Sob o signo neoliberal: as relações internacionais da América Latina
O abandono do paradigma de relações internacionais do Estado desenvolvimentista
a favor do paradigma neoliberal teve seu impulso inicial, em países de menor
porte da América Latina, nos meados da década de 1980 e concluiu-se por volta
de 1990, com a chegada ao poder dos presidentes Carlos Salinas de Gortari no
México, Carlos Saúl Menem na Argentina, Carlos Andrés Péres na Venezuela,
Alberto Fujimori no Peru e Fernando Collor de Melo no Brasil. Desse modo, as
experiências neoliberais estender-se-iam sobre o subcontinente como um todo
durante a última década do século XX.
Embora a América Latina tenha demonstrado a maior coerência dentre todas as
regiões do mundo na adoção do consenso neoliberal, não houve uniformidade na
intensidade e nos ritmos das reformas internas requeridas pela nova forma de
inserção internacional. A modernização foi concebida pelos dirigentes como
abertura do mercado de bens e de valores e privatização das empresas públicas,
como sugeria o centro hegemônico do capitalismo, mas os países avançaram por
esta via com certo descompasso: Chile e Argentina são exemplos de adaptações
rápidas e radicais, Venezuela e Brasil exemplos de hesitações políticas e
tropeços operacionais, enquanto o México se afastava da América do Sul e
encaminhava com senso prático sua vinculação ao bloco da América do Norte, o
NAFTA. No ano 2000, reviravoltas eleitorais haviam afastado do poder os
próceres do neoliberalismo no México, no Uruguai, no Chile, na Venezuela e na
Argentina. Com a vitória de governos de oposição, cujas campanhas políticas se
haviam assentado na crítica ao neoliberalismo, a opinião pública deu provas de
que estava avaliando negativamente a década de consenso das experiências
neoliberais.
A transição do Estado desenvolvimentista para o Estado normal
Com o término da Guerra Fria e o fim da bipolaridade, estabeleceu-se um
consenso, em esfera planetária, que a literatura definiu ora com os termos de
globalização, ora de nova interdependência, ora de neoliberalismo. O mundo
parecia uniformizar-se nos aspectos tanto ideológico, quanto político,
econômico e estratégico.
O consenso neoliberal global postulava a implementação dos seguintes parâmetros
de conduta por parte dos governos de todo o mundo: democracia, direitos
humanos, liberalismo econômico, cláusula social, proteção ambiental e
responsabilidade estratégica solidária tendo em vista a promoção de tais
valores. Como este consenso representava o triunfo do centro capitalista '
basicamente Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão ' sobre as experiências
socialistas e terceiro-mundistas, parecia ter que prevalecer. Assim entenderam
os dirigentes latino-americanos dos anos noventa, que o abraçaram de corpo e
alma, quase sempre de forma acrítica, diante de uma opinião pública dominada
por pressões da imprensa, cuja informação vinha impregnada com os novos
princípios.
Os dirigentes argentinos à época dos dois mandatos de Menem (1989-1999)
cunharam com felicidade a expressão Estado normal para designar a adaptação
ante o novo paradigma. Desde o início do Governo de Menem, a Argentina via-se
como o país normal que aspirou ser. Tal opção comportava padrões concretos de
comportamento:não só não abrir confronto político, ideológico e de segurança
com os Estados Unidos e seus aliados, mas apoiá-los e, quiçá, segui-los em
quaisquer iniciativas. Ser normal significava, no caso argentino, romper com os
princípios da autodeterminação e da não intervenção, tão caros à tradição
diplomática latino-americana, como também com os princípios do direito
internacional de que a ONU é guardiã, em favor de uma ordem regulada por
relações de força. Significava, ademais, sujeitar a estrutura econômica interna
e os padrões de inserção econômica internacional aos dogmas do chamado Consenso
de Washington. Em conseqüência desse giro para a normalidade, a Argentina
exibiu nos anos noventa uma política exterior pragmática e clara em seus
princípios e objetivos, diferente da brasileira, feita de hesitações
conceituais e estratégicas1.
Ser normal converteu-se, contudo, no desideratum de todos os países da América
Latina, exceto Cuba, que se apressavam em agradar à matriz do novo sistema
internacional, os Estados Unidos, porque com eles os vínculos eram os mais
fortes e cada um desses países trabalhava com a hipótese de poder tirar os
melhores proveitos dessa subserviência. Assim, a transição do Estado
desenvolvimentista para o Estado normal significou nos anos noventa, na América
Latina, a adoção de um processo de modernização concebido pelo centro em
substituição à formulação da inteligência local, consubstanciada no tradicional
pensamento da CEPAL.
Com efeito, o acervo de idéias estruturalistas cepalino, ancorado nos conceitos
de centro-periferia, deterioração dos termos de troca, indústria, mercado
interno, expansão do emprego e da renda, que inspirou a política dos países
latino-americanos em sua estratégia de superação do atraso histórico, foi
despachado para o arquivo histórico pelos dirigentes neoliberais. Em seu lugar,
introduziu-se a visão de um mundo harmônico, global, que compreendia a
valorização do individualismo e da iniciativa privada, o mercado mundial e a
transferência dos ativos nacionais para as empresas oligopólicas globais em
nome da elevação da produtividade. Em poucos anos, a América Latina avançou no
caminho da desconstrução do núcleo central robusto de sua economia, erguido em
sessenta anos de esforços nacionais. Consumou, desse modo, a transição
paradigmática das políticas exteriores, quer em sua formulação nacional quer na
dos blocos regionais que o processo de integração criava. Mesmo a concepção da
segurança transitou do âmbito nacional ou regional para o global, aceitando-se
como naturais as intervenções eventualmente empreendidas, sob a égide da OTAN e
não mais da ONU, com a finalidade de salvaguardar a nova ordem.
As margens de manobra da política internacional da América Latina, que o
paradigma desenvolvimentista implementara durante sessenta anos e que
denominara de terceira posição ou política externa independente, foram
consideradas nos anos noventa inadequadas para os tempos da globalização. O
Estado normal não admitia o conceito de margens de manobra e introduzia, em seu
lugar, os conceitos de consentimento diante das matrizes e de padronização de
condutas em matéria de macropolíticas internas e externas. Às críticas de
indivíduos e grupos intelectuais e das correntes da opinião política de
oposição aos regimes neoliberais, os dirigentes respondiam sem hesitar que não
havia outra opção para a América Latina.
Os condicionamentos externos que se encontram na origem da mudança
paradigmática das relações internacionais da América Latina coincidiram com
fenômenos internos, que também explicam a transição. Com efeito, os anos
oitenta assistiram à queda do desempenho e à exaustão do modelo
desenvolvimentista. O fim da era das ditaduras e a restauração da democracia
engendraram crises políticas. O endividamento externo agravou-se e a
instabilidade monetária, com surtos de hiperinflação, exacerbava os
descontentamentos sociais. A superproteção às empresas locais conduzira à baixa
produtividade sistêmica da economia. Os neoliberais extraíram desses malogros
argumentos com que seduzir a opinião eleitoral nas campanhas presidenciais. A
eles se somaram dirigentes por vezes eleitos com outro discurso político, mas
que também faziam referência ao malogro do ciclo desenvolvimentista para
justificar a mudança de estratégia. O consenso cobriu o subcontinente.
Houve uma modificação importante no processo decisório responsável pelos novos
desígnios das políticas exteriores. Em quase toda parte, os dirigentes latino-
americanos dos anos noventa substituíram grupos tradicionais que mantiveram a
coerência do poder por décadas. As novas autoridades vinham das margens da vida
política, embora utilizando partidos tradicionais, como no México e na
Argentina, ou de fora de tais partidos, como no Brasil. O certo é que os grupos
de Gortari no México, Menem na Argentina, Collor no Brasil, Fujimori no Peru,
Pinochet no Chile e outros substituíram as elites dirigentes tradicionais por
recém-chegados ao poder. Estes, com certa naturalidade e muita desenvoltura,
implementaram a nova visão de mundo, desvinculada de objetivos, valores, idéias
e compromissos políticos relacionados à herança histórica. O descompromisso dos
governos neoliberais com a nação produziu efeitos também sobre a ética
política. Denúncias de corrupção atingiram-nos, como se realizassem
experiências similares sobre este terreno .
Outra leitura dos interesses nacionais deu forma ao processo decisório dos
governos neoliberais. As chancelarias foram em boa medida silenciadas, como
guardiãs que eram do patrimônio político da filosofia desenvolvimentista. Sua
esfera de ação foi confinada à diplomacia ornamental, os novos temas da moda,
como a governança global, o meio ambiente, os direitos humanos e as
intervenções humanitárias. A política internacional pesada, isto é, as relações
econômicas internacionais dos países como comércio, finanças, vinculações
empresariais ou transferências de ativos privatizados, passou para o comando
dos Ministérios econômicos, ocupados por jovens que em sua maioria haviam feito
pós-graduação em Universidades norte-americanas ou haviam servido como técnicos
de agências tais como o FMI e o Banco Mundial. A imprensa denunciava amiúde a
petulância com que estas autoridades aplicavam sem senso prático poucas teorias
assimiladas no centro do capitalismo e formuladas precisamente para servirem de
inspiração à periferia. Altas taxas de juro para manter a estabilidade
monetária, contenção do crescimento econômico para combater a inflação,
privatização e transferência de empresas públicas ao controle estrangeiro para
aumentar a competitividade tornaram-se parâmetros de políticas públicas na
América Latina.
As idéias expostas nesse parágrafo espelham uma situação homogênea da América
Latina nos anos noventa. Elas apresentam sobretudo um interesse didático. Como
se verá no próximo parágrafo, as experiências foram bem diversas, uns países
avançando mais e outros menos no caminho neoliberal. Dois países de grande
dimensão da América do Sul realizaram experiências nos extremos: a Argentina,
uma experiência liberal radical e o Brasil, uma experiência mista, situada em
algum ponto entre o paradigma desenvolvimentista e o neoliberal.
Orientações externas dos regimes neoliberais
As tendências dos estudos de relações internacionais na América Latina
comprovaram certa perplexidade dos autores, postos diante do desafio de
explicar e avaliar a transição paradigmática do modelo desenvolvimentista para
o neoliberal, bem como os primeiros resultados deste último2. Um modo de
introduzir este tema dos paradigmas de política exterior consiste em comparar
os estudos de relações internacionais na América Latina e aprofundar as linhas
de produção acadêmica do Brasil e da Argentina nos anos noventa. Estes dois
países vincularam-se estreitamente desde o Tratado de Assunção de 1991 que
criou o Mercosul. Brasileiros e argentinos estão desde então considerando com
maior atenção o que se faz do outro lado do Rio da Prata.
A bibliografia recente acerca das relações interamericanas e da projeção
mundial da América Latina não apresenta um padrão de interpretação unívoco. Há
grandes divergências de interpretação acerca dos resultados do ciclo
desenvolvimentista, que se estende de 1930 a 1986-89. Em alguns países, a
irrupção do liberalismo do fim do século afetou a reflexão intelectual e
aconselhou o revisionismo histórico. Em outros, a inteligência nacional manteve
o espírito crítico tanto para o estudo do ciclo desenvolvimentista quanto para
o do ciclo liberal que o sucedeu. O pluralismo das correntes de interpretação
não desapareceu em nenhum país. Surgiram, contudo, na historiografia e na
ciência política aplicadas às relações internacionais no Brasil e na Argentina,
nos anos noventa, linhagens que exemplificam aquela perplexidade dos
pesquisadores postos diante de dois desafios: por um lado, avaliar, sob pressão
das mudanças do fim do século, um passado de sessenta anos; por outro,
desvendar o grau de acerto dos parâmetros da nova inserção internacional ou
então lançar dúvidas sobre sua compatibilidade com os interesses da região.
Grande número de especialistas argentinos congregou-se em verdadeira comunidade
epistêmica, composta de acadêmicos, diplomatas e burocratas, por vezes a mesma
pessoa. Dedicaram-se a uma implacável condenação do passado de sessenta anos.
Além de consertar o conhecimento, tiveram os epistêmicos por fim influir sobre
a opinião pública, o pensamento político e o processo decisório em matéria de
política interna e externa durante os dois mandatos do Presidente Carlos Saúl
Menem, entre 1989 e 1999. Seu objetivo era o de imprimir a racionalidade
decorrente do neoliberalismo à nova organização nacional e à nova inserção
internacional do fim do século. As publicações do grupo estiveram a cargo
sobretudo do Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales e do Grupo
Editor Latinoamericano. Os epistêmicos almejaram, em vão, nos anos noventa,
produzir o consenso nacional.
Podemos separar os analistas argentinos de relações internacionais dos anos
noventa em três grupos: a) os revisionistas de direita, conduzidos por Carlos
Escudé, Andrés Cisneros e Felipe de la Balze; b) uma corrente revisionista de
centro juntou-se a eles, sem contudo sacrificar a autonomia mental à ideologia
neoliberal; citamos entre os centristas os nomes de Roberto Bouzas, Mónica
Hirst, Juan Archibaldo Lanús, Rubén M. Perina e Roberto Russell; c) menos
expressiva em volume de textos publicados, mas não em profundidade de análise,
uma corrente de interpretação crítica sobreviveu à comoção intelectual do
fundamentalismo liberal e expressou-se nos anos noventa com os nomes de Raúl
Bernal-Meza, Aldo Ferrer, Alfredo Bruno Bologna, José Paradiso, Silvia Ruth
Jalabe, Víktor Sukup e Mario Rapoport, entre outros3.
Qual o mais importante resultado epistemológico das novas correntes argentinas
de estudo das relações internacionais? Feito o balanço dessa literatura, é
difícil negar que irrompeu e projetou-se sobre o meio intelectual da Argentina
dos anos noventa um pensamento com pretensão hegemônica que construiu a teoria
da decadência nacional engendrada pelo isolamento internacional do país,
durante a fase que se estende entre 1930-43 e 1983-89. E que reivindicou, como
terapia para todos os males, desesperadamente, o neoliberalismo dos anos
noventa. Em outras palavras, o grupo epistêmico argentino substituiu nos anos
noventa pela teoria da decadência a teoria latino-americana da dependência
formulada pelos marxistas dos anos sessenta em reação ao pensamento da CEPAL.
A mudança sem confusão quanto aos conceitos ou decisões a tomar que se observou
no plano da política interna verificou-se também no plano da política exterior
durante o primeiro mandato de Menem. Um pensamento presumivelmente realista '
realista, segundo os escritos de Carlos Escudé ' alimentou a nova orientação e
provocou um giro dramático da política exterior com o fim de eliminar os
efeitos autodestrutivos das tendências confrontacionistas com grandes potências
ocidentais que haviam acompanhado a política exterior desde os anos trinta do
século XX. A política exterior ajustou-se, em nome desse presumível realismo, à
condição de país periférico. Seus fundamentos doutrinais foram explicitados em
três princípios, expostos amplamente nos textos de Escudé:
A) Um país periférico, dependente, pobre e estrategicamente irrelevante para as
grandes potências, deve eliminar suas confrontações políticas com o exterior e
lutar apenas por assuntos materiais que afetem o bem-estar do povo. Deve
conformar seus objetivos externos com os da potência hegemônica na área tendo
em vista obter algum ganho econômico em troca da aceitação da liderança.
B) A política exterior do país periférico deriva do cálculo entre custos e
benefícios materiais, como ainda do cálculo de risco de custos eventuais. O
desafio político à grande potência pode não comportar custos imediatos, mas a
longo prazo sempre se revela autodestrutivo.
C) A autonomia da política exterior há de refletir a capacidade real de
confrontação do Estado, mas, sobretudo, orientar-se pelos custos relativos
dessa confrontação. Ela não corresponde à liberdade de ação, mas à
possibilidade de eliminar perdas e promover ganhos nas relações exteriores do
país.
Formulados no momento em que a ordem internacional transitava da bipolaridade à
globalização, esses princípios de realismo periférico inspiraram as formulações
reativas do governo argentino diante da nova visão de mundo dos Estados Unidos.
O cientista político Felipe A. M. de la Balze identificou cinco domínios de
ação da nova política exterior argentina de realismo periférico, também chamada
de política exterior de reincorporação ao Primeiro Mundo pelos dois Ministros
de relações exteriores de Menem, Domingo Felipe Cavallo e Guido Di Tella. Esses
domínios de ação serão expostos e avaliados a seguir, porquanto servem de
parâmetro para qualificar, de modo geral, a política exterior dos Estados
neoliberais da América Latina, cujos dirigentes também afirmaram no início de
seus mandatos que pretendiam, por essa via, incorporar seus países ao Primeiro
Mundo.
1) Reinserir a economia argentina na economia mundial. O propósito
apostava na premissa de que o processo de globalização da economia
mundial manteria sua tendência ascendente no futuro e partia da
convicção de que a abertura econômica induz o progresso tecnológico.
Esse domínio de ação estabeleceu como meta alcançar a fronteira
tecnológica dos países do Primeiro Mundo no espaço de uma geração.
Contudo, visto com espírito crítico, esse parâmetro decisório
surpreende o observador, já que não leva em conta o fato de que a
desnacionalização da economia interrompe a geração e a apropriação de
tecnologia pelo sistema produtivo nacional e acentua a desigualdade
estrutural. No fundo, por trás dessa linha de conduta dissolve-se o
conceito de sistema produtivo nacional, a indicar a ruptura
filosófica com o passado. Daí a ênfase no mais relevante dentre os
objetivos econômicos da política exterior, o de aumentar o fluxo de
investimentos externos no país com o intuito de provocar a
modernização da estrutura produtiva local. No entender de Cavallo,
havia-se difundido na cultura política argentina a convicção de que o
desenvolvimento era uma espécie de dívida caritativa das nações
avançadas para com os pobres. Porém, ao fazer esta crítica, aliás com
pouco fundamento, à experiência do passado, não percebia o Ministro
argentino que sua própria estratégia mantinha o desenvolvimento, da
mesma forma, como uma responsabilidade alheia, cuja indução era posta
a cargo da nova política exterior. O segundo objetivo econômico
relevante da Argentina consistia na busca de meios para reinserir o
país no comércio internacional. A abertura da economia à competição
internacional e a atuação junto aos órgãos reguladores multilaterais,
aos blocos regionais e aos países emergentes da Ásia foram meios
selecionados para realizar tal objetivo. As condições internas para
tornar exeqüíveis os dois objetivos da política econômica externa
foram as reformas estruturais e a estabilidade monetária. Fechou-se,
desse modo, o círculo da política econômica externa e interna.
2) Estabelecer relação especial com os Estados Unidos. O propósito
reconhece o triunfo dos Estados Unidos sobre a União Soviética ao
termo da Guerra Fria. Assenta na convicção de que o mundo se
encaminha a longo prazo para um futuro multipolar, com distribuição
relativamente eqüitativa do poder, do prestígio e da riqueza,
mantendo, porém, a médio prazo, a preeminência dos Estados Unidos
nesses aspectos. Essa linha de força da política exterior de Menem
não esconde o caráter corretivo relativamente ao passado de
confrontação, embora ela se assemelhe a formulações de política
exterior de períodos anteriores, sobretudo de governos militares. A
posição de excepcionalidade dos Estados Unidos no mundo sugere à
Argentina que estabeleça com esse país uma relação especial capaz de
produzir os seguintes efeitos: modernização das Forças Armadas, apoio
para superação de questões estratégicas regionais (Malvinas, corrida
armamentista, estabilidade democrática, eventuais desastres
ecológicos), influência argentina sobre o processo decisório norte-
americano em política exterior, acesso especial das exportações
argentinas ao mercado dos Estados Unidos e do NAFTA e captação de uma
parcela importante dos investimentos norte-americanos no exterior. A
nova relação pressupõe a conformação dos valores que condicionam as
visões dos dois países quanto à organização interna e às relações
internacionais, conformação essa que também foi eleita como objetivo
ou condição a criar pelos dirigentes do Governo de Menem. Admite-se
entre as partes apenas aquele tipo de confrontação normal em matéria
econômica, que os Estados Unidos enfrentam com seus aliados europeus.
Em sua formulação geopolítica, a relação especial não recusa a
intenção de a Argentina vir a tornar-se mão forte dos Estados Unidos,
quando a expansão de seus interesses (de um ou de outro) requeira
medidas de coerção regional. Tal recuperação da tradicional empáfia
argentina assenta-se na presunção segundo a qual o país foi posto, em
conseqüência da ruptura dos anos noventa com o passado, em situação
de superioridade sobre qualquer outro da América Latina para
implementar uma política de influência em Washington, ao ponto de
haver-se tornado indispensável à tomada de decisão das autoridades
norte-americanas com respeito aos países latino-americanos. O
objetivo de longo prazo, afirma Balze, "es llegar a una situación en
la cual los Estados Unidos encuentrem natural pedir nuestra opinión
en los temas claves de su política latinoamericana y se sientan
incómodos de ignorarla". Nesse sentido, a singularidade do caráter da
aproximação entre a Argentina e os Estados Unidos era sua feição
propriamente ideológica, distinta da feição política chilena,
operacional mexicana e contextualizada na política brasileira de
múltiplas parcerias estratégicas.
3) Aprofundar a integração econômica e a cooperação política com o
Brasil. O terceiro parâmetro da política exterior de Menem não
constitui propriamente um fim em si, segundo Balze, mas, sim, o meio
indispensável de se chegar, depois de décadas de tentativas mal
sucedidas, a uma genuína estratégia de cooperação e integração
latino-americana. Seu pressuposto consiste na substituição da
geopolítica pela integração nas relações sub-regionais,
particularmente entre os países do Cone Sul. Com efeito, o grupo de
Menem esperava daquela influência em Washington solução prévia para a
dimensão geopolítica de sua política exterior. Assim, por coerência,
essa dimensão podia ser afastada das relações entre parceiros sub-
regionais. Entretanto, como adiante se verá, a geopolítica corria o
risco de ser reintroduzida na área por efeito involuntário ou
maquiavélico, precisamente em razão daquele papel que a Argentina
presumia exercer na esteira de suas relações especiais com os Estados
Unidos. Por enquanto ' no cálculo dos dirigentes menemistas ' uma
relação de tipo especial com o Brasil modificaria o jogo de duas
maneiras: primeiro, ao contrabalançar aquela que se buscava com os
Estados Unidos e, segundo, ao relançar a relação cooperativa com os
vizinhos da América do Sul e com as grandes potências, por modo a
romper com a política de isolamento em que o país vivera mergulhado
no passado.
4) Criar uma zona de paz no Cone Sul da América. A garantia de paz
para a Argentina seria fornecida pelo fortalecimento da segurança
decorrente da criação da zona de paz em sua área de influência, o sul
do continente. Para tanto, o entendimento com a Inglaterra e a
cooperação militar, primeiro com o Brasil e depois com o Chile,
seriam os passos da estratégia de confiança a alcançar. Esse objetivo
vem associado ao anterior, de promover a integração econômica e
política latino-americana a partir do Mercosul. Contudo, a realização
da política externa de segurança nacional aparece como uma variável
dependente de dois outros fatores: por um lado, da obtenção de
tratamento especial por parte dos Estados Unidos mediante acesso à
condição de membro especial da OTAN ou, quiçá, a própria admissão à
organização e, por outro, da desconstrução das seguranças nacionais.
Em outros termos, a zona de paz seria efetiva quando os meios de
segurança dos países do Cone Sul fossem desmontados em favor do
controle externo por parte do aliado especial ou da OTAN, que
auscultariam a Argentina antes de tomar decisões relativas à América
do Sul e, quiçá, lhe fornecessem modernos meios de ação externa.
5) Desenvolver uma política de prestígio internacional. A política de
prestígio recupera a tradição principista do passado, particularmente
o estilo diplomático de Juan Domingo Perón, conferindo-lhe a
legitimidade de que carecia, por vir desde Menem estribada nos
princípios universais da diplomacia do Primeiro Mundo. Após reverter
a opinião argentina aos novos valores ' liberalismo econômico,
integração, democracia, direitos humanos, meio ambiente, combate ao
narcotráfico, ao terrorismo e às ditaduras ' o Estado dispôs-se a
conduzir de forma ostensiva a política de prestígio como tática
voltada à epifania da nova política exterior da nação. Para realizar
tal empenho, o momento e o gesto espetacular foram escolhidos como
oportunidades da sorte. Aos olhos do observador externo, essa lógica
não levou em conta o realismo. Com efeito, a História está repleta de
exemplos dessa conduta malograda de algumas nações que carecem de
poder. Apesar disso os dirigentes argentinos não hesitaram em
recorrer a uma política de prestígio feita de gestos grandiloqüentes,
consoante velhas táticas do peronismo.
A comunidade epistêmica argentina que procedeu ao revisionismo histórico, à
fundamentação doutrinal e ao desenho estratégico da nova política exterior, nos
moldes dos cinco pilares acima descritos, apresentou surpreendente coerência,
além de convergir para a convicção de que esse era o caminho da reincorporação
do país ao Primeiro Mundo. Esses analistas das relações internacionais do país,
que por vezes coincidem com seus protagonistas, pretendiam, na prática, fechar
o ciclo da decadência nacional resultante da política exterior do isolamento
implementada no segundo tempo da história argentina, entre 1930-45 e 1983-89, e
contribuir para empurrar o país ao terceiro tempo, o da prosperidade.
Nas palavras de Raúl Bernal-Meza, os epistêmicos certamente produziram o
suporte ideológico-conceitual e cognitivo que o modelo neoliberal requeria, mas
outro grupo intelectual e acadêmico da Argentina contrapôs sistematicamente,
por meio da cátedra, da investigação e das publicações, uma oposição crítica a
esta comunidade epistêmica. Seus membros mais conhecidos foram Atilio Borón,
Mario Rapoport, Aldo Ferrer e o próprio Bernal-Meza. Estiveram a postos desde
os primeiros momentos. Prenunciaram os erros estratégicos da opção neoliberal e
não necessitaram aguardar os resultados negativos para o país, provocados pela
década menemista em termos de indicadores econômicos e sociais, para expor suas
interpretações.
No Brasil, as linhas de análise das relações internacionais do país não se
dispersaram nos anos noventa como na Argentina. Há muito, por sinal, as teorias
da dependência estavam em descrédito nos meios acadêmicos brasileiros. Não se
construiu no Brasil uma teoria da decadência e tampouco se escreveu contra o
isolamento nacional do passado. Pelo contrário, os historiadores refletiram, de
modo geral, uma interpretação valorativa dos sessenta anos que precederam o
Governo neoliberal de Fernando Collor de Melo. Promoveram uma espécie de
apologia do modelo de política exterior cujo vetor era o desenvolvimento
nacional. Esta visão positiva do passado, em contraposição à visão argentina da
decadência, foi hegemônica no Brasil. Ela se reflete nas obras mais relevantes
publicadas nos anos noventa por eminentes scholars como José Augusto Guilhon de
Albuquerque, Moniz Bandeira, Paulo Roberto de Almeida, Clodoaldo Bueno, José
Flávio Sombra Saraiva e Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, entre os quais este
autor e outros mais podem ser incluídos. Nada de comparável à numerosa
literatura revisionista e ideologizada da Argentina existe no Brasil. Nada de
comparável ao confronto de correntes de interpretação das relações
internacionais. Como se a base étnica e cultural da nação, multiracial e
pluralista, fosse capaz de engendrar consensos nacionais.
Os resultados desiguais do modelo de desenvolvimento, adotado com maior
racionalidade e continuidade no Brasil do que na Argentina e em outros países
da América Latina, entre 1930 e 1989, explicam por certo a reação dos
intelectuais e essas divergências de avaliação da experiência do passado em
ambos os países.
Essa observação nos sugere a questão do ambiente em que se produz o
conhecimento das relações internacionais do Brasil nos anos noventa.
Em nenhum país da América Latina foi tão difícil a transição do paradigma de
política exterior do Estado desenvolvimentista para o paradigma do Estado
neoliberal como no Brasil. A mudança que ocorreu no Chile, no México e na
Argentina não se verificou no Brasil de forma abrupta como naqueles países. O
Presidente Fernando Collor de Melo ensaiou em 1990 uma ruptura ao estilo desses
outros países, mas Itamar Franco, que o substituiu em 1992, pisou no freio das
inovações em termos de políticas públicas nacionais e da política exterior. A
política exterior de Fernando Henrique Cardoso, em seus dois mandatos entre
1995 e 2002, corresponde a uma prática sem paradigma. Por que tanta
indefinição?
Foi difícil ao governo brasileiro adaptar sua agenda externa aos novos temas
globais. Aceitou de bom grado a emergência da democracia e dos direitos humanos
nas decisões de política internacional, no entanto afastou com repugnância a
nova ingerência da aliança ocidental, a OTAN, mesmo quando feita em nome desses
valores, mas fora do sistema de decisão coletiva das Nações Unidas. Considerou
a irrupção da causa ecológica e da cláusula social sobre o comércio
internacional como nova forma de proteção dos países avançados e reagiu no
sentido de corrigir distorções. Desconfiou do credo liberal difundido desde
Washington ' liberalização do mercado interno e dos fluxos financeiros
internacionais, internacionalização dos empreendimentos nacionais,
particularmente dos serviços ' e confrontou-o com o conceito de globalização
assimétrica.
Em suma, o Estado brasileiro dos anos noventa hesitou em tornar-se um Estado
normal, como fizeram a Argentina, o Chile, o México e outros. Normal, isto é,
receptivo, submisso e subserviente aos comandos das estruturas hegemônicas do
mundo globalizado. O passado nacional de sessenta anos somente foi avaliado de
forma negativa por um grupo de economistas que aprenderam nos programas de pós-
graduação dos Estados Unidos o credo neoliberal e estavam dispostos a aplicá-lo
quando se tornavam autoridades da República. Estes economistas, e algumas
outras autoridades cujo pensamento com eles se conformava, esforçaram-se por
difundir a noção de globalização benéfica. Apesar de deter a maior soma de
poder em matéria de relações internacionais do país, a esfera das relações
econômicas, o grupo não se tornou hegemônico sobre a inteligência nacional do
Brasil, como ocorreu em boa medida com o grupo epistêmico da Argentina. A maior
parte do meio político, talvez possamos dizer o mesmo do meio diplomático, mas
sobretudo o meio acadêmico, avaliou positivamente a estratégia de
desenvolvimento brasileiro das últimas décadas e avançou o conceito de
globalização assimétrica, que expressa uma interpretação mais nociva que
benéfica para a periferia do capitalismo. O próprio Presidente Cardoso, embora
ideologicamente simpático à expansão do neoliberalismo, usou o termo em
conferências públicas, com o fim de denunciar efeitos contraproducentes da nova
ordem internacional
Estes condicionamentos influíram na produção do conhecimento das relações
internacionais do Brasil nos anos noventa e certamente continuam influindo. Os
estudos de relações internacionais feitos no Brasil não são abundantes
comparativamente com outros países até mesmo de menor peso, como a Argentina.
Os mais numerosos até o ano 2000 foram, precisamente, os estudos históricos: da
política exterior e das relações internacionais do país. Em menor número
existem ensaios de politólogos e outros trabalhos no campo da economia, da
sociologia e do direito internacionais. A carência fundamental desses estudos
no Brasil verifica-se no campo da teoria das relações internacionais, que tanto
avançou em muitos países, particularmente nos Estados Unidos.
Outra característica da produção brasileira em relações internacionais é sua
distribuição entre diplomatas de carreira e Universidade. Existe ainda uma
parceria efetiva entre acadêmicos e diplomatas no campo de estudo das relações
internacionais do Brasil e esta colaboração certamente contribuiu para se
atingir a maturidade científica, no entender de Paulo Roberto de Almeida4.
Em sentido epistemológico, caberia perguntar se a América Latina desenvolveu
uma escola de interpretação das relações internacionais. Se existe um paradigma
analítico brasileiro ou argentino, mexicano ou chileno, venezuelano.
A Universidade de Brasília, com seus Departamentos de História e de Relações
Internacionais, e o Istituto de Investigaciones de Historia Económica y Social
da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade de Buenos Aires reuniram
nas últimas décadas grupos precursores de estudos avançados que contribuíram
para modernizar a área de estudo das relações internacionais na região.
Coincidentemente, a produção desses dois centros colocou invariavelmente sob
suspeita a estratégia neoliberal latino-americana. Nessas instituições, os
estudos adquiriram o perfil próprio decorrente das visões de mundo que os
países da América Latina alimentaram com suas preocupações e seus desígnios
externos.
Se existe um paradigma latino-americano de análise das relações internacionais,
pode-se dizer que apresenta em sua gênese e evolução dois fundamentos: por um
lado, deprimiu o papel da guerra e da segurança, já que este foi, desde a
independência e a consolidação dos Estados nacionais, um subcontinente pacífico
e não uma zona de pressão; por outro lado, introduziu o primado da luta pelo
desenvolvimento nos estudos internacionais, já que o desenvolvimento se tornou
o vetor das políticas exteriores nos diversos países, desde os anos trinta ou
quarenta do século XX.
Além das histórias gerais das relações internacionais de Brasil e Argentina
(Juan Archibaldo Lanús, José Paradiso, Paulo Gilberto Fagundes Vizentini, José
Augusto Guilhon Albuquerque, Clodoaldo Bueno, Amado Luiz Cervo), inúmeras obras
aprofundaram as relações entre estes países e as grandes potências, Estados
Unidos em primeiro lugar, mas também a Inglaterra, a Alemanha, a França e a
Itália (Gerson Moura, Moniz Bandeira, Mario Rapoport), entre o Brasil e a
África (José Honório Rodrigues, José Flávio Sombra Saraiva), bem como as
relações regionais (Paulo Roberto de Almeida, Edmundo Anibal Heredia, Francisco
Doratioto, Moniz Bandeira). Não citamos a contribuição de historiadores
estrangeiros, muito importante décadas atrás.
Centremos a atenção sobre o paradigma analítico brasileiro, que não se confunde
com o latino-americano, mas espelha uma corrente regional de interpretação das
relações internacionais. Quando definem as tendências gerais das relações
internacionais do Brasil, quando analisam as relações com os parceiros
estratégicos, o desempenho diante da grande política internacional ou a atuação
junto aos órgãos multilaterais, os analistas brasileiros manifestam
preocupações próprias. Concentraram suas análises nas possibilidades econômicas
abertas pela expansão do capitalismo e nos mecanismos de sustentação ou
superação do atraso histórico. Tiveram de enfrentar o dilema das opções de
política exterior, entre o desenvolvimento autônomo, à base de uma economia
nacional robusta e auto-sustentada, e o desenvolvimento associado às forças da
economia internacional, à base do capital e do empreendimento estrangeiros. Em
meio ao mundo bipolar da Guerra Fria e à globalização do fim do século XX,
foram vinculadas aos estudos internacionais questões como a legitimidade do
desenvolvimento, a desigualdade entre as nações, as relações assimétricas entre
as potências avançadas e os países em desenvolvimento, a cooperação
internacional, a exploração e a dependência, a transferência de renda, a
permanência de estruturas de poder e de riqueza, entre outros ingredientes das
experiências de inserção internacional dos países da América Latina. Esse
perfil próprio da política exterior do Brasil assenta na identidade de um país
heterogêneo em sua base étnica e múltiplo em sua expressão cultural. A conduta
histórica de sua diplomacia pautou-se pela cooperação e pela não confrontação,
pelo legado feito de respeito ao direito internacional, à autodeterminação dos
povos e ao culto da paz. Porém, sua essência, nos sessenta anos que vão de 1930
a 1990, foi a diplomacia para o desenvolvimento.
Ao tentarem introduzir um novo paradigma latino-americano, os autores de
vertente neoliberal como as autoridades econômicas do Brasil e os epistêmicos
argentinos do fim do século XX afastaram essas questões de fundo de suas
categorias de análise. Em seu lugar, firmaram a tese de que a conformação das
políticas interna e externa ao consenso neoliberal induz o progresso em todos
os aspectos da vida e configura uma ordem internacional sem alternativa.
Eliminaram de suas considerações o planejamento estratégico e a idéia de um
projeto nacional. Contudo, essas questões de fundo inspiram a corrente crítica
acima mencionada, que preexistiu às experiências neoliberais e se manteve viva
durante sua vigência. Entendem seus autores, mais realistas e menos
ideologizados, que a América Latina, ao termo do ciclo desenvolvimentista,
necessitava transitar para outro paradigma de relações internacionais. Entendem
ademais que o cânon neoliberal não era a opção estratégica correta para
implementar os interesses e o bem-estar dos povos da região.
Balanço das relações internacionais do Estado normal e primeiras reações
Poder-se-ia argumentar, com Andrew Hurrell, que a América Latina,
particularmente o Brasil, não é uma entidade fechada que interage com o mundo
exterior5. Que seus interesses, pelo contrário, são constantemente repensados
em razão dessas interações. Dado o alto grau de desigualdade entre as nações,
entre o norte e o sul, é natural observar a transferência e a adoção de idéias
externas, normas e práticas e a miscigenação de tudo isso com valores e
percepções internas. Ao final do século XX, a América Latina não poderia
ignorar as novas condições em que se processavam externamente as relações
interestatais, a globalização dos mercados e a homogeinização da sociedade
internacional. As novas opções dos latino-americanos levaram tais fenômenos em
conta, o que pode explicar a irrupção do pensamento neoliberal.
Teriam as duas experiências históricas de inserção internacional da América
Latina desde os anos trinta, o desenvolvimentismo e o neoliberalismo,
reproduzido o mesmo erro de percepção das interações com o exterior? Como se a
causalidade externa induzisse resultados em apenas uma direção? Com efeito, os
desenvolvimentistas, especialmente aqueles imbuídos das teorias da dependência,
viram as estruturas das relações internacionais entre a América Latina e o
Primeiro Mundo como obstáculos no caminho do desenvolvimento. No outro extremo,
os neoliberais viram no ajuste das estruturas latino-americanas ao mundo
globalizado o caminho da ascensão ao Primeiro Mundo.
A complexidade do real evidencia que uns e outros compartilhavam boa dose de
acerto e de erro em suas avaliações. As estruturas da ordem internacional
produziram efeitos perniciosos ao esforço de desenvolvimento empreendido pelos
países da periferia durante a segunda metade do século XX. Contudo, certas
distorções do modelo de Estado desenvolvimentista, já referidas, não haverão de
ser tributadas a causalidades externas e constituíram-se em óbices do
desenvolvimento. Para engendrar um processo contínuo de elevação de seu status,
os países da América Latina necessitavam remover aqueles óbices internos e não
apenas render-se à pressão internacional, introduzindo o paradigma do Estado
normal.
As interações da América Latina com o mundo exterior, seja qual for a opção
estratégica de um determinado período, apelam à constante vigilância de seus
governos diante dos esquemas de benefícios e custos envolvidos nas relações
internacionais. Autonomistas e associacionistas, desenvolvimentistas e
neoliberais podem exibir sua dose de razão, conquanto temperem suas percepções
com o indispensável cálculo.
As reações dos meios intelectuais da América Latina diante das experiências
neoliberais dos anos noventa foram polêmicas. Prevaleceram no pensamento
acadêmico brasileiro um senso crítico dotado de certa repugnância e no
pensamento argentino uma adesão acrítica diante da mudança de paradigma de
relações internacionais. Já a opinião eleitoral, cuja reação é lenta porém
madura, expressou um julgamento severo, ao afastar do poder os agentes da
abertura econômica e da alienação sem barganha e ao colocar no governo regimes
de centro-esquerda, na transição de um para outro século.
A reação pelo voto evidencia na percepção da opinião popular as insuficiências
das políticas exteriores do Estado normal: endividamento para sustentar uma
estabilidade monetária baseada na captação pelo Estado de capitais
especulativos; venda de empresas públicas para honrar compromissos financeiros
crescentes; queda da atividade produtiva interna em razão da queda tarifária;
abandono da integração produtiva em favor da integração meramente
comercialista; conflitos comerciais intrazonais entre membros dos blocos
econômicos, Mercosul e Pacto Andino; desmonte dos sistemas nacionais de
segurança; desativação da pesquisa tecnológica transferida para as
multinacionais; transferência crescente de renda ao exterior, compensada pela
ilusão dos ingressos especulativos; crescimento do desemprego; aumento da massa
dos excluídos; crescimento da criminalidade e outras insuficiências.
Os economistas liberais que se apropriaram das decisões internas e externas em
matéria de comércio, finanças e propriedade empresarial estavam isolados, mais
de uma década depois de iniciado o processo de mudança, na convicção de que a
globalização era benéfica. Os próprios neoliberais de bom senso contrapuseram-
lhe a noção de globalização assimétrica, ou seja, de benefícios desequilibrados
entre as nações. A globalização passou a ser vista como o fenômeno do fim do
século XX por meio do qual algumas nações avançadas derramam sua superioridade
sobre as nações da periferia, aprofundando e prolongando o desequilíbrio
estrutural entre os dois mundos.
Este estudo sobre velhos e novos paradigmas de relações internacionais da
América Latina sugere uma conclusão. Ao invés de transitar o Estado
desenvolvimentista para o Estado normal, a racionalidade do processo histórico
demandava, diante do fenômeno da globalização, um outro desfecho paradigmático.
Admitindo-se como inelutável o fim do Estado interventor, a evolução adequada a
implementar era do Estado desenvolvimentista para o Estado logístico. Com
efeito, todo o avanço no sentido do domínio de tecnologias, da criação de
grandes empresas com notável produtividade, do provimento das necessidades do
mercado, da expansão do emprego e da renda foi obra do paradigma
desenvolvimentista. Ao ostentar tais resultados, robusteceu o poder regional em
escala mundial. O modo como os regimes neoliberais reagiram diante da nova
interdependência global correspondeu à disposição de desconstruir esse
patrimônio. A todos os títulos, correto seria o esforço que tomasse como
desafio, no ponto do avanço atingido, a expansão de alguns setores, mediante
uma integração produtiva regional em uma primeira fase, sistêmica global em uma
segunda fase.
Ao termo do ciclo desenvolvimentista, a América Latina usufruía de condições
adequadas para engendrar empreendimentos de envergadura global. Dispunha dos
quatro fatores requeridos para uma inserção competitiva no mundo
interdependente: grandes empresas, tecnologias próprias, mercado e capitais. A
internacionalização da economia latino-americana poderia haver-se iniciado em
setores de atividades como siderurgia, aeronáutica, petróleo, comunicações,
alimentação e certas indústrias. A região não carecia nem de capital nem de
tecnologias externas para tanto, porque deles dispunha em medida suficiente '
sabe-se que a América Latina, desde a alta dos juros internacionais de 1981,
tornou-se um grande exportador líquido de capitais. Carecia apenas de um Estado
logístico que, ao invés de desconstruir e alienar, houvesse preferido avançar
por meio de associações, dando suporte à expansão de empreendimentos de origem
regional. A opção do regresso neoliberal foi uma opção latino-americana, não
uma imposição devida a coerções externas. Se Estados europeus, até mesmo de
pequeno porte, como Portugal e Espanha, fizeram opções corretas, que forças
haveriam de impedir os dirigentes latino-americanos de proceder da mesma forma?
Com um Estado logístico, de comportamento similar aos Estados avançados e tendo
como protótipo, precisamente, os Estados Unidos, a inserção da América Latina
no mundo globalizado não teria sido desastrosa nem assimétrica.
Além de reverter o processo de desenvolvimento auto-sustentado posto em marcha
desde os anos trinta, os liberais do fim do século exibiram uma desmedida
segurança em sua estratégia, chamando de saudosistas aqueles que porventura
discordassem de suas idéias. De um ponto de vista histórico, contudo, foram os
dirigentes do fim do século XX que reproduziram na América Latina o paradigma
liberal-conservador do século XIX. Quando o capitalismo exigiu da periferia,
durante a primeira metade do século XIX, a política das portas abertas, fê-lo
para escoar excedentes industriais, capitais e serviços. Quando impôs a mesma
política de portas abertas, ao final do século XX, fê-lo para escoar excedentes
de capitais, tecnologias, produtos e empresas. Esses fatores, que sustentam a
superioridade do centro, seus níveis de emprego, de renda e de bem-estar, não
deveriam ser gerados na periferia, mas absorvidos passivamente, para
retroalimentar o centro. O Estado normal, Estado subserviente e sem
criatividade, a invenção latino-americana por excelência, consentiu na
reprodução do desequilíbrio estrutural do processo de desenvolvimento. Ele
repôs a América Latina no caminho de regresso à infância sócio-econômica, como
se devesse retomar sua função de exportadora de matérias-primas e produtos
agrícolas. Ele fez a ponte entre o primeiro e o terceiro paradigma de relações
internacionais, em uma espécie de salto para trás, que eliminou o ciclo
intermediário. Quem foram, pois, os saudosistas?
Estabilidade monetária e aumento de produtividade do sistema empresarial são os
ganhos atribuídos aos governos neoliberais da América Latina. Desconstrução do
núcleo central da economia, endividamento interno e externo, alienação do
patrimônio nacional e transferência de renda são seus custos. Em termos
prospectivos, os governos neoliberais reintroduziram mais um século de
dependência estrutural, o atraso histórico cuja superação ficou mais distante.
O debate paradigmático não se reduz a um divertimento acadêmico. Faz sentido,
na medida em que as opções estratégicas de relações internacionais determinam,
ao lado do desempenho interno das sociedades, as condições de vida dos povos.
Particularmente, no caso do signo liberal prevalecente na América Latina no fim
do século XX, evidencia o peso da injunção ideológica sobre o processo
decisório dos governos.
Notas
1 Certas passagens do texto coincidem com a parte do autor inserida em Samuel
Pinheiro GUIMARÃES, Argentina: visões brasileiras, Brasília: Ministério das
Relações Exteriores, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, no
prelo.
2 A bibliografia anexa a este texto foi examinada pelo autor com o intuito de
fundamentar suas interpretações. Serviram-lhe ao mesmo propósito grande número
de artigos publicados pela Revista Brasileira de Política Internacional,entre
1993 e 2000, acerca das relações interamericanas e das relações internacionais
da América Latina.
3 Seus textos aparecem, na bibliografia anexa, tanto em obras individuais como
em obras coletivas, cujas referências indicam apenas o nome dos organizadores.
4 Ver o livro de Paulo Roberto de ALMEIDA, O estudo das relações internacionais
do Brasil,referido na bibliografia.
5 Andrew HURRELL, "Brazil's Foreign Policy and International Relations Theory".
Paper apresentado ao Colóquio Brazil's International Relations in the Twentieth
Century: History and Theory, Universidade de Oxford, 26 de maio de 2000.