Os Estados Unidos diante do Brasil e da Argentina: os golpes militares da
década de 1960
O cenário internacional
As relações de Brasil e Argentina com os Estados Unidos suscitam interesse
especial, tanto pela gravitação de ambos os países no cenário econômico e
político latino-americano, como pelo papel decisivo que desempenharam
historicamente nesse cenário os vínculos com as grandes potências.
O estudo de acontecimentos políticos significativos, ocorridos em ambos os
países em épocas e circunstâncias parecidas, pode lançar luz sobre
similaridades e diferenças nos contextos, sobre a meada de interesses internos
que atuaram em períodos cruciais, e sobre a incidência que as prioridades da
política externa norte-americana tiveram nesses episódios. Uma dessas
conjunturas é a que favoreceu o golpe de estado que derrubou João Goulart no
Brasil (1964) e acabou com a presidência de Arturo Illia na Argentina (1966).
No começo da década de 1960, o mundo assistia a uma verdadeira escalada do
conflito bipolar. A Guerra Fria entre as superpotências e seus respectivos
blocos constitui o marco de referência obrigatório para o estudo e a
compreensão das relações econômicas e políticas internacionais da época.
Com a generalização do conflito Leste-Oeste, nenhum lugar do mundo estava fora
da disputa pela primazia mundial que opunha Washington e Moscou. Reativou-se a
velha política de blocos rivais, particularmente pela intervenção militar
norte-americana no sudeste asiático e pelo processo de profundas mudanças
ocorridas a partir da morte de Stálin na URSS; processo que, desembocando no
golpe de estado que em 1964 substituiu o premiê Khruchov pela troika Brezhnev-
Kosygyn-Podgorny, materializar-se-ia em um acelerado movimento expansionista do
gigante soviético. Debaixo da cobertura retórica da "dissuasão" por um lado, e
da "competição pacífica" por outro, ambas as superpotências deram um impulso
dramático à corrida armamentista e nuclear. Durante as duas décadas seguintes o
mundo seria posto várias vezes na extremidade de uma nova guerra mundial, como
foi evidenciado na "crise dos mísseis" em 1962. As relações comerciais e
diplomáticas internacionais adquiriram então uma marcada conotação estratégica.
Outras tendências favoreceram esta característica decisiva do mundo bipolar.
Por um lado, se verificava o crescente papel protagonista dos países do
Terceiro Mundo através do vasto movimento anti-colonialista e anti-imperialista
e pela conformação do Movimento dos Países Não-Alinhados. Por outro, ambos os
blocos estavam experimentando fissuras sérias. A China se separou do bloco
soviético. A Europa e o Japão, completada a reconstrução de suas economias dos
estragos da Segunda Guerra Mundial, se transformavam aceleradamente em novos
centros mundiais do poder econômico e financeiro, dependentes ainda do guarda-
chuva militar dos Estados Unidos e, ao mesmo tempo, aspirantes a uma margem
cada vez maior de autonomia política. Os países da Europa Ocidental
consolidavam sua força econômica pela integração comunitária.
A América Latina constituía um campo particular da rivalidade bipolar. A
persistência de estruturas econômicas atrasadas e a assimetria das suas
relações econômicas com as grandes potências explicam a emergência em vários
países da região, já durante a década anterior, de uma vasta mobilização social
e de propostas políticas contendo maior ou menor viés nacionalista e populista
que questionavam o atraso e a dependência e ofereciam caminhos alternativos na
procura do desenvolvimento econômico e social.
O triunfo da Revolução Cubana de 1959 causou comoção profunda em todo o
ambiente latino-americano. A preocupação principal de Washington na região
passou a ser contrariar a crescente efervescência social enquadrada em uma
gama heterogênea de correntes reformistas ou revolucionárias e as tendências
de alguns de seus governantes em direção ao nacionalismo econômico, fenômenos
que os círculos dirigentes norte-americanos atribuíam linearmente à penetração
soviética e identificavam com a "infiltração comunista".O tema das "ameaças
extra-continentais" dominou, em agosto de 1960, a Conferência da OEA na Costa
Rica.
Frente à convulsionada realidade latino-americana daqueles anos, que a
diplomacia e os serviços de inteligência americanos percebiam como fértil de
ameaças para os interesses mais gerais da superpotência, a política regional do
Presidente Kennedy enfrentou uma estratégia de alcance continental, incluindo o
reformismo preventivo e assistencialista da Aliança para o Progresso (APOP), as
habituais pressões diplomáticas e financeiras, a ação coordenada a partir do
Pentágono dos exércitos "americanos" na luta contra-insurgente, e a via do
intervencionismo armado praticado com o respaldo do intento restaurador dos
exilados cubanos em Playa Girón: métodos, todos, complementares da política
continental de "contenção do comunismo".Depois da morte de Kennedy, durante o
período presidencial de Lyndon Johnson, Washington endureceu sua política
externa, que crescentemente se deslocou no marco doutrinário das "fronteiras
ideológicas" por meio de pactos bilaterais de assistência, "operações" de
golpismo encoberto (Brasil, Argentina) e da intervenção militar unilateral como
em Santo Domingo, que foi logo legitimada com o guarda-chuva "coletivo" de uma
"força interamericana" da OEA. A decisão de invadir Santo Domingo em abril-maio
de 1965 marcou o movimento decidido para a "solução militar", dando assim o
golpe de misericórdia definitivo nos objetivos proclamados que haviam inspirado
a criação da Aliança para o Progresso.
O fracasso da APOP também sofreu o ocaso dos enfoques "sociais"
(desenvolvimentistas) então predominantes nas lideranças políticas latino-
americanas, e o reforço nos Estados Unidos das tendências propensas para a
solução repressiva ou militar. Sobre o transfundo da aguda confrontação bipolar
expressa na intensificação da escalada militar norte-americana no Vietnã os
países latino-americanos ficaram completamente presos na Guerra Fria.
A dimensão continental das políticas norte-americanas para os países do Cone
Sul se traduziu em uma generalizada adoção por suas Forças Armadas da doutrina
militar propugnada a partir do National War College, centrada no combate ao
"inimigo interno".Os Exércitos latino-americanos deveriam reforçar sua função
de garantes da ordem econômica e social. A "defesa do mundo ocidental" sob a
coordenação dos E.U. A substituiu o princípio da defesa nacional, cujos
interesses eram identificados com os da potência líder do "mundo livre".
A nova estratégia norte-americana procurava impedir que qualquer potência
estrangeira (isto é, a URSS) pudesse colocar militarmente o pé no "hemisfério"
e combater tanto o estado de crescente insurreição social das massas populares
como as tendências nacionalistas e anti-americanas incluindo todo
"neutralismo" latentes em setores que gravitavam em torno das classes
dirigentes e das Forças Armadas. Esse ambiente poderia abrir uma brecha
favorável ao que a política externa norte-americana entendia como "exploração
comunista" da crise econômica e do descontentamento social2.
Além das suas particularidades nacionais históricas e políticas pode ser
encontrado um substrato comum na incidência notória que a diplomacia e a
inteligência norte-americanas tiveram nos processos que desembocaram nos golpes
de estado de 1964 e 1966 no Brasil e Argentina. Existe um fio condutor que vem
de muito antes, e que evoca o notável paralelismo entre a atitude dos Estados
Unidos frente às respectivas conjunturas políticas em 1945, representadas na
contradição entre o embaixador de Washington, Adolph Berle, e o Presidente
Getúlio Vargas nas vésperas do seu abandono do governo no Brasil, e a que
enfrentou Spruille Braden e Perón nos umbrais da ascensão deste ao governo na
Argentina. A atividade de ambos os embaixadores naquela época se enquadra
igualmente nos objetivos de uma política latino-americana global dos Estados
Unidos. No imediato pós-guerra, essa estratégia buscava centralmente eliminar
todo o resto de influência nazista na região. Enquanto Braden se constituía em
entusiasta promotor da União Democrática e alentava manobras golpistas para
impedir o triunfo de Perón, Berle alentava no Brasil iniciativas similares para
forçar o alijamento de Getúlio Vargas da Presidência; caso este mais
surpreendente, se se tem em conta que Vargas diferentemente dos governos
argentinos tinha envolvido seu país na guerra junto aos Aliados, e que as
pressões norte-americanas sobre a situação brasileira alinharam em defesa de
Vargas setores da esquerda que antes haviam atacado suas simpatias pró-
germânicas.
Mais recentemente e além da heterogeneidade de seus protagonistas internos e
de seus respectivos respaldos internacionais voltaram a ser descobertos
elementos comuns nos processos políticos que desembocaram nas experiências
trágicas das ditaduras militares encabeçadas no Chile pelo General Pinochet em
1973, e na Argentina pelo General Videla em 1976.
O Golpe de Estado de 1964 no Brasil
João Goulart assumiu a presidência, em agosto de 1961, no marco de uma grave
crise institucional, assinalada pela renúncia imprevista de Jânio Quadros e
pela luta aberta entre a maioria dos representantes parlamentares de um lado, e
os ministérios militares do outro, a favor e contra respectivamente da sucessão
constitucional para o vice-presidente Goulart, proveniente do trabalhista PTB.
Essa oposição se resolveria transitoriamente em um acordo precário,
cristalizado na incorporação de uma emenda constitucional que substituía o
regime presidencialista por uma forma de governo parlamentarista.
Goulart ascendia à presidência com o apoio de uma parte da liderança sindical e
de uma corrente nacionalista militar (consolidada durante o período varguista),
tendo como centro o poderoso Terceiro Exército com base no estado do Rio
Grande do Sul, governado então pelo cunhado de Goulart, Leonel Brizola cuja
cabeça era seu ex-companheiro de chapa em 1960, Marechal Teixeira Lott. Sua
figura era fortemente questionada por setores politicamente conservadores do
espectro social e militar que denunciavam suas vinculações comunistas.
Representantes da alta oficialidade militar conspiraram abertamente contra ele
e se mobilizaram em procura de respaldo civil desde o momento mesmo de sua
ascensão. A CIA estava muito bem informada disto3.
A partir do governo e sobre o transfundo de uma situação social aquecida pelas
crescentes reclamações operárias e dos agricultores organizados nas Ligas
Camponesas do Nordeste, Goulart avançou no seu controle do Exército mediante a
manipulação do sistema de promoções, e logrou restabelecer o regime
presidencialista, por meio de um plebiscito no qual foi derrotado o
parlamentarismo instituído anteriormente contra ele pelo Congresso. Assim,
gestou a base política a partir da qual pôs em prática um programa reformista e
nacionalista que tinha como uma das figuras proeminentes o economista
"cepalino" Celso Furtado, colocado à frente de uma entidade estatal de
Planejamento que tinha entre seus objetivos a reforma agrária.
Empurrado pela radicalização social então em ascensão em todo o ambiente
latino-americano e buscando assentar o desenvolvimento sócio-econômico
brasileiro em uma mobilização ativa dos recursos humanos e de capital do país,
deu impulso à reforma eleitoral que daria o voto aos analfabetos ameaçando
com isto o poderio parlamentar da bancada "ruralista" e aprovou a
expropriação de várias empresas norte-americanas, entre as de maior destaque a
Companhia de Energia Elétrica Rio-Grandense em Porto Alegre, filial da holding
AMFORP, e a Companhia Telefônica Nacional, subsidiária do monopólio das
telecomunicações ITT.
Seu programa político-econômico não implicava novidade: inscrevia-se na
corrente mundial dos movimentos nacionalistas-reformistas que buscavam colocar
em prática as aspirações nacionais de desenvolvimento e independência, e que
desde fins dos anos 1950 se encarnavam em países como o Egito, Irã e Iraque.
Corrente que, na esfera mundial, começava a incitar o interesse político da
estratégia soviética, na medida em que essas aspirações reformistas e
independentistas afetaram os interesses das potências "ocidentais" rivais.
O novo presidente do Brasil não era um revolucionário. "Goulart, com seu
background de latifundiário, estava longe de ser o protótipo de um esquerdista
radical" define em suas memórias quem era embaixador de Goulart nos Estados
Unidos, Roberto Campos. "Mas estava sendo empurrado para a radicalização na
perigosa esperança de cavalgar o tigre sem ser comido por ele"4.
Em consonância com sua política interior e no contexto internacional da Guerra
Fria, Goulart continuou fundamentando as relações do Brasil nos princípios da
Política Externa Independente (PEI), formulados durante a breve presidência de
seu predecessor Jânio Quadros. A PEI, coerentemente representada pelo Chanceler
San Tiago Dantas, aspirava melhorar a inserção brasileira no cenário político e
econômico internacional mediante a promoção da paz mundial, a coexistência
pacífica entre as superpotências e o desarmamento, assim como a defesa dos
princípios de autodeterminação e não-intervenção. Procurava intensificar as
relações comerciais com todas as nações, incluindo as do bloco soviético, e
aumentar o mercado externo para os produtos primários brasileiros. Em crescente
contradição com a orientação que impregnava a política americana da Aliança
para o Progresso, desejava também ampliar a margem de autonomia tanto na
formulação de planos de desenvolvimento como na aplicação de toda ajuda
externa.
Com esses objetivos, a diplomacia brasileira postulava a transformação das
estruturas econômicas internacionais e sustentava a idéia de uma frente unida
das nações periféricas em defesa do desenvolvimento5.
Essas orientações suscitaram uma forte resistência interna. No começo de 1962,
setores representativos dos grandes fazendeiros e da concentrada indústria
estrangeira e nacional brasileira setores que estavam na base das variadas
organizações anti-comunistas da direita social e política brasileira fundadas
havia apenas dois anos assim como grupos minoritários da oficialidade e das
mais altas hierarquias da Igreja, eram já partidários de dar um corte
contundente golpista no nó-górdio que delineava a ascensão da mobilização
operária e camponesa e do nacionalismo reformista e de caráter anti-
imperialista na linha Quadros-Goulart. Em tudo aquilo viam uma ameaça direta
aos seus interesses setoriais. Em razão do apoio popular considerável do qual
gozava Goulart, esses setores da liderança social e política buscaram
"convencer" o embaixador americano Lincoln Gordon de que os Estados Unidos
apoiavam tal tipo de "saída".
Apesar das múltiplas prevenções que o Departamento de Estado tinha em relação
aos antecedentes e ao programa político de Goulart, Washington adotou de início
uma política de "cooperação cautelosa"6. Gordon pensava, então, que a linha de
ação conveniente ainda não era a derrubada do governo; pelo contrário, a única
alternativa acreditava era fortalecê-lo. Em consonância com os funcionários
da inteligência de Washington calculava que, embora Goulart continuasse
enfatizando o caráter independente de sua política externa, a necessidade da
ajuda financeira americana e outras considerações de política interna o
tornariam "menos truculento em relação aos Estados Unidos do que havia sido a
administração Quadros"7. Assim, a diplomacia norte-americana não atribuiu
publicamente ao presidente, mas ao seu Chanceler San Tiago Dantas, a
responsabilidade pela decisão de reatar as relações diplomáticas com a URSS
(novembro de 1961) e pela oposição brasileira às sanções iniciadas por
Washington contra Cuba na Conferência da OEA de Punta del Este (janeiro de
1962). A posição brasileira nessa Conferência pôs o governo de Kennedy diante
de uma disjuntiva: o embaixador norte-americano perante a OEA, deLesseps
Morrison, era a favor de forçar Brasília a aprovar as sanções; por outro lado,
o grupo de conselheiros que incluíam Rostow, Goodwin e Schlesinger temia que a
tentativa de impor ao Brasil tal "acordo" podia levar à fratura da OEA e ao
reforço das posições anti-americanas mais radicais no próprio Brasil. Esta
posição se impunha transitoriamente. Afinal de contas, o Brasil era mais
importante do que Cuba8.
Contudo, Washington não podia admitir outra Cuba, menos ainda uma de dimensões
continentais como o Brasil, o país mais povoado e economicamente mais
importante da América do Sul.
O ano de 1962 marca um ponto de inflexão na política norte-americana em relação
ao governo de Goulart. Sob a pressão dos setores conservadores internos, dos
interesses norte-americanos afetados pelas expropriações e dos "duros" do
Departamento de Estado preocupados com o rumo da política externa brasileira,
os Estados Unidos através da CIA e da própria Embaixada modificariam sua
posição vacilante, passando a colaborar ativamente com grupos anti-Goulart como
o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais) e o IBAD (Instituto
Brasileiro para a Ação Democrática)9, financiando seu equipamento e propaganda.
Este respaldo esteve incluso no transfundo da criação de organizações
camponesas auspiciadas pela Igreja brasileira, com o fim declarado de contrapô-
las às Ligas Camponesas encabeçadas por Francisco Julião no Nordeste e à
potencial influência da fração recentemente separada do pró-soviético PC
Brasileiro que constituiria o PC do Brasil, uma organização que buscava fincar
raízes no campesinato pobre do país.
Em março de 1962, as autoridades norte-americanas aprovaram um acordo de
assistência financeira negociado pelo FMI com San Tiago Dantas, mas advertiram
que todo novo aporte estava sujeito a aplicação em um duro programa de
estabilização. O governo norte-americano passou a usar recorrentemente a "arma"
financeira para condicionar e forçar a modificação das políticas de Goulart. No
curso do mesmo ano, o FMI bloqueou os fundos compensatórios acordados com
Dantas, reduzindo de 100 para 60 milhões de dólares o empréstimo concedido.
Depois, na ocasião em que se suspendia toda a assistência ao governo federal, o
governo norte-americano passou a negociar a concessão de fundos diretamente com
os governadores estaduais da oposição (particularmente o que encabeçava na
Guanabara o conservador Carlos Lacerda) e condicionou o refinanciamento da
volumosa dívida externa brasileira à prévia satisfação dos credores europeus,
cuja parte era em conjunto maior do que a dos Estados Unidos da América -EUA. O
começo dessas negociações aconteceria em Paris em março de 1964, pouco antes da
derrubada de Goulart.
As pressões americanas não foram alheias à renúncia de Dantas como Ministro das
Relações Exteriores, nem à rejeição parlamentar à sua designação como primeiro
ministro em meados de 1962, pouco depois da visita em abril de Goulart e seu
chanceler aos Estados Unidos para a concretização de um pacote de assistência
da APOP destinado ao empobrecido Nordeste brasileiro. Praticamente de forma
simultânea com a assinatura desse acordo, o Departamento de Estado lançou uma
campanha de agitação da opinião pública, focalizando o fracasso de Goulart
frente à grave crise econômica que abalava o Brasil com inflação, salários
estatais não pagos, escassez de alimentos, desemprego, migração da população
rural para as cidades, invasões camponesas de fazendas, greves e dificuldades
financeiras.
Um marco novo do intervencionismo norte-americano na política interna do Brasil
foi as eleições parlamentares e estatuais de outubro de 1962, decisivas porque
nelas se renovariam a totalidade dos Deputados, dois terços da bancada do
Senado e metade dos governos. O modelo de "ingerência" desenvolvido ali seria
usado novamente nas eleições presidenciais do Chile em 1964. O núcleo de tal
"modelo" não era outro que a hoje comumente chamada "desestabilização"
política. O embaixador Gordon admitiria mais tarde que os Estados Unidos
investiram aproximadamente cinco milhões de dólares na missão de torcer a
vontade eleitoral de parte significativa da cidadania brasileira (outras fontes
calculam entre 12 e 20 milhões de dólares), em sua maior parte, proporcionados
pela CIA e canalizados através do First National Bank of New York e do Royal
Bank of Canadá. Paralelamente, o próprio Presidente Kennedy tomou a decisão de
usar fundos da agência oficial de assistência USAID para a construção de obras
públicas que ajudaram a criar uma imagem favorável aos candidatos aos governos
estaduais contrários a Goulart10.
Como o Embaixador Gordon previa no final de 1961, as urgências financeiras e os
condicionamentos políticos assinalaram a mudança de orientação que produziria a
designação de Araújo Castro para o comando das Relações Exteriores do Brasil em
agosto de 1963. Os modelos do novo ministério alterariam sensivelmente a
Política Externa Independente, considerando (em favor da "emulação pacífica"
proclamada pela liderança do Kremlin) já obsoleta a bipolarização do sistema de
poder mundial, abandonando em conseqüência a linha de "negociação neutralista"
e acentuando o perfil desenvolvimentista dos novos parâmetros da política
exterior. No plano interno, isso correspondia aos contornos essencialmente
"ortodoxos" da estabilização econômica promovida pelo Plano Trienal (1963-65),
elaborado pelo ministro de Desenvolvimento Econômico, Celso Furtado11.
Paralelamente, a diplomacia norte-americana encorajava manobras objetivamente
golpistas de dentro mesmo do governo: assaltando a autoridade presidencial,
Araújo Castro determinou pela iniciativa do General Castelo Branco e por meio
de uma simples troca de notas com o encarregado de negócios da Embaixada
Americana a revalidação do Acordo Militar bilateral de 1952. O pacto de 1952
atribuía ao exército norte-americano direitos exclusivos para colaborar na
organização e operação da Escola Superior de Guerra, segundo o modelo do
National War College de Washington12. Na prática, sua revalidação proporcionava
uma base legal para uma potencial intervenção armada no Brasil com o pretexto
de reprimir a "agressão comunista".
Não obstante, as relações econômicas internacionais do Brasil seguiram tendo
como um dos pilares de seu "poder de negociação" o intercâmbio com os países do
Leste: em abril de 1963 um acordo comercial tinha sido assinado com a URSS que
previa a triplicação do comércio bilateral, de US$ 70 milhões em 1962, para US$
220 milhões em 196513.
Na medida em que as políticas de Goulart afetavam os interesses norte-
americanos, a diplomacia e os organismos americanos de assistência
intensificaram sua campanha de desprestígio, caracterizando o governo
brasileiro como "inepto", especialmente por não subscrever as medidas de "auto-
ajuda" prescritas pela APOP e pelos programas de estabilização sugeridos pelo
Banco Mundial e pelo FMI. A acusação era que ele era oportunista e interessado
em tirar vantagens políticas do descontentamento econômico e social resultante
da recessão econômica e do soterrado sentimento nacionalista existente14.
Quando, em meados de 1963, Goulart ensaiou mediante a reativação de uma lei
de remessas de lucros que afetava o capital estrangeiro meios de resistência
ante a ofensiva golpista preparada por Washington, a Casa Branca fez chegar a
Embaixada Norte-Americana em Brasília orientações com um claro sentido de
advertência (válido também para a Argentina, transcorrido pouco mais de um mês
após a questionada vitória da União Cívica Radical do Povo UCRP nas urnas e
faltando dois meses para a ascensão de Illia). A diplomacia americana devia
enfatizar, "tanto mediante a palavra como mediante a ação", que os Estados
Unidos "favorecem a reforma social e econômica e o desenvolvimento tão
fortemente quanto a estabilidade financeira e a proteção do investimento
estrangeiro"15. Os objetivos do Departamento de Estado se fizeram cada vez mais
explícitos: "Promover e fortalecer em todos os setores da vida brasileira
forças democraticamente orientadas que possam conter os excessos não
democráticos ou anti-democráticos de Goulart ou de seus partidários
esquerdistas ou ultranacionalistas... e facilitar a sucessão mais favorável
possível caso uma crise do regime leve à remoção de Goulart, e em todo caso nas
eleições de 1965"16.
O populismo de Goulart recebia, então, pressões de dois flancos. De um lado, os
Estados Unidos questionavam cada vez mais suas atitudes (incluindo sua
legitimidade) e pressionavam para que o Brasil abandonasse as iniciativas de
reforma agrária e as expropriações, principalmente da AMFORP e ITT. De outro, a
mobilização crescente das massas operárias e camponesas que motorizava a
crítica desde a esquerda interna, passando pela tendência oficial, até a
conciliação por parte de setores nacionalistas e reformistas como o governador
do Rio, Leonel Brizola17 .
Até o final de 1963, o Departamento de Estado sistematizou sua ingerência na
situação interna brasileira para provocar a derrubada de Goulart. Segundo o
embaixador Gordon, a preocupação norte-americana era que o "autoritarismo
esquerdista" de Goulart pudesse provocar "um golpe mais radical e provavelmente
dirigido pelos comunistas contra Goulart"18 . Também para o diplomata Roberto
Campos, a deterioração da situação no Brasil abria a possibilidade não de uma,
mas de duas reações militares: uma contra Goulart e outra a seu favor, abrindo
um rumo de guerra civil de derivações imprevisíveis e com um potencial "efeito
dominó" em outros países da América Latina19 .
Realista ou não, esta perspectiva precipitou uma sucessão de ações da
diplomacia e da inteligência norte-americanas dirigidas a acelerar e orientar a
solução golpista. Pontos decisivos neste rumo foram a designação como agregado
militar da Embaixada em Brasília do General Vernon Walters, velho amigo pessoal
do Marechal Humberto Castelo Branco, e o envio do emissário da CIA, Dan
Mitrione, que recebeu como encargo a organização do contrabando de armas
destinadas à formação de grupos paramilitares golpistas20 . O então Coronel
Walters tinha antigos vínculos com os oficiais brasileiros que haviam feito
parte do destacamento que lutou junto com colegas norte-americanos na Segunda
Guerra Mundial. Embora posteriormente descartou de forma reiterada que os
Estados Unidos e ele pessoalmente não tinham tido nenhuma participação na
gestação do golpe de 31 de março de 1964, são em umerosos os indícios de que
tal interpretação não é em absoluto infundada. O mesmo Roberto Campos admite,
embora indiretamente e responsabilizando pelo golpe principalmente o próprio
Goulart, que "parecia estranho que Walters houvesse, em telegrama de 27 de
março ao Departamento de Estado, adivinhado até a própria data do levante"21 .
O próprio Vernon Walters, em entrevista concedida no começo de setembro de
1999, frente à acusação de haver apoiado o golpe de Castelo Branco, esboça uma
resposta evasiva que releva uma admissão implícita: "Que conselho eu poderia
haver dado aos militares brasileiros, que nessa época já haviam derrubado dois
presidentes? interroga por sua vez ao entrevistador Eles não necessitavam
do meu apoio... O que é preciso compreender é que naquela época, na América
Latina, os militares eram vistos como 'garantia da ordem e da Constituição'"22
.
Os Estados Unidos utilizaram também sistematicamente os Programas de
Assistência Militar (MAP) como instrumento de penetração política e ideológica
nos estamentos militares. O Jornal do Brasil publicou, em dezembro de 1976, um
telegrama confidencial de 4 de março de 1964, enviado pelo embaixador Lincoln
Gordon ao Subsecretário de Estado Thomas Mann, no qual se dizia: "Nosso MAP é
um fator altamente influente na adoção pelos militares [brasileiros] de uma
atitude pró-E.U.A e pró-Ocidente... Como conseqüência do treinamento e
aprovisionamento de material, o Programa de Assistência Militar se torna um
veículo essencial no estabelecimento de uma estreita relação com os oficiais
das Forças Armadas"23 . O mesmo documento qualifica os militares brasileiros
como "um fator essencial na estratégia de conter os excessos esquerdistas do
governo de Goulart...". E agrega sugestivamente: "As Forças Armadas não só têm
capacidade para suprimir possíveis desordens internas, mas também para servir
como moderadores nos assuntos políticos brasileiros...".
Finalmente, o governo norte-americano acompanhou o movimento militar com a
montagem da chamada "Operação Brother Sam", que incluiu a mobilização de uma
força naval da sede do Comando Sul Norte-Americano no Panamá, para um apoio
armado potencial para o levante. Uma comunicação ultra-secreta enviada pela
embaixada norte-americana no Rio de Janeiro para o Estado Maior Conjunto nos
primeiros dias de abril poucas horas depois de realizado o golpe aludia a
um fardo de 110 toneladas de armas e munição, que permanecia pendente de uma
determinação do Embaixador Gordon sobre a necessidade de um eventual apoio
norte-americano em favor das forças militares brasileiras; segundo o mesmo
documento, uma força de tarefas de transporte continuava sua marcha para o
Atlântico Sul até onde houvesse certeza definitiva de que não seria necessário
"uma demonstração de poderio naval"24 . O próprio Embaixador Gordon reconheceu
muito mais tarde a paternidade da idéia da "Operação"25 . Mas não havia
resistência organizada: a "Operação Brother Sam" foi suspendida.
Gordon saudou com entusiasmo a queda de Goulart em 1º de abril, declarando,
antes de transcorrido um mês, que isto daria ao Brasil uma nova oportunidade
para realizar os ideais da Aliança para o Progresso. No começo de maio, em um
discurso na Escola Superior de Guerra do Rio de Janeiro, exaltou a "revolução",
equiparando-a, entre os marcos decisivos da história mundial de meados do
século de XX, com o Plano Marshall e a resolução da crise dos mísseis em Cuba26
. Existe, ademais, transcrição de um diálogo entre o Presidente Johnson e o
Secretário de Estado Adjunto para Assuntos Interamericanos Thomas Mann, na
sexta-feira, dia 3 de abril de 1964, três dias após o golpe. "Mann: Espero que
V. Exa. esteja tão feliz em relação ao Brasil como estou eu. LBJ: Estou. Mann:
Penso que é o mais importante que ocorreu no hemisfério em três anos"27 .
Lincoln Gordon continuaria em suas funções de embaixador até princípios de
1966, quando foi promovido a Secretário de Estado Adjunto para Assuntos
Interamericanos.
Consumado o golpe de estado, Washington reconheceu o novo governo provisório em
menos de 24 horas. O que se seguiu, no que concerne às relações bilaterais, é
motivo de outro estudo. Mas o que é preciso assinalar na medida em que
constituiu um antecedente para a atitude que assumiria a diplomacia norte-
americana frente aos preparativos golpistas na Argentina dois anos mais tarde
é a hoje notória heterogeneidade da coalizão convergente no movimento militar
de 1964.
Os líderes de Washington se sentiram exultantes com a substituição de Goulart
por um comando militar que era encabeçado por seu "homem de confiança", o
Marechal Humberto Castelo Branco. Depois de apenas três meses de ter sido
investido, a CIA estimava que a "revolução" que havia derrubado Goulart
constituía "um sério retrocesso para os interesses soviéticos" e que o novo
Presidente havia logrado conjurar "as grandes ameaças à estabilidade política",
elogiando sua "firme, responsável e executiva liderança"28 .
Mas nem mesmo Castelo Branco seria um aliado incondicional das políticas
liberais recomendados pelos organismos financeiros internacionais, nem dos
contornos que o Departamento de Estado promovia na política externa dos Estados
latino-americanos. As políticas da ditadura militar em particular as
iniciativas de planejamento econômico, um projeto frustrado de reforma agrária
promovido pelo ministro Roberto Campos e a rejeição ao "alinhamento automático"
com Washington nos organismos multilaterais proporcionariam pelo menos
incerteza nos círculos decisórios da política externa dos Estados Unidos. É
possível que, apesar da conhecida penetração dos seus serviços de inteligência,
estes não estivessem suficientemente prevenidos a respeito da diversidade de
tendências que a frente golpista levava escondidas e que iriam se impor com
particular dureza repressiva em uma "segunda volta" com a ascensão do Marechal
Arthur da Costa e Silva em 1966.
O Brasil, alinhado com os EUA na 2ª Guerra Mundial, havia participado nela com
um contingente militar. Castelo Branco havia sido seu chefe de operações. A
respeito de Costa e Silva, um documento da Biblioteca LBJ afirma que, embora
amigo dos Estados Unidos, por não ter servido naquela Força Expedicionária,
carecia do "profundo sentimento de camaradagem que os militares norte-
americanos tinham desenvolvido com muitos dos colegas oficiais [brasileiros]"29
.
Para alguns autores, o golpe militar de 1964 não implicou uma virada de 180
graus na política externa do país. Amado Cervo interpreta a "correção
diplomática" de 1964 apenas como "um passo fora de cadência". Para este autor,
o governo militar retornaria em curto tempo para as tendências nacionalistas da
política externa brasileira e, além disso, muitos dos postulados da PEI seriam
retomados pela diplomacia militar nos anos 1970 com o chamado "pragmatismo
responsável". De sua parte, Vargas García critica a interpretação que deriva
unilateralmente o pensamento "geopolítico" dos militares brasileiros
(especialmente o de Golbery do Couto e Silva) da influência doutrinária norte-
americana, enfatizando que a vitória da heterogênea frente golpista significou
a ascensão ao poder de segmentos militares nacionalistas, emergentes em
essência de uma dinâmica política interna própria, que se negou incluindo
durante o período inicial de Castelo Branco a praticar o "alinhamento
automático" às prioridades dos Estados Unidos, e que culminaria na fase Geisel
com o rompimento do Acordo Militar de 195230 .
Claro que já então, antecipando o segundo qüinqüênio da década, o cenário
internacional compreenderia profundas transformações, com o debilitamento
relativo dos EUA golpeado militar e politicamente pela sua derrota que se
apresentava inevitável no Vietnã e pela ascensão do movimento dos países do
Terceiro Mundo, assim como pelo sinal negativo de sua balança de pagamentos e
com o surgimento de novos pólos econômicos competidores (Comunidade Econômica
Européia e Japão) e a rivalidade crescente com a superpotência soviética no
mundo inteiro.
Durante o longo período de quase duas décadas em que governaram Costa e Silva,
Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, as tendências nacionalistas nas Forças
Armadas, os sempre presentes vínculos de setores empresariais e castrenses com
interesses econômicos ligados às grandes potências européias e o renascimento
da mobilização estudantil, camponesa e operária, gerariam contradições ainda
maiores que as que os Estados Unidos tinham desejado eliminar com a derrubada
de Goulart.
O Golpe de Estado de 1966 na Argentina
A política norte-americana para o governo de Arturo Illia era muito mais
prudente do que a praticada em relação ao presidente brasileiro Goulart. A
Embaixada norte-americana em Buenos Aires se manteve em uma posição "legalista"
ainda no marco do endurecimento da política externa americana, depois da
ascensão de Johnson. Continuou assim até que ficou aparente que o golpe de
estado era irreversível. Isto tem importância já que o Departamento de Estado
estava perfeitamente informado da existência de setores militares opostos aos
contornos programáticos de Illia e na procura de uma oportunidade para provocar
uma "intervenção" militar desde muito cedo, até mesmo antes da ascensão à
presidência por este em outubro de 196331 . A atitude contemporizadora do
governo norte-americano, de todos os modos, não implicava abandono da política
de pressões e advertências mais ou menos veladas que incidiam na situação
interna da Argentina. Em meados do ano seguinte, o Secretário de Estado
comunicava ao embaixador em Buenos Aires: "Estamos certamente conscientes das
pressões políticas sobre Illia e do risco de golpe, independentemente do que se
faça a respeito do problema do petróleo. Nossa preocupação aumenta agregava
Dean Rusk, com apenas dissimulada carga de ameaça pelo fracasso evidente do
governo argentino em compreender que há certa conexão entre um acordo sobre o
problema do petróleo e sua necessidade manifesta de investimentos privados e de
assistência financeira e econômica estrangeira."32
Embora o próprio Goulart não fosse de nenhuma maneira um revolucionário, Illia
estava muito longe de sustentar um programa de reformas sociais e de política
externa que o aproximasse de um Goulart. Só o aumento acelerado da temperatura
mundial no marco da Guerra Fria podia acender em tal medida as prevenções do
Departamento de Estado a respeito do caráter do governo radical.
A corrida de Illia para os comícios de julho de 1963 se desenvolveu em um clima
político interno marcado pela proscrição do peronismo e de seu líder, pelo que
a UCR do Povo obteve a primeira minoria e a nomeação de seu candidato no
Colégio Eleitoral com apenas 25% dos votos. Este fato questionava a
legitimidade da vitória eleitoral: esta "porcentagem de origem" constituiria um
"cavalo de batalha" permanente da oposição política e, especialmente, dos
setores internos e externos que já desde 1964 começaram a tecer a trama do
golpe de estado. O novo presidente acederia à Casa Rosada hostilizado pela
oposição sistemática da liderança sindical e da maioria parlamentar peronista e
condicionado pela coexistência de contraditórias tendências conservadoras e
populistas dentro do próprio radicalismo. Sua base de apoio se limitava ao
setor militar "Colorado", que tinha sido derrotado nas confrontações de 1962.
Ao mesmo tempo, as formulações programáticas dos radicais do povo se
enquadravam nos limites básicos herdados da intransigência radical e alentados
por um transfundo internacional marcado pelas propostas econômicas
nacionalistas em voga em muitos países do Terceiro Mundo, orientações que se
manifestaram através de certa resistência às imposições do FMI, da concepção de
um Estado inclinado ao controle e a planificação da economia, assim como para a
atenção prioritária para o mercado interno; e, principalmente, na decisão de
denunciar e anular os contratos de petróleo firmados pelo presidente Frondizi.
O governo dos EUA conhecia com muita antecipação posto que havia sido
proclamada abertamente durante a campanha eleitoral a posição do radicalismo
a favor de anular os contratos. Talvez acreditasse que, com a debilidade
política com que chegava ao poder o governo radical, seria fácil persuadi-lo a
não colocá-la em prática.
Os contratos petroleiros de exploração com as companhias estrangeiras, nove das
quais eram norte-americanas33, foram rescindidos argumentando-se "vícios de
forma"; eram questionados por não terem sido debatidos pelo Congresso nem
acordados por licitação. A reação da diplomacia norte-americana ante o fato
consumado fez eco com o desgosto das empresas americanas afetadas pela medida;
porém, não foi tão violenta quanto podia esperar-se, mas bastante
contemporizadora e disposta a promover entendimentos diretos entre as
companhias e o governo argentino a fim de alcançar uma renegociação dos
convênios ou, na pior das hipóteses, a compensação justa pela rescisão dos
mesmos.
Durante o curso dos entendimentos, ainda quando a posição da representação
argentina encabeçada pelo ministro da Economia Eugênio Blanco e pelo
presidente de YPF Facundo Suárez era a favor não da renegociação, mas de um
novo chamado para licitação aberta e em condições competitivas, as companhias
americanas continuaram produzindo, a requerimento do governo argentino, de
acordo com a base contratual anterior: o presidente Illia não era em absoluto
inimigo do capital estrangeiro e se ocupou pessoalmente de destacar, ante o
embaixador norte-americano, que os contratos do petróleo e da eletricidade eram
casos especiais34 . O governo buscava uma solução capaz de conciliar, por um
lado, a continuidade da exploração petrolífera e de outro, suas promessas pré-
eleitorais. Depois de uma longa conversa privada com o presidente, o embaixador
McClintock recomendou ao Departamento de Estado adotar uma política de "baixo
perfil": dar a Illia a palavra e deixá-lo que enfrentasse o embate
nacionalista; o funcionário opinava que as empresas não tiveram motivo para
temer uma expropriação em favor da YPF, como haviam ameaçado os procuradores do
governo argentino no começo de maio35 .
Porém, a administração Kennedy não aceitou as disposições do governo argentino
e utilizou a política assistencialista no marco da Aliança para o Progresso
como um ariete orientado a dobrar suas limitadas aspirações autonomistas: "Um
objetivo importante dos Estados Unidos se logrou com o retorno da Argentina ao
regime democrático. O cumprimento de nosso objetivo atual requererá paciência e
perseverança enquanto a nova administração segue provando parte de suas
duvidosas teorias econômicas, e aprende a aceitar a necessidade da cooperação
econômica internacional. Neste período de transição, o programa dos Estados
Unidos será seletivo, apoiando setores ou metas específicas, mas sem dar
respaldo geral ao governo central." E se agregava: "Se o governo argentino
fracassa em dar os passos adequados para adotar e implementar as políticas
mencionadas, a assistência da AID se limitará a atividades muito seletas... A
AID enfatizará os préstimos para atividades com um alto componente de
intercâmbio exterior, e evitará financiar projetos que teriam o efeito de
prover apoio ao governo central"36 .
A diplomacia americana acusou reiteradamente o governo argentino por atitudes e
posturas que caricaturava de "nacionalismo extremo", "chauvinismo" e,
inclusive, "esquerdismo". Da mesma forma que com Goulart no Brasil, utilizou a
arma da assistência financeira na procura de torcer o rumo das políticas
governamentais, embora "com este governo chauvinista concluía antes de
cumprido meio ano de governo radical parece duvidoso que a ameaça de negar
assistência americana possa ter algum efeito"37 . Se a política do Departamento
de Estado não foi ainda mais a fundo nesta direção, foi por temor da situação
de virtual "ingovernabilidade" que a mesma podia desencadear em um marco de
crescente agitação social: "Nosso temor não é que o corte de ajuda seja
inefetivo do ponto de vista econômico, mas que possa contribuir para a
instabilidade política"38 .
Os documentos diplomáticos norte-americanos mostram a acentuada inquietude do
Departamento de Estado pela persistência da crise econômica crescente
endividamento externo, apesar das boas colheitas e do elevado nível de
reservas, inflação39 e pela instabilidade social e política atiçada por uma
série de greves salariais espontâneas, pelo Plano de Luta da CGT vandorista de
meados de 1964 e pelo preconizado "Operativo Retorno" do General Perón, de fins
daquele ano, incluindo também a descoberta de acampamentos guerrilheiros no
interior do país40 que os formuladores da política externa de Washington viam
como indícios de crescente agitação subversiva e de penetração soviética no
país.
Nesta altura consideraram ainda favoráveis as perspectivas do governo argentino
("A possibilidade de uma insurreição peronista ou comunista é remota") e, ainda
sentindo-se incomodados pelas recorrentes atitudes nacionalistas do governo,
insinuavam um tom auto-crítico em relação à política norte-americana de
pressões. Caracterizaram o governo como inclinado a uma crescente participação
estatal na economia, pouco afeto ao investimento privado estrangeiro,
partidário da "colaboração econômica" mais que da "ajuda" e firmemente oposto à
intrusão dos Estados Unidos nos mercados comerciais argentinos, mas atribuíram
parcialmente essas atitudes "às condições anexas a nossa assistência,
consideradas gravosas e inaceitáveis"41 .
Os diplomatas norte-americanos diferenciavam claramente as tendências internas
existentes no partido e na equipe de governo, traçando uma linha divisória
entre os "extremistas", liderados pelo vice-presidente Perette, e os
"moderados", encabeçados pelo presidente Illia. Concluíam que a perspectiva era
de predomínio dos "moderados", o que consideravam relativamente favorável aos
interesses dos Estados Unidos42 . Em fins de 1965, quando os rumores de golpe
de Estado já se haviam tornado insistentes, um cabograma da embaixada em Buenos
Aires (26/11/65) destacava os dirigentes radicais Pugliese e Mor Roig como
"elementos de dentro da UCRP com os quais podemos trabalhar". De qualquer
maneira, a questão dos contratos de petróleo seguiu enervando as relações, até
mesmo com este último setor. No final de junho de 1964, o secretário de Estado
comunicava a embaixada em Buenos Aires que as conversações do Sub-Secretário
Thomas Mann com o ministro da Defesa Leopoldo Suárez "não dão espaço para
otimismo, embora ele tenha sido descrito como um dos 'moderados'"43 . Suárez
tinha ratificado o caráter definitivo da anulação dos convênios e que não se
devia falar em renegociação mas em licitação aberta.
As autoridades norte-americanas também seguiam de perto a evolução do estado de
ânimo militar. Em meados de 1964, consideraram ainda predominantes, neste
ambiente militar, as tendências "legalistas" e partidárias de que as Forças
Armadas permanecessem alheias "à política": "A perspectiva atual é que o
governo completará seu mandato de 6 anos." Porém, ao mesmo tempo, deixavam
claramente aberta a possibilidade de uma solução não institucional da crise
econômica e política, ao assinalar que os comandos castrenses somente
removeriam o governo "se o requeresse o interesse nacional"44 . Pouco depois
em agosto aconteceria o memorável discurso do Comandante em Chefe do
Exército, General Onganía, na V Conferência de Exércitos americanos em West
Point, em que, recorrendo a nova doutrina norte-americana da "segurança
nacional", condicionava a postura apolítica das Forças Armadas e seu respaldo
ao regime constitucional ao direito de derrubar um governo que elas
consideravam despótico, e promovia a integração do Exército argentino dentro do
sistema militar interamericano sob a égide do Pentágono, que pressionava para
converter as Forças Armadas do continente em pilares contra o inimigo interno45
. Um ano mais tarde, avançaria ainda mais em suas formulações doutrinárias,
propondo perante o General Costa e Silva, ministro de Guerra do presidente
brasileiro de fato, Castelo Branco, a coordenação dos Exércitos argentino e
brasileiro como núcleo de uma força interamericana para a luta anti-
subversiva46 .
Durante a presidência de Illia se somariam novos temas de preocupação para a
condução da política externa norte-americana, alguns no plano econômico, ao
redor de medidas governamentais que afetavam os interesses do capital norte-
americano na Argentina como a Lei de medicamentos que, em 1965, limitou os
lucros dos laboratórios farmacêuticos estrangeiros e outros na área de
política externa, na qual o governo radical esboçou intentos tépidos para
salvaguardar a independência de decisão nacional como sua reticência em
subscrever as sanções a Cuba, em apoiar a guerra norte-americana contra o
Vietnã ou em integrar tropas argentinas na Força interamericana, com a qual os
Estados Unidos aspiravam legitimar sua intervenção na República Dominicana.
As vacilações e ambigüidades do governo argentino neste último caso no marco
da viragem da política externa norte-americana com o presidente Johnson
assentaram o precedente imediato da mudança de atitude americana em relação à
situação argentina. Embora sem comprometer a participação do país, através do
chanceler Zavala Ortiz, a Argentina subscreveu a criação da "Força
Interamericana" da OEA, com o que os Estados Unidos pretendiam dar uma
cobertura multilateral a seu desembarque militar já materializado em fins de
abril, e ainda recorreu aos argumentos americanos que respaldavam a intervenção
aduzindo ao "direito de legítima defesa, individual ou coletiva", frente à
"revolução exportada ou à agressão subversiva"47 . Mas, ao mesmo tempo, os
funcionários argentinos persistiam na defesa do princípio da não intervenção e
no alcance, limitado a esta única circunstância, da formação da Força
Interamericana, ao que os norte-americanos pretendiam dar um caráter permanente
em honra da "segurança continental".
O governo de Illia devia navegar em águas agitadas, em que às pressões
acentuadas da diplomacia norte-americana se somava a posição dos altos comandos
das Forças Armadas, decididamente favorável à participação argentina na força
de intervenção particularmente do Comandante em Chefe do Exército, Onganía;
da Armada, Benigno Varela; e do ministro da Defesa, Avalos48 . A repressão a
intensa mobilização estudantil e popular contra o envio, com grandes
manifestações, deixou como saldo a morte do estudante Daniel Grimbank. Embora,
finalmente, decidiu-se não integrar a força expedicionária (como fizeram o
Brasil e outros cinco países latino-americanos), a argumentação do governo
condicionou sua interpretação do princípio não intervencionista, considerando-
o um "direito não absoluto" e caracterizando a iniciativa da OEA não como uma
intervenção, mas como uma "mediação", e em definitivo debilitou com suas
concessões a firmeza de sua própria posição frente à reivindicação norte-
americana para que a Argentina e o conjunto dos países latino-americanos
favorecessem suas prioridades estratégicas.
Uma ambivalência similar mostrou o presidente Illia a respeito da intervenção
norte-americana no Vietnã. Ao mesmo tempo em que destacava ante o embaixador
Martin sua "compreensão" em relação à presença armada dos Estados Unidos no
sudeste asiático, já que "às vezes é necessário o uso da força para defender-se
das provocações dos agressores", negou qualquer assistência às tropas
americanas além de um certo apoio alimentar e insistiu na necessidade de achar
uma solução para o conflito mediante o diálogo e a mediação de organismos
internacionais, com base no respeito de todos os estados e povos envolvidos49 .
As ambigüidades governamentais frente ao caso dominicano constituíram o pano de
fundo que desembocou no alijamento do General Onganía do Comando em Chefe do
Exército, em fins de 1965. A decisão de derrubar Illia, por parte dos níveis
mais altos do Exército, já estava tomada praticamente vários meses antes e a
inteligência norte-americana tinha completa informação disto. No final de maio,
a CIA informou que o general aposentado, ex-presidente provisório e líder
político, Pedro E. Aramburu, estimava que, "em razão da impotência do atual
governo da Argentina para tomar decisões, chegou o momento de abandonar o
caminho da ação política legal e buscar as mudanças necessárias por meio de um
golpe cívico-militar na linha do golpe brasileiro que destituiu o governo de
Goulart". Aramburu tinha discutido previamente a situação geral do país e suas
possíveis saídas com o Comandante em Chefe Onganía e com o Chefe do Gendarmaria
Julio Alsogaray. Segundo a CIA, Onganía preferia manter-se no terreno da
legalidade, mas a "penosa vacilação" do governo na questão de Santo Domingo
estava "encurtando sua paciência"50 .
Nesses meses, os preparativos para o movimento castrense tornaram-se públicos.
No plano político interno, a prioridade da divisão peronismo-antiperonismo já
tinha sido substituída por outra: a favor ou contra o golpe. Nesta época, a
diplomacia norte-americana começou a virar em direção a uma atitude complacente
para com os preparativos golpistas, mas incluído, então, de um modo elíptico e
apresentando seu consentimento ao movimento castrense em gestação como forçado
pela obsessão do governo em seu "exarcebado nacionalismo" e pela sua impotência
em governar a crise econômica. Mas a vinculação com um setor dos militares
argentinos era sólida. Considerando inevitável o golpe militar, "se segue o
deslocamento para a esquerda e o governo se mostra incapaz de resolver os
problemas sociais e econômicos", o embaixador Edwin Martin enfatizou, em
novembro de 1965, ante seus superiores no Departamento de Estado, que "dentro
dos militares, o General Onganía constitui ainda a figura chave e é essencial
que seja ajudado a continuar como Comandante em Chefe do Exército"51 . A
renúncia de Onganía neste mesmo mês iniciou a contagem regressiva para o golpe
militar52 .
Mas com isto não cessaram as vacilações dos representantes de Washington. A
aproximação de um fim para a situação política argentina precipitava definições
da diplomacia, da inteligência e dos âmbitos parlamentares norte-americanos,
nem sempre coincidentes e não correspondentes linearmente a tradicional
clivagem política entre republicanos e democratas. Aparentemente, as
interpretações divergentes sobre a situação argentina existiam até mesmo dentro
do próprio Departamento de Estado. No começo de abril de 1966, um funcionário
da Direção de Inteligência e Investigações do referido Departamento avaliava
para o Secretário de Estado que, apesar da intensa agitação operária e da óbvia
preocupação militar pela situação econômica, "a intervenção militar não parece
iminente na Argentina". O informe destacava a atitude cautelosa dos militares,
estimando que "não intervirão a menos que as condições econômicas e sociais se
deteriorem até um ponto próximo do 'caos'", embora a situação "no presente
pareça longe disto"53 .
Coincidentemente, o embaixador Martin elogiava ante seus superiores a
estabilidade que via na Argentina e justificava em considerações de política
interna as divergências com os Estados Unidos em questões de política externa
como Vietnã e Santo Domingo. No plano econômico, a situação lhe parecia
"alentadora" sem deixar de chamar a atenção sobre a falta de melhoria nas
relações comerciais argentino-americanas e sobre o avanço do intercâmbio com os
países do bloco soviético e destacava a posição predominante da influência
dos Estados Unidos nas Forças Armadas do país54 .
Todavia, no começo de junho, praticamente nos umbrais do levantamento golpista,
Martin se manifestava "muito confundido sobre o que pode acontecer ao governo
de Illia", destacando a "crescente tranqüilidade e melhor atmosfera" que cria
perceber "para buscar soluções políticas melhores que as militares"55 . Em
clara divergência com as previsões da inteligência norte-americana, Martin
preferia ser otimista a respeito das chances de Illia em assumir a
responsabilidade pela confrontação com os militares.
Porém, os serviços de inteligência americanos já tinham certeza sobre o início
do plano golpista. A CIA já havia informado sobre a mudança de posição do
General Onganía a favor do movimento militar e até mesmo adiantava uma data
possível entre os dias 6 e 25 de junho56 .
Embora as cartas estivessem lançadas, o conselheiro da Embaixada para Assuntos
Políticos, Ellwood Rabenold, compartilhava as dúvidas de Martin sobre a
validade real das razões que esgrimia a condução militar para enfrentar a
quartelada e advertia veladamente sobre as conseqüências que a atitude de
Washington frente ao golpe poderia implicar para as relações dos Estados Unidos
com os países da região: "A reação dos EUA não deveria nos insular dos outros
países líderes do hemisfério", estimava nesses mesmos dias em sua proposta de
planos de contingência. Se mostrava extremamente penetrante ao deixar entrever,
ante o Departamento de Estado, as incertezas que a heterogeneidade da frente
golpista suscitava nos diplomatas norte-americanas in situ: "O governo surgido
do golpe previa seguirá políticas geralmente aceitáveis para os Estados
Unidos, pelo menos no curto prazo"57 .
De sua parte, talvez diferindo da posição do Sub-Secretário Lincoln Gordon, que
no seu momento, no caráter de embaixador em Brasília, se havia envolvido
pessoalmente no golpe brasileiro de 1964, o embaixador Martin sublinhava as
diferenças entre ambos os processos. "Muitos militares se convenceram de que
removendo o governo de Illia estariam cumprindo na Argentina um papel
basicamente idêntico ao que as Forças Armadas realizaram no Brasil
arremessando-se contra Goulart. Estou consciente de quão distintas são na
realidade ambas as situações... [Os militares] tem seguido atentamente a ajuda
norte-americana ao Brasil desde a partida de Goulart, e a imprensa tornou
público, talvez excessivamente, o entusiasmo de nossos investidores pelo novo
regime no Brasil"58 . Por isso, Martin dizia temer que a atitude norte-
americana, diferente em relação ao movimento, não fosse acreditável para os
militares argentinos ou fosse tomada como um caso a mais de favoritismo dos EUA
para com o Brasil. Martin também temia uma reação imprevisível do nacionalismo
castrense: "Se compartilha claramente uma atitude nacionalista com considerável
história, até mesmo fora dos círculos golpistas". E concluía: "Devemos nos
mover com precaução para assegurar um resultado nitidamente positivo". Em
conseqüência, propunha não promover um encontro com Onganía, mas "esperar até
que haja clara evidência da cristalização do programa de ação golpista que
justifique correr o risco de sermos acusados de intervencionismo"59 .
Possivelmente, no transfundo destas incertezas estava a experiência do processo
brasileiro, transcorridos dois anos do golpe liderado por Castelo Branco. Na
ditadura brasileira, com a ascensão de Costa e Silva em 1966, haviam passado a
predominar setores militares que não se alinhavam automaticamente com as
prioridades da estratégia norte-americana. De modo similar, na Argentina a
"oferta" golpista incluía não uma, mas várias tendências. Segundo a CIA, em
meados de maio de 1965, o General Aramburu falava de pelo menos três movimentos
em gestação, liderados, um pelo General (RE) Enrique Rauch; outro pelo
Almirante (RE) Isaac Rojas e o General (RE) Toranzo Montero (sem especificar de
qual dos irmãos Carlos ou Federico se tratava); e o terceiro pelo General
Carlos Rosas. O Exército e a Força Aérea se alinhavam com Onganía, enquanto que
a Armada se inclinava para os grupos de Rosas ou de Rojas60 .
Ademais, embora a maioria das cabeças militares, que terminariam sendo
predominantes na heterogênea frente golpista, se originasse majoritariamente
dos "Azules" de 1962, coexistiam ali pelo menos duas grandes correntes: um
setor nacionalista-católico com perfis de corporativismo anti-liberal,
modernizador e industrialista, alinhado com as posições internacionais dos
Estados Unidos (o Ex-Comandante em Chefe Onganía que a CIA caracterizava como
um profissional, "bom amigo dos Estados Unidos" e "altamente respeitado pelo
Presidente Illia"61 ); e outro liberal, vinculado ao núcleo dos latifundiários
mais tradicionais e partidário de diversificar o espectro das relações
comerciais e políticas do país, sem atender a "fronteiras ideológicas"
(Lanusse-López Aufranc). Cinco anos mais tarde, esta última corrente, já
hegemônica nos altos comandos das Forças Armadas e na ditadura originada em
1966, protagonizaria a abertura comercial para o "Leste". A força da corrente
militar favorável a uma aproximação com o bloco soviético ficaria evidente com
o intercâmbio de missões castrenses entre ambos os países durante a ditadura
instaurada em 197662 .
Os serviços de inteligência americanos estavam informados com detalhes tanto
sobre os planos golpistas como sobre suas tendências e seus respectivos
líderes. Nos últimos dias de maio de 1965, a CIA tinha informado acerca das
declarações obtidas do então comandante do Primeiro Corpo do Exército, Julio
Alsogaray, dando conta da decisão dos altos comandos de encarar o golpe
militar, fixando a data da tentativa para o mês de julho, embora sem excluir a
possibilidade de que a ação se adiantaria "se a crise aumentasse". O informe
resenhava favoravelmente a "responsabilidade" e "seriedade" dos objetivos do
futuro governo militar tal como os transmitia o General Alsogaray. A Agência
norte-americana eem umerava entre os envolvidos no golpe os Generais Juan
Carlos Onganía, Pascual A. Pistarini, Julio Alsogaray, Alejandro A. Lanusse e
Osiris Villegas63 .
Apesar da cabeça do movimento (Onganía) ser o homem de maior proximidade às
posições norte-americanas64, o próprio Secretário Adjunto Lincoln Gordon não
ocultava seus receios, além do respaldo básico ao golpe ainda não consumado.
Procurando assegurar a completa sintonia dos líderes do movimento castrense com
os objetivos dos Estados Unidos, Gordon chegou a sugerir do mesmo modo que o
havia feito para o caso brasileiro dois anos antes a utilização dos programas
de assistência militar (MAP) para pressionar os líderes golpistas (o próprio
Onganía, o Comandante em Chefe Pistarini, o Chefe do Primeiro Corpo do Exército
Julio Alsogaray e outros), deixando que eles entendessem que a estabilidade
política e constitucional era condição necessária para que os EUA seguissem
adiante com os planos de cooperação: "O MAP assinalava é objeto de fortes
críticas por encorajar os golpes. O golpe na Argentina poderia levar a aplicar
a legislação pendente que proíbe a assistência militar aos governos de fato". A
instabilidade institucional constituía, segundo Gordon, um sério obstáculo ao
investimento estrangeiro, essencial para o desenvolvimento econômico. Em clara
alusão a ideologia "eficientista" do programa econômico dos dirigentes
golpistas, insistia: "A estabilidade é, talvez, mais importante neste aspecto
do que a eficiência"65 .
As vacilações da diplomacia norte-americana na Argentina provocaram a ira dos
golpistas mais rigorosos. Assumindo o papel de porta-voz dos setores aliados a
quartelada, a revista pró-golpistas Confirmado(semanário de Jacobo Timerman
dirigido pelo comodoro Juan José Güiraldes) se preocupou em destacar a
existência de fissuras entre os enfoques do embaixador norte-americano Edwin
Martin interessado em mostrar um clima de quase normalidade no país, que
convinha consolidar em benefício da democracia continental e do Sub-
Secretário Lincoln Gordon que, de visita a Buenos Aires, havia manifestado que,
dadas as diferenças entre as distintas realidades latino-americanas, não se
podia opinar sobre a Argentina com parâmetros mais adequados para medir
situações nos países do Caribe, como o de "militares prepotentes retrógrados
opostos a soluções constitucionais progressistas."66
Em junho, já nos prolegômenos imediatos da quartelada, Confirmado insuflava
arrojos nacionalistas com sua diatribe contra "a já incrível intervenção do
embaixador Edwin Martin nos assuntos internos da República, [que] ameaça
colocar no vermelho vivo o espinhoso tema das relações argentino-americanas." O
editor Mariano Montemayor compensava a posição "legalista" da embaixada
enfatizando que "as opiniões americanas estão muito mais matizadas do que o que
proclama a guerra psicológica dos 'anti-entreguistas' e 'nacionalistas'
radicais do povo, aferrados agora ao Departamento de Estado de forma
permanente..."67 .
Mas o conhecimento da complexa trama interna da frente golpista levou os
responsáveis pela política externa norte-americana diferentemente de seu
apoio precipitado ao movimento anti-Goulart a adotar um tessitura de maior
prudência. Logo que consumada a derrubada de Illia, o assessor presidencial W.
Rostow, em nota dirigida ao presidente Johnson, qualificava o golpe militar de
"injustificado" e o considerava "um sério retrocesso em nossos esforços para
promover o governo constitucional e a democracia representativa no hemisfério".
Em conseqüência, opinava: "será preciso reexaminar toda nossa política em
relação à Argentina"68 .
De sua parte, o experiente Sub-Secretário Lincoln Gordon era partidário de uma
atitude essencialmente favorável, sem descuidar de certas precauções que
significaram garantias para os interesses de longo prazo da superpotência.
Gordon recomendava encarar "um pacote delicadamente equilibrado", que
permitiria a continuidade dos programas militares e assistenciais em curso
independentemente da ruptura temporária de relações diplomáticas. Sugeria
iniciar uma roda de consultas aos demais países da OEA sobre a questão do
reconhecimento, "sem antagonizar com o novo governo argentino." Embora o
reconhecimento deveria requerer do regime militar a aceitação dos compromissos
internacionais, o respeito às liberdades civis e o pronto retorno ao regime
constitucional, "não deveríamos tomar uma posição demasiado rígida sobre a
agenda eleitoral"69 .
O próprio Johnson compartilhava desta posição, ao mesmo tempo que estimava
necessário conservar certa aparência de neutralidade, sugeria permanecer "com
as mãos livres" e conceder o reconhecimento só depois que os maiores países
latino-americanos o houvessem feito, "de modo a não ficar na linha de frente"70
.
Apesar de suas vacilações e contradições frente ao golpe de estado na
Argentina, o novo rumo de "mão dura" da política externa norte-americana em
relação ao comunismo e aos nacionalismos na Guerra Fria já se havia firmado.
Quando o influente senador republicano, Jacob Javits, em meados de julho,
propôs uma emenda às normas que regiam a ajuda estrangeira aos países da OEA,
suspendendo toda assistência a qualquer governo que chegasse ao poder por meios
inconstitucionais, a iniciativa naufragou junto às ilusões que a Aliança para o
Progresso e suas promessas de assistência ao desenvolvimento e à democracia
latino-americanos haviam podido despertar em alguns setores da liderança
política da região.
Conclusões
O "Ato da Revolução Argentina" fundamentou o movimento militar na "falta de
autoridade" econômica e política do governo, que afundava o país na inflação e
na anarquia, e na necessidade de que as Forças Armadas ocupassem o "vazio de
poder" para logo procurar a "modernização" do aparato produtivo mediante a
remoção das "rígidas estruturas políticas e econômicas anacrônicas", reordenar
a sociedade e, em uma terceira fase, restabelecer de forma condicionada a
vigência dos mecanismos constitucionais71. Em nome desses objetivos, a ditadura
suprimiu as liberdades democráticas e os direitos políticos de em numerosas
organizações e personalidades, dissolveu o Congresso e as legislaturas
provinciais, proibiu e confiscou dos partidos políticos, perseguiu a militância
política e sindical e interviu violentamente na Universidade de Buenos Aires.
No plano das relações internacionais, abriu-se o período de maior proximidade
aos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados Unidos na história
argentina, embora os anos tornariam evidente a precariedade substancial desta
nova hegemonia.
Uma rápida reconstrução dos processos que desembocaram nos golpes de estado
militares de Brasil e Argentina na década de 1960 mostra que, além de suas
especificidades de lugar e circunstâncias e de suas motivações e conflitos
internos, ambos os movimentos se inscrevem no marco de uma estratégia única que
se desenvolveu então por toda América Latina; uma visão global, coerente com a
gravitação e as exigências econômicas e políticas de uma grande potência com
ambições estratégicas de alcance regional e mundial.
No Brasil, onde a inteligência e a diplomacia norte-americana classificavam o
presidente Goulart como um homem afim ao comunismo, o golpe de estado cívico-
militar que o derrubou em abril de 1964 foi interpretado como "um sério
retrocesso para os interesses soviéticos" por fontes da diplomacia americana,
que em seguida saudou a "liderança responsável" do novo presidente, Castelo
Branco72. Documentos desses dias permitem ver claramente que a quartelada não
só desfrutou da simpatia oficial de Washington, mas também de um planejado
apoio material com armamentos e até mesmo com uma "força de tarefas" que, já em
fins de março, navegava rumo ao Atlântico Sul.
No caso argentino, os documentos do governo norte-americano provam que as
instâncias decisórias da política externa americana seguiam muito de perto a
evolução social e política do país e as definições do governo do presidente
Arturo Illia, mesmo antes de sua ascensão e, especialmente, a partir da
anulação dos contratos de petróleo firmados por Frondizi com as companhias
norte-americanas e outras medidas consideradas "nacionalistas", até mesmo de
caráter "esquerdista". A embaixada e os serviços de inteligência norte-
americanos estiveram minuciosamente a par dos preparativos golpistas, assim
como das diversas correntes nas Forças Armadas que lutavam para liderar o
golpe, e mantinham sólidos vínculos com o setor que esteve à frente da
conspiração e que seria hegemônico durante os primeiros anos da ditadura
instaurada em 28 de junho de 1966.
Além de certas divergências de avaliação com a CIA sobre a atitude a adotar, e
embora os receios ante as potenciais derivações da luta interna na heterogênea
frente golpista determinariam uma atitude norte-americana muito mais passiva do
que no caso brasileiro, é evidente o apoio final de Washington ao golpe
militar. As diferenças entre os enfoques do Departamento de Estado, do
Pentágono e da CIA, apesar de que efetivamente eles emergem dos documentos dos
serviços diplomáticos e de segurança americanos, são mais de tática e não se
referem à questão de fundo. Requereu-se menos de vinte dias para que a Casa
Branca se dispusesse a reconhecer o governo de fato estabelecido na Argentina,
efetivado no dia 15 de julho.
Em grau e medida diversos e sempre em função de preservar os interesses
econômicos e estratégicos dos Estados Unidos no "hemisfério", os "objetivos
aparentes" da diplomacia norte-americana em ambos os episódios (defesa da
democracia, promoção da liberdade de empresas e de mercado) não foram senão a
modalidade retórica que assumiu a busca de aliados seguros no cenário regional
da rivalidade bipolar.
Notas
1 Este trabalho é parte integrante de um Projeto UBACyT, Argentina y Brasil
frente al sistema intrernacional y a la globalización, pertencente a
Programação 1998-2000.
2 U.S. Policies toward Latin American military forces(25/2/65). Documento
secreto do Secretário Adjunto de Defesa redigido a requerimento da Casa Branca.
3 Special Intelligence Estimate, em umber 93-2-61. Secret. 7/12/1961, pp. 3 e
7.
4 Roberto Campos (1994), p. 547.
5 Paulo G. Fagundes Vizentini (1995), p. 289.
6 Thomas E. Skidmore (1982).
7 "Short-term prospects for Brazil under Goulart", 7/12/1961, pp. 2 e 7.
8 Ruth Leacock (1990), p. 104.
9 Alguns autores caracterizam este "Instituto" como uma simples "fachada" da
CIA.
10 Ruth Leacock (1990), pp. 119-122.
11 Paulo G. Fagundes Vizentini (1995), p. 262.
12 Thomas E. Skidmore (1982), p. 398.
13 Paulo G. Fagundes Vizentini (1995), p. 279.
14 Agency for International Development (AID). Program and proyect (1963), p.
65. NST, Agency File, Box 3.
15 Telegrama do Departamento de Estado para a Embaixada no Brasil, 16/8/63.
Foreign Relations of the United States (FRUS), 1961-1963, Vol. XII.
16 Políticas propuestas para el corto plazo Brasil. 30/9/63. FRUS, 1961-1963,
Vol. XII.
17 Paulo G. Fagundes Vizentini (1995), p. 268.
18 Michael R. Beschloss (1997), p. 306 (nota no pé de página).
19 Roberto Campos (1994), p. 550.
20 Moniz Bandeira (1989).
21 Roberto Campos (1994), p. 548.
22 Clarín, Suplemento Zona, domingo 5/9/99.
23 Telegrama da Embaixada norte-americana para o Departamento de Estado, 4/3/
64.
24 Comunicação top secret da embaixada norte-americana no Rio de Janeiro para o
Estado Maior Conjunto, abril 1964 (sem indicação de data). A historiadora
norte-americana Phyllis Parker publicou em 1976 outros documentos que
demonstram a mobilização militar dos Estados Unidos para intervir eventualmente
na possível luta interna. Ver também Costa Couto (1999), p. 26.
25 Em declarações formuladas para O Estado de São Paulo em 31/3/94, ao cumprir-
se três décadas do movimento militar, transcritas por Roberto Campos (1994), p.
550.
26 Thomas Skidmore (1982), p. 397.
27 Beschloss (1997), p. 306.
28 Memorando CIA Nº 1610/64, 29/7/64.
29 LBJL, National Security Council, Country Files, Brazil, Box 11-12
30 Eugênio Vargas García (1997), pp. 22-24.
31 Memorando do Diretor do Bureau of Intelligence and Research (Hughes) ao Sec.
de Estado Rusk, 11/10/63. FRUS 1961-63, Vol.XII, Argentina.
32 Telegrama do Departamento de Estado para a embaixada em Buenos Aires, 20/6/
64. NSF Country Files. Argentine cables, Vol. I, Box 6, LBJL.
33 As companhias norte-americanas eram Cities Service, Astra, Cadipsa,
Continental-Marathon, Esso, Ohio, Pan American, Tennessee Gas e Union Oil-
Cabeen.
34 McClintock ao Departamento de Estado, 16/4/64. NSF Country Files. Argentine
cables, Vol. I, Box 6. LBJL.
35 Cabograma de McClintock ao Departamento de Estado, 9/5/64. NSF Country
Files. Argentine cables, Vol. I, Box 6. LBJL.
36 AID. Program and proyect (1963), p. 59.
37 Cabograma do embaixador McClintock ao Departamento de Estado, 11/3/64. LBJL.
38 Do Departamento de Estado para a embaixada em Buenos Aires, 23/6/64. NSF
Country Files. Argentine cables, Vol. I, Box 6, LBJL.
39 Cabograma do embaixador McClintock ao Secretário de Estado, 11/3/64. NSF,
Arg. Cables, I, LBJL.
40 Conferência de imprensa do Chefe da Gendarmaria, Julio Alsogaray, sobre a
existência de grupos guerrilheiros com armamento provido por fontes
estrangeiras (Cuba, Bolívia, Brasil e Venezuela). De McClintock para o
Secretário de Estado, 26/3/64. NSF, Arg. Cables, I, LBJL.
41 Cabograma de Adair ao Departamento de Estado, 19/5/64. NSF Country Files.
Argentine cables, Vol. I, Box 6.
42 Ibidem.
43 Telegrama do Departamento de Estado a Buenos Aires, 20/6/64. NSF Country
Files. Argentine cables, Vol. I, Box 6, LBJL.
44 Cabograma de Adair ao Departamento de Estado, 19/5/64. NSF Country Files.
Argentine cables, Vol. I, Box 6.
45 Robert A. Potash (1994), pp. 196-198.
46 Aoain Rouquié (1982), T. 2, p. 232.
47 Juan A. Lanús (1984), p. 210.
48 Juan A. Lanús (1984), p. 213.
49 Cabograma de Martin ao Departamento de Estado, 9/2/66. LBJL.
50 Cabograma da CIA, 29/5/65. NSF, Country Files, Argentine cables, Vol. II,
Box 6, LBJL.
51 Perspectivas das relaciones EE.UU.-Argentina bajo el gobierno do Presidente
Illia en los próximos 6 meses. Informe do embaixador em Buenos Aires ao Sec. de
Estado, 26/11/65. NSF Country Files. Argentine cables, Vol. I, Box 6. LBJL.
52 Aoain Rouquié (1982), T. 2, p. 235.
53 Nota de Inteligência de George Denney ao Secretario de Estado, 7/4/66. NSF
Country Files. Arg. Memos II, Box 6, LBJL.
54 Da embaixada em Buenos Aires ao Departamento de Estado, 27/4/66. NSF Country
Files. Arg. cables II, Box 6, LBJL.
55 Martin ao Departamento de Estado, 4/6/66. NSF Country Files. Argentine
Memos, Vol. II, Box 6. LBJL.
56 Cabograma da CIA, 6/6/66. NSF Country Files. Arg. Memos II, Box 6, LBJL.
57 De Ellwood Rabenold ao Departamento de Estado: "Planes de contingencia para
los acontecimientos que puedan surgir de ahora a las elecciones nacionales de
marzo de 1967", 4/6/66.
58 Martin ao Sec. Adjunto Gordon, 8/6/66. NSF Country Files. Arg. cables, II,
Box 6, LBJL.
59 Ibidem.
60 Cabograma da CIA, 29/5/65. NSF, Country Files, Argentine cables, Vol. II,
Box 6, LBJL.
61 Informe da CIA, maio de 1965. NSF Country Files, Vol. II, Box 6, LBJL.
62 Ver M. Rapoport: "La posición internacional da Argentina y las relaciones
argentino-soviéticas", en Argentina en el mundo, 1973-1987, Bs. As., 1988.
63 Cabograma da CIA, 2/6/66. NSF, Country Files, Argentina memos, Vol. II, Box
6, LBJL.
64 Dados biográficos de Onganía. Informe da CIA, junho de 1966.
65 Telegrama de L. Gordon ao embaixador Martin, 7/6/66. NSF Country Files. Arg.
cables, II, Box 6. LBJL.
66 Confirmado, 7/6/66.
67 Confirmado, 16/6/66.
68 W. Rostow ao Presidente, 28/6/66. NSF Country Files, Arg. Memos, Vol. II,
Box 6, LBJL.
69 Memorando de W. W. Rostow ao Presidente, 29/6/66. LBJL.
70 Memorando da Casa Branca a Rostow, 29/6/66. LBJL.
71 Aoain Rouquié (1982), T. 2, p. 251.
72 Memorando da CIA, 29/7/64.