRP Cirilo PRP Cirilo PRP Cirilo PRP Cirilo PRP Cirilo Júnior PRP Campos Vergueiro PRP Braz Arruda PD
Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior Júnior
Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Arthur Whitaker Inocencio
Whitaker PRP Whitaker PRP Whitaker PRP Whitaker PRP Whitaker PRP Whitaker PRP (VP) PRP Inocencio Serafico PRP Serafico (VP) PRP
(VP) (VP) (VP)
Antonio PRP Antonio PRP Cesar PRP Cesar PRP Cesar PRP Cesar PRP Cesar Costa PRP Sinésio Rocha PRP Moura Rezende PRP
Gontijo Gontijo Costa Costa Costa Costa
Plinio de PRP Plínio de PRP Antonio PD Antonio PD Antonio PD Antonio PD Antonio PD Lincoln Feliciano PD Lincoln PD
Morais Morais Feliciano Feliciano Feliciano Feliciano Feliciano Feliciano
Mário Renato Marrey Marrey Marrey Armando
Lins PRP Paes de PD Júnior PD Júnior PD Júnior PD Prado PRP Armando Prado PRP Marrey Júnior PD Marrey Júnior PD
Barros
Fonte: Dados compilados a partir de: Departamento Administrativo do Estado -
São Paulo (1939-1942), Pareceres do Departamento Administrativo do Estado de
São Paulo.São Paulo: s.c.p.; e Conselho Administrativo do Estado de São Paulo
(1943-1947). Pareceres do Conselho Administrativo do Estado de São Paulo.São
Paulo: s.c.p. Legenda: P = Presidente; VP = Vice-presidente; AIB = Ação
Integralista Brasileira; PD = Partido Democrático; PRP = Partido Republicano
Paulista.
Dessa simples relação de nomes e da ssucessivas substituições durante o longo
intervalo em que esse aparelho esteve ativo (nove anos), podem-se extrair
algumas constatações.
Se durante o período do Estado Novo o departamento de São Paulo foi
administrado pelos perrepistas, ninguém menos que os inimigos da revolução que
conduziu Vargas ao poder em 1930, serão os democráticos, os amigos da
revolução, que lotearão entre si as sete cadeiras do Daesp depois do golpe de
Estado que em 1945 irá depor Vargas e porá fim ao período revolucionário que
ambos iniciaram em 1930. O registro inflamado do jornalista Lourival Coutinho
capta o essencial e o paradoxal dessa situação. Uma inspeção no Quadro_1
permite ver que "alguns [...] elementos de proa, solidários com o movimento
paulista [de 1932], vieram a ser, mais tarde, magnificentes servidores do
governo do Sr. Getúlio Vargas e [justamente] quando esse governo se mostrou
mais reacionário e mais liberticida, na insânia do Estado Novo" (Coutinho,
1955:188).
Prova da afirmação anterior: Antonio Feliciano e Marrey Júnior firmaram em
fevereiro de 1932 o Manifestodo Partido Democrático contra o governo provisório
de Getúlio Vargas (1930-1934); Arthur Whitaker, Marcondes Filho e Cirilo
Júnior, em janeiro do mesmo ano, já haviam assinado o Manifestodo Partido
Republicano Paulista contra a nomeação de "estrangeiros" (i.e., não paulistas)
para dirigir o estado; os três primeiros assinaram o documento de formação da
Frente Única Paulista, organização que unificou os dois partidos da oligarquia
e que levou ao levante contra a União em julho de 1932. Miguel Reale foi para
frente de batalha na Revolução paulista em 1932 como terceiro sargento e logo
depois se filiou à Ação Integralista Brasileira, que em 1938 tentou assassinar
o presidente. Engrossaram ainda as fileiras da Frente Única Paulista Gofredo da
Silva Telles, João Carvalhal Filho e Plínio de Moraes - este, membro da
Comissão do MMDC (movimento cívico estadual) e tido como herói da guerra de
1932. Cirilo Júnior, Marrey Júnior e Gofredo Telles (esse último, prefeito
nomeado de São Paulo durante o movimento insurrecional) foram presos a mando de
Vargas após o levante. Gofredo foi para o exílio na França e Cirilo foi
deportado para Portugal. Em resumo: Getùlio Vargas acomodou nas duas posições
políticas mais importantes do estado - departamento e interventoria - os
políticos de carreira do Partido Republicano Paulista (PRP) que haviam sido
destituídos em 1930, combatido pelas armas seu governo em 1932 e se oposto ao
golpe do Estado Novo em 1937. Que lógica guiou essas indicações?
A GEOMETRIA VARIÁVEL DAS RELAÇÕES POLÍTICAS
A inconstância das relações entre Vargas e seus inimigos do PRP (ou com seus
ex-amigos do Partido Democrático) possui algumas especifi-cidades. Olhadas de
perto, elas são condicionadas por três fatores, ora mais institucionais, ora
mais sociais:
1. as transformações do regime ditatorial (suas crises políticas);
2. as mùltiplas combinações, modificáveis conforme as circunstâncias, entre
as facções das elites regionais (a dinâmica intraelite); e
3. os ajustes entre as elites regionais e a elite nacional (a dinâmica in-
terelite).
Os arranjos possíveis entre esses três fatores - modificáveis de estado para
estado, de elite para elite, ou a cada conjuntura crítica entre 1930 e 1945 -
permitem compreender o principal traço desse sistema de relações políticas, a
que chamarei degeometria variável.Essa matemática obedece menos às "artes da
política" ou ao "maquiavelismo" presidencial (no sentido pejorativo do termo),
e mais àquilo que comanda esse sistema político como um todo: o personalismo
institucionalizado.Esse será tratado em detalhes na próxima seção.
Conforme as transformações do próprio regime ditatorial, o Daesp teve três
fases: i) a fase da interventoria de Ademar de Barros, até junho de 1941; ii) a
fase da interventoria de Fernando Costa, que vai até o fim do regime do Estado
Novo, quando o Decreto-Lei no8.219 extinguiu os departamentos administrativos
em novembro de 1945; e iii) a última fase, de interventoria de Macedo Soares,
após o Decreto-Lei no 8.974, que restaurou os departamentos administrativos no
início de 1946 -medida adotada para preencher o vazio que se constatou no
sistema decisório com a ausência das assembleias legislativas estaduais, que
ainda não haviam sido recriadas. Cada fase dessas correspondeu a um desenho das
forças políticas bem determinado. As grandes modificações na formação do
departamento paulista coincidiram justamente com crises políticas e com as
substituições dos interventores federais.
Em 1941, depois da demissão de Ademar de Barros, metade dos conselheiros foi
trocada. Entraram: Cesar Costa, Antonio Feliciano e Marrey Júnior, todos em 18
de junho, duas semanas após a posse do novo nomeado, Fernando Costa. Quando o
Daesp é recriado em 1946, tendo já na chefia do governo Macedo Soares, sua
formação é totalmente diferente em relação àquela que terminara junto com o
Estado Novo. Mas agora, se todos eram antigos na política estadual, a maioria
(exceto Marrey Júnior) era nova na Casa. Esse paralelismo indica que a dinâmica
interna do aparelho dependia diretamente da dinâmica de poder do próprio
regime, da sua evolução institucional e da sua transformação política,
proposição que exclui, de saída, quaisquer explicações focadas apenas na vida
íntima da agência e na história administrativa do governo.
Já as pequenas modificações na composição da agência resultavam de acomodações
e acordos internos ao universo da elite e eram motivadas, em geral, pela
circulação dos indivíduos pelos aparelhos políticos do Estado ditatorial. Tanto
é assim que durante a interventoria de Ademar a única alteração que ocorre, em
1940, é resultado de uma promoção: Renato Paes de Barros (integrante do
Conselho Técnico de Economia e Finanças do Estado) foi indicado para a vaga de
Mário Lins quando este se tornouo secretário da Educação e Saúde Pública do
governo do estado. Na interventoria de Fernando Costa, Antonio Gontijo deixou o
Daesp em 18 de junho 1941 para assumir a Comissão de Negócios do Estado, cargo
que acumulou parcialmente com a presidência da subcomissão de Organização e
Finanças do Estado. Em seu lugar foi nomeado Cesar Costa. Antonio Feliciano
substituiu Plínio de Moraes e Marrey Júnior substituiu Renato Paes de Barros
também na série de modificações do dia 18 de junho11. No fim do ano, a convite
de Vargas, o perrepista Marcondes Filho assumiu o Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio e cedeu sua cadeira ao integralista Miguel Reale12.Em
1944, Armando Prado é empossado no Daesp no lugar de Marrey Júnior quando esse
último torna-se secretário da Justiça e Negócios Interiores de Fernando Costa.
Somente em março de 1945 há uma substituição cuja motivação é resultado direto
de um conflito ideológico com o regime: Miguel Reale rompe publicamente com o
Estado Novo, renuncia ao posto e é substituído por João Carvalhal Filho13. Em
1947 há mais uma renovação considerável: entram dois novos membros (Moura
Rezende e Braz Arruda), um retorna (João Carvalhal Filho) e Cristiano
Altenfelder torna-se o presidente do Departamento paulista. Essas alterações
não dizem respeito nem à conjuntura eleitoral, nem refletem a busca, por parte
dos conselheiros, de uma carreira parlamentar, com a reabertura das assembleias
legislativas e câmaras de vereadores. Sinésio Rocha torna-se secretário de
Estado e Sebastião Nogueira de Lima e Campos Vergueiro transferem-se para o
Tribunal de Contas de São Paulo.
O aspecto fundamental nem é tanto a circulação interaparelhos, ou em que ritmo
as substituições se dão, mas por que exatamente entram e saem esses indivíduos
e não outros quaisquer? Aqui o que conta é aquele terceiro fator mencionado
anteriormente: as combinações entre as elites regionais e a elite nacional ou a
dinâmica interelite.
A escolha dos titulares do departamento administrativo de São Paulo dependia de
uma geometria variável, e muitas vezes ad hoc,que fosse capaz de combinar sejam
as aspirações do presidente em redefinir aliados e recompor suas bases
políticas (as "situações") nos estados mais problemáticos, como São Paulo e Rio
Grande do Sul, por exemplo; sejam as pressões dos interventores para emplacar
seus afilhados políticos ou alguém de sua área de influência desde que tiveram
de assimilar a existência desse Departamento, que deveria avaliar suas
decisões; sejam ainda os propósitos do regime que deveria literalmente
inventar, por delegação, uma elite política sediada nos Departamentos que,
através das funções de fiscalização sobre o interventor que estava incumbida de
exercer, deveria impedir o nascimento de lideranças políticas regionais que se
destacassem do controle estrito pretendido pelo presidente. Caso descontássemos
o tom ufanista no qual a oração foi pronunciada, ela diria mais ou menos o
mesmo: "Tão multiformes eram as correntes" políticas nos estados que Vargas "se
via obrigado a jogar, como certos campeões de xadrez, em numerosos tabuleiros
ao mesmo tempo, e a vencer em todos eles, se não quisesse ver o seu País, e a
si mesmo, perdidos" (Frischauer,_1943:332).
Nesse contexto, os interesses políticos de todas as partes envolvidas decidem
tanto a configuração quanto a evolução burocrática do sistema ditatorial,
evolução e configuração estas que expõem a luta, ora aberta ora velada, entre a
elite nativa que habita o departamento administrativo, o preposto federal que
governa a interventoria e o comandante nacional que manda em todos e em tudo ao
mesmo tempo.
A propósito, a história da nomeação de Reale, um dos chefes do integralismo
nacional, é por si só um exemplo muito ilustrativo desse jogo de pressões e
contrapressões entre presidente, interventor e oligarquia e do cálculo político
do primeiro para sustentar o equilíbrio (ou o "Estado de compromisso") entre as
forças políticas estaduais embene-fício da sua ditadura. Tendo presente essa
ideia degeometria variávele conhecendo um pouco o dia a dia da política
paulista, a escolha de nomes para integrar a agência deve parecer menos casual.
Fernando Costa assumiu a interventoria em São Paulo em meados de 1941. O fato
contemplava os desejos dos perrepistas, que não aturavam mais Ademar de Barros,
sua corriola própria de prefeitos, seus "desmandos" e seus trambiques
financeiros14.Logonoanoseguinte,o presidente Vargas decide promover Alexandre
Marcondes Filho a ministro do Trabalho, Indústria e Comércio e convidar o
integralista Miguel Reale para o Daesp15. O diálogo entre os dois, relatado
pelo próprio Reale:
Getúlio: - "Preciso de sangue novo em São Paulo, com pessoa que traga
ideias novas ao regime. Conto com sua colaboração". Não vacilei um
instante se quer, pois em meu ser sempre atuaram duas valências, uma
jurídica, outra política, ambas em busca de sincronia. Aceitando o
convite, indaguei se o Interventor Fernando Costa ou o presidente do
Departamento [Gofredo Telles] estavam a par de meu ingresso em órgão
tão relevante na vida administrativa de meu estado. Foi então que
notei a veia humorística de Getúlio Vargas, o qual, após uma baforada
de charuto que o não largava, indagou: - "Para quê? Na minha terra
costuma-se dizer que se deve encostar o relho ora no burro, ora na
cangalha, para o burro saber que tem dono..." (1986:164).
Se a admoestação a uns e a eleição de outro for percebida apenas como capricho
do ditador, a narrativa ganha em curiosidade histórica, mas perde seu sentido
político - e sua função como chave para ilustrar a sócio-lógicadesse sistema e
sua forma aparentemente errática de obter apoio e consentimento.
Outras evidências, se não comprovam a ideia da geometria variável entre as
forças políticas em presença,vão na mesma direção. A formação inicial de três
outros departamentos administrativos - do Rio Grande do Sul, de Minas Gerais e
do Paraná - revela que suas matemáticas respectivas adaptavam-se às situações
políticas regionais, mantendo o princípio do pluralismo limitado no universo
das elites.
Abreu constata, com base na filiação partidária de cada conselheiro do Rio
Grande do Sul,que, assim como todo o secretariado do governo, o departamento
administrativo gaúcho "foi dividido equitativamente entre os representantes dos
diferentes grupos regionais - Partido Republicano Liberal, Partido Libertador e
dissidência liberal" (Abreu,_2007:215). Portanto, parece-me francamente
exagerada a opinião de Dilan Camargo, para quem a indicação, embora coubesse
legalmente ao presidente da República, "de fato pertencia às forças políticas
do estado, em concordância com o Interventor federal" do Rio Grande do Sul
(Camargo, 1983:117). Dependendo do caso, a influência do Interventor poderia
ser maior ou menor. Dantas garante, ainda que não forneça prova empírica
alguma, que o departamento administrativo em Sergipe tinha todos os seus
membros "indicados pelo Interventor entre o pessoal de sua confiança" (1982:
194). Ao menos no Paraná, para contrabalançar a presença e a ingerência de um
interventor "estrangeiro" (Manoel Ribas fizera carreira no Rio Grande do Sul),
nomeou-se para o Departamento, num primeiro momento, a fina flor do Partido
Republicano Paranaense16. Já em Minas Gerais, Benedito Valadares emplacou sua
turma: dos sete titulares do departamento administrativo do estado de Minas
Gerais (DAE-MG), cinco eram seus aliados17.
O PERSONALISMO INSTITUCIONALIZADO E O SISTEMA POLÍTICO DITATORIAL
Pelo exposto até aqui, é possível afirmar que o perfil dos conselheiros
escolhidos para o departamento administrativo não é consequência da
clarividência presidencial, do gênio maquiavélico ou da eleição idiossincrática
de favoritos e protegidos, muito menos o resultado daquilo que Bourdieu chamou
de "narcisismo de instituição": a prerrogativa que o governante possui de
confundir "os recursos ou os interesses da instituição" estatal "e os recursos
e os interesses da pessoa" que encarna a instituição estatal (2005:59). Sob o
regime do Estado Novo, esse princípio - o patrimonialismo - adquire uma feição
própria e cede lugar a um procedimento de governo baseado no personalismo,
sinônimo aqui de poder pessoal excessivo ou absoluto. Esse segundo princípio -
o personalismo - deve ser compreendido em toda sua complexidade: seja pela
forma (ideológica) como é justificado, seja pela maneira formal
(administrativa) como se explicita praticamente nesse contexto institucional.
Os artigos 3o e13o do Decreto-Lei 1.202 ("O interventor será nomeado pelo
Presidente da República"; "Os membros do Departamento Administrativo serão
nomeados pelo Presidente da República") ilustram e realizam, na prática, aquilo
que a doutrina autoritária previa através de sua retórica grandiloquente:
Getúlio Vargas, o indivíduo em carne e osso, torna-se, com o regime do Estado
Novo, não o simples executor de um mandato representativo, mas o "Chefe da
Nação" (a expressão é de Azevedo Amaral,_1938), o "Cesar temporário" (conforme
Francisco_Campos,_1940b), ou, ainda, a encarnação física do "Estado Moderno"
(segundo OliveiraVianna,_1974). Esses vários jeitos de decretar o princípio
absolutista de "O Estado sou eu" - visto que "Presidente da República" é,
naquelas sentenças legais do decreto-lei, uma antonomásia-não tem a ver com a
embrulhada entre a esfera pública e aesfera privada, ou com a sobreposição,
típica do Estado dinástico, entre a posição e o seu ocupante (por oposição à
separação, legal e real, entre função e funcionário, que é a essência do Estado
burocrático). O "absolutismo" que caracteriza esse sistema de governo com
Vargas à frente deriva das transformações que ocorrem nesse período: a mudança
da forma de regime e da fórmula política18 que a acompanha e explica.
Uma maneira direta e didática de captar as reviravoltas do princípio de
legitimidade do poder de Estado (problema este que está ligado tanto à forma de
investimento do soberano no poder quanto ao poder do soberano de investir em
seus representantes) e entender o alcance da ideia do que chamei de
personalismo institucionalizado(e sua diferença em relação ao "narcisismo
institucional" de Bourdieu) é acompanhar a lição de Azevedo Amaral:
A velha democracia liberal tinha como uma de suas características
principais oregime do anonimato,que se estendia a todos os setores da
organização estatal [...]. Daí a fisionomia acentuadamente impessoal
daquele sistema e a irresponsabilidade que desse impersonalismo pro-
manava,imprimindo ao aparelho político aforma de um maquinismo cujas
engrenagens funcionavam movidas por uma força inconsciente, em
obediência a princípios teóricos abstratos.Em todo o funcionamento
dessa maquinaria, não se podia distinguir a influência de elementos
humanos e a intervenção de umavontade individualizada.Nas
organizações estatais do tipo novo, como tão nitidamente se patenteia
no caso brasileiro, depara-se-nos precisamente o contrário desse
anonimato [...]. Na democracia nova [isto é,no regime ditatorial] os
preceitos [liberais] cedem lugar à ação constante dapersonalidade do
estadistaque [... ] contenta-se em formular certas regras, derivadas
da experiência do poder, mas que na prática do governo e na
elaboração das leis resolve cada caso concreto com espírito de
realismo e objetividade. [...] Um regime como o que foi instituí do
no Brasil pela Constituição de 10 de novembro é, portanto, um sistema
de governoessencialmente humano.O poder pessoal,que as ficções do
liberalismo democrático depreciaram [...], ressurge como elemento
básico e insubstituível na direção das atividades do Estado e no
encaminhamento da marcha progressiva da Nação (Amaral,_1943:35;
ênfases minhas).
Essa ladainha secular, recitada à exaustão por todos os sábios do período,
confunde de maneira proposital a vontade pessoaldo presidente (o indivíduo
empírico) com a vontade geralda Nação (a entidade abstra-ta),e assume que a
quele não só é a manifestação terrena desta, como também seu único veículo.
Portanto, para todos os efeitos,
Povo = Presidente = Getúlio Vargas (a pessoa)
Segundo essa equação, livre dos artifícios do "demoliberalismo", neologismo que
Francisco Campos maquinou para desqualificar a liberal-democracia, o "povo
representa o Estado sob a forma da pessoa humana", e não através de símbolos
políticos abstratos e esquemas jurídicos etéreos, como no regime da
Constituição de 1891. Esse Estado, "dotado de vontade e de virtudes humanas",
só "se torna visível e sensível", isto é, só existe e pode existir atravésdo
Chefe. É ele quem deve interpretar a ambição do povo, decidir por ele e assumir
a responsabilidade pelas decisões, já que o soberano encarna em si próprio
oupersonalizaa ideia de soberania (Campos,_1940a:211-213). Portanto,
Estado = Chefe (Getúlio Vargas) = Povo
Nesse contexto, e segundo essa dieta, não há como dissociar opersona-lismo(e o
seu correlato, o poder solitário de escolher) da instituição(um conjunto de
regras impessoais e aparelhos públicos encarregados do processo de governo).
Não porque a instituição - a instituição "Departamento Administrativo" ou a
"Interventoria Federal" - seja uma extensão da vontade individual do Chefe e
uma prova a mais do narcisismo que anima todo o sistema ditatorial, e sim
porque é o personalismo que põe em movimento o sistema político-institucional,
este sistema, neste contexto político, nesse momento histórico, e o faz
funcionar. Sua operação, todavia, nunca é em benefício do chefe da Nação, nem
sua relação com as instituições políticas é uma relação patrimonialista -
peculiaridade dessa forma de regime que permite ser despótico sem por isso
tirar proveito material da situação política.
Oliveira Vianna sublinha que é esse, justamente, o espírito e o significado do
art. 73 da Carta de 3719: ele "deu ao Presidente da República a prerrogativa de
dirigir a política administrativa e legislativa da União - e está certo; é este
- o político - justamente o domínio dos homens de Estado". Problema diferente,
todavia, da competência técnica para administrar e legislar. Vianna se apressa
em emendar que "O texto do artigo 73 não permite, nem autoriza, a extravagante
interpretação de que, em matéria de legislação ou de administração, o
Presidente deve ser o autor de tudo" (Vianna,_1974).
O que chamei então de personalismo institucionalizadoé, afinal, a condição de
realização prática do sistema político ditatorial e, ao mesmo tempo, a maneira
pela qual o poder "pessoal" se exprime e se explica. A liberdade de escolha dos
membros da elite, destituídos dos meios de sua própria seleção e dependentes
diretos do aval da liderança nacional autoritária, está, no entanto,
condicionada pela lógica mais geral desse universo político, e seu sintoma é,
justamente, ageometria variávelque o presidente Getúlio Vargas pode manipular,
mas que precisa, também, acompanhar. Paradoxalmente, no curso desse processo de
arregimentação de lealdades e de confirmação de apoios, aquele mesmo que faz as
regras e fixa as diretrizes da organização - o presidente -deve, em nome da
eficiência política e administrativa do sistema, submeter-se a elas depois20.
Se o propósito do governo central era mais ambicioso - reordenar as hierarquias
políticas estaduais (portanto, mais do que simplesmente "controlar o
interventor") -, nada mais esperável que o placar do departamento
administrativo assinalasse sempre um número menor de aliados do interventor e
uns poucos indivíduos indicados graças à sua influência.
Assumindo, por hipótese, que a impressão de Miguel Reale sobre o presidente do
"daspinho" de São Paulo fosse correta (o doutor Gofredo da Silva Telles teria
sido "sempre arredio às vicissitudes do Palácio do Governo" (Reale,_1986:169)),
e que ela valesse tanto para Ademar, quanto para Fernando Costa, deve-se
recordar que, quando o Departamento foi criado em 1939, Ademar, que era de uma
ala mais jovem e de menor prestígio do PRP, só podia contar com o concurso de
dois ou três membros, no máximo. Ele podia estar certo do apoio do coronel
Mário Lins (que só foi indicado graças à desistência de Horácio Lafer21)e
Plínio de Moraes, político de interior. Os outros integrantes eram não só mais
velhos ou de outra geração política (Ademar tinha apenas 37 anos de idade em
1938), mas de outra ala do PRP, mais tradicional e mais oligárquica. Ao longo
do tempo e graças a alguns negócios em comum, o interventor trouxe para sua
banda Cirilo Júnior, seu ex-colega de bancada na Assembleia Legislativa, mas
nem sempre simpático a suas posições e pronunciamentos22. Quando Fernando Costa
assumiu (em 1941), houve três substituições no Daesp e os novos indicados
podiam ser agora cotados, conforme a geometria variávelde alianças, como homens
ligados a Ademar23. Invertia-se o jogo, portanto. Asaída de Marcondes Filho e a
escolha de Miguel Reale não melhoraram em nada a situação para o interventor
recém-nomeado, que de fato só pôde receber algum reforço no momento em que
Armando Prado substituiu Marrey Júnior (promovido a secretário de Estado e
integrado a seu governo em 1944) e João Carvalhal Filho sucedeu Miguel Reale,
porque este resolveu, por conta própria, demitir-se em 1945.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se examina mais de perto a sorte das classes dirigentes regionais entre
as deposições de Washington Luís (1930) e Getúlio Vargas (1945), o que se
constata é que não há nem substituição de um grupo político por outro
completamente diferente; nem reordenação dos mesmos grupos num universo
extremamente fechado; nem depuração, através de sucessivos expurgos políticos
irreversíveis, das elites. O que há é um movimento de conservação parcialdo
pessoal político, o que também significa renovação parcialdesse pessoal.
A recomposição dos quadros dirigentes é controlada por um mecanismo político-
institucional que tem na Interventoria Federal e no Departamento Administrativo
seus principais exemplos. O princípio de indicação superior permite
substituições gradativas de alguns nomes, sem eliminar todos os grupos ou
afetar muitos interesses estabelecidos de uma só vez, aspecto que escapa à tese
da "substituição das elites no pós-30".
Esse artifício bastante seletivo de conservação e renovação (Camargo, A., 1983:
38-39), dirigido desde cima pelo presidente da República por meio de uma hábil
política de destituições, acomodações e reabilitações, foi percebida por vários
autores como "cooptação" (Miceli,_2001:243-244). Contudo, pelos exemplos que
tratamos aqui, o mais apropriado para descrever esse processo não seria a ideia
de coopta-ção, mas a de transformismo da elite política.
A noção de cooptação supõe um processo em grande medida intencional de
aliciamento de um grupo preexistente (ou de suas lideranças) a fim de "esvaziar
e conter movimentos atuais ou potenciais de reivindicação de demanda e
participação" (Reis,_1977:33). O grupo em questão pode, no limite, submeter-se
ao aliciador como um recurso meramente tático, sem perder ou abrir mão de sua
identidade original. Transformismo, por sua vez, implica a fabricação "de uma
classe dirigente cada vez mais ampla, [...] com a absorção gradual, mas
contínua, e obtida com métodos de variada eficácia, dos elementos ativos
surgidos dos grupos aliados e mesmo dos adversários e que pareciam
irreconciliavelmente inimigos" (Gramsci,_2002:63). Aplicada à elite paulista
produzida pelo Estado Novo para governar seu estado natal durante o período,
essa formulação ajusta-se quase perfeitamente, como quisemos demonstrar.
O resultado desse artifício político, mais intenso a partir de 1939, pode ser
resumido em três etapas.
Há, ao contrário do que se imagina, uma restituição, ainda que incompleta, do
poder à elite dirigente do estado - poder este "usurpado" entre 1930 e 1933
pelos tenentes e entre 1937 e 1938 pelos interventores federais24.
Essa elite restituída, representada após a extinção dos partidos políticos em
1937 por um pequeno grupo hospedado na interventoria e no departamento
administrativo, será responsável pelo apoio político e ideológico emprestado ao
ditador e à ditadura - mesmo após o tumulto e os ressentimentos gerados em
1932.
E será justamente essa elite restituída, que compreende ex-membros do PRP,
Partido Democrático de São Paulo (PD), PC e Ação Integralista Brasileira (AIB)
quem conduzirá o programa de formação dos novos partidos políticos em São Paulo
em 1945, especialmente o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) e o Partido
Social Democrático (PSD) (Souza,_1976)25. Esses partidos agora não são mais
estaduais, mas nacionais; não mais paulistas, mas "getulistas".