Unipolaridade, governabilidade global e intervenção unilateral anglo-americana
no Iraque
Introdução
O fato de determinadas idéias, que contradizem grosseiramente o real, se terem
imposto como um "horizonte inultrapassável" constitui um dos traçosmais
espantosos da cultura dos nossos dias.
Raymond Boudon (1998: 272)
Neste artigo pretendemos relacionar três problemáticas conceituais ' a do
caráter unipolar do sistema internacional desde o início dos anos 90, a da
governabilidade global do mundo e a do unilateralismo em relação às questões de
segurança coletiva ' acerca de um evento histórico, a intervenção militar no
Iraque pela coalizão anglo-americana em 2003. Neste sentido, entendemos por
unipolar um sistema internacional no qual existe uma concentração de riqueza e
poder numa potência que não tende a ser contestado por uma coalizão de todas as
outras potencias relevantes. Isto quer dizer que o sistema internacional
continua sendo essencialmente anárquico (embora menos que no passado por causa
da interdependência crescente da globalização econômica e tecnológica) e que
não deve ser confundido com anarquia hobbesiana nem com um governo mundial do
tipo kantiano. O mundo unipolar constituísse pela combinação do repentino
colapso da União Soviética, do extraordinário dinamismo da economia americana e
da estagnação econômica alemã e japonesa. Circunstâncias estas que pegaram de
surpresa até as próprias elites americanas. De uma forma realista, entendemos
por governabilidade global as políticas e as normas que permitem administrar os
diversos problemas econômicos, políticos e sociais mundiais a partir de uma
estrutura hierárquica de potências. Organizações internacionais como as Nações
Unidas têm um papel limitado e secundário do ponto de vista da governabilidade
global. Por último definimos intervenção unilateral em relação a um
comportamento político-militar, fora do direito internacional, da potência
hegemônica no sistema internacional (de tal forma que fica excluída qualquer
outra intervenção militar ilegal que não envolva a potência hegemônica).
A colonização idealista de uma área tradicionalmente realista
Quando o secretário de Defesa do governo Bush, Donald Rumsfeld, no dia da
entrada em Bagdá das forças de coalizão anglo-americana e da conseqüente
derrubada do regime de Saddam Hussein reclamou da mídia porque não havia
manchetes que fizessem referência à libertação do povo iraquiano de uma longa e
sangrenta ditadura, ele estava registrando algo mais que uma queixa.1 Chamando
a atenção para o fato dos jornais nesse dia terem concentrado sua atenção no
sofrimento dos habitantes de Bagdá, submetidos ao caos resultante de um grande
número de saques e roubos, Rumsfeld estava constatando um fato que ultrapassava
as notícias do dia. Ciente, ou não, das implicações de sua declaração, ele
estava registrando um fato que continua a passar praticamente despercebido,
apesar de sua enorme relevância: o retrocesso histórico da mentalidade
dominante nos países ocidentais. Em outras palavras, se aos olhos da mídia
importa mais noticiar o caos social de uma cidade que a supressão da tirania
despótica que governava o país na qual se encontra essa cidade, isto quer dizer
que a mentalidade ocidental está sofrendo um retrocesso em termos dos valores
históricos tradicionais que guiaram a evolução política do Ocidente.
Se nos perguntamos, como um exemplo, o que diria o cidadão médio de qualquer
grande cidade européia nos séculos XVIII e XIX sobre um fato equivalente de sua
época, veríamos que, independentemente de suas ideologias e motivações, ele
certamente concordaria com Rumsfeld, no sentido de que se deve dar prioridade
ao fato político e social libertador, em relação ao atraso e ao despotismo,
apesar dos eventuais sofrimentos humanos que possam acontecer no curto prazo.
Tanto Kant, quanto Marx (tomados aqui como exemplos paradigmáticos dos extremos
do espectro civilizatório da primeira modernidade), não vacilariam em apoiar
decididamente acontecimentos políticos que possuíssem um conteúdo marcadamente
progressivo em relação ao futuro, ainda quando eles mesmos não concordassem em
absoluto com as intenções postas em prática pelos seus protagonistas.
Apesar de estar perfeitamente ciente do terror produzido pela Revolução
Francesa, em O conflito das faculdades (publicado em 1798), Kant afirma:
(...) esta Revolução, digo, encontra no espírito de todos os
espectadores (que não estão eles mesmos enredados neste jogo) uma
simpatia de aspirações que beira o entusiasmo ' cuja manifestação
seria perigosa e não poderia ter outra causa senão uma disposição
moral no gênero humano. (Kant, 1963: 109).
Do mesmo modo, em defesa insuspeita do intervencionismo do imperialismo inglês,
Marx conclui seu texto A dominação britânica na Índia (publicado em 1853) com
as seguintes palavras:
é verdade que a Inglaterra, ao provocar uma revolução social no
Hindustão, era guiada pelos interesses mais abjetos e agia de uma
maneira estúpida para atingir seus objetivos. Mas a questão não é
essa. Trata-se de saber se a humanidade pode cumprir seu destino sem
uma revolução fundamental na situação social da Ásia. Senão,
quaisquer que fossem os crimes da Inglaterra, ela foi um instrumento
da História ao provocar esta revolução. Nesse caso, diante de
qualquer tristeza que possamos sentir diante do espetáculo do colapso
de um mundo antigo, temos o direito de exclamar como Goethe: "Deve
esta dor nos atormentar/ já que ela nosso proveito aumenta, / O jugo
de Timur não consumiu miríades de vidas humanas? (Marx, 1977 (vol.
1): 359).
Vico ensinou que a historia é feita de corsi e ricorsi, o qual vale tanto para
processos como para mentalidades. A sociologia do conhecimento mostra que até o
século XVI as pessoas entendiam a história de forma muito diferente que na
época de Kant e Marx. Ao contrario do que aconteceria posteriormente, o público
contemporâneo de Maquiavel preferia interpretar a história por meio de normas
morais, deixando para um segundo plano os próprios fatos; em outras palavras, a
história era lida tendo em mente preceitos retóricos antes que científicos
(Burke, 2003). Comprova-se hoje que os tempos voltaram a mudar e os fantasmas
doutrinários, que assolaram Maquiavel há muitos séculos, nas últimas décadas se
levantaram das tumbas. Este ressurgimento de antigos fantasmas deve ser
cuidadosamente analisado, já que a distorção na percepção dos fatos históricos
é em si mesmo um fato de primeira magnitude, tão inesperado quanto poderoso.
No século XX, com a exceção dos Estados Unidos e do Reino Unido, nos demais
países ocidentais os estudos das relações internacionais atraíram escassa
atenção no campo das ciências sociais. A problemática das dificuldades
internacionais convocava apenas um pequeno grupo de especialistas, dos quais a
maioria formava parte da diplomacia. Talvez por isso, quando o fenômeno da
globalização começou a ser percebido, nos países periféricos não faltaram
analistas que a trataram como ideologia pretensamente neocolonialista, mas não
de um fato. É bom lembrar esta barbárie conceitual porque, embora esteja
atualmente superada, ela é demonstrativa dos problemas que normalmente se
encontram nesta área. Hoje não resta dúvida da importância dos fenômenos da
globalização, a qual pode ser facilmente constatada no campo das ciências
sociais observando a crescente atenção que os problemas globais (políticos,
sociais, ambientais, etc.) vêm recebendo na última década por parte desses
cientistas. Assim, com pouco ou nenhum background especializado na área de
relações internacionais, é freqüente agora encontrar autores provenientes da
sociologia (ou inclusive da antropologia) pesquisando e escrevendo sobre temas
globais ou internacionais. Isto poderia ser motivo de alegria epistemológica se
realmente estivesse frente a um esforço assumido interdisciplinarmente porém,
infelizmente, é tudo o contrário. O bom observador pode comprovar hoje que as
correntes e preocupações teóricas que dominam as ciências sociais são
praticamente trasladadas ao campo de estudos das relações internacionais sem
qualquer revisão crítica. Assim, com a mesma "leveza" que antes se negava a
existência da globalização e outros fenômenos conexos, agora os problemas são
estudados com uma ótica semelhante à que se pesquisa um movimento social ou os
problemas do self contemporâneo. A revisão crítica mencionada deveria ser
obrigatória, até porque o campo teórico das ciências sociais se constituiu em
suas origens por meio de diversos reducionismos que operaram uma
descaracterização e uma redução da esfera da ação dos Estados como
protagonistas da vida social, em geral, e das relações internacionais, em
particular. Assim, o que temos hoje não é tanto um enriquecimento da pesquisa e
debate neste campo a medida em que as perspectivas tradicionalmente normativas
e militantes que predominam nas ciências sociais contemporâneas estão
colonizando perigosamente os estudos das relações internacionais.
A análise das relações internacionais exige um máximo de realismo (Luttwak
1999, Buzan 2002, Friedman 2002, Friedman 2003). Mas o realismo não é uma
teoria entre outras. Antes de ser uma teoria, o realismo é uma perspectiva que
constrói seus marcos normativos com base na história e não de disciplinas
especulativas. Nesta área, o pesquisador precisa de um trabalho prévio de
despojamento dos dogmatismos filosóficos e religiosos de sua época para atingir
mínimas bases científicas. A cegueira intelectual deriva não tanto da escassez
de princípios categóricos sobre como "deve ser" a realidade, mas de sua
abundância. Infelizmente, nas últimas décadas as ciências sociais têm sido
dominadas por correntes militantes que se confundem em boa medida com as
posições éticas e teológicas dos atores da sociedade civil. Além de intérpretes
engajados, hoje os cientistas sociais correm o risco de mimetizar-se com as
ações de atores concretos. Neste contexto, não é difícil comprovar que o
realismo resulta de um bem cada vez mais escasso. No Brasil existem quatro
fontes e também partes integrantes do idealismo normativo. Em primeiro lugar,
temos a suposição que o atual sistema internacional é injusto por estar baseado
na exploração dos países pobres e que deveria ser mudado baseado na justiça
social entre os povos e na democracia entre os Estados, sendo que esta visão é
partilhada pelas subculturas marxista, desenvolvimentista keynesiana e
católica. Em segundo lugar, temos a suposição que a economia de livre mercado
neoliberal é um instrumento de dominação americana do mundo, que pode ser
contestada e que tende a diminuir junto com o declínio dos Estados Unidos,
baseado numa assertiva quase metafísica de que "todo império perecerá". Em
terceiro lugar, temos a suposição que o Brasil ' pelo seu peso territorial,
demográfico, econômico, ecológico e cultural ' poderia, e deveria, ter um lugar
mais destacado no sistema internacional caso houvesse uma política externa
agressiva, sendo este voluntarismo muito mais presente nos políticos, militares
e intelectuais e menos nos diplomatas que conhecem os constrangimentos do
sistema. Em quarto lugar, temos a suposição que a norma jurídica internacional
é capaz de produzir a realidade (numa réplica do imaginário do paradigma da
Constituição de 1988), o que é alimentado por um processo de formação de
opinião internacional nas elites, em que pesam mais os juristas e os
economistas keynesianos, e menos os economistas de formação neoclássica ' estes
são os fundamentos da abordagem realista nas relações internacionais (Viola
& Pio 2003).
Existem boas razões para acreditar que uma parte importante dos problemas de
nossa época tem suas raízes em idéias políticas modernas. Independentemente dos
méritos epistemológicos da ciência da modernidade em relação à da pré-
modernidade, no seio da civilização ocidental foram introduzidas premissas que
distorcem fortemente a realidade. Premissas que, entre outras coisas, levam a
imaginar a realização de uma sociedade universal que suporia liberdade e
igualdade para todos os indivíduos, a existência de uma comunidade
internacional integrada por Estados também livres e iguais, além de justiça,
felicidade e riqueza para todos (ver, entre outros: Strauss, 1953; Voegelin,
1978). Assumindo como um problema o otimismo exagerado desse projeto, parece
oportuno revisar os supostos iluministas que dificultam, especialmente, a
compreensão da política mundial. Alem da visível (e incrível) resistência
ideológica do princípio de soberania nacional, existem outras duas questões não
menos fundamentais que não aparecem suficientemente explicitadas no cenário
teórico da área. A primeira é a presença clara de um forte iluminismo por trás
da maioria das análises contemporâneas. Observe-se, por enquanto, que embora as
visões iluminista da sociedade e da política sejam antigas, elas cobraram
grande ímpeto às sombras do fim da Guerra Fria. Curiosamente, apesar da
filosofia iluminista e do principio da soberania nacional pertencerem a
paradigmas opostos (idealismo, por um lado, e realismo, por outro), após a
Guerra Fria, na visão de muitos analistas contemporâneos, ambos elementos foram
acomodados lado a lado sem problemas. Mas existe uma outra questão,
relativamente associada à anterior, que também passou despercebida e cujo peso
não é menos importante ao analisar a política mundial. Trata-se da extrapolação
do vínculo existente entre ética e política, especificamente na esfera do
Estado democrático, para o campo das relações internacionais em geral.
Certamente, a crescente presença do argumento ético-moral sobre o argumento
estritamente político na esfera das relações internacionais tem algum suporte
na realidade, especialmente se for considerado que os anos 80 e 90 foram
testemunhas de significativos processos de transição para a democracia nos
países do Leste Europeu e da União Soviética, mas as explicações desse fenômeno
devem ir mais longe.
Do ponto de vista explicativo, estas duas questões (a do iluminismo idealista e
da ética aplicada às relações internacionais) se reforçam mutuamente, na medida
em que estão sujeitas a uma mesma racionalidade utópica e societalista (isto é,
focalizada mais na lógica do comportamento da sociedade civil do que dos
Estados). As conseqüências para o campo de estudo das relações internacionais
não poderiam ser maiores. Isto supõe, como já foi dito, uma colonização da área
de conhecimento específica das relações internacionais pelas problemáticas das
ciências sociais, em particular da sociologia. Esta colonização se torna
evidente a propósito do tema da guerra, especialmente nos países fora da
tradição anglo-saxônica. Na França, o país de Napoleão, por exemplo, com a
notável exceção da obra de Raymond Aron (1980), quase não se encontram obras
que considerem a guerra um objeto importante de estudo (Ruano-Borbalan, 2003).
Para a visão das ciências sociais, a guerra parece não apenas algo pouco
importante, mas um tema incompreensível (Berkowitz 2003). Embora eventualmente
se possam compreender as causas que conduzem à guerra, ela não se apresenta,
para as ciências sociais, como um fenômeno unitário surgido de necessidade
históricas e/ou de possibilidade de ação racional por parte dos Estados. Se o
Estado não é entendido como um ator político central do desenvolvimento
histórico, senão ao contrário, como um epifenômeno do social, não pode
estranhar a ausência do tema da guerra nas principais vertentes das ciências
sociais. Nem a reflexão marxiana sobre a economia ou a weberiana sobre ação
social (para não citar senão os dois clássicos mais representativos do campo
das ciências sociais) permitiria os cientistas sociais chegarem até o Estado de
uma forma não derivada. Isto cria um interessante qüiproquó para a maioria dos
analistas sociais quando defrontados com a guerra, na medida em que esta, um
ato magno do exercício de soberania dos Estados, não consegue ser pensada por
eles, apesar de sua reivindicação explícita do princípio de soberania. O
movimento pacifista cobrou novas forças com a ameaça da guerra nuclear e foi
também utilizado como ferramenta de expansão do império soviético, conseguindo
convencer muitos analistas de que a guerra já não era mais possível. Isto
levou, de fato, não apenas a negar a guerra, mas também a não admitir de pensar
o fenômeno da guerra.
Em resumo, ante os olhos dos cientistas sociais, as guerras são provas da
perversão do sistema social antes do que qualquer outra coisa. Ainda que por
caminhos opostos, existe também uma longa tradição metafísica do pensamento
ocidental que deriva a guerra da natureza humana. De Platão a Freud,
encontramos muitos autores que atribuem às paixões as causas das guerras. Seja
como um resultado da "irracionalidade" humana ou social, o certo é que a guerra
se apresenta para as principais vertentes do pensamento ocidental contemporâneo
como algo irracional e dispensável, como conflitos que, independentemente de
sua origem, produzem conseqüências anticivilizatórias. Assim, os cidadãos
ocidentais do século XXI se confrontam hoje com o paradoxo de que a guerra se
lhes apresenta como um fenômeno de primeira magnitude, porém explicado por
teorias e disciplinas que recomendam (normativamente) que o sistema político
internacional deve procurar a paz e evitar a guerra por todos os meios. Embora
não deva ser atribuído ao realismo o contrário (isto é, uma propensão a
justificar a guerra), certamente parece razoável propiciar uma análise da
guerra com menos preconceitos filosóficos ou religiosos.2
Uma reflexão aprofundada do fenômeno da guerra permite entendê-la como um ato
pautado nas relações entre Estados num contexto onde estão presentes diferentes
perspectivas histórico-civilizatórias, como também diferentes critérios de
moral e de justiça, além de diferença de interesses conjunturais e de
desenvolvimento militar e econômico, evitando, assim, o recurso à
irracionalidade para explicar o fenômeno. Observemos que a consideração
essencialmente antipacifista da análise da guerra como um fenômeno complexo que
inclui desde a política até a dimensão moral vale tanto para um realista como
Morgenthau (1970), como para um idealista como Walzer (1991). Uma vantagem
forte do realismo em relação ao idealismo acerca de sua capacidade de análise
da política internacional, reside precisamente em prestar atenção a uma grande
diversidade de fatores empíricos situados em diferentes dimensões, não
privilegiando excessivamente nenhum deles em função de percepções normativas da
realidade.
Após a o fim da Segunda Guerra Mundial, a visão realista se impôs de forma
dominante nos países anglo-saxões. Porém, o mesmo não aconteceu em outros
países, especialmente nos países periféricos, que tradicionalmente definiram
suas políticas externas guiadas por considerações normativas e/ou ideológicas
terceiro-mundistas e/ou anticapitalistas. Tal como já foi antecipado, o
interessante a destacar aqui é que o realismo que marcava a política externa
dos países anglo-saxões também impregnava de forma dominante o campo acadêmico.
Do mesmo modo, nos países periféricos a tendência para o idealismo de suas
políticas externas também era acompanhada pelas academias respectivas. Esta
questão referente à sociologia do conhecimento não é uma digressão. Registrar
as marcas do campo intelectual nos países da América Latina, por exemplo, se
torna decisivo na hora de pensar a realidade internacional. Talvez a principal
nota comparativa seja que nos países anglo-saxões os campos científico e
político estão claramente definidos e separados. Não acontece o mesmo em nossos
países, onde os homens de ciência e os políticos são, às vezes, as mesmas
pessoas.
Em um momento onde emergem no jogo político fatores civilizatórios de longo
prazo, as idiossincrasias e as culturas políticas dos diversos países se tornam
essenciais para que seus cidadãos possam entender, ou não, os acontecimentos.
Se os atentados de 11 de Setembro nos Estados Unidos e seus provados vínculos
com as redes terroristas globais do fundamentalismo islâmico não foram ainda
suficientes para que a maioria da população dos países ocidentais (para não
falar da população dos países não ocidentais) acordasse do doce sono de uma
política pensada a partir dos valores e categorias associados à vida na
sociedade civil, isto é já em si mesmo um fato importante a ser levado em
conta.3 Nossa hipótese é que o fim do comunismo soviético e, principalmente, os
crescimentos exponenciais na década de 1990, dos processos de globalização da
economia e dos meios de comunicação, produziram a miragem da substituição do
protagonismo histórico dos Estados e dos mercados pelo da sociedade civil,
desqualificando assim o papel dos Estados modernos e dos mercados como
elementos civilizatórios (Zakaria, 2003). Esta societalização da política fez
ela perder não apenas densidade ontológica, mas também sua tradicional
perspectiva histórica. Em efeito, o espectro de teorias que universalizam às
diversas manifestações da sociedade civil (teorias que incluem desde os autores
do multilateralismo até os do cosmopolitismo, como Giddens, Beck, Bauman,
Habermas, etc.), não apenas fazem que a política perca importância frente a
outras atividades humanas, mas também nos levam a esquecer o caráter
eminentemente histórico desta atividade. Assim, a política perde tanto sua
visibilidade no presente como em relação ao futuro.4
Resumindo, em seu sentido mais elevado, a política não é tanto o que os
indivíduos fazem na dimensão atemporal da sociedade civil, mas o que os Estados
fazem numa perspectiva histórica de contribuição ao desenvolvimento da
humanidade. Portanto, com as novas guerras do século XXI (Afeganistão e
Iraque), não está apenas em questão a interpretação desses fatos pontuais, mas
também as condições para pensar a política. Retomando uma antiga metáfora de
Marx, que reivindicou a inversão do pensamento hegeliano, trata-se hoje de
colocar novamente Hegel sobre seus pés. Isto é, trata-se de abandonar a
especulação metafísica da política que deriva o mundo das visões dos
indivíduos, para retomar a análise empírica de um mundo apoiado nas ações dos
Estados, as quais, necessariamente, não são transparentes para a compreensão
dos indivíduos. Ou melhor, as guerras do Afeganistão e do Iraque demandam um
esforço conceitual para sua compreensão, precisamente porque elas estão fora do
alcance e da compreensão da ampla maioria dos indivíduos, na medida em que
estes "privatizaram" sua concepção da política e não conseguem se situar fora
do restrito universo da sociedade civil. Que a história do mundo demande um
esforço conceitual para ser interpretada não implica, obviamente, que não seja
feita pelos seres humanos, senão que estes realizam mais ou menos o que
pretendem, mas também um excedente do qual não tem consciência nem se propunham
realizar (D´Hondt, 1971). Esse excedente é inevitável porque a política
(entendida aqui, na sua máxima expressão, como ação histórica) é feita à escala
individual e supra-individual, simultaneamente. De acordo com Hegel, esse
excedente define a chamada "astúcia da razão". Em outras palavras, o lado
proposital da ação humana aponta ao interesse particular e/ou imediato,
enquanto o "imprevisível" excedente a uma construção de longo prazo.
Aristóteles (1958) deixou pairando no ar algumas questões que têm recebido
variadas respostas ao longo da história. Ele se perguntava se eram idênticos o
homem bom e o bom cidadão e, indo mais longe, se perguntava se era possível ser
um homem bom, ainda quando este não pudesse ser um bom cidadão (por estar
vivendo num estado corrupto ou perverso). Na Filosofia do Direito, Hegel (1975)
estabeleceu uma oposição fundamental que ajuda a despejar muitas das confusões
modernas associadas à antiga questão aristotélica. Hegel distingue a moralidade
subjetiva (moralitåt) de moralidade objetiva (sittlichkeit). A primeira é uma
referência direta à concepção kantiana da moral, onde a ação moral se define
por um critério formal e abstrato (a validade universal da intenção que orienta
a ação). A moralidade objetiva, pelo contrário, não se estabelece em relação a
uma norma abstrata, mas na integração consciente do homem à família, à
sociedade civil e, sobretudo, ao Estado. O critério de universalidade deixa
assim de ser abstrato, conforme Kant, para ser concreto. Portanto, não é a
carga utópica ou ética das ações, independentemente das instituições
existentes, o que define o caráter positivo e o negativo das mesmas. Sem um
Estado bom é impossível praticar boas ações no plano da política.
Na dimensão das relações internacionais a argumentação hegeliana sobre a moral
se dissolve, dada à ausência de um Estado supranacional. O juízo moral não se
aplica à política internacional porque todos os Estados, independente do seu
tamanho, população, riqueza, poder militar, são iguais em direito e não aceitam
a existência de qualquer poder supranacional que possa impor-lhes regras e
sanções. Em conseqüência, se os Estados têm a liberdade de agir da maneira que
melhor entender, a política internacional nos remete forçosamente para a
análise da "qualidade" de cada um dos Estados ou, em outras palavras, para a
perspectiva histórica dos valores colocados em jogo pelo arcabouço
institucional desses Estados. Do ponto de vista hegeliano não pode haver
qualquer dúvida de que os progressos da humanidade se realizam por meio de
guerras e revoluções. Na Introdução da Filosofia da Historia, Hegel deixa
perfeitamente claro que os períodos pacíficos não são períodos históricos
propriamente ditos (Hegel, 1955). Assim, a história universal é um processo que
vai do despotismo oriental até o estado moderno, na qual se produzem progressos
históricos sempre que os homens avançam na consciência do valor essencial da
liberdade para a vida política. Não podemos cair em simplificações na hora de
avaliar uma guerra colocada no contexto de um conflito civilizatório sustentado
por Estados com diferenças substanciais em relação à liberdade.
No mundo pós-11 de Setembro, temos algo mais que o comentado choque de
civilizações de Huntington (1997). As recomendações de Huntington apontavam
para a preservação dos núcleos irredutíveis de cada civilização. Ainda que
falando de uma perspectiva realista, sua recomendação se inscreve dentro dos
limites do pensamento da modernidade para compreender a fundo a perspectiva
histórica da ação política dos Estados. Se isto acontece com um autor como
Huntington, que não dizer daqueles que tentam pensar o mundo pós-11 de Setembro
a partir das teorias do multilateralismo e/ou do cosmopolitismo.5 Por trás
deste tipo de propostas se encontra a pretensão iluminista de priorizar a
legalidade internacional por cima das necessidades históricas quando estas
implicam conflitos potenciais. Em outras palavras, essas propostas levam a
congelar a realidade por meio da relativização dos valores em jogo e da
aceitação da ação dos Estados apenas de forma defensiva e secundária,
reduzindo, de um modo ou de outro, os problemas políticos (inclusive os
conflitos internacionais) a problemas sociais.6 Não é por acaso que por trás do
unilateralismo posto em prática pelas intervenções no Afeganistão e no Iraque
não se encontrem grandes teorias sociais (nem teóricos). Para o bem ou para o
mal, o que se combinou em chamar "unilateralismo americano" reflete a tentativa
de determinados atores ocidentais (sejam de esquerda ou de direita, já que os
governos Bush e Blair não possuem o mesmo background ideológico) de devolver-
lhe à política sua antiga hierarquia. Pensar que a economia capitalista mundial
poderia levar os valores ocidentais para o centro do cenário é uma falsa visão
da história (que hoje se cultiva tanto na esquerda como na direita). A política
praticamente se evaporaria e o despotismo e a decadência tomariam conta de um
mundo cujos principais atores não hierarquizassem os valores centrais da
tradição ocidental. As decisões dos governos Bush e Blair geram um forte
excedente (no sentido hegeliano acima comentado), sobre o qual seria prematuro
se aventurar a julgá-los de forma definitiva e conclusiva. Mas o atual vazio
teórico (ou melhor, de comentários positivos por parte dos teóricos de nossa
época) em torno deste unilateralismo deve ser considerado como normal, na
medida em que ele contradiz profundamente o senso comum. Na verdade, o grande
acontecimento histórico de nossa época não deriva da ação do terrorismo
islâmico que derrubou as torres gêmeas de Nova York, mas da firme decisão dos
governos dos Estados Unidos e de outros Estados aliados de combatê-lo sem
trégua em todas suas manifestações. É portanto nas intervenções militares no
Afeganistão e no Iraque que se encontram referências aos pressupostos racionais
da ação histórica e não na série de atentados terroristas que vêm sacudindo o
mundo a partir do 11 de Setembro de 2001. A rigor, as ações históricas
civilizatórias tiveram fortes precedentes ao longo do século XX.
Reformas liberais como fundamento da ordem unipolar
A democracia política e a economia de mercado, enquanto mecanismos de
libertação dos indivíduos e de maximização dos potenciais de uma sociedade
qualquer, tornaram-se preponderantes no mundo anglo-saxônico antes que em
qualquer outra parte do mundo. Desde a sua entrada na Segunda Guerra Mundial,
os Estados Unidos se constituíram na principal força promotora da expansão
desses valores, primeiro sendo a força decisiva na destruição militar do
fascismo europeu e do totalitarismo imperial japonês e, depois, promovendo a
reconstrução dos países da Europa Ocidental e do Japão na forma de um
capitalismo democrático. É evidente que esta reconstrução não tratou de
reproduzir valores econômicos e políticos liberais radicais na forma como hoje
se convencionou chamar de neoliberalismo, ou seja, estado mínimo e mercado
regulado com o propósito de maximizar a liberdade econômica e a concorrência
interna e externa. Neste momento, os Estados Unidos eram eles próprios
penetrados por uma visão mais coletivista do capitalismo ' a Revolução
keynesiana e suas derivações microeconômicas ' e mesmo da democracia, com uma
ênfase crescente no estabelecimento de instrumentos de consulta
neocorporativista.7
O ímpeto norte-americano de construir um mundo capitalista e democrático esteve
limitado às regiões em que os Estados Unidos consideravam estratégicas do ponto
de vista geopolítico. Neste sentido, a política dos Estados Unidos em relação à
países que faziam parte de sua área de influência direta e segura,
especialmente a América Latina, obedeceu a uma lógica mais imediatista,
inclusive favorecendo a constituição e a manutenção de regimes claramente
autoritários e de um modelo econômico não-liberal (Viola & Pio, 2003). A
promoção da democracia no plano mundial voltou a ser forte na definição da
política externa norte-americana nas administrações de Jimmy Carter (1977-1981)
e de Ronald Reagan (1981-1989). No primeiro caso, a democracia era defendida no
âmbito de uma nova visão quanto às alianças estratégicas dos EUA ' fim da
aliança com regimes autoritários anticomunistas e a promoção de movimentos de
defesa dos direitos humanos no mundo comunista, dos quais a luta do movimento
polonês Solidariedade é o caso mais exemplar.
Com Reagan, a defesa da democracia tomou a forma da revitalização da economia
de mercado no Ocidente, a começar pelos Estados Unidos e a Grã-Bretanha ' luta
contra os excessos estatistas e coletivistas do pós-guerra ' e confronto
militar com a União Soviética (Yergin & Stanislaw, 1998). Estes movimentos
da administração Reagan são fundamentais para explicar tanto a derrocada
política e econômica dos países que compunham o bloco soviético (1985-1989),
quanto à emergência de um processo de reforma estrutural do modelo de economia
planificada na China. Nas administrações Carter e Reagan, apesar da ênfase na
adoção da democracia, esta não se aplica a todos os países e regiões. A queda
do bloco soviético, no final da década de 1980, legitima a ênfase que vinha
sendo dada pelos governos de Reagan e de Thatcher na necessidade de reformar
estruturalmente o capitalismo ocidental. A reforma "neoliberal", iniciada na
Inglaterra e nos Estados Unidos na primeira metade dos anos 80, propunha-se a
reduzir o papel do Estado na economia e a aumentar da interdependência
econômica no plano internacional.8
A expansão do modelo neoliberal tanto aos países do centro do sistema ' França,
Espanha, Itália ' quanto aos da periferia ' América Latina ' sofreu a
interferência de pelo menos três fatores importantes. Primeiro, por se tratar
de um modelo em construção, ou seja, que não havia clareza quanto ao timing e à
seqüência das medidas que visavam revitalizar o sistema, ele tinha efeitos
negativos a curto prazo ' derivados da baixa competitividade das empresas que
antes atuavam em sistemas autárquicos e pouco concorrenciais, a trabalhadores
muito protegidos por legislações paternalistas e que desestimulavam a
capacitação constante. Segundo, a falta de um passado nitidamente liberal
criava um déficit institucional que posteriormente se mostrou fundamental para
o sucesso das reformas, especialmente no que diz respeito às capacidades do
Estado para gerenciar a transferência de ativos para o setor privado, a
abertura do mercado às importações, a criação de políticas (sociais, de
estímulo à modernização e de incentivo à inovação) que atendessem às
necessidades dos grupos prejudicados no curto prazo. Por fim, as resistências
políticas surgidas nesses países proviam fundamentalmente de dois pólos: de um
lado, os grupos ameaçados pelas mudanças propostas (empresários e trabalhadores
nos setores menos eficientes, funcionários públicos, e outros beneficiários das
políticas do estado intervencionista); de outro, ideologias coletivistas,
fortemente enraizadas nessas sociedades e que privilegiam a igualdade em
detrimento da prosperidade.
O resultado das transformações da ordem política e econômica internacional nas
últimas duas décadas pode ser expresso na unipolaridade estrutural do mundo
contemporâneo, em torno dos valores e instituições do capitalismo democrático
anglo-saxônico, especialmente o norte-americano. Esta unipolaridade do mundo
real se fundamenta na concentração, nos Estados Unidos, de aproximadamente 30%
do PIB, 45% dos gastos militares, 60% das patentes mundiais e a maior
atratividade sobre imigrantes empreendedores (aproximadamente um milhão por ano
na última década) de todo o mundo (Kissinger, 2001; Brooks & Wolforth,
2002; Nye, 2002).
A unipolaridade estrutural coloca uma série de questionamentos sobre em que
medida as instituições internacionais contemporâneas se mostram adequadas:
(a) A hegemonia norte-americana não se expressa no formato institucional da
ONU, cujo Conselho de Segurança assegura direito igual de veto à cinco
potências, refletindo, assim, muito mais a distribuição de poder resultante da
Segunda Guerra Mundial do que aquela que caracteriza o mundo pós-1989 (Buzan,
2002).
(b) São frágeis os movimentos que têm como propósito contrabalançar a
unipolaridade norte-americana na medida em que as diversas potências
secundárias ' os demais membros do Conselho de Segurança (Reino Unido, França,
Rússia e China) e do G-7 (Alemanha, Japão, Itália e Canadá) ', que precisariam
unir-se para equilibrar o poder norte-americano, têm menos interesses comuns
entre si do que com os Estados Unidos (Kissinger, 2001; Nye, 2002).
(c) A economia de mercado, em moldes muito semelhantes àqueles defendidos por
Reagan e Thatcher, mostra-se fundamental para o sucesso econômico, como atesta
a forte correlação entre a realização de taxas altas e sustentáveis de
crescimento econômico e a adoção prévia de reformas pró-mercado nos últimos
vinte anos, porém uma parte muito importante da população do mundo (nos países
pobres e emergentes) continua desconhecendo ou rejeitando a economia de
mercado.
(d) A emergência de novas ameaças à segurança internacional derivadas da
proliferação de armas de destruição em massa, especialmente em regimes que
fundamentam sua legitimidade (e atenuam seu fracasso econômico) em sua
capacidade de desafiar os Estados Unidos e do crescimento e da globalização de
redes terroristas originadas no radicalismo islâmico xiita e sunita não
encontra formulação definida dentro do sistema ONU
(e) Os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 mudaram definitivamente
a percepção das elites norte-americanas sobre o mundo, o papel e os interesses
nacionais dos Estados Unidos, levando à prevalência de uma visão de política
externa assentada na lógica do confronto total em relação ao totalitarismo
islâmico e aos regimes proliferadores, independentemente de qualquer
reconhecimento por parte das instituições internacionais, gerando uma defasagem
entre o plano legal e o plano do poder criando condições propícias para o
crescimento do antiamericanismo (Kagan, 2002; Hoffman, 2002).
(f) Existem, dentro do mundo democrático, duas visões a respeito de como lidar
com a radicalização dos inimigos da democracia: uma negociadora e outra de
confronto. Neste sentido, as posições de George W. Bush e Tony Blair, no início
do século XXI, são herdeiras das de W. Churchill, F.D. Roosevelt, Reagan e
Thatcher; e, as visões de Chirac e Schroeder são herdeiras das posições de
Chamberlain, Nixon, Carter e Clinton (Mandelbaum, 2002; Kagan, 2003).
Não deve restar dúvidas de que o 11 de Setembro significou para os Estados
Unidos uma ruptura radical em relação a como este país se coloca no mundo. Os
ataques são interpretados indiscutivelmente como um ato de guerra, o qual
invoca uma resposta de guerra. Os atentados transformam os Estados Unidos de
uma "superpotência vitoriosa" para uma "superpotência sob ataque" e uma
"superpotência ameaçada". Uma parte significativa da população e das elites de
vários países tem dificuldade para compreender os termos em que se deu esta
ruptura, a resposta norte-americana e mesmo a interpretação como essas
dinâmicas afetam o interesse nacional de seus próprios países.
Os ataques terroristas foram deferidos aos centros de poder econômico, militar
e cultural dos Estados Unidos. Seu propósito essencial, portanto, era destruir
o sistema norte-americano ' sua prosperidade, seus valores e seus símbolos mais
fundamentais. Tony Blair, primeiro-ministro britânico, foi um dos primeiros
líderes a reconhecer que os ataques de 11 de Setembro alvejavam o Ocidente,
representado pelos valores e instituições que fizeram dos Estados Unidos o
centro desta civilização. A repetição do sentimento de ser atacado em seu
próprio território injustificadamente ' invocando o ocorrido em Pearl Harbor,
quase cinqüenta anos antes ' transformou, radicalmente, o mind set americano. A
destruição do terrorismo e dos regimes que lhe dão guarida ou com eles convivem
se torna a única resposta consistente com o padrão histórico dos Estados
Unidos. A grande maioria da opinião pública e das elites internacionais se
mostrou incapaz de entender que, em se tratando da potência hegemônica, os
termos da resposta não estariam submetidos a discussões e deliberações
multilaterais. A superpotência, agora ameaçada, se vê diante da necessidade de
agir com vistas a se recolocar como vitoriosa e isso se traduz nas doutrinas da
supremacia militar incontestável e do ataque preventivo. As vacilações e
tolerâncias de vários fóruns multilaterais ao longo da década de 1990 para com
países vistos como transgressores das regras de convivência pacífica (regimes
proliferadores de armas de destruição em massa e santuários do terrorismo e do
crime organizado) haviam reforçado as dúvidas históricas do povo americano com
relação à eficácia das Nações Unidas. O que grande parte da opinião pública
mundial parece ter dificuldade de entender é que os Estados Unidos só confiam
em si mesmos para realizar a tarefa de garantir sua segurança (Friedman, 2002).
Em razão disso, parece ter chegado definitivamente ao fim o ciclo da
ambivalência em relação a unipolaridade (1989-2001). A potência hegemônica
decidiu assumir a unipolaridade. A partir do 11 de Setembro, profundas
diferenças em termos de quanto cada país se adaptará à nova realidade da
segurança internacional resultarão da capacidade de cada um para percebê-la e a
ela reagir de forma pragmática. Em vez de caminhar na direção da
multipolaridade, como imaginavam muitos formuladores da política externa em
países como a França e o Brasil, o mundo aprofunda sua característica unipolar.
As intervenções humanitárias (Bósnia 1995-2003, Somália 1992-1993, Kosovo 1999-
2003) e de substituição de regimes ditatoriais (Haiti 1994, Afeganistão 2001-
2003) na política internacional tem sido objeto de muitas controvérsias
acadêmicas durante toda a última década. Esse debate se torna especialmente
complexo em função da inversão da política produzida na mentalidade
contemporânea, tal como fora argumentado anteriormente, por um lado, da
contaminação com as ações do terrorismo global e da proliferação de armas de
destruição em massa de um crescente numero de rogue states, por outro. Existe
certamente um enorme consenso detrás da demanda de governabilidade global,
porém esta demanda é realizada por atores que se entrincheiram nos direitos do
princípio da soberania nacional e esquecem as obrigações. Num mundo repleto de
"vozes" soberanas, mas onde praticamente um país (Estados Unidos) tem a
capacidade e a vontade (e, portanto, a responsabilidade) para intervir militar
e politicamente em função da preservação e desenvolvimento da governabilidade
global se gera um conflito labiríntico entre normas internacionais e os jogos
de interesses dos estados nacionais.
As diferenciações na elite americana e seu impacto sobre a governabilidade
global: o arco de variação entre unilateralismo e multilateralismo
A luta contra o terrorismo põe um dilema entre a perda de governabilidade do
sistema mundial, acompanhada do respeito à legalidade internacional vigente por
parte dos Estados, versus o aumento da governabilidade global, mas acompanhada
de intervenções militares por parte dos EUA e seus aliados fora da legalidade
vigente. Nossa hipótese, neste ensaio, é que o atual momento histórico implica
o desenvolvimento de uma guerra de novo tipo contra o terrorismo e os rogue
states (com capacidade de possuir armas de destruição massiva) que certamente
impede harmonizar a política internacional com o direito internacional vigente.
Mas este exercício de unilateralismo, principalmente por parte dos Estados
Unidos, vai muito além da guerra contra o terrorismo, contribuindo para
redefinir de forma mais realista e racional os atuais parâmetros da
governabilidade global. Neste sentido, utilizando a metáfora hegeliana, a
guerra contra o terrorismo pode ser interpretada como a astúcia da razão. Não
foram os ataques ao World Trade Center, nem as invasões do Afeganistão e do
Iraque que geraram o impasse da diplomacia pacifista ou do papel da ONU no
mundo, por exemplo. Há muito tempo (muito antes do 11 de Setembro de 2001!) que
as instituições que regulam a ordem da política e da segurança internacional
estão obsoletas (Glennon, 2003). Não é um fato recente que a Assembléia Geral e
o Conselho de Segurança da ONU não podem ser considerados como base da ordem
mundial, em um mundo onde os estados de direito historicamente vêm crescendo em
progressão aritmética e as tiranias e as cleptocracias em progressão geométrica
(Chua, 2003; Rotberg, 2002). Diferentemente, as instituições de Bretton Woods
são bastante realistas por estarem fundadas no diferencial de riqueza entre os
Estados.
Destes fatos resultam algumas observações relevantes em relação ao atual
unilateralismo dos Estados Unidos na política internacional. A primeira é que
esse unilateralismo não é resultado apenas de uma resposta dos Estados Unidos
ao terrorismo, mas fruto também de necessidades históricas produzidas por uma
desordem mundial que precede em muito aos atentados de 11 de Setembro de 2001
(Cohen, 2001; Hoffmann, 2002). Neste sentido, uma segunda observação a fazer é
que as intervenções humanitárias do período pós-Guerra Fria (Bósnia 1995-2003,
Somália 1992-1993, Kosovo 1999-2003) já apresentavam um grau crescente de
desconhecimento da autoridade do Conselho de Segurança da ONU (sendo Kosovo o
melhor exemplo). Como se podem observar, as ações dos Estados Unidos inspiram
sempre numerosas críticas, ainda quando não resultam em genocídios, direta ou
indiretamente. Por isso resulta pouco menos que um escândalo que, quando a ONU
aparece associada por omissão a um genocídio, sejam escassas as vozes que se
levantam para criticar. Um dos exemplos, relativamente recente, mais notáveis
da incapacidade da ONU para evitar um genocídio talvez seja o caso de Ruanda,
na metade dos anos 90. Vale a pena mencionar que neste caso, um conflito
baseado no enfrentamento histórico das etnias Hutus e Tutsis (intimamente
associado ao comportamento passado e presente dos países europeus com presença
na área ' especialmente Bélgica e França), em poucos meses levou a morte,
aproximadamente, um milhão de pessoas não beligerantes. Embora a literatura
classifique o caso de Ruanda como uma intervenção humanitária autorizada, o
papel da ONU foi claramente negativo, já que as demoras e rodeios do Conselho
de Segurança para autorizar uma intervenção armada foram um grande facilitador
do genocídio. Quando finalmente a ONU autorizou e a França decidiu intervir, já
não havia nada mais a fazer, visto que a tragédia estava consumada (Rodrigues,
2000). As vítimas dessa horrível tragédia teriam preferido seguirem vivas,
ainda que para isso fosse necessária uma intervenção unilateral na contramão
dos protocolos da ONU.
Sendo possível estabelecer certa continuidade entre o "unilateralismo" da Otan
em Kosovo e o unilateralismo anglo-americano no Iraque, por exemplo, isto quer
dizer que não estamos assistindo a uma política de "um" governo americano, em
particular (seja Clinton ou Bush), mas a política de um Estado frente as
necessidades históricas de longo prazo (Bacevich, 2002). Uma última observação
que se pode extrair dos acontecimentos do presente (sobretudo levando em conta
os esforços de nation-building numa perspectiva democrática de países como
Kosovo e Iraque) é que esse unilateralismo responde a necessidade de construir
uma governabilidade global associada tanto à defesa dos direitos humanos como à
segurança internacional.
Contudo, apesar dessa continuidade, é claro que existem diferenças
significativas dentro da elite americana com relação a como lidar com os
problemas da ordem mundial pós-11 de Setembro, e essas diferenças se projetam
em graus variáveis de intensidade e proporcionalidade sobre quase todas as
democracias ocidentais. Analisando o quadro de posições sobre política externa
dentro da elite americana em setembro de 2003, podemos diferenciar quatro
correntes ou grupos mais relevantes: os unilateralistas, os unilateralistas-
moderados, os multilateralistas-moderados e os multilateralistas. Esta
classificação dos grupos dentro da elite americana é de nossa elaboração e não
pretende ter um valor teórico significativo, mas sim procura auxiliar na
compreensão do complexo fenômeno das elites de política externa e de defesa
americana.
Os unilateralistas ou neoconservadores ocupam uma posição central no governo
Bush: o vice-presidente Dick Cheney, o ministro de Defesa Donald Rumsfeld, a
assessora de Segurança Nacional Condolezza Rice, o vice-ministro de Defesa Paul
Wolfowitz e o subsecretário para Controle de Armamentos Bolton. Este grupo
surgiu no fim da década de 1970 e ganhou rapidamente muito prestigio perante
Reagan e o grupo do Partido Republicano crítico de Nixon e Kissinger. Para os
unilateralistas, o totalitarismo islâmico no início do século XXI é uma ameaça
aos Estados Unidos e às democracias de mercado comparável ao totalitarismo
comunista durante a Guerra Fria. Inspirados pela política de confronto com o
comunismo soviético levada adiante com sucesso por Reagan, preconizam uma
política de confronto total com o totalitarismo islâmico que se traduz na
fórmula de ataques preventivos e promoção, em graus variáveis, da
democratização do mundo islâmico. Para este grupo, as superioridades econômica
e militar americanas devem traduzir-se em uma política externa agressiva, na
qual as decisões americanas não seriam limitadas pela necessidade de chegar a
um consenso com os aliados. Para este grupo, as alianças formais e estáveis
como a Otan, passam a ser secundárias, sendo substituídos pelas alianças ad
hoc, tomando-se por base as necessidades definidas pelos Estados Unidos por
meio da fórmula: não é a aliança que define a estratégia, mas sim a estratégia
que define a aliança (coalition of the willing) (Bush, 2002; Ullman, 2002;
Pollak, 2003). É interessante notar que depois de um longo ciclo de separação,
Kissinger convergiu com este grupo a partir de 9 de Setembro. Dentre os
intelectuais que não participam do governo Bush, destacam-se como membros deste
grupo Bill Kristol e Robert Kagan9 (Kagan, 2002 e 2003). É interessante
destacar que esta posição é minoritária na comunidade acadêmica de relações
internacionais americana.
Os unilateralistas-moderados ocupam uma posição importante no governo Bush,
embora secundária em relação aos unilateralistas. Os principais expoentes desta
corrente são o secretario de Estado Colin Powel e o diretor da CIA (até 2004)
George Tenet e encontra seu principal núcleo no establishment diplomático
americano que por treinamento profissional tende a ver o mundo com maior
inclinação para a negociação. Para este grupo, que predominava no governo Bush
antes de 11 de Setembro (neste período Condolezza Rice pertencia a este grupo),
os atentados terroristas mudaram dramaticamente a arena internacional e por
isso eles concordam com os unilateralistas na necessidade de uma política de
confronto máximo com o totalitarismo islâmico. Porém, diferente do primeiro
grupo, os unilateralistas-moderados pensam que é necessário desenvolver um
trabalho de persuasão com os aliados tradicionais dos Estados Unidos de modo a
conseguir o apoio da maioria deles, mesmo que isso implique na realização de
certas concessões quanto ao perfil e ao timing da política de confronto. É
importante destacar que este grupo procura o apoio dos principais aliados dos
Estados Unidos (a coalizão de Kosovo) e não se fixa na aprovação do Conselho de
Segurança da ONU como fundamento da legitimidade da política americana, além de
propor uma ambiciosa estratégia de expansão da Otan e de redefinição de sua
missão com escopo planetário (Glennon, 2003). Este grupo conta com dois pré-
candidatos presidenciais do Partido Democrata: Joe Liberman e Wesley Clark. No
Reino Unido, os unilateralistas moderados estão representados pela quase
totalidade do Partido Conservador e pela fração de Blair no Partido
Trabalhista. Dentro da comunidade acadêmica de relações internacionais, a
grande maioria dos que aderem ao paradigma neo-realista simpatiza com este
grupo, destacando-se Keneth Waltz e Zbigniew Brzezinski (Brzezinski, 1997).
Kissinger pertencia a este grupo antes do 11 de Setembro (Kissinger, 2001).
Os multilateralistas moderados, que estavam no centro do poder no governo
Clinton, mas se encontram fora do governo com Bush, embora ocupem algumas
posições de influência no Congresso. Para este grupo, a guerra contra o
terrorismo islâmico deve ser limitada e não deve basear-se na doutrina do
ataque preventivo. Este grupo propõe uma estratégia baseada numa combinação das
seguintes políticas: resposta incisiva contra a Alqaeda como a realizada no
Afeganistão, concentração na defesa do território americano, promoção intensiva
do desenvolvimento de energias renováveis para se tornar independentes do
petróleo islâmico, fortalecimento da Otan como centro da política de defesa
americana com uma importância similar a que tinha na Guerra Fria, retomada de
um papel ativo do governo americano para resolver o conflito israelense-
palestino, e reconhecimento de um papel importante ao Conselho de Segurança da
ONU. Este grupo somente teria apoiado o ataque ao Iraque desde que aprovado
pelo menos pelos aliados ocidentais dos Estados Unidos e melhor ainda pelo
Conselho de Segurança da ONU. Os candidatos presidenciais democratas, John
Kerry e John Edwards situam-se neste grupo, que conta também com a presença de
Bill Clinton e Al Gore. Os grandes formuladores doutrinários deste grupo são
Madeleine Albright e Joseph Nye (Keohane & Nye, 2001; Nye, 2002 e 2003;
Mandelbaum, 2002; Prestowitz, 2003). No Reino Unido, os multilateralistas-
moderados são representados pelo centro do Partido Trabalhista. Na comunidade
de relações internacionais este grupo conta com o apoio da maioria dos scholars
que aderem ao paradigma neoliberal institucionalista.
Os multilateralistas ocupam uma posição marginal na elite americana atual. Para
este grupo, a superioridade americana no mundo está agora no seu ápice e tende,
necessariamente, a declinar devido à razões demográficas (crescimento da China
e da Índia), econômicas (limitada poupança interna e consumismo da população
americana) e culturais (o multiculturalismo está cada vez mais enraizado no
mundo e erosiona a hegemonia dos valores americanos).10 Para este grupo, os
Estados Unidos devem retirar-se de varias áreas do mundo e contribuirem para
formação de um novo regime de segurança simultaneamente multipolar e
multilateral. Este grupo é crítico da aliança especial dos Estados Unidos com
Israel e propõe uma menor influencia das grandes corporações na política
interna e externa americana. Entre os pré-candidatos democratas, Howard Dean,
expressou este grupo, particularmente porque sua base foi construída com
utilização intensiva da Internet pelos movimentos sociais históricos (direitos
civis, pacifistas, ambientalistas, homossexuais e feministas). O candidato
independente Ralph Nader também pertence a este grupo. Em virtude da estrutura
de preferências políticas americanas, não existe nenhuma possibilidade dos
multilateralistas se instalarem na Casa Branca em um futuro previsível. No
Reino Unido, os multilateralistas contam com o apoio da esquerda trabalhista e
do Partido Social-Democrata. Dentro da comunidade acadêmica de relações
internacionais, este grupo tem o apoio de grande parte dos scholars que aderem
aos paradigmas feminista e construtivista e autores que foram afastando-se do
neoliberalismo institucionalista como James Rosenau (Rosenau, 2003).
Devido ao peso que teve a esquerda (comunista, socialista e social-democrata)
na formação de quase todas as democracias ocidentais fora dos Estados Unidos
(priorização dos valores igualdade/equidade sobre o valor liberdade), a visão
dos unilateralistas e unilateralistas-moderados, ambos associadas à direita
americana (priorização da liberdade sobre a equidade), têm limitada penetração
fora dos Estados Unidos. Deste modo, produz-se um alinhamento político bastante
diferente dentro das principais democracias no mundo pós-11 de Setembro, já que
os grupos minoritários dentro da elite americana (multilateralistas-moderados e
multilateralistas) são apoiados pelo coração das elites dos outros países
(Lambert, 2003; Maravcsik, 2003). Isto não foi assim durante a primeira fase da
Guerra Fria quando a doutrina de contenção do comunismo das elites americanas
era apoiada pelo núcleo das elites européias. Contudo, a situação atual
aproxima-se um tanto do quadro da primeira metade da década de 1980, quando a
doutrina reaganiana de escalada confrontacional com a União Soviética era
temida por parte importante das elites européias continentais.
Existe quase consenso nos estudos acadêmicos sobre política externa americana
que, em geral, muda pouco com a mudança de presidente ou de partido no governo
porque existe uma lógica de longo prazo do Estado americano que é mais profunda
(Bacevich, 2002; Beasley, Kaarbo & Sbarr, 2002; Brooks & Wolfort,
2002). A principal mudança nos últimos anos na política externa americana não
foi provocada pela volta ao poder dos republicanos em janeiro de 2001, senão
por um atentado de repercussões sistêmicas (o 11 de Setembro), e a necessidade
de resposta por parte do Estado americano. As mudanças processadas na política
externa americana nos últimos dois anos são profundas e irreversíveis, indo
além da reeleição ou não de Bush. A atual política externa americana é uma
resultante intermediária entre os unilateralistas e os unilateralistas
moderados, com predomínio dos primeiros em virtude dessa lógica profunda do
Estado americano, e para além dos exageros dos discursos eleitorais, o
intervalo de variação maior possível para os próximos anos é uma passagem à
centralidade dos unilateralistas-moderados em aliança com os multilateralistas-
moderados. Mesmo que esta nova geometria seja possível para 2005, ela não é a
mais provável, sendo possível a continuidade da atual geometria ou um
realinhamento que coloque no centro aos unilateralistas-moderados apoiados
pelos unilateralistas.
Conclusão
Para concluir, a primeira década do século XXI está fortemente marcada por um
unilateralismo associado a uma guerra de longa duração contra o radicalismo
islâmico (e potencialmente outros radicalismos étnicos ou ideológicos) onde
estão presentes fatores característicos das guerras passadas, mas também
fatores novos associados a uma defesa de aspectos centrais da civilização
ocidental. Em particular, o unilateralismo anglo-americano não pode ser
separado da defesa da democracia liberal-representativa e do livre mercado, num
contexto de aceleração da modernidade tecnológica. A experiência humana do
último meio século mostra que o único caminho consistente para a prosperidade é
o pleno desenvolvimento da liberdade. Não é a igualdade senão a liberdade (num
contexto de igualdade jurídica) o fundamento da prosperidade. Porém, muitas
sociedades nacionais fracassam na tentativa de construir uma economia de
mercado devido ao excessivo peso de seu background coletivista e estatista. Em
um mundo unipolar, é mais fácil construir ordem que gerar prosperidade. O
unilateralismo anglo-americano cria condições gerais um pouco mais favoráveis,
mas somente mudanças profundas nas culturas antiliberais poderão levar à
prosperidade por meio da construção de democracias de mercado e do estado de
direito.