A política externa brasileira e os desafios da cooperação Sul-Sul
Introdução
A África do Sul, o Brasil e a Índia são considerados países intermediários.
Ainda que não exista acordo entre os especialistas com relação à definição
precisa do conceito, este geralmente inclui pelo menos um dos três fatores:
capacidades materiais, uma medida de auto percepção e o reconhecimento dos
outros Estados, em especial das grandes potências. Estes três países têm uma
característica comum, são "potências regionais" e tal condição lhes assegura
uma relevância internacional adicional. Ainda que o conceito tenha sido
grandemente utilizado na década de 1970, quando os grandes países em
desenvolvimento desenvolviam políticas assertivas no plano internacional, este
ainda tem importância no mundo globalizado e unipolar. Na verdade, esta
categoria de países pode ser pensada como representando dois perfis
internacionais particulares, a partir de duas identidades internacionais
distintas.
A primeira, referida ao mundo da política, poderia ser denominada de system-
affecting statea partir da conhecida definição de Keohane (1969). Nesta
categoria estão aqueles países que dispondo de recursos e capacidades
relativamente limitadas, comparativamente às potências, mas com perfil
internacional assertivo valorizam as arenas multilaterais e a ação coletiva
entre países similares de forma a exercer algum meta de poder e influenciar nos
resultados internacionais.1 Nestes foros, em especial naqueles em que o
consenso é necessário para a decisão ou que prevalece o princípio da igualdade
da participação, geralmente são interlocutores relevantes, em particular como
mediadores entre os grandes e os pequenos.2 A segunda identidade, referida à
economia global, é a de "grande mercado emergente", categoria cunhada pelo US
Trade Representative, que faz referência aos grandes países da periferia que
implementaram as reformas econômicas do conhecido receituário do Consenso de
Washington: privatização, liberalização comercial, desregulamentação da
economia e reforma do Estado. Índia, Indonésia, África do Sul, Coréia do Sul,
Turquia, Polônia, Rússia, Argentina, Brasil e México foram definidas como
pertencentes a esta categoria (Sennes, 2001: 64) Nesta identidade,
credibilidade e estabilidade macroeconômica são duas moedas de grande valor no
mundo globalizado e as iniciativas internacionais são pensadas como mecanismos
para "encapsular" (lock in) as reformas domésticas. A ação coletiva com paises
semelhantes geralmente é subestimada, até porque prevalece a cooperação com os
países desenvolvidos.
Nos anos 60 e 70 países como a Índia, o Brasil e o México eram considerados
system-affecting states, na medida em que tinham presença internacional
multifacetada, participavam de vários foros de negociação comercial e de
segurança no Gatt e nas Nações Unidas e eram reconhecidos como interlocutores
válidos. Comum entre eles, a articulação de suas políticas externas em torno de
dois objetivos centrais: desenvolvimento econômico e autonomia política
(Sennes, 2001: 44). A África do Sul não estava incluída neste grupo uma vez
que, até a década de 1990, o sistema de apartheidpraticamente excluiu aquele
país da coalizão terceiro-mundista. Atualmente, porém, todos os quatro são
identificados como mercados emergentes. Isto estaria indicando que o primeiro
conceito não tem mais referente empírico e, portanto, perdeu relevância
analítica? Do meu ponto de vista, a resposta é não; ambos continuam a ter
referente e relevância.
Porém, há que se levar em conta que no contexto de hegemonia dos mercados,
crise dos modelos de desenvolvimento da periferia e fim da rivalidade Leste-
Oeste, não apenas as negociações Norte-Sul, palco do protagonismo político da
coalizão terceiro-mundista, e a cooperação Sul-Sul, espaço de afirmação da
identidade daquela coalizão, se modificaram profundamente, como alguns dos
países que integraram no passado a categoria dos system-affecting countries,
hoje, se acomodaram na condição de mercados emergentes. Outros, porém, estão
buscando compatibilizar estes dois perfis internacionais. Meu principal
objetivo neste trabalho é demonstrar que o Brasil busca conciliar estas duas
identidades, mesmo em um contexto de graves restrições sistêmicas, econômicas e
políticas. Meu secundo objetivo é sugerir que a viabilidade da cooperação IBSA
depende exatamente da compatibilidade, "tensionada" é verdade, destes dois
perfis internacionais. Em certo sentido, uma das estratégias discursivas dos
países hegemônicos é postular estes dois papéis como contraditórios, no caso
dos países periféricos. É como se observássemos uma volta ao século passado,
aos anos 20, mais especificamente, quando as potências faziam a distinção na
estrutura decisória da Liga das Nações entre as potências com interesses gerais
e os países com interesses particulares. Apenas aos primeiros estava reservado
protagonismo político nas arenas globais.
As bases regionais e institucionais da política externa brasileira
Conhecer a inserção geopolítica do Brasil é crucial para se entender a
definição de seus interesses nacionais, entendidos os últimos como as
orientações substantivas das políticas internacionais do país, bem como a visão
da elite pertencente à comunidade de política externa.3 Um dos principais
vetores da inserção internacional do país tem sido sua localização no
Hemisfério Ocidental, historicamente uma área da projeção de poder e influência
econômica e cultural dos Estados Unidos, mas que, com exceção da Segunda Guerra
Mundial, de escasso valor estratégico na política externa daquele país. Por
outro lado, o Brasil tem se deparado com um contexto geopolítico regional
estável, uma vez que já no final do século XIX e início do XX, havia resolvido
a seu favor praticamente todos os conflitos territoriais com seus vizinhos, a
ponto de se autodenominar um "país geopoliticamente satisfeito". Em certo
sentido e ao contrário de seus vizinhos, o processo de construção do Estado
brasileiro foi realizado antes, pelo recurso à negociação diplomática do que
pela guerra. Finalmente, desde a segunda metade do século XX, o Brasil ocupa
uma posição econômica dominante com relação aos demais países sul-americanos.
A tabela_1, a seguir, apresenta dados sobre o Produto Interno Bruto dos países
sul-americanos, desde 1999. Ainda que se observe uma tendência de queda, em
valores absolutos, do PIB de praticamente todos os países, a diferença do peso
econômico do Brasil com relação aos demais é significativa, não apenas no
ordenamento regional, mas também mundial. Na região latino-americana, o Brasil
é ultrapassado apenas pelo México.
Esta situação peculiar de situar-se no quintal da área de influência norte-
americana e, simultaneamente, constituir-se na potência econômica regional em
um contexto geopolítico estável, gerou um sentimento peculiar entre as elites
brasileiras. As definições de ameaças externas e as percepções de risco são
basicamente derivadas de vulnerabilidades econômicas e não de segurança. Sendo
as principais vulnerabilidades, na visão das elites, de natureza econômica, a
política externa sempre teve um forte componente desenvolvimentista. Na
verdade, esta última tem sido considerada como um dos principais instrumentos
para propósitos de desenvolvimento.
A industrialização brasileira ocorreu de fato a partir da segunda metade do
século XX, e constituiu um dos casos mais bem sucedidos, entre os países em
desenvolvimento, do modelo de industrialização por substituição de importações,
cuja inspiração intelectual foi a teoria de desenvolvimento da Cepal e cujas
principais características eram forte indução estatal, relativa discriminação
com relação às importações e participação do investimento estrangeiro nos
diversos setores industriais. Nos anos 60 e 70, adicionou-se um componente
exportador a esta estratégia de desenvolvimento. A política externa foi um
instrumento importante deste modelo, não apenas de mandado tratamento
diferencial no âmbito do regime de comércio e da constituição de um Sistema de
Preferências Generalizado nos países desenvolvidos, bem como abrindo novos
mercados e oportunidades de cooperação econômica nos países do Sul.
Padrões de desenvolvimento criam novas idéias, interesses e instituições e uma
vez iniciado um deles é muito difícil mudar as instituições e os interesses.
Algumas vezes, as condições internacionais que induziram uma determinada
trajetória podem se modificar sem que se modifiquem as instituições, interesses
e idéias vinculados à trajetória prévia. Padrões de desenvolvimento são
trajetória dependente. No caso brasileiro, esta constatação não poderia ser
mais verdadeira. Exatamente por ter sido um caso de sucesso na criação de um
parque industrial complexo, a mudança de trajetória só vai ocorrer nos anos 90,
diante de graves restrições econômicas e políticas sistêmicas e da crise fiscal
do Estado. Mas assim mesmo, o processo de ajuste estrutural e reforma econômica
foi mais incremental, comparando-se com os casos da Argentina e México, na
América Latina. Ainda que o Ministério de Relações Exteriores não tenha sido
uma das instituições criadas pelo padrão de desenvolvimento orientado para
dentro, esta agência foi crucial na sustentação e consolidação externa daquele
modelo. Duas implicações daí decorrem: por um lado, a legitimidade doméstica
desta agência na sua qualidade de um dos instrumentos do projeto de
desenvolvimento do país, por outro, o legado desenvolvimentista presente na
memória institucional do MRE, que permaneceu mesmo depois da crise e término
daquele modelo.
No plano das instituições políticas, o país é uma república presidencialista
federativa. A combinação de um sistema de governo presidencialista, sistema
multipartidário e de representação proporcional, gerou o que os analistas
políticos denominam um "presidencialismo de coalizão" (Santos, 2003). Ainda que
a Constituição brasileira assegure ao Executivo amplos poderes de decreto, esta
combinação de fatores gera a necessidade da formação de coalizões de governo,
tal como no sistema parlamentar. Esta prática tem contribuído para a
estabilidade democrática, permitindo que ocorra rotatividade entre as
principais forças políticas do país, inclusive a eleição de um presidente
oriundo de um partido de esquerda, mas torna muito alto o custo de processos de
mudança legislativa, que aumentam ainda mais, quanto mais ampla e heterogênea
for a coalizão de governo. Tanto o governo Fernando Henrique Cardoso, quanto o
de Luís Inácio Lula da Silva podem ser assim caracterizados, mas o primeiro
enfrentou menores problemas para obter apoio legislativo às suas propostas de
políticas públicas do que o atual presidente.
Duas políticas governamentais têm sido mais insuladas do jogo legislativo: a
política econômica e a política externa, mas por razões diferentes. Tanto no
governo Cardoso, quanto no governo Lula, a política macroeconômica contou com a
clara delegação do presidente e de seus mandatários, que geralmente ocupam uma
oposição de poder indiscutível na estrutura burocrática do governo. As medidas
econômicas objeto de legislação específica são iniciadas pelo Executivo, que
utiliza para sua aprovação seus amplos poderes de decreto. O insulamento
burocrático da política externa tem outras causas. Ainda que esta não tenha o
poder próprio e a autonomia, gozados pela política econômica, a política
externa tem contado com a delegação das elites políticas em geral e do
Congresso em particular, legitimidade atestada pela estabilidade do princípio
constitucional da competência do Executivo na condução da política externa
(Castro Neves, 2003). Esta delegação é fruto da percepção entre as forças
políticas e sociais de que a política externa tem sido um instrumento de
desenvolvimento importante, ou pelo menos assim o foi no período do modelo de
substituição de importações. Neste sentido, a mudança do modelo de inserção
internacional com a abertura econômica e as modificações decorrentes na
política externa, em especial a adesão do Brasil aos novos regimes econômicos
internacionais, de propriedade intelectual, serviços e outras sistemas
normativos internacionais, tendem a erodir esta delegação prévia, na medida em
que a internalização de novas normas e disciplinas internacionais
inevitavelmente gera a politização interna da política externa.
Um outro fator que assegura grande autonomia decisória ao MRE é o desinteresse
relativo da opinião pública em geral pelas questões de política externa. Um
indicador deste desinteresse é a escassa disputa entre as forças partidárias
com relação ao posto de Ministro das Relações Exteriores, confirmando o dito
popular que política externa não dá votos (das dez nomeações para a chefia do
MRE feitas entre 1985 e 2003, apenas três foram para políticos com filiação
partidária).4 Os jornais brasileiros, com pouquíssimas exceções, dedicam um
espaço pequeno à política externa. Mesmo questões relevantes da agenda externa,
como a postulação brasileira a um assento permanente nas Nações Unidas ou o
envio recente de tropas brasileiras para uma missão de paz no Haiti, não
mobilizam a opinião pública nem provocamos debates que normalmente ocorrem, por
exemplo, no vizinho argentino.
Estas características institucionais da política externa, conjugadas com a
natureza profissional da burocracia diplomática, que a aproxima do modelo do
civil serviceclássico, têm garantido bastante autonomia na formulação da
política externa e uma relativa continuidade das orientações da mesma. Este
insulamento, porém, tende a ser disfuncional na medida em que a agenda externa
se modifique com a introdução de novos temas e novos atores e a própria
internalização dos acordos internacionais politizem a política externa. Estas
transformações podem modificar este quadro de delegação/abdicação, que
caracteriza sua base político-institucional doméstica. De modo geral, na visão
da comunidade de política externa a avaliação da política exterior é bastante
positiva. Contudo, aparece uma crítica velada ao insulamento diplomático no
sentido de que o MRE não daria ao Congresso e às forças políticas e sociais a
atenção necessária na formulação da política exterior (Souza 2002: 86-93). Este
dado é um indicador de que a mudança de natureza da política exterior, em
função de sua maior politização, possa induzir à modernização dos arranjos
institucionais existentes, de modo a levar em conta os novos atores e
interesses domésticos com orientação internacional.
No plano mais geral da agenda externa tradicional há um amplo consenso entre os
operadores diplomáticos e as elites em geral na crença de que o país está
destinado a ter um papel significativo na cena nacional e a expectativa do
reconhecimento desta condição pelas grandes potências, em função de suas
dimensões continentais, de suas riquezas naturais e da "liderança natural"
entre os vizinhos (Souza, 2002: 19-21). A aspiração pelo reconhecimento
internacional foi perseguida por via de uma presença ativa nos fóruns
multilaterais desde a segunda metade do século XIX, quando surgiram os
primeiros esforços de coordenação multilateral e, posteriormente, na
constituição das Ligas das Nações, em que o Brasil empenhou-se em conseguir
obter um assento permanente na organização (Garcia, 2000). Como ocorreu naquele
momento e nos anos seguintes, o Brasil apresentou-se como mediador entre as
grandes potências e as demais, posicionando-se na defesa dos direitos das
potências menores e, simultaneamente, aspirando conquistar o statusequivalente
ao das grandes potências.
O fim do regime militar em 1985 e posteriormente o fim da Guerra Fria
reacenderam nas elites brasileiras a aspiração de um papel influente na
configuração da nova ordem no bojo do movimento de reforma das instituições
internacionais. Em uma pesquisa de elites, realizada em 2001, a aspiração de
transformar o Brasil em um ator relevante na política internacional é
absolutamente consensual (Souza 2002: 3). O que estes e outros estudos sobre a
opinião das elites revelam é que esta aspiração é constitutiva da própria
identidade nacional, já que a percepção que as elites têm da identidade
nacional constitui o substrato conceitual de sua projeção externa, "pautada
principalmente no desejo de exercer um papel protagônico. Um território de
proporções continentais, com dez vizinhos contíguos, grande população, uma
economia diversificada e notável uniformidade cultural e lingüística são os
diferenciais que conformam este sentimento de identidade, bem como essa
expectativa de liderança" (Souza, 2002: 19; Lafer, 2001).
O consenso entre elites e a estabilidade desta expectativa de participação e
liderança não impediram que o país seguisse modelos diferenciados de política
externa que podem ser vistos como meios distintos para se obter o mesmo fim. De
forma simplificada, poderiam ser identificadas duas estratégias internacionais
seguidas pelo país a partir de meados do século XX: a de "bandwagoning"expressa
na relação especial com os EUA e a de equilíbrio.
Os momentos em que a aliança especial guiou os passos da diplomacia foram
vários, os mais significativos mencionados a seguir. No governo Vargas, a
aliança política com os EUA durante a Segunda Guerra Mundial redundou na
implantação da indústria siderúrgica no país e no reequipamento militar (1939-
1942) (Moura, 1980). Durante a Guerra Fria, os militares e as elites
conservadoras civis tinham naquele país um aliado importante para seus projetos
de poder redundando no golpe militar de 1964. Mais recentemente, na fase de
reestruturação do modelo de substituição das importações, o alinhamento aos EUA
funcionou como um avalista das mudanças econômicas iniciadas no governo Collor
de Mello com a abertura comercial no início dos anos 90. Uma característica da
aliança especial com os EUA foi seu sentido instrumental, como meio de
concretização dos projetos domésticos das elites brasileiras e como instrumento
equilibrador das rivalidades regionais, em particular com a Argentina.
O modelo do equilíbrio se caracteriza pela busca de alianças regionais e extra-
regionais como mecanismos equilibradores de poder. A "diversificação da
dependência" marcou diversos momentos da política externa no pós-Segunda
Guerra. Nos anos 30, a "política de barganhas" do governo Vargas (1935-1937)
expressou a idéia de buscar na Europa, uma parceria econômica e tecnológica
alternativa (Moura, 1980). Algumas décadas depois, a "opção européia" foi posta
em prática pelo governo militar do general Geisel na parceria com a então
Alemanha Federal, para a aquisição do ciclo completo do combustível nuclear.
Finalmente, em dois momentos da história recente, o modelo da autonomia/
equilíbrio guiou os passos da política externa, na "política externa
independente" (1961-1964) e no "pragmatismo responsável" (1970-1975). Uma das
vertentes fortes do modelo autonomista foi o exercício de liderança nas
questões Norte-Sul tais como debatidas em arenas como o Gatt e a Unctad. A
vertente de capacitação militar e em tecnologias sensíveis esteve presente
apenas nos governos militares, culminando com a recusa brasileira em assinar o
Tratado de Não-Proliferação Nuclear em 1968 e a assinatura do Acordo Nuclear
com a Alemanha em 1975.
Naturalmente que as mudanças sistêmicas que culminam na década de 1990, com a
consolidação da globalização produtiva e financeira e a configuração de uma
ordem unipolar, por um lado e o processo de redemocratização com a posse de um
governo civil em 1985 e a promulgação de uma nova constituição em 1988, por
outro contribuíram para solapar as bases econômicas e políticas dos modelos
prévios de política externa. Entre os fatores que se modificaram dois devem ser
mencionados. Por um lado, observou-se a adesão brasileira aos regimes de
direitos humanos e de controle de tecnologia sensível dos quais o país estivera
afastado durante todo o regime militar. Por outro, o regionalismo e, em
especial, as relações com a Argentina, apartir da criação do Mercosul em 1991,
assumiram uma saliência e um significado totalmente distinto do padrão de
afastamento/hostilidade que historicamente caracterizaram aquelas relações.
Curioso, porém, é que apesar de todas estas mudanças domésticas e
internacionais tenha se mantido a aspiração das elites com relação ao papel
protagônico do país, conforme demonstrado nas pesquisas sobre as opiniões da
comunidade brasileira de política externa. Mas tal como no passado, as elites
se dividem quando se trata de escolher estratégias concretas de inserção
internacional. Neste particular, dois modelos ressaltam nas preferências das
elites, configurando-se duas alternativas de política externa, na atualidade. A
primeira delas poderia ser denominada de busca da credibilidade, na medida em
que o foco é de fora para dentro. A globalização é considerada o principal
parâmetro para a ação externa e seus benefícios só podem ser alcançados pelas
reformas internas que expandam a economia de mercado e promovam a concorrência
internacional. Tal estratégia parte da constatação de que o país não possui
"excedentes de poder" e, portanto, só o fortalecimento dos mecanismos
multilaterais pode refrear "condutas unilaterais no cenário internacional". Na
estratégia da credibilidade, a autonomia nacional "derivada capacidade de
cooperar para a criação de normas e instituições" internacionais (Souza,2002:
22). Nesta percepção, o país deve ajustar seus compromissos internacionais às
suas capacidade reais. A restauração da confiabilidade e da credibilidade
internacionais está associada à vinculação da política externa à política
econômica interna.
A estratégia oposta pode ser denominada de autonomista e combina o objetivo de
projeção internacional com a permanência do maior grau de flexibilidade e
liberdade da política externa. Crítica da avaliação positiva dos frutos da
liberalização comercial e dos resultados benéficos da adesão aos regimes
internacionais, esta visão preconiza uma "política ativa de desenvolvimento" e
a necessidade de se "articular um projeto nacional voltado para a superação dos
desequilíbrios internos em primeiro lugar". A inserção ativa deve ser buscada
na "composição com países que tenham interesses semelhantes e se disponham a
resistir às imposições das potências dominantes". A visão autonomista critica a
tese da "insuficiência de poder" defendida pela estratégia da credibilidade, e
a "postura defensiva" daí decorrente. Uma preocupação entre os defensores de
uma estratégia autonomista é que o Brasil não dispõe de elementos de dissuasão
militar, nem poder de veto no Conselho de Segurança da ONU que possam respaldar
negociações comerciais com parceiros mais poderosos. Como a dimensão
soberanista é marcante nesta visão, prevalece certa relutância em aceitar
arranjos multilaterais que impliquem delegação de autoridade a instâncias
supranacionais (Souza, 2002: 23-25).
Estas duas estratégias de inserção internacional do Brasil, segundo as
preferências da comunidade de política externa, guardam alguma semelhança com
as orientações da política externa no período pós-Guerra Fria. Na prática, a
gestão externa do governo Fernando Henrique Cardoso estaria mais próxima da
estratégia de "credibilidade" e a de Luís Inácio Lula da Silva da de
"autonomia". Contudo, no plano da diplomacia econômica multilateral, as
orientações destes dois governos não são muito diferentes: a revitalização e
ampliação do Mercosul; a intensificação da cooperação com a América do Sul e
com os países africanos; "relações maduras" com os Estados Unidos; importância
das relações bilaterais com potências regionais como China, Índia, Rússia e
África do Sul; ampliação do número de membros permanentes no Conselho das
Nações Unidas; participação nos principais exercícios multilaterais em curso '
Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, negociação da Alca e entre
Mercosul e União Européia ', assim como na conformação das novas regras que
irão reger as relações econômicas com vistas à defesa dos interesses dos países
em desenvolvimento. Essa relativa estabilidade da agenda diplomática reflete
tanto o peso da geografia nas relações internacionais dos países, quanto o
efeito inercial da participação em longos processos de negociação econômica
multilateral.
A principal diferença entre os dois governos é de perspectiva, da visão da
ordem internacional de cada um deles. Ao buscar consolidar relações com a
corrente principal da economia global ' Estados Unidos, Europa e Japão ',
repudiando assim as orientações terceiro-mundistas, um dos eixos do modelo
autonomista pretérito, o governo Fernando Henrique Cardoso enfatizava uma
determinada perspectiva da ordem mundial, representação esta, próxima ao que
alguns analistas denominam o sistema geoeconômico de Clinton. Isto é, uma ordem
em que a globalização é a tendência dominante, com o predomínio indiscutível
dos Estados Unidos, com base na sua superioridade militar, econômica e
tecnológica.
Tal como articulado no modelo da credibilidade, a restauração da confiabilidade
internacional está associada tanto à adesão aos regimes internacionais dos
quais o país esteve afastado durante o regime militar, quanto à adesão ao
compromisso com a estabilização macroeconômica e a manutenção da
governabilidade, de acordo com o léxico das agências financeiras e do mercado
internacional. Tanto assim que a ortodoxia no plano macroeconômico foi
acompanhada de uma política externa cujo principal vetor foi a participação
ativa nos âmbitos multilaterais.
O entendimento da ordem internacional que transparece nos pronunciamentos e
iniciativas do governo Lula é distinto. Ainda que reconhecendo o predomínio
militar dos EUA, a avaliação da ordem econômica é mais matizada, em função da
criação do euro que enfraqueceu o poder do dólar e, conseqüentemente,
fortaleceu a União Européia. Em um mundo menos homogêneo e mais competitivo,
haveria espaço para um movimento contra-hegemônico cujos eixos estariam na
Europa ampliada, com a inclusão da Rússia e na Ásia, onde potências como China
e Índia podem vir a representar um contraponto aos EUA na região.
Nessa percepção, a unipolaridade não consegue se legitimar, pois a tentação
imperial é permanente o que, simultaneamente, estimula o investimento das
demais potências em um esforço contra-hegemônico. Em um contexto mundial com
vetores multipolares, o exercício multilateral, em particular nos fóruns
políticos, torna-se crucial para atenuar a primazia norte-americana e conter
seus impulsos unilaterais, que se tornariam inevitáveis em uma ordem
internacional sem competidores ou opositores.
Ainda que seja cedo para uma avaliação da política externa do governo de Lula,
sua característica distintiva com respeito ao anterior é combinar uma política
macroeconômica ortodoxa, em tudo semelhante à de seu antecessor, e uma política
externa heterodoxa muito próxima da estratégia autonomista articulada pela
comunidade de política externa, como vimos anteriormente. Dada as injunções
internacionais que o governo Lula experimenta, sua política externa parece
constituir um dos domínios escolhidos para a reafirmação de seu compromisso com
a mudança e com uma agenda social-democrata. No plano das ações diplomáticas,
ressalta-se o forte componente de uma típica política de equilíbrio em relação
à potência global com base em alianças com outras potências médias, dentro e
fora do espaço regional sul-americano, como é o caso, por exemplo, da
iniciativa IBSA.
De um ponto de vista analítico, a estratégia da credibilidade tem mais pontos
de contato com a identidade de um mercado emergente, em oposição a da autonomia
que se aproxima mais de uma de system-affecting state. No governo Cardoso, as
ações de política externa foram subsidiárias à prioridade conferida à
manutenção da estabilidade e da credibilidade. No governo Lula, ao contrário, a
política externa parece ter se desvinculado da ortodoxia macroeconômica em
curso. O legado desenvolvimentista, conservado por algumas burocracias do
Estado brasileiro, recuperou espaço na política externa deste governo. Mas ao
contrário da estratégia autonomista do regime militar, a identidade de um país
system-affectinge a estratégia de equilíbrio, incluem, no contexto democrático
atual, um forte viés de cooperação regional e a renúncia à dissuasão militar
nuclear, dois ganhos obtidos com a promulgação da Constituição de 1988.
O Brasil e a regulação multilateral da segurança e do comércio internacionais
Uma ativa presença e participação em arenas multilaterais têm sido uma
constante na política externa brasileira desde o final do século XIX. Como o
único país da América do Sul a participar da Primeira Guerra Mundial, na
qualidade de país beligerante, o Brasil garantiu presença na Conferência de Paz
em 1919. Data desta época, as primeiras iniciativas brasileiras para a reforma
do ainda incipiente regime de segurança coletiva representado pela criação da
Liga das Nações. Naquela ocasião, o Brasil apresentou-se como mediador entre as
grandes potências e as demais, posicionando-se na defesa dos direitos das
potências menores e, simultaneamente, aspirando conquistar o statusequivalente
ao das grandes potências (Garcia, 2000; e Mello e Silva, 1998).
O Brasil também esteve presente nas principais conferências que instituíram a
estrutura de governança da ordem pós-1945. Foi membro fundador das Nações
Unidas, um dos 23 "pais fundadores" do Gatt e um dos 56 países representados
nas negociações da ITO (Organização de Comércio Internacional) em Havana
(Abreu, 1999). De modo geral, a participação de países como a Índia e o Brasil
nas instituições de regulação da ordem pós-45 foi pautada pelos objetivos de
desenvolvimento econômico e autonomia política. Nos anos 60 e 70, o ativismo
político no âmbito da coalizão do Terceiro Mundo concentrou-se, para o Brasil,
nas questões econômicas, em particular na Unctad e no Gatt, e para a Índia nas
de natureza política a partir do Movimento dos Não-Alinhados (Sennes, 2001). Da
perspectiva da diplomacia brasileira, apenas nas questões Norte-Sul haveria
espaço para a invenção diplomática e coordenação da ação política da coalizão
desenvolvimentista, ao contrário das de Leste-Oeste em que o trabalho
diplomático se resumiria à reação a crises "que não criamos" (Fonseca Jr.,
2000: 308).
O foro político das Nações Unidas também foi um espaço para demandas de
reforma, observando-se uma convergência entre os dois países em torno do tema
da "democratização" do processo decisório. Na visão brasileira, as Nações
Unidas não deveriam ater-se apenas às questões de paz e de segurança, mas
ampliar seus horizontes de modo a incluir o bem estar e o progresso da
comunidade das nações (Sardenberg, 2000). Nos anos 60, a convergência Brasil e
Índia foi máxima por ocasião das discussões, no Comitê de Desarmamento, quando
das negociações do Tratado de Não-Proliferação (TNP). Ambos países apoiavam as
medidas de desarmamento, mas se recusaram a assinar o tratado e as razões
apresentadas foram bastante semelhantes. Para o Brasil, o TNP configurava-se na
expressão máxima do "congelamento do poder mundial", enquanto para a Índia era
um instrumento de "não-proliferação da ciência e tecnologia". Contudo, o ponto
de vista indiano tendia a enfatizar os aspectos relacionados à segurança e o
brasileiro às questões econômicas e tecnológicas. (Lima, 1986: 77-90).
Entre os membros não-permanentes, Brasil e Índia foram os países que ocuparam
por mais tempo, uma vaga no Conselho de Segurança, 14 anos não consecutivos
para o Brasil e 12 para a Índia, no período entre 1945 e 1996. (Sennes, 2001:
96). Contudo, o Brasil esteve ausente do Conselho por vinte anos, entre 1968 e
1988. A primeira data coincidiu com a recusa brasileira em aderir ao TNP e a
segunda marcou o retorno pleno da democracia no país. Desta forma, a
coincidência fortuita entre o fim da Guerra Fria e o fim do regime militar
brasileiro relançaram um novo ciclo da participação brasileira nas discussões
sobre a reforma de um dos principais pilares do sistema de segurança coletiva
da ordem de 45.
As preocupações brasileiras com relação à agenda da reforma concentram-se em
torno de três grandes eixos que, de resto, refletem posturas tradicionais
brasileiras: o reforço dos princípios multilaterais, em particular nos casos de
autorização do uso dos instrumentos coercitivos, previstos no capítulo VII da
Carta das Nações Unidas; soluções inovadoras que possam restabelecer a
fronteira conceitual e operacional entre os mecanismos de manutenção da paz e
os de peace enforcing; e reforma da estrutura decisória do Conselho de modo a
dotá-lo de representatividade e legitimidade na nova ordem pós-Guerra Fria.
(Amorim, 1999; Herz, 1999; Sardenberg, 2000).
A ênfase no multilateralismo espelha a própria identidade internacional do
país, que vê na mediação entre os fortes e fracos sua principal contribuição
para a estabilidade internacional e o reconhecimento de sua projeção
internacional não pelo recurso à força, mas pela diplomacia parlamentar.
(Lafer, 2001). Para o Brasil, o fortalecimento do arcabouço jurídico-
parlamentar do sistema da ONU se tornou ainda mais necessário na nova ordem
unipolar que emergiu com o desaparecimento da União Soviética. Um
enfraquecimento do Conselho de Segurança seja por paralisia decisória, como no
período da Guerra Fria, seja por ficar a serviço das ações unilaterais dos EUA
seria desastroso para o Brasil. Nas palavras do embaixador Celso Amorim, "a
proteção da credibilidade do Conselho de Segurança pode ser vista como um
verdadeiro objetivo nacional". (Amorim, 1999: 93).
A distinção conceitual entre as operações de paz e as de peace enforcementdas
ações coercitivas sob o capítulo VII remete a três pilares básicos da política
externa: a defesa do princípio da não-intervenção, da norma da solução pacífica
das controvérsias e das raízes econômicas das questões de segurança. A
preocupação brasileira centra-se na multiplicação dos regimes de sanções e na
necessidade de regulá-los de forma a adicionar à noção de "diplomacia
preventiva" medidas de cooperação internacional para o desenvolvimento, além
das ações mediadoras usuais, não coercitivas.
Finalmente, a reforma da estrutura decisória do Conselho está referida à tese
da "democratização" do processo decisório, também cara à comunidade de política
externa. A candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de
Segurança foi anunciada oficialmente pelo então chanceler Celso Amorim em 1994,
no âmbito do lançamento do projeto de reforma do Conselho naquele mesmo ano. A
ampliação do Conselho é justificada pela necessidade de adequar o organismo às
novas realidades do mundo pós-Guerra Fria e deverá ser guiada por critérios que
impliquem em um aumento da representatividade e da equidade do órgão com vistas
a ampliar sua legitimidade e eficácia. (Mello e Silva, 1998). Para o Brasil, a
legitimidade do Conselho depende da ampliação de sua representatividade
política, de forma a adequar a estrutura decisória do órgão às realidades
políticas do atual sistema internacional.
África do Sul, Índia e Brasil reivindicam a posição de membros permanentes com
base no princípio de representatividade geográfica. México e Argentina têm
posições distintas, já que defendem a ampliação do número de membros não
permanentes. Desde então, dada a quase impossibilidade de se articular uma
posição regional comum, o tema foi abordado em contatos bilaterais, fora da
América Latina, com países que também já manifestaram simpatia ou interesse
nesta ampliação tais como França, Alemanha, China, Índia e África do Sul. Mais
recentemente, o governo Lula incluiu este tema entre as prioridades de sua
agenda de política externa. Desta feita, o tema foi abordado também em
conversações com países sul-americanos, no bojo da ênfase que este governo
conferiu às relações com a região sul-americana. A iniciativa IBSA tem na
questão da reforma do Conselho um de seus pontos programáticos. Mas dada a
sensibilidade que o tema provoca nas relações com a Argentina, coloca-se um
conflito potencial entre a postulação brasileira e o aprofundamento das
relações do Brasil com os países sul-americanos.
A centralidade desta questão na agenda externa do governo Lula e o
aprofundamento do comportamento crescentemente unilateral do governo Bush, na
implementação da "guerra ao terror" no pós 11 de Setembro, provocaram uma
atenuação de algumas reservas prévias brasileiras com relação a um compromisso
mais profundo com as atividades de manutenção da paz do sistema ONU. Ainda que,
ao longo dos anos, o país tenha contribuído em diversas missões desta natureza,
comparando-se com a Argentina, sua participação em termos do tamanho do
contingente enviado e da localização geográfica da missão foi sempre menor e
geralmente focalizada em regiões com prévios vínculos políticos e culturais,
como por exemplo, os países africanos de língua portuguesa, o Timor Leste, de
colonização portuguesa, e países latino-americanos. O comando brasileiro de uma
força de paz de cerca de mil e duzentos soldados no Haiti, a partir de junho de
2004, não apenas demonstra uma nova postulação com respeito ao exercício de um
papel mais intervencionista em face de situações de conflito interno e/ou
guerra civil, que possam reverberar em seu perímetro de segurança, como se dá
em um país do Caribe, região com fracos vínculos com o Brasil. Nos anos 90, por
exemplo, o Brasil absteve-se de apoiar, no âmbito do Conselho de Segurança, o
envio de uma missão multinacional àquele país, posição acompanhada pela
República Popular da China.
Ao contrário das questões de paz e segurança em que o Brasil não teve uma
participação continuada na ordem de 1945 e praticamente só no pós-Guerra Fria
assumiria uma postura protagônica, nas negociações da reforma do regime de
comércio e de desenvolvimento a participação brasileira tem sido constante e
ativa desde sua implantação em meados do século XX. Juntamente com países como
a Índia e o México, o Brasil teve papel destacado na coordenação da coalizão
terceiro-mundista, tendo liderado o G-77 nos anos 60. As questões de interesse
destes países diziam respeito basicamente à constituição de um sistema de
comércio e desenvolvimento que, levando em conta os interesses específicos
daquele conjunto de economias, instituísse mecanismos especiais para fazer face
à situação de desigualdade entre os países no sistema de comércio global. As
reformas eram defendidas em nome da observância de um princípio de justiça
distributiva, princípio este que um sistema liberal seria impermeável:
desiguais não podem ser tratados como iguais. Em certo sentido, o custo da
liderança da "coalizão dos fracos" era suportado, quase que exclusivamente,
pelos grandes países em desenvolvimento que haviam adotado estratégias de
crescimento para dentro. Da mesma forma, as pequenas economias exportadoras do
sudeste asiático, os NICs dos anos 70, eram os caronas deste esforço de
liderança dos países em desenvolvimento, uma vez que foram amplamente
beneficiados por alguns dos mecanismos introduzidos no regime de comércio, como
o SGP, por exemplo. (Lima, 1986).
Entre as décadas de 1960 e o início da de 1980, não sendo ainda um demandeurno
regime de comércio, a participação brasileira centrava-se na defesa de certos
princípios e praticamente não negociava questões específicas:
preferência por um regime de comércio baseado nos princípios de
cooperação e desenvolvimento (Unctad) em oposição aos princípios de
mercados livres (Gatt);
forte apoio ao fortalecimento de normas comerciais tais como a de
"não-discriminação" e a de "nação mais-favorecida", que garantissem
menor arbitrariedade e impedissem comportamentos unilaterais e
medidas protecionistas da parte dos países desenvolvidos;
forte apoio à implantação de normas diferenciadas favorecendo os
países em desenvolvimento, tais como a de "tratamento especial e
diferenciado" e de "não-reciprocidade";
alinhamento político com o G 77 em outras arenas multilaterais.5
A partir dos anos 80, a postura brasileira foi de limitação de danos, isto é,
retardar ou mesmo impedir a instituição de normas e procedimentos que: (a)
diferenciassem os países em desenvolvimento; (b) enfraquecessem as normas
multilaterais; e (c) ampliassem as matérias e questões substantivas sujeitas à
disciplina normativa do regime de comércio. Desta forma, na Rodada de Tóquio um
dos principais objetivos brasileiros foi impedir a introdução de medidas de
"graduação" reservadas aos mais desenvolvidos entre os países em
desenvolvimento. Outro objetivo negociador prioritário foi fortalecer o sistema
multilateral, em especial a norma da Nação Mais Favorecida (MFN) no caso da
instituição dos diversos Códigos Não-Tarifários (NTB), alguns de grande
interesse para o Brasil como os de Anti-Dumping; Subsídios e Medidas
Compensatórias; e Salvaguardas. (Lima, 1986).
Entre o final da Rodada de Tóquio e o início da Rodada Uruguai, o Brasil e a
Índia vão cooperar ativamente no G-10 face à iniciativa norte-americana de
ampliar a agenda da Rodada com a introdução de novas questões (propriedade
intelectual, serviços e investimentos) a serem objeto de regulação
internacional. A partir da Rodada do Uruguai, vão ficar claros os limites
negociadores de uma estratégia de limitação de danos calcada no duplo objetivo
de impedir a dissolução do regime de comércio multilateral e fortalecer as
normas multilaterais que dificultem comportamentos unilaterais e,
simultaneamente, evitar o isolamento político, no interior da "coalizão dos
fracos" que enfraqueceria a participação destes dois países em uma eventual
cooperação com os países desenvolvidos.6
Na Rodada Uruguai, não apenas a agenda negociadora se torna mais ampla e mais
complexa, como se modifica a própria estrutura do processo negociador. Levando-
se em conta os interesses negociadores brasileiros, as principais modificações
foram:
mudança na estrutura das negociações, uma vez que estas últimas vão
além das medidas de fronteira clássicas (agenda negativa e concessões
mútuas tarifárias), implicando em compromissos ativos de políticas
governamentais com repercussões domésticas;
configuração de novas coalizões envolvendo países em
desenvolvimento e países desenvolvidos, como a formação do Grupo de
Cairns.
Crise do G-77 e divisão política entre os países em
desenvolvimento: o G-10, liderado pela Índia, o Brasil e o Egito,
bloqueando a introdução de novas questões e disciplinas normativas e
concentrando-se na agenda tradicional do Gatt, versuso G-20, com a
participação de países desenvolvidos e em desenvolvimento, mais
favorável a aceitar o trade offentre a velha e a nova agenda.
(Sennes, 2001:174-214).
A partir de 1988, os países em desenvolvimento vão flexibilizar suas posições
negociadoras no contexto da crise de seus modelos de desenvolvimento prévio.
Esta pulverização política do G-77 e o efeito bandwagoning, que então se
observa representam o limite das antigas posturas de princípio defendidas no
passado. A partir de então, as coalizões terão que ter como solda não apenas
princípios, mas também interesses concretos.
Em certa medida, o G-20 que se forma na reunião de Cancun, no México, em 2003,
representa um renascimento da coalizão terceiro-mundista agora, porém, em torno
dos interesses agrícolas dos países em desenvolvimento e na explicitação da
hipocrisia da posição negociadora dos países desenvolvidos. Para o Brasil, a
criação do G-20, retomando a coordenação com a Índia, é uma oportunidade de
mais uma vez desempenhar o papel de "intermediário indispensável" entre os
"fracos" e os "fortes". Por outro lado, a novidade para o Brasil, na negociação
de Doha é ser um demandeurna questão agrícola em função da alta competitividade
das exportações agrícolas brasileiras, além da manutenção de sua agenda
negociadora tradicional, centrada no acesso a mercados e fortalecimento das
normas multilaterais. (Abreu, 1999). A formação do G-20 e a nova situação de
demandeurna área agrícola representam o retorno brasileiro aos dois tabuleiros
de atuação diplomática: o da cooperação Sul-Sul e o da negociação de concessões
comerciais com os principais parceiros do Norte. Cabe mencionar que a
liberalização do comércio agrícola é do máximo interesse brasileiro, em vista
da alta competitividade deste setor, o que não é necessariamente o caso dos
demais participantes do G-20, mas estão todos unidos diante da insatisfação com
a estratégia da União Européia e dos Estados Unidos de protelarem uma
liberalização radical de seus setores agrícolas e insistirem na liberalização
de outros setores de seu interesse.
A dinâmica da arquitetura negociadora das reformas de governança, tanto das
questões de paz e segurança, quanto das de comércio e desenvolvimento sugere
que, na atualidade, países como a África do Sul, o Brasil e a Índia enfrentam
um dilema de difícil solução. Ao contrário da ordem pós-45 quando a construção
de um sistema multilateral foi obra das potências, leia-se os EUA, no pós-
Guerra Fria a oferta de um sistema multilateral de segurança e de comércio
parece depender mais das iniciativas dos países mais desenvolvidos, entre os em
desenvolvimento. Contudo os paises intermediários não contam mais com a
totalidade do apoio da "coalizão dos fracos" em função do efeito
bandwagoningacima mencionado. Por outro lado, os países desenvolvidos parecem
não depender tanto do arcabouço multilateral, na medida em que dispõem de
outros mecanismos, sejam bilaterais, minilaterais, regionais, e mesmo
unilaterais, para defender seus interesses nas questões de comércio e de
segurança. Este não é o caso dos três mencionados, para os quais a opção
multilateral ainda é superior às demais. Desta forma, a opção de saída é muito
mais custosa para eles do que para os países desenvolvidos. O grande desafio
para África do Sul, Brasil e Índia é como exercer a opção de voz, sem perder
efetividade, e buscar trade offsmelhores nas questões de seus interesses sem
provocar o enfraquecimento ou mesmo a destruição dos regimes de comércio e de
segurança coletiva.
Diante deste dilema, a posição do atual governo parece ser de manter a presença
nos dois tabuleiros. O G-20 é visto pela diplomacia como uma coalizão
pragmática que expressa o reconhecimento de que hoje o "que ocorre nos grandes
países em desenvolvimento, como China, Índia e Brasil, impacta cada vez mais no
mundo industrial".7 Dentro da comunidade de política externa, porém, estas
questões não são consensuais. Para alguns, o Brasil deveria concentra-se na sua
agenda de demandeurdo setor agrícola e nas questões da sua agenda tradicional e
evitar a repetição de práticas obstrucionistas do passado.8 Por outro lado, há
consenso total com relação à prioridade das negociações no âmbito da OMC. Para
alguns, é nesta arena que o Brasil tem condições de obter ganhos melhores do
que em negociações como a da Alca ou do Mercosul-União Européia, por exemplo.9
As questões de paz e segurança não provocam a mesma mobilização que as de
comercio e o debate interno é quase inexistente. Contudo, entre os setores mais
nacionalistas existe o temor que o custo do trade off, envolvido na questão da
candidatura brasileira ao Conselho de Segurança, em termos de uma participação
mais sistemática e de envergadura nas missões de paz, talvez seja muito alto.
Não apenas por violar o princípio da soberania, mas por representar uma
situação em que o país estaria antes colaborando com a agenda de segurança do
governo Bush, do que propriamente com a de segurança coletiva das Nações
Unidas.
As bases domésticas para a ampliação da cooperação econômica e política
De uma perspectiva histórica, a geografia e legados políticos específicos
dificultaram vínculos políticos e econômicos mais estreitos entre os três
países, apesar de semelhanças estruturais relevantes entre eles. Os três podem
ser classificados como membros semiperiféricos do sistema econômico mundial;
são poderosos regionais; ricos em recursos naturais; nível razoável de
industrialização e população multiétnica. São grandes democracias de massas com
gravíssimos problemas de inclusão social. No caso brasileiro, esta combinação
perversa tem sido atenuada pela profundidade da inclusão eleitoral que tornou
possível que o país, apesar do conservadorismo de suas elites dirigentes, tenha
elegido um ex-metalúrgico presidente da República.
A tabela_2 sugere algumas particularidades entre eles. Do ponto de vista dos
indicadores sociais, o Brasil apresenta um desempenho melhorque os demais e é
um país majoritariamente urbano. O dado desabonador é a extrema desigualdade
que faz com que o país exiba o maior valor do índice Gini, comparado aos
demais. A Índia é um país majoritariamente rural, com uma população imensa e
relativamente mais pobre que as demais; tanto sua renda per capita,como os
valores de seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) são inferiores aos dos
demais. Finalmente, a África do Sul estaria colocada entre os dois, no que diz
respeito aos indicadores sociais, mas com uma expectativa de vida bem mais
baixa que a dos outros dois, em função do gravíssimo problema de saúde
representado pela incidência da Aids no país. Um dado alvissareiro é a maior
porcentagem de mulheres em cargos políticos, reflexo da ativa política de ação
afirmativa levada a cabo pelos governos pós-apartheid.
No Brasil, tal como nos demais, os problemas crônicos de desigualdade de renda,
analfabetismo e pobreza se agudizaram na década de 1990, em função da crise do
modelo desenvolvimentista e do ajuste estrutural por que passou sua economia.
Conjugar o crescimento auto-sustentado com o atendimento das demandas sociais
reprimidas é a difícil equação que o atual governo tenta solucionar. A
cooperação Sul-Sul é concebida no atual governo como um dos instrumentos no
equacionamento deste desafio.
Do ponto de vista brasileiro, a Iniciativa IBSA não visa apenas a cooperação no
âmbito multilateral nas questões de paz e segurança, por um lado e comércio e
desenvolvimento, por outro, mas objetiva também construir vínculos políticos e
econômicos fortes entre os três países. Historicamente e por razões diferentes,
estes vínculos não foram estreitos, quer no plano econômico, quer no político.
A distribuição geográfica do comércio exterior brasileiro vem se modificando
desde a década de 1970, mas ainda mantém o padrão centro-periferia clássico.
Como se pode observar na tabela_3, os países industrializados ainda constituem
o principal destino e origem deste comércio, ainda que ao longo do tempo, a
América Latina tenha se tornado uma das três principais áreas de concentração
do comércio. No caso dos investimentos, este padrão é ainda mais acentuado, na
medida em que os Estados Unidos, a Alemanha e o Japão são os países com os
maiores estoques de investimento no Brasil, sendo responsáveis por mais da
metade do capital estrangeiro aplicado no país. O movimento de
internacionalização dos investimentos brasileiros no exterior, que adquiriu
maior significado no início da década de 1990, privilegiou a América do Sul,
particularmente a Argentina, os paraísos fiscais, a América do Norte e a
Europa. (Pinheiro e Castelar, p. 14-17).
Diante deste quadro, é compreensível a relativa e pouco expressiva participação
da Índia e da África do Sul no comércio exterior brasileiro, até bem
recentemente. Conforme pode ser visualizado na tabela_4, o comércio bilateral
com os dois países ficou, quase sempre, abaixo de 1% na totalidade das trocas
comerciais brasileiras. O dado significativo é que a partir de 2001, observa-se
um aumento expressivo no valor das trocas comerciais tanto com a Índia, quanto
com a África do Sul. Em valores, no caso da Índia, passando de US$ 488 milhões
em 2000 para US$ 1.039 bilhões em 2003 e, no caso da África do Sul de US$ 529
milhões para US$ 935 milhões, no mesmo período. No caso da Índia, este aumento,
excepcional para o padrão histórico do comércio bilateral, se deveu ao aumento
conjunto da participação indiana nas importações e exportações brasileiras no
período. Com relação à África do Sul, aumentaram significativamente as
exportações brasileiras para este país, de modo tal que o último passou da 27º
posição no rankingdosprincipais mercados de destino das exportações
brasileiras, para a 19º posição entre 2002 e 2003, uma variação de 53,5%. (ver
tabela_5). No mesmo período, as exportações para Índia passaram de US$ 653
milhões para US$ 553 milhões. A tabela_5 demonstra a nova importância do
mercado chinês para as exportações brasileiras, passando aquele país a ocupar o
terceiro lugar nas exportações brasileiras, abaixo dos EUA e da Argentina, dois
destinos tradicionais de nossas vendas externas.
A despeito do aumento das exportações brasileiras para a África do Sul, o país
ainda não ocupa uma posição de destaque como destino dos investimentos
brasileiros no exterior, totalizando cerca de US$ 40mil, em junho de 1995,
segundo dados do Banco Central. Contudo, a presença de capitais sul-africanos
no Brasil data dos anos 70, com o estabelecimento da companhia Anglo Americanno
país. Os investimentos em mineração foram a porta de entrada para a expansão da
empresa para outros países latinos, bem como para a diversificação de suas
atividades no Brasil. Em julho de 1996 a empresa tinha investido no país US$ 1
bilhão. (Pinheiro e Castelar, p. 20 e 25).
Na dimensão política, as relações diplomáticas com ambos países foram
estabelecidas em 1947/1948, mas só mais recentemente adquiriram maior
expressão. No caso da Índia observou-se uma descontinuidade entre uma ativa
colaboração no plano multilateral, quer no regime de segurança, quer no de
comércio, e a pouca relevância das relações econômicas e políticas bilaterais.
Já com a África do Sul, foram basicamente fatores políticos que afastaram
durante longo tempo os dois países. Desta forma, a estreita relação com
Portugal e o conseqüente apoio ao colonialismo português, no âmbito das Nações
Unidas e o regime sul-africano do apartheidacabaram por gerar um comportamento
bastante ambíguo da diplomacia brasileira. Assim sendo, duas datas foram
cruciais na construção destas relações. Em primeiro lugar, a Revolução dos
Cravos e o fim do regime colonialista português (1974/1975) que liberaram o
Brasil para uma política de aproximação com a África Negra. O evento simbólico,
que marcou o início de uma diplomacia autônoma e ativa no continente africano,
foi o reconhecimento do primeiro governo independente de Angola, em novembro de
1975, ainda no governo militar. A segunda data, foi o fim do apartheid,vinte
anos depois, que permitiu ao Brasil, e à todas as demais potências
capitalistas, livrar-se da hipocrisia de condenar nos fóruns internacionais o
regime racista e, simultaneamente, manter vínculos econômicos lucrativos com
aquele país (Penna Filho, 2002b).
Desta forma, a partir de 1994, as relações bilaterais Brasil-África do Sul vão
experimentar uma "nova era". Iniciando-se com o Acordo de Pretória e a visita
de Fernando Henrique Cardoso ao país, em 1996, a primeira de um presidente
brasileiro, seguindo-se o adensamento das relações comerciais, as negociações
Mercosul e SADC, e a visita de Luís Inácio Lula da Silva em 2003. No plano
multilateral, uma das principais arenas de reingresso da África do Sul à
sociedade das nações, à cooperação Brasil-Índia se agregará a África do Sul nos
temas da reforma do Conselho de Segurança e do regime de comércio, culminando
com o estabelecimento do G-20, em Cancun, sob a liderança destes três países e
a formação do Fórum IBSA, ambos em 2003. (Guimarães, 2000; Penna Filho, 2002a;
e Santos, 2002).
Se o regime de apartheidgerou uma ambigüidade no plano das relações
interestatais, o mesmo não ocorreu no da sociedade civil. Tanto no Brasil
quanto na África do Sul, um dos principais núcleos de resistência aos
respectivos regimes vigentes surgiu no interior do movimento sindical. Em ambos
os países, o aparecimento do "novo sindicalismo", no final dos anos 70, foi
quase simultâneo no tempo: a formação da Central Única dos Trabalhadores, CUT e
do Partido dos Trabalhadores, PT, por um lado e da Federação dos Sindicatos
Sul-Africanos, Fosatu, por outro. Esta coincidência gerou uma cooperação
relativamente intensa entre ambos movimentos, em particular a partir do início
dos anos 80, quando o Congresso dos Sindicatos Sul-Africanos, Cosatu, realizou
uma visita não oficial ao Brasil. Ainda que as respectivas estratégias
políticas dos dois movimentos sindicais fossem distintas, a Cosatu reconheceu a
importância estratégica desta cooperação. Á medida que se consolidavam os
processos de transição para a democracia em ambos países, também se avolumou e
diversificou a cooperação entre os respectivos movimentos sociais: o Movimento
dos Sem Terra no Brasil e o Comitê de Terras Nacionais na África do Sul; a
cooperação nas áreas de habitação e planejamento urbano envolvendo ONGs
sulafricanas e experiências congêneres de governos municipais filiados ao PT;
bem como no âmbito da assim chamada sociedade civil global e suas manifestações
políticas mais significativas como a realização dos Fóruns Sociais. (Fig,
2002).
Não necessariamente a existência de uma cooperação ativa entre os movimentos
sociais de ambos países converge com respeito à pauta da cooperação
interestatal. Ainda que os temas da reforma do multilateralismo na segurança e
no comércio estejam presente nas agendas dos governos e da sociedade civil, os
movimentos sociais aprofundam muito mais a crítica ao déficitde accountabilitye
de representatividade das instituições internacionais. Por outro lado, eles
também são bastante críticos das políticas de ajuste e da falta de uma adequada
prestação de contas da política econômica de seus respectivos governos. Esta
situação constitui uma novidade no âmbito da cooperação sul-sul, anteriormente
ancorada unicamente na ação governamental. Por outro lado, esta tensão é
positiva, pois pode ajudar a aprofundar o componente democrático das
instituições nacionais e multilaterais, para além da agenda minimalista dos
governos nacionais.
Uma "nova geografia mundial"?
Com esta expressão, empregada pelo presidente Lula por ocasião da criação do G-
20, o governo brasileiro não apenas destacou positivamente o movimento da
política externa, em coordenação com outros países do Sul, na direção do
exercício de um metapoder nas questões multilaterais de comércio, como
sinalizou a novidade da cooperação Sul-Sul no contexto da globalização dos
mercados e do pós Guerra Fria. A novidade fica por conta da dimensão do
comércio e dos interesses concretos dos países envolvidos. Afinal, o objetivo
do G-20 é a liberalização do comércio agrícola, de modo a destravar as
negociações de Doha, em curso. Em certo sentido, a expressão condensa os dois
papeis internacionais reservados aos países intermediários: o de system-
affecting statee o de "grande mercado emergente".
Enquanto alguns analistas brasileiros deploram o retorno, à política terceiro-
mundista do Itamaraty dos anos 60 e 70, o próprio ministro das Relações
Exteriores se encarrega de desfazer esta identificação. Assim, em várias
entrevistas, o chanceler Celso Amorim tem assinalado os elementos novos e
pragmáticos, contidos em iniciativas com o G-20 e o G-3. Em uma delas, ao
destacar a questão dos subsídios agrícolas e do acesso aos mercados do Norte,
como constituindo a soldada ação coletiva do G-20, o ministro eliminou qualquer
componente ideológico ao contencioso, repudiando, inclusive, sua representação
como uma questão Norte-Sul típica, acrescentando: "se os subsídios são todos
impostos pelos países do Norte, eu não tenho culpa, é uma situação muito
objetiva".10 Especialistas em negociações multilaterais criticam estas
iniciativas como um retorno ao passado de uma política principista, terceiro
mundista. Para estes, o Brasil deveria abrir mão da coordenação dos países do
Sul e concentrar-se na sua condição de demandeurnas negociações agrícolas com
os Estados Unidos e União Européia.11
É curioso que com a crise do modelo de desenvolvimento com base nas importações
e a abertura da economia brasileira, os defensores do novo status quo, de um
modelo mais integrado aos mercados globais, insistam em visualizar estes dois
papéis como antagônicos ou mesmo como soma-zero. Assim, quanto mais o Brasil se
aproximasse de uma identidade de system-affecting-state, mais ele estaria se
afastando da de mercado emergente. Da mesma forma, a construção de relações
estratégicas com os países do Sul é apresentada como substituta das relações
com os países do capitalismo avançado, estas sim estratégicas para os
interesses do país. O último argumento crítico consiste em levantar a questão
da não complementaridade econômica entre os países do Sul e sua alegada
condição de competidores no mercado global.
Da perspectiva do atual governo, a cooperação Sul-Sul não substitui o
relacionamento com os EUA e a União Européia (vide a viagem do presidente Lula
aos EUA, no primeiro semestre de 2004, para apresentar o Brasil aos
investidores internacionais), mas representa uma oportunidade de ampliar o
comércio exterior brasileiro. O governo avalia que a proporção atual do
comércio do Brasil com os EUA e a União Européia já teria alcançado um valor
limite a partir do qual os incrementos seriam apenas marginais. Ao contrário,
os novos mercados do Sul apresentariam grande potencial por serem economias com
complementaridades naturais.12 A imagem de vários tabuleiros diplomáticos,
parte do acervo diplomático brasileiro tradicional, é retomada neste governo.
Claro está que a iniciativa IBSA, como um exemplo paradigmático da cooperação
Sul-Sul, apresenta riscos e oportunidades:
O aprofundamento das relações comerciais entre os três países
certamente vai gerar mais contenciosos entre eles do que no passado
quando as relações eram bem mais débeis. A crescente legalização do
comércio mundial necessariamente gera maiores impactos domésticos,
que tendem a aumentar quanto mais interdependentes são as economias.
Por outro lado, ainda que os três países estejam em um nível
semelhante de desenvolvimento, não exibem o mesmo grau de
competitividade em seu comércio internacional o que pode acabar
gerando, entre eles, um padrão centro-periferia nas respectivas
trocas bilaterais.
O adensamento das relações comerciais entre os três não apenas
viola a regra da maior centralidade seja do relacionamento centro-
periferia, seja das relações com países de uma mesma região. Desta
forma, sempre existe o risco de que cada um deles priorize mais suas
relações tradicionais com os países do Norte, bem como com seus
parceiros regionais.
A cooperação entre os três no plano multilateral não se estende
automaticamente a todas às questões da agenda de reforma
multilateral. Por exemplo, tanto a África do Sul quanto o Brasil
renunciaram às armas nucleares, enquanto a Índia já é uma potência
nuclear. Por outro lado, algumas diferenças de interesses comerciais
entre eles já foram minimizadas em função da coordenação comum, como
é o caso da formação do G-20 e os interesses agrícolas diferenciados
do Brasil e da Índia.
A ampliação do G-3 para um G-4, com a inclusão da China, por
exemplo, pode ser problemática, pois não apenas a ampliação da
coalizão diminui a amplitude dos temas de interesse comum e,
portanto, dificulta a coordenação da ação coletiva, como, neste caso,
existem particularidades do contexto geopolítico asiático que podem
dificultar a coordenação.
A eventual incorporação dos três em arenas como o G-8 ou mesmo como
membros permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas ainda
que represente uma ampliação da presença e da voz de países do Sul,
pode gerar problemas em suas respectivas regiões e não
necessariamente é vista pelos demais como um aumento de sua
representação política nestes fóruns, mas como uma cooptação dos mais
desenvolvidos entre eles. Por outro lado, a incorporação de apenas um
ou dois deles enfraqueceria o poder de barganha do G-3 vis-à-visos
países industrializados.
Entre as oportunidades, duas, nos plano multilateral e bilateral, me parecem
dignas de nota.
A despeito das dificuldades em manter a unidade da ação coletiva do G-3, estes
três países e outros na categoria de intermediários, constituem um dos
principais beneficiários de uma ordem baseada em regras multilaterais, nas
questões de paz e segurança, assim como nas de comércio e desenvolvimento.
Diante do crescente apelo às iniciativas unilaterais das grandes potências, bem
como do recurso à soluções minilaterais ou regionais por estes mesmo países,
por um lado, e do incentivo ao bandwagoningpara os pequenos países do Sul, por
outro, o fortalecimento do multilateralismo pode acabar dependendo da ação
coletiva de países com a África do Sul, o Brasil e a Índia.
Apesar das críticas doutrinárias à cooperação Sul-Sul, as relações entre estes
três países constituem uma evidência de que as complementaridades entre eles
podem ser maiores que os fatores de competição. Como países intermediários eles
já dispõem de uma base industrial complexa, tendo alcançado relativo
desenvolvimento tecnológico em alguns setores de ponta. Por outro lado, eles
compartilham também de todos os problemas estruturais dos países do terceiro
mundo: pobreza, desigualdade e analfabetismo. Esta condição comum cria uma base
para a cooperação que é distinta da relação Norte-Sul e que não ocorre com
freqüência na cooperação Sul-Sul.
Em sentido figurado, o paradigma da Aids pode encarnar o novo sentido da
colaboração entre os países do Sul, na medida em que combina: o aporte de uma
indústria de fármacos tecnologicamente desenvolvida (Índia), a tecnologia de
novos métodos de tratamento da doença (Brasil) e a demanda por estes serviços
de saúde pública, em vista das externalidades que a África do Sul incorre por
estar situada no continente onde é maior a incidência da doença. Ademais, o
paradigma da Aids também ilustra o novo poder de barganha destes países na
negociação multilateral com os países industrializados que, no âmbito da OMC,
reconheceram a legitimidade do pleito de se isentar os remédios, fabricados
nestes países e utilizados no tratamento da doença, das regras rígidas de
propriedade intelectual.