Organizar a Desordem: Raízes do Brasil em 1936
O parágrafo de abertura da primeira edição de Raízes do Brasil é uma cifra de
todo o livro. Em quatro frases intricadas, Sergio Buarque de Holanda traça as
grandes linhas de seu esforço de interpretação e aponta uma tensão central de
sua obra de estreia. Indo diretamente ao texto1:
Todo estudo compreensivo da sociedade brasileira há de destacar o
fato verdadeiramente fundamental de constituirmos o único esforço
bem-sucedido, e em larga escala, de transplantação da cultura
europeia para uma zona de clima tropical e subtropical. Sobre
território que, povoado com a mesma densidade da Bélgica, chegaria a
comportar um número de habitantes igual ao da população atual do
globo, vivemos uma experiência em símile. Trazendo de países
distantes as nossas formas de vida, nossas instituições e nossa visão
do mundo, e timbrando em manter tudo isso em um ambiente muitas vezes
desfavorável e hostil, somos ainda uns desterrados em nossa terra.
Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de
aspectos novos e imprevistos, elevar até à perfeição o tipo de
cultura que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso
trabalho ou de nossa preguiça participa fatalmente de um estilo e de
um sistema de evoluções naturais a outro clima e a outra paisagem
(Holanda,_1936:3).
O trecho contém enunciados-chave do livro, mas só se decodifica por completo ao
cabo da leitura de todo o ensaio. Por esse ponto de vista, as passagens se
esclarecem e ganham espessura conceitual. Na primeira frase, a cultura europeia
transportada com êxito para os trópicos pode ser detalhada como a cultura
proveniente da Península Ibérica, que se marca pelo apego generalizado aos
valores da personalidade e pela consequente iminência do estado de anarquia
social. Na segunda, a referência à plausibilidade de que o território
brasileiro viesse a abrigar número de habitantes igual àquele então existente
em todo o planeta pode ser relacionada ao elogio da cordialidade, caracterizada
entre outros pela hospitalidade, como contribuição do Brasil ao mundo moderno.
Na terceira frase, o tom benévolo da narrativa é alternado com o diagnóstico
crítico do desterro, isto é, a incompatibilidade entre os costumes e doutrinas
importados pelos bacharéis do século XIX (sobretudo a democracia liberal) e o
ambiente personalista e cordial que acaba de ser mencionado. Na última, a
constatação algo desolada de que, a persistir o desterro, a vitalidade cultural
emprestada ao país pela cordialidade será desperdiçada pode ser relacionada à
crítica contundente do autor aos bovarismos artísticos e políticos negadores do
caráter nacional.
Essa sumária reconstrução do alcance e do jogo dos enunciados contidos no
parágrafo de abertura de Raízes do Brasil sugere a pertinência de um modo de
leitura dessa obra que lhe assinale a qualidade de ensaio e, por isso, busque
compreender seu conteúdo sem descurar da análise de sua forma (Wegner,_2006).
Uma característica da escrita do livro que cumpre ressaltar é a alternância da
perspectiva adotada para a avaliação de enunciados propostos. O ponto é
ilustrado pela inadvertida mudança do tom elogioso para o tom crítico na metade
do parágrafo inicial. Além de surpresas, esse procedimento formal contribui
para a criação de ambiguidades. A principal delas dirá respeito ao papel da
herança colonial na construção do Brasil moderno. Nesse sentido, a leitura
espessa do parágrafo de abertura aponta os contornos de um dilema no centro do
argumento deRaízes do Brasil: como fundar uma organização política respeitável
em uma sociedade eivada de elementos anárquicos sem reprimir o substrato
cultural que singulariza os brasileiros e distingue seu lugar no concerto das
nações?
Esses não são os termos em que se costuma apresentar o impasse político de
Raízes do Brasil, em geral associado aos obstáculos para a democratização do
país. Contudo, como alguns estudos já procuraram evidenciar (Eugênio,_2011;
Feldman,_2013; Nicodemo,_2014; Pesavento,_2005; Rocha,_2004; Waizbort,_2011), a
mensagem do livro foi significativamente alterada pelas modificações realizadas
para sua segunda e terceira edições, vindas a lume respectivamente em 1948 e
1956. Reconstruir o dilema político apresentado pelo volume inaugural da
coleção Documentos Brasileiros da Editora José Olympio, com lançamento marcado
para 20 de outubro de 1936 (Franzini,_2010), é o propósito deste artigo.
Para tanto, o trabalho examinará o diálogo de Sergio Buarque com Francisco José
Oliveira Vianna e com Gilberto Freyre, dois autores cujas reflexões
contribuíram para a formulação daquele dilema de transformação da anarquia
personalista em civilidade política sem supressão do caráter cordial da
população. A interlocução desses três autores já foi explorada com proveito
(Ferreira,_1996), mas raramente o foi do ponto de vista do texto original
deRaízes do Brasil, e ainda assim apenas parcialmente (cf. Brasil Jr. e
Botelho, 2011; Bastos,_2005). Esse empreendimento contribuirá para lançar outra
luz sobre as afinidades e desacordos entre eles, sem, contudo, pretender
esgotar, nem mesmo mapear a gama de discussões encetadas por Sergio Buarque com
outros autores brasileiros e estrangeiros de seu tempo.
O artigo se dividirá em quatro seções, que discutirão grosso modo as duas
metades do parágrafo inicial, que também são as duas metades do livro. De um
lado, o enunciado do desterro, com seu diagnóstico (primeira seção do artigo) e
seu prognóstico (quarta seção). De outro, o enunciado da cordialidade, visto
sob ótica negativa (segunda seção) e depois sob ótica positiva (terceira
seção). A seção inicial identificará no diálogo frequentemente velado de Sergio
Buarque com Oliveira Vianna a formulação do que se designou um diagnóstico do
desterro. A seção seguinte cotejará insolidariedade e cordialidade, conceitos
centrais no quadro privatista da realidade brasileira composto tanto por
Oliveira Vianna quanto por Sergio Buarque. A penúltima seção acompanhará o
engajamento com a obra de Gilberto Freyre, focando-se no reconhecimento de uma
herança ibérica e na elaboração de um elogio da cordialidade. A seção final
analisará a tentativa de solução do problema do desterro por meio do diálogo
com Gilberto Freyre e o caminho afinal tomado para equacionar o dilema.
Aproximando e contrastando o texto original do clássico de Sergio Buarque com
escritos desses pensadores, compreende-se um pouco melhor as certezas e as
inquietações de uma obra longamente meditada e enfim publicada, segundo o
relato do próprio autor, após quase uma década de preparação (Holanda,_1979:
29). Um benefício desse estudo será a percepção de que Raízes do Brasil não foi
sempre o símbolo de crítica ao legado ibérico em que depois foi erigido. A
consulta à edição princeps revela uma grande ambiguidade do autor em relação ao
passado. A cifra do parágrafo de abertura desvenda-se, ao correr das páginas,
tanto pela afirmação otimista da identidade cordial quanto pela indagação
desassossegada sobre as condições de implantação da civilidade. O oximoro com
que Sergio Buarque sintetizou o dilema político de seu livro empregava
sintomaticamente, como verbo, o vocábulo que também designava a forma de sua
escrita: tratava-se de “ensaiar a organização de nossa desordem” (Holanda,
1936:176).
O PECADO DE CEM ANOS
Em março de 1935, Sergio Buarque publicou na revista Espelho o artigo “Corpo e
Alma do Brasil: Ensaio de Psicologia Social”, espécie detrailer de Raízes do
Brasil. Uma passagem desse texto contém formulação fundamental do diagnóstico
da disjunção entre instituições políticas e realidade social:
O fato é que a ideologia impessoal e antinatural do liberalismo
democrático, com as suas maiúsculas impressionantes e com as suas
fórmulas abstratas, jamais se naturalizou entre nós. Só assimilamos
efetivamente esses princípios até o ponto em que coincidam com a
negação pura e simples de uma autoridade incômoda, em que confirmavam
nosso instintivo horror às hierarquias e em que nos permitiam tratar
com intimidade os governantes. A democracia no Brasil foi sempre um
lamentável mal entendido. Uma aristocracia rural e semifeudal
importou-a e tratou de acomodar-se como pôde aos seus preceitos que
tinham sido justamente a bandeira de combate da burguesia europeia, e
isso somente porque esses preceitos pareciam os mais acertados para
os tempos e eram exaltados nos livros e nos discursos. O pecado
original dessa atitude livresca nunca mais se apagou de nossa vida
pública (Holanda,_2006:407).
A passagem foi aproveitada no sexto capítulo do livro lançado no ano seguinte.
Mas, na redação de 1936, o trecho sofre alterações no começo e no fim:
acrescenta-se uma nova frase no início e exclui-se a frase final. Essas duas
modificações do artigo de 1935 para o livro de 1936 merecem atenção.
A frase que passa a anteceder o trecho é a seguinte: “Trouxemos de terras
estranhas um sistema completo e acabado de preceitos, sem saber até que ponto
se ajustam à vida brasileira” (Holanda,_1936:122). É possível observar a
identidade substantiva e até formal dessa nova frase com a terceira frase do
parágrafo de abertura do livro. O início do trecho do sexto capítulo
(“Trouxemos de terras estranhas...”) é uma paráfrase do início do trecho da
abertura do livro (“Trazendo de países distantes...”). Substantivamente,
reitera-se a censura à importação de doutrinas incompatíveis com a realidade
brasileira. Essa censura será a tônica da discussão do capítulo seis de Raízes
do Brasil. A passagem escrita em 1935 e transcrita com alterações em 1936
enuncia uma dinâmica em que o liberalismo democrático é assimilado
seletivamente em proveito do personalismo (incômodo com a autoridade) e da
cordialidade (aversão à hierarquia, desejo de intimidade). (A correlação desses
sentimentos com essas categorias será esclarecida adiante.) O resultado é que,
em Raízes, a ligação direta entre o primeiro parágrafo e o sexto capítulo
associa o desterro não somente à importação de ideias estranhas, mas à dinâmica
em que as doutrinas importadas são reprocessadas à conveniência das forças
orgânicas da sociedade local.
Considere-se agora a segunda modificação sofrida pela passagem em análise. Na
frase final do raciocínio de 1935, afirmava-se que a “atitude livresca” – ou
“bovarismo”, expressão também usada por Sergio Buarque (ibidem:130) – era um
“pecado original” da vida política brasileira. A figura do “pecado original”
ganha um significado específico à luz do opúsculo O Idealismo na Evolução
Política do Império e da República, publicado em 1922 por Oliveira Vianna.
Lançada na coleção do centenário da Independência editada por O Estado de S.
Paulo, a pequena encadernação consta ainda hoje na biblioteca de Sergio Buarque
na Universidade Estadual de Campinas.
Nessa obra, Oliveira Vianna apontava a existência no Brasil de um antigo
conflito entre quixotismo e espírito de clã. Segundo o autor fluminense,
O quixotismo é um sentimento todo impregnado de intelectualismo, em
cuja gênese dominam os fatores imaginativos; e, portanto, um
sentimento fraco, de pequena energia emocional. O sentimento de clã,
ao contrário, é vivaz, enérgico, todo feito de materialidade;
poderoso [...] pela sua energia emocional, porque está nas tradições
e costumes do povo (Vianna,_1922:92).
O embate entre quixotismo e clanismo era desigual: “aquele tem que ceder e
recuar diante da rude instintividade do poderoso sentimento oriundo do espírito
de clã” (idem). A dissolução das doutrinas estrangeiras pela realidade local
era a razão de fundo pela qual as tentativas de organização política do Brasil
nos moldes do federalismo norte-americano, do parlamentarismo inglês ou do
liberalismo democrático francês haviam fracassado no Império e na República. O
conflito entre quixotismo e espírito de clã estava na raiz do que Oliveira
Vianna designava “idealismo utópico”, isto é, um “conjunto de aspirações
políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade
que pretendem reger e dirigir” (ibidem:14). E o idealismo utópico, sentenciava,
“tem sido o nosso grande pecado de cem anos” (ibidem:17).
Admitindo-se que Sergio Buarque tenha lido o opúsculo de Oliveira Vianna, o que
parece fora de dúvida, seria difícil desconsiderar o indício de uma citação
velada aO Idealismo na Evolução Política do Império e da República no artigo de
1935. O “pecado original” mencionado por Sergio Buarque remontava ao início da
vida política independente no Brasil, ou pouco antes, com a transmigração da
Corte portuguesa. Tratava-se do mesmo período coberto pelo “pecado de cem anos”
denunciado no texto de Oliveira Vianna publicado no centenário da
Independência. Esse autor retomaria o mote cinco anos mais tarde, no livro O
Idealismo da Constituição. Censura aí o idealismo utópico que, “há cem anos,
vem ‘sonhando’ a democracia no Brasil” (Vianna,_1927:10). E lamenta o fato de
que
Nenhum dos nossos ideais rescende o doce perfume da nossa terra
natal. Trazem-nos sempre à nossa lembrança uma evocação de estranhas
terras, de outros climas, de outros sóis, de outras pátrias. Neste
ponto de vista, somosderacinés: os nossos ideais não se alimentam da
nossa seiva, não se radicam na nossa vida, não se embebem na nossa
realidade, não mergulham na nossa história (ibidem:141).
O Idealismo da Constituição não consta da biblioteca hoje catalogada de Sergio
Buarque, mas não é implausível que ele o tivesse lido. Já se apontou nas
entrelinhas de Raízes do Brasil, e com razão, “diálogos implícitos” com O
Idealismo da Constituição (Nogueira,_2002). Pode-se imaginar, nessa linha, uma
interlocução do livro de 1927 e o de 1936, com a fala do primeiro
(“somosderacinés...”) e a réplica do segundo (“somos ainda uns
desterrados...”). Nessas locuções sucessivas, o advérbio de tempo “ainda”
evocaria uma atualização do diagnóstico do desterro, ou desenraizamento, no
vocábulo francês.
A coincidência entre expressões usadas por Sergio Buarque e termos empregados
por Oliveira Vianna (“pecado”, “desterro”) se dá sempre no contexto preciso da
discussão acerca do caráter estéril ou contraproducente do “idealismo utópico”.
O engajamento com a obra do autor fluminense não se limitava ao empréstimo de
expressões. Apanha-se no diagnóstico do desterro descrito por Sergio Buarque em
1935 o essencial da lógica proposta por Oliveira Vianna_em_1922. Na interação
das doutrinas estrangeiras com a realidade nacional, esta neutraliza aquelas e
as utiliza em seu proveito. O “íntimo desacordo” entre aspirações políticas e
condições sociais resolvia-se sempre em favor destas. Ou, nos termos de Sergio
Buarque, o liberalismo democrático era efetivamente assimilado apenas até o
ponto em que atendia ao personalismo e à cordialidade. O que parece revestir a
obra de Oliveira Vianna de especial interesse para o autor deRaízes do Brasil é
a tese de que as condições em que se processara a formação colonial do país
explicavam a falta de coesão social que, por sua vez, gerava o fracasso da
implantação de modelos políticos estrangeiros. Essa tese não se encontra, como
tal, em O Idealismo na Evolução Política do Império e da República, mas pode
ser subentendida no fato de que Oliveira Vianna postulasse o espírito de clã,
um dos conceitos centrais da análise histórica de Populações Meridionais do
Brasil, como polo do conflito com o quixotismo.
UMA IMPRESSÃO DESOLANTE
O diálogo de Sergio Buarque com Oliveira Vianna acerca da tese da existência de
uma relação entre formação colonial e falta de coesão social no país extrapola
os limites estritos da questão do desterro. Sergio Buarque engajava um ponto
capital dePopulações Meridionais do Brasil, obra maior de Oliveira Vianna. O
resultado dessa interlocução já foi descrito como um “encontro de
interpretações” (Wegner_e_Lima,_2004), em que os autores explicam similarmente
o país ao atribuírem papel de destaque ao ruralismo. O ponto de contato, e
mesmo de comensurabilidade, entre as duas narrativas é dado pelos conceitos de
insolidariedade e cordialidade.
Há em Raízes do Brasil apenas duas referências ostensivas a Oliveira Vianna, e
de nenhuma delas se concluiria pela existência de um diálogo enriquecedor entre
os dois autores. Elas terão relevância pela ótica da aproximação de Sergio
Buarque a Gilberto Freyre, e é preciso aquilatá-las antes de as colocar em
perspectiva. A primeira referência, única no corpo do texto, encontra-se no
sétimo capítulo: “No Brasil, e não só no Brasil, iberismo e agrarismo
confundem-se, apesar do que têm dito em contrário alguns estudiosos eminentes,
entre outros o snr. Oliveira Vianna” (Holanda,_1936:137). A segunda referência
encontra-se em uma nota ao capítulo três. Antes da indicação da nota há a
afirmação de que o ruralismo era uma característica típica da projeção
ultramarina portuguesa. “E vale a pena assinalar-se isso”, segue o texto, “pois
parece mais cômodo, e talvez mais lisonjeiro à vaidade nacional de alguns, a
crença, nesse caso, em certa misteriosa ‘força centrífuga’ própria ao meio
americano e que tivesse compelido nossa aristocracia rural a abandonar a cidade
pelo isolamento dos engenhos e pela vida rústica das terras de criação”
(ibidem:55). Na nota (que, por sua extensão, foi posta ao fim do volume), o
destinatário da crítica era nominado: devia-se “ao snr. F. J. Oliveira Vianna”
a “teoria artificiosa e extravagante da ‘força centrífuga’” (ibidem:166). O
novo emprego do respeitoso pronome de tratamento “snr.” não esconde, dessa
feita, a mordacidade da crítica ao ufanismo e ao despropósito atribuídos à
teoria em questão. Contra-arrestava-se que o desequilíbrio entre riqueza rural
e miséria urbana já se verificava em Portugal (ibidem:167-168). E, o que é
ainda mais importante e se lia em outro passo do livro, o desequilíbrio
resultava no Brasil da “fisionomia mercantil” da colonização, fruto do espírito
de aventura com que se conduziu o empreendimento ultramarino (ibidem:79-80). O
autor concluía a nota tecendo considerações, aliás ainda pertinentes, acerca da
“obsessão do arianismo” de Oliveira Vianna (idem:168).
O golpe assestado contra a tese do ruralismo apresentada em Populações
Meridionais do Brasil era certeiro. Atingia um ponto de partida da narrativa
histórica de Oliveira Vianna: a tendência do meio americano de impelir a
nobreza colonial para o “rude isolamento” dos campos, diferenciando-se do
“espírito peninsular” pela ação tenaz do “conformismo rural” (1920:13-18).
Outro ponto do raciocínio do autor fluminense, a tese de que a autonomia do
grande domínio rural impedia o desenvolvimento de outras áreas da sociedade,
também mereceu reparos. Embora Oliveira Vianna não seja citado, sua asserção de
que o caráter absorvente do latifúndio conferia “fisionomia característica [a]o
nosso interior rural” (idem:122) terá sido o alvo da observação de que a
autonomia dos grandes domínios “não é [...] um privilégio do Brasil colonial”
(Holanda,_1936:86-87). O que distinguia as fazendas brasileiras era, na
verdade, “o tipo de família organizada dentro das normas do velho direito
romano-canônico, mantido na Península Ibérica através das gerações” (ibidem:
87), designado páginas adiante como o “tipo primitivo da família patriarcal”
(ibidem:99). Pode-se identificar nesse passo um sinal do diálogo com Gilberto
Freyre_(1933) sobre a formação portuguesa e patriarcal do Brasil, objeto da
próxima seção. No geral, é perceptível o sentido das manobras de Sergio
Buarque. Cada objeção sua à diferenciação entre o brasileiro e o português é
acompanhada por uma reiteração do vínculo do Brasil com a cultura ibérica. A
ligação já fora categoricamente definida no primeiro capítulo: “a verdade [...]
é que ainda nos associa à Península Ibérica, e a Portugal especialmente, uma
tradição longa e viva, bastante viva para nutrir até hoje uma alma comum [...].
Podemos dizer que de lá nos veio a forma atual de nossa cultura” (ibidem:15).
Contra o “centrifugismo rural”, a “alma comum”. De fato, o ponto de partida de
Sergio Buarque era nitidamente diverso do de Oliveira Vianna, e as
consequências da divergência não eram desprezíveis em se tratando – caso de
Raízes do Brasil– de compor um quadro da cultura brasileira. (Tome-se como
exemplo o fato de que a cronologia usada em Populações Meridionais do
Brasilidentifica o início da colonização como um marco zero histórico. Assim,
não se lê sobre o “século XIX”, mas sobre o “IV século”. Sergio Buarque, em
troca, opera com calendário cristão.) Raízes do Brasil rejeitava uma explicação
situacional da colonização do Novo Mundo, em favor de uma explicação genética.
Essas categorias, tributárias da discussão de Richard Morse_(1965), iluminam a
diferença entre a visão de que o ambiente americano moldava formas sociais
originais (explicação situacional) e a visão de que as formas sociais nele
estabelecidas não podiam deixar de ser vazadas na fôrma ibérica (explicação
genética). O fato de que fossem críticas todas as referências ostensivas a
Oliveira Vianna sugere um intuito de marcar posição no debate público da época
afastando-se de um autor conhecido pela abordagem situacional. A exclusão da
referência implícita ao “pecado de cem anos”, feita em tom positivo no artigo
de 1935, do trecho transposto sem outras modificações para Raízes do Brasilno
ano seguinte poderia ser explicada na mesma chave. É sensível a inclusão, em
Raízes, de um conjunto de argumentos genéticos (no sentido precisado acima) que
não se tinham formulado claramente em “Corpo e Alma do Brasil”. Esse é o caso,
por exemplo, da discussão estruturada do personalismo como atributo ibérico,
que está ausente em 1935, mas ocupa todo o primeiro capítulo do volume de 1936.
Ocorre que as divergências entre esses autores não anulam convergências
provavelmente mais relevantes (Carvalho,_2002). A vocação privatista
desenvolvida ao longo do passado rural e o desafio que ela representava para a
fundação de uma ordem pública moderna são métricas comuns da reconstrução
histórica de Populações Meridionais do Brasil e de Raízes do Brasil. As
narrativas desses dois livros têm nexos similares: a fragmentação da população
colonial em fazendas isoladas; o caráter absorvente das relações familiares aí
desenvolvidas; a formação de uma sociabilidade baseada eminentemente em afetos;
e a configuração de uma sociedade infensa à impessoalidade e carente de
solidariedade em nível nacional.
As duas obras compartilham a avaliação de que os colonizadores do Brasil
adaptaram-se bem ao novo meio. Para Oliveira Vianna, foi preciso ao português
abandonar o perfil ibérico e conformar-se à vida rústica. Para Sergio Buarque,
o êxito foi conquistado justamente devido ao iberismo. Animados pela ética de
aventura, os lusos adaptaram-se com admirável plasticidade a um meio sujeito a
múltiplas injunções de clima, ecologia, cultura e raça. “Procurando recriar
aqui o meio de sua origem, fizeram-no com uma destreza que ainda não encontrou
segundo exemplo na história” (Holanda,_1936:25). Apesar dos raciocínios
distintos, os dois autores concordavam na avaliação da boa adaptação do
português ao novo meio, o que explica porque viam a configuração fragmentária
da sociedade colonial como uma resposta justificada aos desafios daquele
período. Daí, entre outras razões, a simpatia com que Oliveira Vianna tratava a
nobreza territorial na primeira metade de Populações Meridionais do Brasil
(Bittencourt,_2011), e os bons olhos com que Sergio Buarque via os aventureiros
portugueses (Wegner,_2014). Daí também a dificuldade que a herança colonial
colocava quando considerada pela ótica da organização da ordem pública no
Brasil. Por um lado, a visão positiva do legado histórico como que predispunha
os autores a julgar estranhas à terra as doutrinas que começam a ser importadas
no século XIX; por outro, eles não deixam de reconhecer o imperativo de dar
algum tipo de forma moderna ao país gestado no privatismo. Nesse sentido,
poder-se-ia cogitar serem as próprias narrativas de Populações e de Raízes que
se desterrariam, ao porem em suspenso a herança colonial e se indagarem sobre o
futuro. Isso se refletiria no fato de as duas narrativas não conseguirem
disfarçar o que se denominou, no caso da segunda metade de Populações, uma
“guinada” (Carvalho,_1993), e, no caso dos três últimos capítulos de Raízes,
uma “tensão” (Wegner,_2000). A hipótese é instigante, mas terá que ser tratada
com cautela, especialmente no caso do livro de Sergio Buarque.
Começando por Populações: para Oliveira Vianna, a dispersão geográfica dos
núcleos de produção agrária disseminava e insulava os grupos humanos. A
decorrência era que “a vida da família se reforça progressivamente e absorve
toda a vida social em derredor. O grande senhor rural faz da sua casa solarenga
o seu mundo” (Vianna,_1920:41). Essas condições herméticas favorecem a criação
de uma nova identidade à altura do século XVIII, ou “III século”: “Sente-se que
o nosso tipo do homem rural – homo rusticus –[...] já se vai modelando por esse
tempo, e diferenciando-se cada vez mais do tipo peninsular originário” (ibidem:
16). A enunciação é aprofundada com uma afirmação de certa tonalidade
essencialista: “Rural é o luso; mas, o luso não conhece a grande propriedade
[...]. Nós somos o latifúndio” (ibidem:41). O fato geográfico do isolamento
aparentava querer adensar-se em substância identitária. Oliveira Vianna não
incursiona, contudo, no terreno da cultura. Sua sociologia preocupa-se
eminentemente com a compreensão das condições de funcionamento das instituições
políticas brasileiras e dispensa pouca atenção à busca de um self brasileiro,
como até certo ponto o faria Sergio Buarque.
A narrativa de Populações Meridionais do Brasil prossegue com a descrição do
papel do clanismo, cujos atributos negativos começam a criar o ambiente para a
guinada narrativa do livro. O núcleo familiar latifundiário cedo se armou com
um serviço de defesa, que veio a constituir o “clã fazendeiro”. Sob o comando
do grande proprietário de terras, a milícia rural tornou-se “um fator de
turbulência social dos mais virulentos”, e, a partir da descoberta de minas no
século XVIII, se caracterizaria por uma “exacerbação caudilheira” (ibidem:72-
73). O espírito de corpo dentro do clã era elevado, mas estiolava em seu
exterior. Inexistiriam na colônia móveis de coesão social mais ampla, como
inimigos externos ou hostilidades de classe. No Brasil, haveria sociabilidade
sem chegar a haver sociedade. A solidariedade restringia-se à família e ao clã.
Por isso, no campo, onde habitava a maioria da população e preservava-se
íntegro ainda na atualidade o “caráter nacional” (Vianna,_1921:19), “a
insolidariedade é completa. Não se descobre ali nenhum traço de associação
entre vizinhos para fins de utilidade comum. Tudo nos dá uma impressão
desolante de desarticulamento e desorganização” (Vianna,_1920:170).
Grassando já no nível vicinal ou municipal, a insolidariedade impedia a
formação de uma consciência nacional. O homo rusticus, após quatro séculos, não
tinha sequer consciência da solidariedade de aldeia ou tribo, como ocorreria em
outras partes do mundo. O padrão de sociabilidade do homem rústico está bem
descrito nesta afirmação: “Normalmente, o círculo da nossa simpatia ativa não
vai, com efeito, além da solidariedade de clã. É a única solidariedade social
que realmentesentimos, é a única que realmente praticamos” (ibidem:179).
Explica-se, portanto, que os brasileiros não houvessem atingido a
“intelectualização do conceito de Estado” (ibidem:302, grifo suprimido), isto
é, a capacidade de discriminar entre o nível concreto e pessoal e o nível
abstrato e impessoal da ação política.
A essa altura consuma-se a guinada narrativa de Populações Meridionais do
Brasil.2 Identifica-se na reação do Segundo Reinado às oligarquias políticas um
ponto de virada na história do país. Os protagonistas da narrativa deixam de
ser os grandes proprietários e tornam-se o imperador D. Pedro II e os
estadistas conservadores que pregaram a organização da ordem legal por meio da
“trituração da caudilhagem” (ibidem:222; Carvalho,_2002). Esses estadistas não
se teriam deixado iludir pela doutrina liberal implantada na Regência, que,
defendendo a descentralização em uma sociedade cindida pelo espírito de clã,
pusera o país na rota da fragmentação territorial. A defesa pelos conservadores
do Estado unitário contra a “utopia” liberal fora obra de “idealismo orgânico”,
aquele “que só se orienta pela observação do povo e do meio” (Vianna,_1922:17).
Em lugar do parlamentarismo britânico, da fórmula “o rei reina, mas não
governa”, os conservadores criaram um “parlamentarismo brasileiro”, pelo qual
“o rei reina, governa e administra”. Agira-se, no Império, “fora” dos
princípios constitucionais, ou mesmo “contra” eles (Vianna,_1925:96), com
vistas à concentração de poderes. Essa solução, de “inegável hipocrisia”
(Vianna,_1920:262), salvara a unidade nacional no Império, mas era limitada.
Faltava infundir no povo o sentimento de um “alto destino histórico”, o que
ainda teria que ser obtido por um Estado capaz de impor-se “pelo prestígio
fascinante de uma grande missão nacional” (ibidem:305).
A visão de Sergio Buarque tem muitas afinidades com a narrativa de Oliveira
Vianna. O autor também partia do isolamento rural para a constatação de que as
famílias ignoravam princípios superiores que pudessem tolher sua autonomia.
Predominavam no país as vontades particularistas, próprias aos “círculos
fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal” (Holanda,_1936:101). A
família era o principal desses círculos, e constituía a imagem modelar de
poder, respeitabilidade e obediência. No âmbito familiar, as relações fundam-se
no sangue e no coração. Por isso, a “supremacia absorvente” do núcleo familiar
sobre a sociedade torna desconhecida qualquer “forma de convívio que não seja
ditada por uma ética de fundo emocional” (ibidem:105). Esse tipo de
sociabilidade é dito cordial, pois dimana do coração. Decorria da cordialidade
uma aversão às regras impessoais e coercitivas, próprias da civilidade. Os
ritualismos sociais pressupõem uma medida de distanciamento entre as pessoas,
contrária ao “desejo de estabelecer intimidade” que é marca registrada da
cordialidade (ibidem:103).
Chega-se, nessa altura, ao que já se definiu como o cerne do projeto
intelectual que animou a edição princeps de Raízes do Brasil: a definição da
identidade do homem brasileiro (Wegner,_2014). De acordo com Sergio Buarque: o
“horror às distâncias [...] parece constituir, ao menos até agora, o traço mais
específico do espírito brasileiro” (Holanda,_1936:107). A cordialidade
representaria, com efeito, “um aspecto bem definido do caráter nacional”
(ibidem:101). Esse caráter é encarnado pelo “homem cordial”. Vista em
perspectiva comparada, a alegoria do homem cordial faz pensar imediatamente na
do homo rusticus, também ele um personagem que estereotipa as características
humanas próprias do meio brasileiro. Revela-se aí um componente identitário que
aproxima as argumentações de Sergio Buarque e Oliveira Vianna. Ambos põem em
circulação, por intermédio desses personagens desindividualizados, enunciados
capazes de oferecer algum sentido de identidade nacional, embora apenas
tentativamente (em Oliveira Vianna) ou provisoriamente (vide a ressalva em
Sergio Buarque: “ao menos até agora”).
Essas duas figuras alegóricas, que de alguma forma condensam o legado colonial,
colocam-se como barreiras à implantação da ordem pública moderna no país.
Sergio Buarque escolheu como epígrafe ao quinto capítulo de seu livro,
intitulado “O Homem Cordial”, este verso do poeta seiscentista John Milton:
“uma ínfima parte do que o coração tem que aguentar é afetada pela ação dos
reis ou das leis...” (apudHolanda,_1936:91). Ou seja, com Milton, a discussão
sobre a cordialidade fica desde logo sob o signo da desconfiança quanto à
aplicabilidade das normas impessoais. Essa reticência quanto à possibilidade de
que a ordem pública pudesse “causar” sentimentos virtuosos ou “curar” os
viciosos era especialmente compreensível no ambiente privatista retratado por
Sérgio Buarque e por Oliveira Vianna. O coração que pulsava no homem cordial
pareceria poder bater também no peito do homem rústico. A vocação privatista
era a mesma em ambos.
Sergio Buarque registra desafios similares aos descritos por Oliveira Vianna no
tocante à implantação da ordem pública. A impressão deixada pela ordem familiar
rural gerava uma forte nostalgia no homem urbano. Dava-se uma “invasão do
público pelo privado, do Estado pela Família”, o que explicava a “difícil
adaptação” do país ao Estado democrático e a uma burocracia eficiente (Holanda,
1936:89). Sergio Buarque não relata aquela “invasão” com complacência. Em que
pesem as dúvidas consignadas quanto à viabilidade de uma ordem pública no país,
não se furta a afirmar categoricamente no parágrafo inicial do quinto capítulo:
Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas
antes uma descontinuidade e até uma oposição. A indistinção entre
essas duas formas é um prejuízo romântico e que teve os seus adeptos
mais entusiastas e mais zelosos durante o século décimo-nono [...].
Só pela superação da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado
(Holanda,_1936:93).
Até essa passagem, o Estado desvinculado das condições ambientes e contraposto
ao círculo familiar vinha sendo pensado como uma forma de desterro, contra a
qual se dirigia o peso da crítica do livro. Mas nesse ponto o ensaio alterna
seu ângulo de visão, não para referendar tal e qual o desterro que vinha sendo
condenado, mas para abrir uma nova perspectiva sobre a civilidade. A civilidade
não é pensada somente de modo desfavorável. Ela não se reduz à democracia
liberal, entendida como forma política decadente (Waizbort,_2011). Ainda que a
cordialidade fosse um traço identitário, ou justamente por isso, era preciso
buscar algum fundamento de estabilidade. “É necessário um elemento normativo,
sólido, [...] para que possa haver cristalização social” (Holanda,_1936:156-
157). Patenteia-se a tensão em que a narrativa simpática ao legado colonial,
ou, simplesmente, à cordialidade, entra em choque com a necessidade de
estabelecimento de algum tipo de ordem assentada na impessoalidade, ou na
civilidade.
A limitação das formas de solidariedade social ao círculo das preferências
afetivas, operada pela cordialidade, tem um correlato claro na insolidariedade,
em que o clã é o único vínculo realmente sentido. Embora estes conceitos tenham
estatutos próprios, insolidariedade e cordialidade podem ser vistos em uma
“posição de equivalência estrutural” em Raízes do Brasil e Populações
Meridionais do Brasil (Gomes,_2010). Similares as causas, semelhante o efeito:
também para Sergio Buarque o conceito de Estado é de difícil intelectualização.
Havendo acompanhado Oliveira Vianna tanto no diagnóstico do desterro quanto em
traços básicos da enunciação do privatismo brasileiro, Sergio Buarque afasta-se
da solução proposta pelo autor fluminense para o “pecado de cem anos”. Pouco na
discussão de Sergio Buarque evocará a “trituração” das oligarquias políticas, o
pleito por um “idealismo orgânico” e a defesa da infusão no povo de um
sentimento de destino nacional. (Apenas no “parlamentarismo brasileiro” haverá
uma proximidade.) É no diálogo com Gilberto Freyre que se pode esclarecer o
prognóstico político de Sergio Buarque, diverso e mesmo oposto ao de Oliveira
Vianna.
A LIÇÃO PORTUGUESA
Gilberto Freyre tem uma presença de peso em Raízes do Brasil. O autor assina o
prefácio da obra, no qual afirma ser Sergio Buarque “uma daquelas inteligências
brasileiras em que melhor se exprimem não só o desejo como a capacidade de
analisar, o gosto de interpretar, a alegria intelectual de esclarecer” (Freyre,
1936a:v). Sergio Buarque, de sua parte, considerava Casa-Grande & Senzala
“o estudo mais sério e mais completo sobre a formação social do Brasil”
(Holanda,_1936:105). O diálogo entre ambos será ostensivo e profícuo. A partir
de observações de Ricardo Benzaquen de Araújo_(2000; 2005), e sem a pretensão
de exaurir o tema, é possível vislumbrar os contornos da contribuição de
Gilberto Freyre para a montagem da visão genética e do elogio da cordialidade
contidos em Raízes do Brasil3.
O ethos da colonização portuguesa no livro de Sergio Buarque assenta-se na
renúncia à ação transformadora no mundo, derivada do personalismo, e na atitude
plástica de adaptação às circunstâncias da realidade, decorrente do
aventureirismo. Por um lado, a cultura ibérica da personalidade predicava-se na
máxima independência do indivíduo frente aos seus pares. Nessa concepção,
traduzida no sentimento de sobranceria, o “círculo de virtudes capitais”
relacionava-se diretamente com o “sentimento da própria dignidade de cada
homem” (Holanda,_1936:10). Atributos como o proceder sisudo, a inteireza e o
termo honrado eram “virtudes essencialmente inativas, pelas quais o indivíduo
se reflete sobre si mesmo e renuncia a modificar a face do mundo” (ibidem:12).
Por outro lado, a ética da aventura de que estavam imbuídos os colonizadores
portugueses os predispôs a se amoldarem à realidade dos trópicos. Os primeiros
colonos do Brasil “aclimavam-se facilmente, aceitando o que lhes sugeria o
ambiente, sem cuidar de impor-lhe normas fixas e indeléveis” (ibidem:26-27). Um
exemplo disso foi a assimilação de incontáveis costumes indígenas. Outro foi o
acolhimento de dissonâncias raciais, devido, segundo Sergio Buarque, à ausência
quase completa de orgulho de raça no português. Tratava-se de “face bem típica
de sua extraordinária plasticidade social”, explicada “muito pelo fato de serem
os portugueses [...] um povo de mestiços” (ibidem:27).
A associação entre o perfil mestiço do português e a plasticidade de sua ação
colonizadora leva a marca inconfundível de Casa-Grande & Senzala. É
revelador a esse respeito que, logo no quinto parágrafo deRaízes do Brasil, a
Península Ibérica fosse designada como uma “região indecisa entre a Europa e a
África” (Holanda,_1936:4). Pois é essa mesma imagem, aplicada unicamente a
Portugal, que Gilberto Freyre emprega no terceiro parágrafo do capítulo inicial
de sua obra para explicar a origem da adaptabilidade lusa ao Novo Mundo: “A
singular predisposição do português para a colonização híbrida e escravocrata
dos trópicos, explica-a em grande parte o seu passado étnico, ou antes
cultural, de povo indefinido entre a Europa e a África” (Freyre,_1933:2). A
“indecisão étnica e cultural” era responsável pela índole “flutuante” dos
portugueses: “o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo que é seu,
dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade” (Freyre,_1933:5).
Esse perfil deu aos portugueses a dianteira na colonização dos trópicos. A
índole flexível criada pela mestiçagem originária os permitiu alcançar
inigualada propensão à miscibilidade, mobilidade e aclimatabilidade, categorias
que se condensam na de plasticidade.
A plasticidade suscita outro encontro entre interpretações em Raízes do Brasil,
dessa feita com Casa-Grande & Senzala, derivando-se naquele da ética da
aventura, e neste da mestiçagem. Ao formular oethos colonial, Sergio Buarque
combinava considerações a respeito da cultura da personalidade, próprias ao seu
livro, com uma reflexão sobre o espírito da aventura que engajava a abordagem
de Gilberto Freyre. A plasticidade originada na mestiçagem entre Europa e
África somava-se à renúncia à modificação da realidade para criar um tipo
especialmente bem-sucedido de colonizador. O desmazelo com as normas fixas,
transmitido aos habitantes da nova terra, teria uma consequência direta na
aversão do homem cordial à impessoalidade. Outra consequência seria o desleixo
no traçado das cidades construídas no Brasil, diferentemente da urbanização
planificada das colônias espanholas, e ainda aqui é possível surpreender-se o
diálogo criativo de Sergio Buarque com seu estimado colega de geração.
É conhecido o argumento no quarto capítulo de Raízes do Brasil: “a cidade que
os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a
contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta confunde-se com a linha da
paisagem” (Holanda,_1936:62). Menos notada é uma passagem duas frases depois,
suprimida nas edições posteriores do livro: “As casas eram semeadas com
desalinho, em volta de uma igreja toda branca e situada quase sempre no lugar
mais elevado; com um desalinho que faz pensar um pouco nesses jardins de
Portugal evocados por Gilberto Freyre, cheios de uma poesia meio selvagem”
(ibidem:62). A referência é a um artigo de opinião de Gilberto Freyre no Diário
de Pernambuco de março de 1925, intitulado “Acerca de Jardins” (Freyre,_1979
[1925]), depois republicado em coletânea (Freyre,_1934). Freyre louvava o
caráter irregular dos jardins de Portugal, com sua “meia selvageria que é a
delícia da nossa natureza”. Antepunha essa “magnífica lição portuguesa” ao
“rígido geometrismo dos jardins suíços e franceses, que obrigam as flores e as
plantas a atitudes de soldados em dia de parada” (ibidem:43-46).
A discussão de Gilberto Freyre sobre os desleixados jardins portugueses há de
ter sido um achado para Sergio Buarque, que tira daí a bela imagem das cidades
semeadas. (Apenas na segunda edição de Raízes, em 1948, surgiriam as figuras do
semeador e do ladrilhador.) De alguma maneira, era a própria (des)ordem da
aventura e do personalismo que se incrustava no espaço urbano brasileiro. Isso
não podia deixar de contribuir para mitigar as forças impessoais que o autor
sabia emanarem da “habitação em cidades, que é, essencialmente, uma habitação
antinatural; associa-se a uma poderosa manifestação do espírito e da vontade,
na medida em que estes se opõem à natureza” (Holanda,_1936:59). A partir do
desembarque da família real, em 1808, o ímpeto dado à urbanização e a formas de
vida mais pautadas pela civilidade começaria a pôr em relevo essa contradição.
Com a Abolição, oitenta anos mais tarde, a transição entre a “ditadura dos
domínios rurais” e a “urbanocracia” lançaria a sociedade brasileira em uma
grave crise (ibidem:50 e 43). Por ora, cabe apenas dimensionar esse como
enraizamento da cultura ibérica no país.
Herança ibérica (ou: ethos colonial), ruralismo e cordialidade andam juntos,
como já se afirmou com razão (Avelino,_1990). Conforme exposto na seção
anterior, a base rural da sociedade colonial criou as condições para uma
profunda fragmentação, em que a sociabilidade limitava-se ao círculo familiar e
a consciência pública não excedia as preferências políticas pessoais ou
clânicas. Insolidariedade e cordialidade podiam ser vistas por Oliveira Vianna
e Sergio Buarque como elementos negativos, por constituírem óbices à ordem
moderna. Mas a cordialidade também admitiria uma visão positiva, à diferença da
insolidariedade. Não apenas de estrutura social fragmentária se fazia o Brasil.
O país herdara a cultura ibérica, com destaque para o personalismo e a
aventura. Engastados nas fazendas e nas cidades, esses elementos participaram
da moldagem do caráter nacional brasileiro. O ethos colonial, conjugação de
renúncia à mudança da realidade com plasticidade social, gravara-se no cerne na
cordialidade. Esta converte-se, assim “em uma espécie de filtro entre o homem e
o mundo, filtro que impede a redução do mundo ao projeto interno do sujeito,
forçando um certo tipo de negociação entre ele[s]” (Araújo,_2005:42). Na
polidez, ou civilidade, pressupunha-se uma “presença soberana do indivíduo”, e
obtinha-se “um dos mais decisivos triunfos do espírito sobre a vida” (Holanda,
1936:102). Sob o império da cordialidade, todavia, “A vida íntima do brasileiro
não é bastante coesa, nem bastante disciplinada, para envolver e dominar toda a
personalidade, ajustando-a como uma peça consciente ao ambiente social”
(ibidem:110). Incoeso o self, infactível a civilidade. O núcleo de vida cordial
inviabilizava o triunfo das fórmulas abstratas.
A “aversão ao ritualismo social”, correspondida pelo já mencionado “desejo de
estabelecer intimidade”, manifestava-se na dificuldade havida pelos brasileiros
em manter prolongada reverência frente a um superior. As fórmulas de reverência
eram admitidas desde que não excluíssem a possibilidade de convívio mais
próximo. De acordo com Sergio Buarque, em passagem também excluída das edições
posteriores do livro,
A generalização do tratamento por “você”, que perdeu, aliás, a
tonalidade cerimoniosa e substitui, praticamente, o tratamento pela
segunda pessoa, poderia ser explicado por motivos especiais:
limitemo-nos a lembrar, por enquanto, que não foi, talvez, simples
casualidade o que fez coincidir a extensão geográfica, entre nós, do
uso dessa forma de tratamento com a parte do território brasileiro em
que teve maior força a escravidão africana: o extremo norte e,
sobretudo, o extremo sul utilizam-na menos do que o centro (1936:
103).
Novamente, sente-se que Raízes do Brasil – e também “Corpo e Alma do Brasil”,
onde o trecho aparece pela primeira vez – entabula diálogo comCasa-Grande &
Senzala. O argumento de que a forma linguística é flexibilizada em função da
ocorrência do regime híbrido e escravocrata de colonização remete à
demonstração de uma tese central deCasa-Grande. Para Sergio Buarque, o
tratamento por “você” era um índice da cordialidade. Para Gilberto Freyre, a
flexibilidade no uso da próclise e da ênclise indicava o equilíbrio de
antagonismos na formação brasileira:
Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o português
só admite um – o “modo duro e imperativo”: diga-me, faça-me, espere-
me. Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente
nosso, caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere.
Modo bom, doce, de pedido. E servimo-nos dos dois. Ora, esses dois
modos antagônicos de expressão, conforme necessidade de mando ou
cerimônia, por um lado, e de intimidade ou de súplica, por outra
[sic], parecem-nos bem típicos das relações psicológicas que se
desenvolveram através da nossa formação patriarcal entre os senhores
e os escravos; [...] A força ou antes a potencialidade da cultura
brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos
equilibrados; o caso dos pronomes que sirva de exemplo [...]. Somos
duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de
valores e experiências diversas; quando nos completarmos num todo,
não será com o sacrifício de um elemento ao outro (1933:376-377).
A proximidade entre o caso dos pronomes de tratamento e o caso da colocação
pronominal é significativa. É o próprio Sergio Buarque quem traça o paralelo
entre o linguajar encurtador de distâncias sociais e a zona de colonização
escravocrata. Custaria a crer que ele não tivesse em mente, nessa aproximação,
a tese proposta pelo prefaciador de seu livro. O paralelo entre os exemplos de
uso pronominal pode ser formulado de modo mais preciso nos seguintes termos: a
área onde grassa o tratamento por “você”, típico do desejo cordial de
intimidade, coincide com a área onde se fixou a variação entre uso proclítico e
enclítico, típica do equilíbrio de antagonismos da colonização híbrida e
escravocrata do Brasil. Cordialidade e equilíbrio de antagonismos parecem
produzir efeitos similares, pelo que são suscetíveis de uma aproximação mais
detalhada. Ressalve-se apenas terem estatutos diferentes, como se nota do fato
de Gilberto Freyre falar em uma “necessidade” de “mando” e “intimidade”, ao
passo que Sergio Buarque aborda somente o “desejo” de “intimidade”.
Um primeiro aspecto desse cotejo diz respeito à identificação de algum tipo de
elemento nacional na cordialidade e no equilíbrio de antagonismos. EmCasa-
Grande & Senzala, a sociedade patriarcal é profundamente vincada pelo
privatismo. O regime de monocultura latifundiária acompanha-se do mal
inseparável do “exagerado sentimento de propriedade privada. O qual começa
criando rivalidades sangrentas entre vizinhos – grandes senhores de terras –
para terminar balcanizando continentes” (Freyre,_1933:386-387). Embora os
habitantes da colônia compartilhassem um substrato cultural, esse quadro
anárquico tornaria impossível a formação de uma unidade nacional. Sucede que as
tendências dispersivas eram contrabatidas por forças homogeneizadoras de igual
ordem. Com sua ação disciplinadora, oposta à experiência desregrada dos
senhores de engenho, os padres jesuítas contribuíram para salvaguardar a
integridade da colônia. O catolicismo, de modo mais amplo, foi “realmente o
cimento da nossa unidade” (ibidem:43). A unidade não resultava somente do
patriarcalismo, nem do jesuitismo ou do catolicismo, mas, algo precariamente,
do equilíbrio entre essas tendências antagônicas de dispersão e uniformização.
Um “todo” alcançado sem o sacrifício de uma parte a outra, e sim pela
“confraternização” entre ambas. Essa dinâmica ilustra o sentido da defesa da
nacionalidade feita por Gilberto Freyre, na qual “o que está efetivamente em
jogo não é uma substância específica, mas aquela maneira particularmente
híbrida e plástica de combinar as mais diferentes tradições sem pretender
fundi-las em uma síntese completa e definitiva: antagonismos em equilíbrio”
(Araújo,_2005:133).
Por esse caminho, tornava-se possível pensar a unidade – conquanto instável –
em uma sociedade de outra forma balcanizada pelo privatismo. Nesse sentido, a
aproximação da cordialidade ao equilíbrio de antagonismos se terá afigurado a
Sergio Buarque como particularmente proveitosa. Compartilhando com Oliveira
Vianna a narrativa sobre a baixa coesão social, podia não obstante conceber,
com Gilberto Freyre, uma escala nacional no Brasil. Nisto o porquê da visão
positiva do passado nacional que se encontra em Casa-Grande & Senzala, sem
paralelo emPopulações Meridionais do Brasil: a colônia legara ao país uma
unidade nacional (Ricupero,_2010). EmRaízes do Brasil, a visão positiva da
herança portuguesa e colonial também não deixa margem a dúvidas. Algumas de
suas passagens mais contundentes dirigem-se àqueles que pretendiam negar a
“alma comum” com a Península Ibérica. A “tradição longa e viva”, lia-se no
primeiro capítulo, era uma verdade indubitável, “por menos sedutora que possa
parecer [a] alguns de nossos patriotas” (Holanda,_1936:15). Na nota de rodapé
dedicada a Oliveira Vianna, a tese do centrifugismo era considerada “tão
própria para lisonjear a vaidade patriótica de numerosos brasileiros” (ibidem:
166).
A insistência nessa crítica não estava desligada do fato de que, a julgar pelo
testemunho de outro importante ensaísta da época, Azevedo Amaral, a visão
genética era minoritária nos meios intelectuais brasileiros de então (Amaral,
1935:75). Afirmar o papel da herança ibérica requeria uma atitude de
enfrentamento. Mas se era possível tratar o patriotismo situacional como
vaidade ignorante do país, por outra parte era preciso comedimento na afirmação
de um caráter nacional, ponto delicado em uma explicação genética. Tudo estava
em ressaltar a dimensão cultural compartilhada com terras de além-mar. Como já
ficara claro em Casa-Grande & Senzala, a peculiaridade do brasileiro devia
resultar de diferenciação incremental. O equilíbrio de antagonismos já era uma
característica da psicologia do português, que depois admitiria contornos
próprios na experiência tropical e daria sentido à cultura brasileira. A
cordialidade, por sua vez, surgiria das condições específicas de personalismo,
aventura e ruralismo no Brasil. A coincidência entre a zona de colonização
escravocrata e o emprego do pronome de tratamento “você” volta à tona. Segundo
Sergio Buarque, esse linguajar cordial, capaz de estabelecer “um convívio mais
familiar” em detrimento das hierarquias sociais (Holanda,_1936:103), não tinha
correspondente em Portugal: “E isso é tanto mais específico, quanto é sabido o
apego dos portugueses, tão próximos de nós, sob tantos aspectos, aos títulos e
sinais de reverência” (idem). É significativo que esse esclarecimento se
localize nas páginas em que a cordialidade é definida.
Um segundo aspecto da aproximação entre equilíbrio de antagonismos e
cordialidade diz respeito ao significado atribuído ao caráter nacional. Já se
viu que a unidade nacional em Gilberto Freyre é uma totalidade tensa e
instável. Quiçá, em atenção a essa maneira híbrida e plástica de conceber o
nacional, as inscrições propriamente essencialistas de Sergio Buarque acerca do
caráter nacional serão esparsas. Mas a passagem em que a cordialidade é
definida pela primeira vez em Raízes do Brasil é marcada pelo entusiasmo. Esse
entusiasmo parecia incorporar um ponto de vista estrangeiro que busca um
sentido nacional estável para categorizar o país. Em Gilberto Freyre, esse
ângulo também fora contemplado, em observação acerca do equilíbrio de
antagonismos: “Talvez em parte alguma se esteja verificando com igual
liberalidade o encontro, a intercomunicação e até a fusão harmoniosa de
tradições diversas, ou antes antagônicas, de cultura como no Brasil” (Freyre,
1933:81). Em Sergio Buarque essa ótica revela-se na menção à visita de
estrangeiros:
O escritor Ribeiro Couto teve uma expressão feliz, quando disse que a
contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade –
daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas pelos
estrangeiros que nos visitam, formam aspecto bem definido do caráter
nacional. Seria engano supor que, no caso brasileiro, essas virtudes
possam significar “boas maneiras”, civilidade. São antes de tudo
expressões legítimas de um fundo emocional extremamente rico e
transbordante (Holanda,_1936:101).
O tom da passagem faz eco ao do texto, publicado em 1931 na Revista do Brasil,
em que o Rui Ribeiro Couto cogitou desse personagem. O “homem cordial”, dizia
Couto, era um produto da junção do homem ibérico à gente e às terras do meio
americano. Sua atitude de hospitalidade e credulidade era tipicamente ibero-
americana, de “disponibilidade sentimental” (Couto,_2006:398). Diferenciava-se,
nisto, do egoísmo fomentado na Europa pelas intolerâncias religiosas e pelas
calamidades econômicas. A “civilização cordial” seria nada menos que uma
“contribuição da América Latina ao mundo” (idem).
Recém-chegado de sua estada na Alemanha, Sergio Buarque deverá ter encontrado
no pequeno texto de Ribeiro Couto uma intuição fundamental. A estrutura social
brasileira era sem dúvida fragmentária e infensa à ordenação pública, como
sentenciava Oliveira Vianna. Mas a “ética de fundo emocional” formada no
recesso do mundo rural e enriquecida pela cultura ibérica tinha a capacidade de
singularizar o Brasil no mundo. O cotejo com a ordem fria e impessoal da Europa
despertava franco otimismo, que retoma a tonalidade benévola do parágrafo de
abertura do livro: “vivemos uma experiência sem símile”. Essa expressão consta
da segunda frase do parágrafo, na qual também se observava que o território
brasileiro poderia abrigar uma população semelhante à de todo o planeta caso
fosse “povoado com a mesma densidade da Bélgica”. Essa conjectura fora
retirada, se bem que sem indicação da referência bibliográfica (Rocha,_2004),
do célebre Porque me Ufano do Meu País, do Conde Affonso Celso. No famoso
livro, postulava-se a grandeza territorial como primeiro motivo para a
superioridade do Brasil. Entre outros dados, o autor citava o de que o país é
trezentas vezes maior do que a Bélgica, para arrematar: “O Brasil é um mundo.
Quer isto dizer que, se a população do Brasil igualar a densidade da população
belga, tornar-se-á superior à que se calcula existir hoje na terra inteira”
(Celso,_1901:6). É interessante que Sergio Buarque fizesse essa referência
velada, justamente no incipit deRaízes do Brasil, ao expoente maior, e já
estigmatizado, do tipo de “vaidade patriótica” que criticava duramente em seu
próprio livro.
A explicação para o entusiasmo passa pela percepção de que havia na
cordialidade – como também no equilíbrio de antagonismos – a identificação de
uma “resposta criadora do modernismo à problemática de autolegitimação cultural
do Brasil” (Merquior,_1981:274). Para Gilberto Freyre, ali estaria a “força ou
antes a potencialidade da cultura brasileira”. Para Sergio Buarque, era da
“contribuição brasileira para a civilização” que se tratava. Percebe-se então
porque o “tipo de cultura que representamos”, citado na última frase do
parágrafo inicial de seu livro, se anunciava logo no parágrafo seguinte como um
“tipo próprio de cultura” (Holanda,_1936:3). Tanto a cordialidade quanto o
equilíbrio de antagonismos envolviam uma grande medida de tradição lusa e
outra, menor, de diferenciação brasílica. Acima de tudo, ambas apontavam para
uma alternativa aos rigores da modernidade ocidental. O desejo de intimidade e
a confraternização entre opostos eram, cada um à sua maneira, manifestações
“daquele calor que, mal ou bem, emanava da nossa promíscua e anárquica
experiência colonial” (Araújo,_2005:181). Celebrar esse calor humano não era
reproduzir a apologia formalista da pátria, mas, ao contrário, exaltar a fonte
de vitalidade cultural brasileira. O elogio da cordialidade estava longe do
ufanismo estéril, evocado pela citação porventura irreverente do Conde Affonso
Celso. Mais instigante era a frase “O Brasil é um mundo”, do mesmo autor, que
antecedia a observação citada sobre a Bélgica e que pode ser relida aqui no
registro um tanto altíssono do Brasil como território capaz de abrigar uma
experiência própria de modernização.
UMA TRADIÇÃO ORTODOXA
Após dimensionar o privatismo, elogiar a cordialidade e diagnosticar o
desterro,Raízes do Brasil passa a se ocupar de um prognóstico político. Seria
difícil abordá-lo sem fazer menção, ainda que sumária, à reflexão modernista de
Sergio Buarque nos anos 1920. Um dos temas fundamentais que ela ajudaria a
enquadrar em meados da década seguinte é a crítica à pretensão de que soluções
jurídico-institucionais dessem conta da complexa realidade brasileira. A
desconfiança em relação às fórmulas sedimentadas estava no centro do projeto
modernista que buscava o desrecalque de forças inconscientes como caminho
vitalista para a renovação cultural (Avelino,_1987). Em “Perspectivas”, artigo
publicado em 1925 na revista Estética, Sergio Buarque equiparava a linguagem a
uma força de “negação de vida”: “Nada do que vive se exprime impunemente em
vocábulos” (Holanda,_1996b:214). Um tratado de história da civilização ainda
poderia ser escrito, dizia, “em que se considera o esplendor e a decadência de
cada povo coincidindo precisamente com a maior ou menor consideração que a
palavra escrita ou falada mereceu de cada povo” (idem). Essa crítica continha
não apenas a condenação de ímpetos negadores da realidade nacional como também
uma advertência sobre a corrupção das energias do povo que insistisse em
ilusões formalistas.
No artigo “O Lado Oposto e Outros Lados”, saído na Revista do Brasilem 1926, o
autor ironizava os passadistas que lamentavam não ser o Brasil “um país velho e
cheio de heranças”, ao mesmo tempo em que criticava colegas modernistas adeptos
de uma “panaceia abominável da construção” (Holanda,_1996a:226-227). A arte
brasileira haveria de surgir antes pela “indiferença” que pela imposição de
critérios estrangeiros. Era equivocada a ideia de que o panorama artístico se
definisse pela desordem: “a ordem perturbada entre nós não é decerto, não pode
ser a nossa ordem; há de ser uma coisa fictícia e estranha a nós, uma lei
morta, que importamos, senão do outro mundo, pelo menos do Velho Mundo” (idem:
226). Os artigos de 1925 e 1926 ainda não falavam propriamente de política, mas
já deixam entrever os fundamentos do esquema analítico de Raízes do Brasil.
“Tudo se passa como se um núcleo de vida resistisse, e devesse resistir sempre,
às construções especiosas dos homens. Aí estão, numa primeira e fundamental
manifestação, as traves dos argumentos [de] […]Raízes do Brasil” (Monteiro,
2012:202). Esse núcleo seria denominado o “mundo de essências mais íntimas”
(Holanda,_1936:161).
Nesses termos, o prognóstico do problema do desterro em Sergio Buarque começava
a tomar forma como uma cobrança de que as forças políticas emanadas desse mundo
fossem libertadas: “nosso aparelhamento político [...] se empenha em desarmar
todas as expressões genuínas e menos harmônicas de nossa sociedade, em negar
toda espontaneidade nacional” (ibidem:144). O “pecado original” da atitude
livresca fora criar um ambiente em que, como se lê no sexto capítulo deRaízes
do Brasil, “nossa vida verdadeira morria de asfixia” (ibidem:126). Uma passagem
em especial articula de forma consistente os temas discutidos até aqui:
Comparsas desatentos do mundo que habitávamos, quisemos viver
fervorosamente contra nós mesmos, viver pelo espírito e não pelo
sangue. Como Plotino de Alexandria, que sentia vergonha do próprio
corpo, acabaríamos por esquecer tudo quanto fizesse pensar em nossa
própria riqueza emocional, a única força criadora que ainda nos
restava, para nos submetermos à palavra escrita, à retórica, à
gramática, ao Direito abstrato (idem).
Aí está a crítica à negação formalista da realidade, expressa na oposição entre
espírito (“palavra escrita”) e vida (“sangue”), bem como a referência à
cordialidade (“riqueza emocional”) como elemento criador. É com a herança
ibérica e a cordialidade em mente que se pode ler este trecho, no primeiro
capítulo deRaízes, que retoma a problemática dos artigos da década anterior:
“toda cultura só absorve, assimila e elabora verdadeiramente os traços de
outras culturas, quando estes encontram uma possibilidade de ajuste aos seus
quadros de vida” (ibidem:15). A crítica às importações doutrinárias combinava-
se, dessa maneira, com a lógica da evolução orgânica da sociedade (Eugênio,
2011). A superação do desterro envolveria duas componentes. Por um lado, o
Estado devia aceitar (em vez de negar) as forças vitais da sociedade e
robustecer-se com elas; por outro, as ideias estrangeiras deviam poder ajustar-
se aos “quadros de vida” brasileiros.
A experiência do Império e da República constituía, em Raízes do Brasil, o
campo sobre o qual se podia refletir acerca dessa solução. No século de vida
independente, a atitude livresca fora comum ao espectro político, de D. Pedro
II aos positivistas. Os conselhos desses homens predicavam-se na duvidosa
perspectiva de que se pudesse criar “um quadro social milagrosamente destacado
de nossas tradições portuguesas e mestiças. O prestígio moderno e provavelmente
efêmero das superstições liberais e protestantes parece-lhes definitivo,
eterno, indiscutível e universal” (Holanda,_1936:128). D. Pedro II era
destacado como caso exemplar do “amor bizantino pelos livros” (ibidem:126),
que, no fundo, traduzia um “invencível desencanto de nossa realidade e de nossa
tradição” (ibidem:130).
Sergio Buarque parece encampar, nesse momento, uma crítica de Gilberto Freyre
ao bovarismo de D. Pedro II: “Esse Imperador, que alguém comparou finamente a
um pastor protestante oficiando em templo católico [...]” (ibidem:127). A
referência é direta a uma conferência de Gilberto Freyre por ocasião do
centenário de nascimento do imperador, em 1925. O texto, publicado na Revista
do Norteno ano seguinte, criticava D. Pedro II por ter assentado o governo do
país nas bases equívocas da imitação dos mores da Inglaterra vitoriana e da
importação do liberalismo. Contra o pano de fundo da colônia, associada ao
desregramento, o Império aparecia como um tempo de cerceamento moral e
político. “Olhando-se hoje o Segundo Império tem-se uma grande impressão de
cinzento [...]. O liberalismo a quase todos acinzenta numa conciliação acaciana
bem ao sabor do século” (Freyre,_1926:18). Fiado na “superstição da solução
jurídica e do liberalismo” (ibidem:16, grifos suprimidos), o imperador afastou-
se das forças em que se deveria ter escorado. Seria de desejar que D. Pedro II
houvesse sido “mais sensível à aliança do Trono com a Igreja e o Exército e a
Terra – os grandes senhores de engenho [...] desta rústica nobreza o Imperador
poderia ter feito uma das forças do Trono” (ibidem:15). Para esse lado deveria
ter pendido o poder moderador.
Em vez disso, D. Pedro II sofreu de uma “espécie de calvinismo político”. Seu
poder teria sido mais robusto se houvesse explorado o imaginário religioso
popular:
Pedro II […] exagerou-se na tirania moral para falhar na estética ou
ritual do Poder – elemento tão caro ao sentido de beleza de um povo
nascido sob o encanto da liturgia da missa [...]. E à testa da
monarquia brasileira, igreja manuelina a pedir missas pontificais,
ele nos dá esta ideia melancólica: a de um pastor protestante a
oficiar em catedral católica (ibidem:12-13).
A analogia religiosa ganha mais densidade com o entendimento de catolicismo com
que trabalhava Freyre. Uma virtude da Igreja era “a de manter intactas, sem as
confundir, energias divergentes, tragicamente divergentes até, como o culto da
família e o culto da virgindade. O vermelho e o branco” (ibidem:19). Embora o
conceito só fosse ser delineado com clareza alguns anos mais tarde em Casa-
Grande & Senzala, indicava-se que D. Pedro II poderia ter governado mais
“brasileiramente” (ibidem:17), com mais cor e menos cinza, por meio do
equilíbrio de antagonismos herdado da colônia. O certo é que Gilberto Freyre
evocava no fim da conferência alguns luminares do patriarcalismo político do
Segundo Reinado, cujas “vozes ortodoxas perdidas no coro da oratória liberal
[...] são vozes a reviver hoje, [...] para que se fixe mais inteligentemente
uma tradição ortodoxa entre nós” (ibidem:22).
Tomando de empréstimo a Gilberto Freyre a imagem do pastor protestante
oficiando em catedral católica, e talvez também a expressão das superstições
liberais e protestantes, Sergio Buarque não o acompanhava na avaliação do
Segundo Reinado. O “bovarismo nacional” de fato marcara o Império, mas a
verdade é que se agravara na República: “o mal [...] cresceu com o tempo [...]
nesse ponto, a nossa república ainda foi além da monarquia” (Holanda,_1936:
130). No Império, uma doutrina política estrangeira fora ajustada aos quadros
de vida brasileiros e o Estado retirara deles sua força:
Neste o princípio do Poder Moderador, chave de toda a organização
política, e aplicação da ideia do pouvoir neutre, em que Benjamin
Constant, o suíço, definia a verdadeira posição do chefe de Estado
constitucional, corrompeu-se bem cedo, graças à inexperiência do
povo, servindo de base para a nossa monarquia tutelar, bem
compreensível em um regime agrário e patriarcal. A divisão política,
segundo o modelo inglês, em dois partidos menos representativos de
ideologias do que de personalidades e de famílias, satisfazia nossa
necessidade fundamental de solidariedade e de luta. Finalmente o
próprio parlamento tinha uma função precípua a cumprir dentro do
quadro da vida nacional, dando uma imagem visível dessa solidariedade
e dessa luta (idem:131).
Sergio Buarque referia-se nessa passagem ao personalismo. O culto exaltado à
independência pessoal traduzia-se, no plano político, em um obstáculo à
estabilidade e à solidariedade. Lê-se no começo de Raízes do Brasil que a
anarquia encontrava no país um campo fértil, e cúmplices nas instituições e
costumes. “Em terra onde todos são barões, não é possível acordo coletivo
durável, a não ser por uma força exterior respeitável e temida” (idem:5). Nos
países ibéricos, isso redundou muitas vezes em ditaduras militares. Mas Sergio
Buarque formula uma ressalva para o caso brasileiro. “Entre nós”, dizia, a
força não poderia ser despótica, pois se incompatibilizaria com a cordialidade:
“o despotismo condiz mal com a doçura de nosso gênio” (idem:142). O Estado
necessitava, sim, de “pujança”, “compostura”, “grandeza” e “solicitude”, meios
para que adquirisse “alguma força e também essa respeitabilidade que os nossos
pais ibéricos nos ensinaram a considerar como a virtude suprema entre todas”
(idem). O Império encarnara esse ideal, e por isso fixara-se na imaginação
coletiva.
Note-se como o autor detalha em três pontos o ajuste entre o regime político e
o substrato cordial e personalista. Em primeiro lugar, o poder moderador
embasara a monarquia tutelar, “bem compreensível” no regime agrário e
patriarcal. (Registre-se que, na segunda edição do livro, o advérbio “bem”
seria suprimido, tornando a linguagem menos apologética da forma monárquica.)
Em segundo lugar, o bipartidarismo exprimia adequadamente da “necessidade
fundamental” de conflito e colaboração típica de uma sociedade composta por
indivíduos sobranceiros. Em terceiro lugar, o parlamentarismo cumpria a função
de dar uma “imagem visível” da dinâmica política personalista. Bem
compreendido, isto é, equacionado com respeito à cordialidade, o personalismo
tornava-se “uma noção positiva”, ao lado da qual sobressaía o aspecto
“decorativo” dos lemas da democracia liberal. Daí porque o personalismo, nos
países latino-americanos em que afastara as resistências liberais, “tenha
assegurado [...] uma estabilidade política que de outro modo não teria sido
possível. A formação de elites de governantes em torno de personalidades
prestigiosas tem sido, ao menos por enquanto, o princípio político mais fecundo
em nossa América” (idem:152).
Sergio Buarque apontava no Império um regime político exitosamente articulado
com a base da sociedade. Ora, era precisamente essa a cobrança que Gilberto
Freyre dirigira a D. Pedro II. Onde o pernambucano vira um fracasso, o paulista
vira um sucesso. É como se a “tradição ortodoxa” ligada ao equilíbrio de
antagonismos, que Gilberto Freyre propusera fosse revivida, houvesse sido
surpreendida em plena atividade por Sergio Buarque. A “monarquia tutelar” e o
“regime agrário e patriarcal” associavam-se com a força da aliança que Freyre
desejava ter existido entre o “Trono” e a “Terra”. No artigo “Corpo e Alma do
Brasil”, de 1935, havia uma ressalva a esse respeito, retirada em Raízes do
Brasil: “Não quer dizer que o Império representasse em todos os sentidos uma
forma definitiva, ou sequer o gérmen de um sistema orgânico com o substractum
da nacionalidade. É indiscutível, porém, que estava menos longe disso que a
República” (Holanda,_2006:420). Sergio Buarque julgava o Segundo Reinado por um
olhar mais benévolo, talvez um vestígio de seu monarquismo de juventude
(Eugênio,_2008).
A interpretação que Sergio Buarque faz do século XIX difere em importantes
aspectos daquelas propostas por Oliveira Vianna e por Gilberto Freyre, embora
dialogue com ambas. O autor está mais próximo de Freyre do ponto de vista da
prescrição de um enlace do Estado à base social e cultural do país, mas não
deixa de observar que a indistinção entre as ordens familiar e pública era
“prejuízo romântico”. Para mais, distancia-se de Freyre ao considerar que a
doutrina liberal foi devidamente absorvida, ou esterilizada, pelo personalismo
e pela cordialidade. Remontava, nesse ponto, ao entendimento de Oliveira Vianna
acerca da prevalência do “clanismo” sobre o “quixotismo”. O desacordo entre
aspirações políticas e condições sociais resolvia-se em favor destas. Já o
acinzentamento que Freyre apontava no liberalismo do Segundo Reinado em sua
conferência de 1925 equivalia à supressão do desregramento social colonial.
Esse abafamento daria a deixa, em Sobrados e Mucambos, para a denúncia do
reordenamento quase total da sociedade brasileira em função de uma modernização
excludente e estetizante (Araújo,_2000). Basta recordar a exclusão dos escravos
das senzalas para os longínquos mucambos, e a estetização embutida nos jardins
de canteiros geométricos.
Com Oliveira Vianna, Sergio Buarque comunga a avaliação de que a ordem política
do Segundo Reinado baseou-se em um ajuste da doutrina às condições locais.
ParaPopulações Meridionais do Brasil, tratara-se de “inegável hipocrisia”; para
Raízes do Brasil, a inexperiência popular ensejara uma “corrupção”. Para Sergio
Buarque, o sentido do ajuste era a acomodação às condições personalistas e
cordiais. Em se tratando do século XIX, Sergio Buarque aparentava dar-se por
satisfeito com um quadro político personalista que resguardasse a cordialidade.
Para Oliveira Vianna, o ajuste era uma burla da burla, ou seja, uma forma de
neutralizar a ilusão liberal e fortalecer o poder central em sua “trituração”
dos clãs políticos de formação imemorial.
A urbanização alterará completamente o equilíbrio alcançado no Segundo Reinado.
As inovações materiais haviam sido introduzidas no país até então de modo
congruente com a “estrutura moral” em vigor e com o “predomínio da casta dos
senhores rurais” (Holanda,_1936:45). O limite dos empreendimentos econômicos
era dado pelo critério de que não “alterassem profundamente a fisionomia” do
país (idem:46). Quando isso de fato ocorreu, com a Abolição, o colapso do
ruralismo levaria consigo o iberismo. O “aniquilamento das raízes ibéricas” da
cultura brasileira era um “lento cataclismo”, e ainda não estava bem delineado
o “americanismo” que tomaria seu lugar (idem:137). Mas as reflexões de Gilberto
Freyre e de Oliveira Vianna teriam pouca valia para Sergio Buarque na busca do
caminho a seguir. Os projetos desses dois autores não suscitam proximidades tão
relevantes, seja na chave da recuperação do equilíbrio de antagonismos (Freyre,
1936b), seja na chave da organização de um aparato estatal corporativo, que
aparece na obra de Oliveira Vianna já antes da publicação deRaízes do Brasil
(Vianna,_1930).
O retorno à ordem personalista, identificada em bom funcionamento no Segundo
Reinado, não era mais possível. “Hoje a obediência como princípio de disciplina
parece uma forma caduca e impraticável, e daí sobretudo a instabilidade
constante de nossa vida social” (Holanda,_1936:15). Para se fundamentar, a
respeitabilidade do Estado teria que buscar elementos estranhos ao “círculo de
virtudes capitais” da gente ibérica. O personalismo podia ser o principal
ameaçado com o debacle da cultura ibérica, mas a cordialidade tampouco oferecia
terreno seguro. Uma alternação final do ângulo de avaliação do ensaio colocava
o elogio da cordialidade sob o signo da dúvida: “Com a cordialidade, a bondade,
não se criam os bons princípios” (idem:156). O personalismo, sozinho, não era
mais suficiente para gerar ordem, e não bastava tampouco depender da
cordialidade. Alguma medida de civilidade tornava-se indispensável, preservado
o núcleo de vida cordial. Parecia improvável encontrar esse elemento normativo
“inato na alma do povo” (idem), que se vê ser justamente a cordialidade.
Restava examinar a viabilidade das tiranias, da oligarquia ou da democracia,
mas essa era outra questão, que Sergio Buarque enfrentaria pelo diálogo com
outros autores. O autor concluía afirmando que cordialidade e civilidade deviam
fazer um contraponto para que algum tipo de estabilidade pudesse ser alcançado.
Em 1926, a “nossa ordem” era um elemento fictício e estrangeiro, próximo ao
campo semântico da decadência civilizacional. Em 1936, ela era substituída pela
“nossa desordem”, a cordialidade, “força criadora” capaz de levar a um “tipo
próprio de cultura” e de renovar os destinos nacionais. Seria preciso organizá-
la sem destruí-la: “ensaiar a organização de nossa desordem”.
CONCLUSÃO
Concatenar as partes da primeira edição de Raízes do Brasil não é tarefa
simples, e menos ainda extrair de sua leitura uma conclusão unívoca. À maneira
ensaística, o autor alterna o ângulo de avaliação sobre a cordialidade. Ela é,
a um tempo, vista como séria barreira à implantação da ordem pública e
celebrada como principal distinção do caráter nacional brasileiro. A
ambiguidade seria eliminada, ou reduzida, nas edições posteriores da obra,
prevalecendo sua avaliação como obstáculo. Essa intervenção no texto
desacostumaria o público leitor à ideia deRaízes do Brasil como um livro que
trata de modo largamente benévolo a herança colonial, e de seu autor como um
intelectual disposto a reconhecer e até a promover o papel da tradição no
equacionamento do dilema nacional brasileiro. Daí, por exemplo, a definição de
Sergio Buarque como um “inimigo do passado” (Carvalho,_1993), a identificação
de uma linha “sempre antitradicionalista” em seus livros (Barbosa,_1988), a
equiparação da cordialidade a “grilhões do passado” (Lamounier,_2006) e a
contextualização de Raízes do Brasil como uma provocativa “denúncia” das raízes
ibéricas “na antessala do Estado Novo” (Costa,_2011). A fixação do argumento do
livro como, desde sempre, um pleito pela ruptura com a tradição tem a
consequência adicional de atribuir retrospectivamente ao jovem Sergio Buarque o
patronato de certa linhagem do pensamento político e social brasileiro, além
levar à errônea indicação de 1936 como um marco no debate entre as correntes
americanista e iberista no Brasil (cf. Werneck_Vianna_e_Perlatto,_2011).
Independentemente da exatidão com que essas caracterizações se apliquem às
edições posteriores de Raízes, o fato é que quadram mal com o círculo de
preocupações do autor naquele ano.
O exame dos diálogos de Sergio Buarque com Oliveira Vianna e com Gilberto
Freyre ajuda a iluminar a oscilação no tratamento da cordialidade. Há encontros
de interpretações em pontos importantes. Com Oliveira Vianna, o autor
compartilhava a visão negativa da cordialidade (ou insolidarismo) como barreira
à implantação do espaço público, e o diagnóstico dos efeitos negativos da
importação de doutrinas políticas desajustadas à realidade nacional. Diferiam
nisto que um pugnava pela transformação dessa realidade pela ação decidida de
um Estado imbuído de uma missão nacional, ao passo que o outro defendia a
preservação do núcleo de vida cordial. Com Gilberto Freyre, Sergio Buarque
compartilhava a visão positiva da cordialidade (aproximadamente, o equilíbrio
de antagonismos) como contribuição brasileira ao mundo. O Brasil oferecia uma
alternativa tropical e calorosa a uma modernização que conduzia alhures ao
egoísmo e ao resfriamento das relações sociais. Um e outro também viam
favoravelmente a impregnação do Estado pelo substrato cultural da sociedade
brasileira. Isso tendia a aproximar o prognóstico do desterro de Sergio Buarque
ao de Gilberto Freyre, mas Sergio Buarque se diferenciaria por considerar que a
revivescência do passado não constituía por si só caminho suficiente para
resolver o impasse político que descrevera.
A edição princeps de Raízes do Brasil inicia-se com uma cifra e conclui-se com
um contraponto. Seu parágrafo de abertura traça os contornos de um dilema cuja
solução só se indica imprecisamente no parágrafo de encerramento. O dilema
compõe-se pela enunciação de um núcleo de vida que deve ser preservado, até
porque legitima o Brasil como nação, mas que requer o complemento de alguma
forma de normatividade que viabilize a vida política nacional. O desterro foi o
resultado de tentativas malogradas de suprimir, ou sublimar, a cordialidade na
busca da estabilização política. Aceitar o país como ele é exige abjurar
crenças desterradas, que implicam em reduzir, negando-a, a desordem à ordem.
Bem posto, o problema era organizar a desordem. Esse oximoro era o modo
adequado de formular a questão e de começar a apontar o modo de equacioná-la. A
solução passava pela correção dos excessos da cordialidade pela civilidade. As
ordens familiar e pública deviam ajustar-se em um contraponto. Com esse fecho,
cujo estudo mais detido é matéria para outro artigo, o livro interpelava a
realidade nacional e dois de seus maiores intérpretes em seus próprios termos.
Desprovido, é verdade, da defesa da democracia que depois o notabilizou, a
pregnância de sua mensagem era, todavia, indiscutível. Isso basta para sugerir
que, no momento em que ganham fôlego as arqueologias de seu texto original, o
status de Raízes do Brasil como um clássico pode começar a ser pensado não só
pelo lado canônico, como também por outros lados.