A América do Sul no discurso diplomático brasileiro
Introdução
A identidade internacional do Brasil, ainda que tenha fortes elementos de
permanência, está continuamente sendo reconstruída e reinventada. Esse processo
constante de redefinição não é estranho a nenhuma nação. Não há, a despeito da
eventual utilidade de apresentá-las assim no plano discursivo, identidades
"naturais" e eternas, dissociadas dos processos históricos. As pretensas
identidades "naturais" de raça, de gênero, geográficas, e outras são também
construções sociais. A criação de identidades é um processo dialético em que os
conceitos identitários (como "América do Sul", por exemplo) não são simples
epifenômenos da realidade social. Os conceitos também influem nos processos
históricos a que estão associados delimitando campos e afinidades e, também,
servindo como elementos de exclusão e controle.
No sistema internacional, como no plano da política interna, as identidades são
construídas e evoluem dentro do espaço de relações e diferenças específicos de
cada momento histórico. A identidade internacional do Brasil, em cada momento,
se faz a partir de um conjunto extremamente amplo de variáveis e
características: um país pacífico, que respeita o direito internacional, que
busca o desenvolvimento, um país do Terceiro Mundo, ocidental, cristão,
subdesenvolvido, americano, ibero-americano, latino-americano, sul-americano,
etc. São muitas as variáveis que compõem a identidade brasileira. No entanto, a
diplomacia brasileira vem, recentemente, dando grande ênfase ao caráter sul-
americano do país.
Identidades cambiantes: uma revisão histórica
No período imperial, o Brasil, ao conservar o princípio dinástico como fonte de
legitimação, diferenciou-se decisivamente de seus vizinhos americanos, que
passaram a representar para o império o "outro" irreconciliável. Na metafórica
ruptura entre a América e a Europa, o Brasil colocava-se ideologicamente ao
lado das potências européias. A chave para permitir essa operação ideológica
foi o conceito de "civilização". Durante o Império, o Brasil construiu sua
auto-imagem a partir da percepção de uma suposta superioridade em termos de
civilização que seu regime político representava, ao aproximá-lo das monarquias
européias. Ainda que atrasado, escravista e distante, essa "monarquia tropical"
sentia-se acima de seus vizinhos, que entendia anárquicos e selvagens (Santos,
2004).
Essa percepção foi refletida no discurso diplomático. Nos Relatórios da
Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (RSNE), durante todo o Império,
está sempre presente a dicotomia entre as relações com os países da Europa e
com os demais países americanos. São constantes as referências, por exemplo, às
"potências da América e da Europa" (RSNE, 1832, p. 11 e p. 21; 1833, p. 12;
1834, p. 16), aos "governos da Europa e América" (RSNE, 1835, p. 5; 1845, p.
8), aos "Estados da Europa e América" (RSNE, 1837, p. 4), às "nações da Europa
e da América" (RSNE, 1855, p. 4) e às "legações brasileiras na Europa e na
América" (RSNE, 1870, p. 28).
O continente americano é, nesses Relatórios, tratado como unidade. São esparsas
e pouco consistentes as eventuais referências às partes que o compõem. De forma
vaga, por exemplo, no Relatório de 1840 (p. 9) faz-se menção ao desejo de
alguns dos Estados da "América Meridional" de convocar um Congresso Americano.
Foi também nesse contexto de discussão sobre a possibilidade de convocação de
uma assembléia dos países americanos que a expressão "América do Sul" apareceu
pela primeira vez nos Relatórios da Secretaria dos Negócios Estrangeiros. No
volume referente a 1844 (p. 15), pode-se ler: "Não se tendo realizado em
Tacubaya a reunião do Congresso Americano no ano de 1830, nomeou o governo
mexicano ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros D. João Cañedo, por seu
Enviado Extraordinário e ministro Plenipotenciário junto de todos os governos
da América do Sul, para convidá-los a realizarem a dita reunião" (grifo meu).
Na verdade, o conceito de América do Sul definido pela área de atuação da
missão de Cañedo não corresponde ao que hoje representa a expressão. Para
convocar o pretendido Congresso, o ministro das Relações Exteriores do México,
Lucas Alemán, enviou duas missões diplomáticas: "uma à América Central e
Colômbia e outra às repúblicas sul-americanas e ao Império do Brasil" (Zoraida
Vázquez, 2003, p. 505). Nessa interpretação, a Colômbia não faria parte do
continente.
A utilização da expressão "América do Sul" só voltaria a se repetir no
relatório de 1855 e, também dessa vez, como atributo criado por outro país. No
caso, referiu-se a um aviso expedido aos agentes dos Estados Unidos na América
do Sul (p. 21-22). Provavelmente, tampouco nesse segundo exemplo o conceito
abrangia os países que hoje consideramos sul-americanos pois até as primeiras
décadas do século XX o uso dessa expressão nos Estados Unidos servia para
caracterizar os países que estavam ao sul do rio Grande e, portanto, englobaria
também os países centro-americanos, os caribenhos e o México.
Nos relatórios do período imperial, a expressão "América do Sul" foi usada pela
terceira e última vez no volume de 1888 (p. 5), sobre o convite formulado pelo
governo uruguaio para um "Congresso dos Estados da América do Sul". Dessa
feita, pelo prisma de hoje, o título estaria mais ajustado, pois a esse
congresso assistiram a Argentina, a Bolívia, o Brasil, o Chile, o Paraguai, o
Peru e o Uruguai. No entanto, ao aludir aos resultados do Congresso, o
relatório de 1890 (p. 23) indica que a adesão ao acordo dele resultante era
recomendada aos governos das nações latino-americanas expressão que figurou
pela primeira vez nos relatórios do então renomeado Ministério das Relações
Exteriores.
A partir da década de 1880 ganharam curso outras expressões forjadas em torno
da idéia de América. A mais importante seria a noção de pan-americanismo,
criada em 1882. Dessa data em diante, ficou patente a liderança estadunidense
nas iniciativas de integração continental, que adquiriram novos contornos e
novos conteúdos. Em resposta, Rodó, Martí e outros autores latino-americanos,
começaram a estabelecer a noção de que os Estados Unidos e seus vizinhos ao sul
possuíam características que os diferenciavam irreconciliavelmente e que os
países de origem latina desfrutariam de uma espécie de superioridade (pelo
menos, em termos morais) em relação aos Estados Unidos.
O distanciamento do Império brasileiro da idéia de América não escapou à
análise dos seus contemporâneos. Em uma das primeiras manifestações
conseqüentes do americanismo brasileiro, o Manifesto Republicano de 1870 deixou
bem evidente a contradição entre a monarquia e a adesão à idéia de América:
"Somos da América e queremos ser americanos. A nossa forma de governo é, em sua
essência e em sua prática, antinômica e hostil ao direito e aos interesses dos
Estados americanos. A permanência dessa forma tem de ser forçosamente, além de
origem de opressão no interior, a fonte perpétua da hostilidade e das guerras
com os povos que nos rodeiam. Perante a Europa passamos por ser uma democracia
monárquica que não inspira simpatia nem provoca adesão. Perante a América
passamos por ser uma democracia monarquizada, aonde o instinto e a força do
povo não podem preponderar ante o arbítrio e a onipotência do soberano. Em tais
condições pode o Brasil considerar-se um país isolado, não só no seio da
América, mas no seio do mundo".
A Proclamação da República representou a reversão imediata do distanciamento em
relação ao americanismo. A delegação brasileira à Conferência de Washington de
1889-1889 teve sua chefia mudada e foi orientada a dar um "espírito americano"
às instruções que haviam sido preparadas ainda pela diplomacia imperial. Após
tentar, sem sucesso, negociar uma "aliança ofensiva e defensiva" com os Estados
Unidos, o Brasil acabou por contentar-se com um acordo comercial, firmado em
janeiro de 1891. Com a República, o discurso da chancelaria brasileira passou,
ainda que timidamente, a incorporar as expressões como "América Latina",
"América do Norte", "América Central" e "América do Sul".
A diplomacia brasileira dos primeiros vinte e cinco anos da República atuou
tendo em conta primordialmente dois cenários: um sistema americano, comandado
pelos Estados Unidos; e um subsistema sul-americano, no qual o Brasil (junto
com a Argentina e o Chile) dispunha de uma autonomia relativa. Vale lembrar que
esse subsistema sul-americano não englobava, na prática, o que hoje entendemos
por América do Sul. A disputa de limites entre a Venezuela e a Guiana inglesa,
a secessão do Panamá (que Roosevelt resumiu com a frase: "Eu tomei o Panamá") e
todos os outros assuntos dos países situados ao norte da América do Sul eram
tratados como questões da área de influência abertamente imperial dos Estados
Unidos.
Essa concepção de América Sul abrangendo basicamente o Cone Sul é absolutamente
coerente com a principal iniciativa da diplomacia brasileira para a região
nesse período: o Tratado do ABC (entre o Brasil, Argentina e Chile). As
tratativas do Barão do Rio Branco, em 1907 e 1909, para a assinatura desse
acordo foram frustradas pelas rivalidades regionais e a proposta só se
concretizou em 1915, já na gestão de Lauro Müller.
A diplomacia de Rio Branco, paradigmática para o período, estruturou o discurso
sobre o americanismo e a América do Sul para atender seus três principais
objetivos: a definição das fronteiras, o aumento do prestígio internacional do
país e a afirmação da liderança brasileira na América do Sul (Burns, 1966, p.
204). Para a consecução desses objetivos, de modo bastante realista, Rio Branco
optou pela política de "aliança não escrita" com os Estados Unidos. O Barão
deslocou o eixo da política externa brasileira em direção a Washington, com
gestos simbólicos, como a elevação das respectivas legações ao statusde
embaixadas e a realização da Terceira Conferência Americana no Rio de Janeiro;
e políticas concretas como o reconhecimento da soberania do Panamá, a aprovação
tácita do Corolário Roosevelt, a indiferença ante as intervenções
estadunidenses na América Central e no Caribe, o repúdio à Doutrina Drago, etc.
O empenho brasileiro no pan-americanismo respondia ao impulso organizador dessa
doutrina nas relações interamericanas. A diplomacia brasileira, no entanto,
mantinha prudente distância das intervenções estadunidenses em sua área de
influência direta. Em contraste, são extremamente densas (ainda que muitas
vezes conflituosas) as relações com Argentina, Bolívia, Chile, Uruguai e
Paraguai. Essa ativa política "sul-americana", cujo maior símbolo é o Tratado
do ABC, diferenciava-se da seguida para o resto do continente. No entanto
embora tenha sido um dos momentos em que a expressão "América do Sul" teve
maior curso no discurso diplomático brasileiro essa América do Sul não incluía,
na prática, a região norte do continente e seria, talvez, melhor traduzida por
o "sul da América".
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a política americanista do Brasil foi
posta à prova. Após a declaração de guerra dos Estados Unidos contra a Alemanha
e o afundamento por submarinos alemães do cargueiro brasileiro Paraná,
recrudesceram as pressões, internas e externas, para que o Brasil também se
unisse no esforço militar contra o império alemão. Lauro Müller, no entanto,
decidiu apenas romper relações diplomáticas com Berlim e não declarar-lhe
guerra atitude que lhe custou o cargo (Barreto Filho, 2001, p. 45). chanceler
brasileiro justificou sua política nos seguintes termos: "O argumento dos
oradores nas praças públicas é sempre o mesmo: o Brasil tem de seguir o exemplo
dos Estados Unidos. Isto significaria tornarmos nossas opiniões, as opiniões
dos Estados Unidos. Mas um país independente governa-se por si". (apud Barreto
Filho, op cit, p. 45)
Com a substituição de Müller, o novo chanceler, Nilo Peçanha, logo atendeu ao
apelo dos "oradores nas praças públicas" e, após o torpedeamento do navio
brasileiro Tijuca no porto francês de Brest, declarou guerra à Alemanha. A nota
circular que informou às nações amigas que o Brasil revogava seu estado de
neutralidade foi escrita com fortes tintas americanistas: "A República
reconheceu assim que um dos beligerantes é parte integrante do Continente
Americano e que a este beligerante estamos ligados por uma tradicional amizade
e pelo mesmo pensamento político na defesa dos interesses vitais da América e
dos princípios aceitos pelo Direito Internacional. O Brasil nunca teve e não
tem ainda agora ambições guerreiras, e se absteve sempre de qualquer
parcialidade no conflito da Europa, não podia continuar indiferente a ele,
desde que eram arrastados à luta os Estados Unidos, sem nenhum interesse, mas
tão somente em nome da ordem jurídica internacional, e a Alemanha estendia
indistintamente a nós e demais povos neutros os mais violentos processos de
guerra. Se até agora a falta de reciprocidade por parte das repúblicas
americanas tirava à doutrina de Monroe o seu verdadeiro caráter, permitindo uma
interpretação menos fundada das prerrogativas de sua soberania, os
acontecimentos atuais, colocando o Brasil, ainda agora, ao lado dos Estados
Unidos, em momento crítico da história do mundo, continuam a dar à nossa
política externa uma feição prática de solidariedade continental, política
aliás que foi também a do antigo regime, toda vez em que esteve em causa
qualquer das demais nações irmãs e amigas do Continente Americano." (RMRE,
1914/1915, p. VI e VII).
O Brasil foi o único país sul-americano a declarar guerra ao império alemão e
seus aliados. A Bolívia, o Equador, o Peru e o Uruguai romperam relações
diplomáticas com a Alemanha. A Argentina, o Chile, a Colômbia, o Paraguai e a
Venezuela permaneceram neutros no conflito. Em agosto de 1918, uma pequena
esquadra brasileira partiu para participar militarmente do esforço de guerra.
Após escala na África, onde 156 integrantes da tropa brasileira morreram
atingidos pela gripe espanhola, a expedição brasileira chegou a Gilbratar
exatamente na véspera do fim da guerra. A participação direta do Brasil em
território europeu durante Primeira Guerra ficou, portanto, restrita à uma
missão médica que contou com 161 pessoas entre médicos e enfermeiros (Barreto
Filho, op cit, p. 52-55).
O esforço brasileiro, ainda que modesto, foi recompensado com o convite para o
país se fazer representar na Conferência de Versalhes, na qual foram discutidas
pendências de interesse direto do Brasil como a questão dos navios alemães
apreendidos pelo Brasil durante a Guerra e o reembolso do valor do café vendido
pelo governo do Estado de São Paulo, em 1914, que havia sido depositado em
bancos alemães e foi bloqueado. A orientação da delegação era a de apoiar os
Estados Unidos nos assuntos gerais e buscar o seu apoio nas questões de
particular interesse brasileiro.
Também fruto de Versalhes, a criação da Liga das Nações atraiu a atenção
brasileira desde seu início. O empenho brasileiro nos trabalhos da Liga das
Nações devia-se, antes de tudo, a questões de prestígio internacional, pois não
tinha interesse imediato nas questões que eram discutidas em Genebra.
Internamente, essa percepção de prestígio internacional, no entanto, contribuía
para a sustentação política do governo; e, externamente, como um elemento de
dissuasão no contexto da disputa que o país vinha travando com a Argentina,
desde o início do século pela preponderância política e militar no Cone Sul.
Desde 1906, com o programa naval brasileiro que previa a aquisição de três
modernos encouraçados (dos quais só dois foram entregues), as tensões com a
Argentina e desta com o Chile pareciam desembocar em uma corrida armamentista
no Cone Sul. Em resposta, a Argentina encomendou a construção de dois
encouraçados, em 1910; política que foi seguida pelo Chile, em 1911. A questão
atingiu seu ápice, em 1923, durante a V Conferência Americana, quando o Chile,
anfitrião do evento, decidiu pôr em discussão a redução ou limitação dos gastos
militares e navais no continente (a chamada tese XII). Partindo de um
diagnóstico de que o Brasil se encontrava em desvantagem em relação às forças
armadas argentinas e chilenas, os delegados brasileiros manifestaram-se contra
todas as propostas de desarmamento que limitassem a capacidade de defesa do
país contando levar a bom termo seus planos de modernização militar (Garcia,
2003). O Brasil viu-se, por conseqüência, em uma situação de virtual isolamento
na Conferência.
A adesão ao Pacto de Gondra destinado a prevenir conflitos entre os Estados
americanos, assinado no encerramento do encontro permitiu que o Brasil
sinalizasse estar comprometido com a paz na região, a despeito da imagem em
contrário criada pelo desenrolar da V Conferência. De todo modo, à participação
do Brasil nas discussões de Genebra deve ser contraposta a tensa situação com
seus vizinhos, que foi paulatinamente amenizada pela frustração dos planos de
rearmamento dos países sul-americanos (em virtude, principalmente, de
dificuldades orçamentárias).
Em Genebra, o Brasil vinha sendo reeleito para Conselho da Liga das Nações
sucessivamente, mas com crescente oposição dos demais países latino-americanos,
que desejam ocupar a vaga brasileira como membro não-permanente. O
representante brasileiro, Domício da Gama, vislumbrou a possibilidade do Brasil
ter de ceder seu lugar no conselho: "nós vimos o trabalho que se fez para
desalojar-nos desse lugar, em virtude do princípio demagógico do roulement,
isto é, o direito de Estados de menor peso, e mesmo de soberania apenas
nominal, virem por seu turno substituir no Conselho os mais organizados e
íntegros". (apud Garcia, 2000, p. 68)
A solução proposta para esse inconveniente foi a de postular um lugar
permanente para o Brasil no Conselho da Liga. O governo de Arthur Bernardes
transformou a idéia de um assento permanente no Conselho da Liga no objetivo
primordial da política externa brasileira. Por um lado, alcançar esse objetivo
seria considerado uma vitória retumbante em termos de prestígio e projeção
internacional. Pelo outro, não se discutiam na Liga temas de interesse direto
para o Brasil e a hipótese de uma derrota e mesmo da eventual retirada do país
da Liga teria custos reais modestos. "Em outras palavras, o Brasil tinha muito
pouco a perder e podia aventurar-se por esse caminho com a confiança inabalável
dos que não temem revés nenhum" (Garcia, 2000, p. 75).
A despeito de sucessivas reeleições em 1923, 1924 e 1925 , cada vez tornava-se
mais difícil a manutenção do Brasil como membro não-permanente. Os demais
países latino-americanos pressionavam para que os dois lugares (com o aumento
do número de não-permanentes e a inclusão do Uruguai ao lado do Brasil) fossem
partilhados. Na Assembléia de 1925, com base em uma proposta venezuelana
discutida previamente entre os países latino-americanos, foi aprovada uma
resolução que tornava obrigatória a rotação dos membros não-permanentes na
Assembléia de 1926. Como bem assinalou Garcia (2000, p. 90): "Desse modo, o
Brasil, que baseava a sua pretensão nacional na defesa dos interesses da
América, estava sendo instado a sair do Conselho exatamente pelos seus "irmãos
hispano-americanos", que também tinham seus interesses nacionais e não se
sentiam de modo algum representados pelo Brasil".
Em outubro de 1925 em encontro que reuniu representantes da França, Alemanha,
Itália, Bélgica, Tchecoslováquia e Polônia , foi aprovada, na cidade de
Locarno, uma série de tratados que marcaram a distensão na Europa no período
entreguerras. Entre as medidas mais importantes, foi acordado o reconhecimento
mútuo da fronteira franco-belga-alemã. A vigência dos acordos foi textualmente
condicionada ao depósito de seus instrumentos de ratificação em Genebra e à
entrada da Alemanha na Liga das Nações. De acordo com o entendimento informal
alcançado em Locarno, Berlim assumiria um assento permanente no Conselho da
Liga já quando de sua admissão. A transposição dos entendimentos de Locarno
para o seio da Liga, no entanto, esbarrou na pretensão do Brasil, da Espanha e
da Polônia de também serem admitidos como membros permanentes do conselho. Em
uma tumultuada sessão extraordinária da Liga, em março de 1926, o Brasil opôs-
se à entrada solitária da Alemanha no conselho exercendo seu poder de veto,
dado por sua condição de membro não-permanente do mesmo.
Como conseqüência de seu veto à admissão da Alemanha como membro permanente do
Conselho da Liga, o Brasil se retirou da organização, justificando sua atitude
com a idéia de que a Liga das Nações havia abandonado sua função de foro
universal para subordinar-se aos interesses regionais dos países europeus. A
saída da Liga foi também apresentada como uma volta do país ao seio do
americanismo. Assim, pouco antes de notificar a organização de sua intenção de
retirar-se da Liga, o presidente Arthur Bernardes adiantou sua decisão ao
embaixador estadunidense no Rio de Janeiro, informando-o de sua decisão de
incrementar as relações com os países americanos em geral e com os Estados
Unidos em especial. Esse renovado espírito americanista seria consagrado no
Relatório do Ministério das Relações Exteriores do ano seguinte: "A amizade,
verdadeiramente fraternal, em que vivemos, no Continente, com os povos de
língua espanhola, sobretudo os que conosco se limitam, ou os que constituem
conosco a família de nações da América do Sul, é perfeitamente compatível com a
tradição que nos liga, e há de ligar, de modo indissolúvel, aos Estados Unidos
da América".(RMRE, 1927, p. XXII)
Nos anos finais da República Velha, o apoio brasileiro às políticas
estadunidenses acentuou-se. Na VI Conferência Internacional Americana,
realizada em Havana, em 1928, o Brasil alinhou-se com Washington contra as
críticas que os Estados Unidos sofriam por conta de suas freqüentes
intervenções nos países centro-americanos e caribenhos. Em 1930, Júlio Prestes,
na qualidade de presidente eleito, visitou os Estados Unidos em retribuição à
visita que Herbert Hoover fizera ao Brasil antes de sua posse.
A despeito do interregno universalista representado pela intensa participação
nos trabalhos da Liga das Nações, pode-se afirmar que política externa
brasileira durante a República Velha seguiu as linhas delineadas por Rio
Branco: voltada, por um lado, para os Estados Unidos, na forma da "aliança não
escrita"; e, por outro, dotada de uma ativa política "sul-americana" (que, na
verdade, restrita aos assuntos do Cone Sul). A participação brasileira na Liga
insere-se, por sua vez (ainda que, provavelmente, não na forma em que foi
desenvolvida), na prescrição de Paranhos Júnior de busca de prestígio
internacional para o país. É mais duvidoso o sucesso obtido pelo Brasil na
tarefa de servir de elemento de ligação e representar a América Latina ante os
Estados Unidos e, no caso da Liga, o hemisfério perante a comunidade
internacional. O episódio da saída do Brasil da Liga é sintomático dessa
dissonância cognitiva entre o entendimento brasileiro de que o Brasil estaria
representando a América Latina (e, no caso da Liga das Nações, o continente
americano) e os interesses concretos dos demais países latino-americanos, que
não necessariamente se viam representados pelo Brasil.
Com Vargas, a despeito da "barganha nacionalista" para extrair maiores
concessões e apoio de Washington, houve continuidade no discurso americanista
brasileiro. Sob a direção dos Estados Unidos, o pan-americanismo foi
paulatinamente dirigido para a defesa contra ameaças extracontinentais,
movimento que contou com o suporte brasileiro. Desde a gestão de Macedo Soares
no Itamaraty, pode-se observar claramente a adesão brasileira a essa concepção
de identidade americana. Veja-se, por exemplo, o que o chanceler brasileiro diz
em seu Relatório referente ao ano de 1934: "Política de solidariedade
continental e fraternidade americana, ela está baseada numa colaboração efetiva
com todos os povos da América e entendimento íntimo com os Estados Unidos, aos
quais estamos ligados por velha amizade que vem dos primórdios da
Independência. Embora, sem traduzir em atos solenes, essa orientação, não
deixei de velar sempre para que os rumos tradicionais dessa política se
conservassem sempre na mesma direção franca e clara" (RMRE, 1934, p. XV).
Macedo Soares reiterou essa diretriz no ano seguinte, citando inclusive suas
palavras no Relatório do ano anterior: "O espírito continental dominou, porém,
e, assim, seguiu-se o caminho indicado pela tradição da nossa política externa,
tal como tive ocasião de definir na Introdução do Relatório anterior: "Política
de solidariedade continental e fraternidade americana, ela está baseada numa
colaboração efetiva com todos os povos da América e entendimento íntimo com os
Estados Unidos, aos quais estamos ligados por velha amizade que vem dos
primórdios da Independência. Dessa rota, posso dizer com orgulho, não me
afastei uma linha." (RMRE, 1935, p. XIII e XIV)
De novo, em 1936, Macedo Soares reafirmou o respaldo brasileiro ao
americanismo, baseada em um entendimento "íntimo" com os Estados Unidos: "A
política de solidariedade americana, como já tive ocasião de dizer em
relatórios anteriores, decorre da nossa mais pura tradição, tem suas bases numa
colaboração efetiva com todos os povos da América e entendimento mais íntimo
com os Estados Unidos da América, nação a qual nos liga uma velha amizade vinda
dos tempos da Independência"(RMRE, 1936, p. XIII e XIV).
Essa solidariedade com os Estados Unidos refletiu-se no apoio dado à proposta
estadunidense de um pacto de segurança continental apresentada na Conferência
Interamericana para a Consolidação da Paz, realizada em Buenos Aires, em 1936.
Os Estados Unidos propuseram a obrigação de consulta entre os Estados
americanos no caso de conflitos interamericanos ou de ameaças externas ao
continente. Essa proposição foi rechaçada pela Argentina e foi necessária a
suavização do texto proposto (tornando as consultas facultativas) para ganhar a
adesão de Buenos Aires à resolução. O apoio dado aos Estados Unidos nessa
tarefa de convencimento da Argentina foi rememorado por Macedo Soares: "Foi,
sem dúvida, a política de perfeita inteligência entre os Estados Unidos e o
Brasil, que tornou possível o êxito da Conferência de Buenos Aires". (RMRE,
1936, p. XV)
Essa orientação pró-americana foi seguida e aprofundada por Oswaldo Aranha a
partir de 1938. Já na Conferência de Lima, no mesmo ano, o Brasil apoiou a
proposta de ampliação do sistema de consultas criado em Buenos Aires e, no ano
seguinte, no Panamá, as repúblicas americanas reuniram-se para decidir por sua
neutralidade frente ao conflito na Europa. Tendo em vista a ocupação alemã da
França e da Holanda ambos países com domínios coloniais no continente americano
, na Conferência de Havana, em 1940, determinou-se que qualquer tentativa
contra a integridade ou inviolabilidade do território de um Estado americano
por uma potência extracontinental seria tomada como uma agressão aos demais. A
despeito dos sinais contraditórios emitidos por Vargas como o discurso
proferido a bordo do Minas Gerais em 10 de junho de 1940 , a diplomacia
brasileira seguia dando suporte às propostas estadunidenses no âmbito das
diversas conferências interamericanas.
O ataque japonês a Pearl Harbor definiu inequivocamente a posição brasileira em
prol dos Aliados. Em uma mensagem também para os historiadores que, no futuro,
estudassem a atuação do Itamaraty nesse episódio decisivo, Oswaldo Aranha diria
em seu Relatório de 1943, apresentado ao presidente Getúlio Vargas: "Sabíamos
que, cedo ou tarde, seríamos envolvidos na luta e para ela nos preparamos, em
íntima colaboração com os Estados Unidos da América e as demais nações
continentais. Em todos os Relatórios que, desde 1938, quando assumi a pasta das
Relações Exteriores, venho tendo a honra de apresentar a Vossa Excelência,
inclusive neste, de 1943, poderão os contemporâneos e os historiadores do
futuro acompanhar a diretriz do Itamaraty, no seu constante esforço para
resguardar a tradição da nossa diplomacia e proteger o imenso patrimônio
material e moral do Brasil, na hora de maior risco que já atravessamos em todo
o decurso da nossa história, quando um desvio, um erro de visão, uma falha de
julgamento lhe poderiam ser fatais" (RMRE, 1943, p. XVII).
Finda a guerra, os Estados Unidos começaram a projetar seus interesses de forma
global e a identidade americana reformulada desde Washington sob a nova
roupagem do interamericanismo passou a ser equacionada com o compromisso com o
livre mercado e com o anticomunismo. Os esforços do governo de Dutra em
reeditar a relação especial com os Estados Unidos foram frustrados pela
dedicação da superpotência aos programas de reconstrução da Europa e do Japão e
de contenção do comunismo em escala global. O cenário mundial passou a ser
dominado pelo conflito Leste-Oeste que passou a definir, em primeira instância,
as identidades internacionais.
O Brasil terminou a Segunda Guerra imbuído da idéia de merecer, por parte dos
Estados Unidos, um tratamento especial como resultado da colaboração prestada
durante o conflito. Essa pretensão de constituir-se em parceiro privilegiado de
Washington não encontrava rivais na América do Sul, pois as relações entre os
Estados Unidos e a Argentina encontravam-se em termos abertamente conflituosos.
O anticomunismo de Dutra, por seu turno, era outro elemento que contribuía para
a sintonia entre o Brasil e os Estados Unidos. Na verdade, no contexto do
imediato pós-Guerra, eram escassas as possibilidades de praticar uma política
pendular em relação aos Estados Unidos, em vista dos efeitos do conflito sobre
as economias européias e a impossibilidade, em termos práticos, de usar a União
Soviética como contraponto.
Com a assinatura do Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar), em
agosto de 1947, no Rio de Janeiro, os Estados Unidos obtiveram a segurança
estratégico-militar que buscavam para o continente. As demandas dos países
latino-americanos por aumento da ajuda econômica, por sua vez, eram respondidas
com vagas promessas de assistência técnica e militar; e com a prescrição de que
os países latino-americanos abrissem seus mercados ao investimento estrangeiro,
eliminassem barreiras tarifárias e apoiassem a iniciativa privada. "As
esperanças latino-americanas de ajuda econômica reviveram em 1947, depois que o
Secretário Marshall anunciou seu plano de reconstrução da Europa. Se os Estados
Unidos estavam prontos para ajudar seus antigos inimigos, um "Plano Marshall
para a América Latina" deveria estar a caminho. Na Conferência do Rio de
Janeiro, os delegados latino-americanos quiseram enfocar a cooperação
econômica, mas Marshall os persuadiu a esperar até o encontro de Bogotá. Lá,
ele tratou de desfazer qualquer esperança de ajuda econômica. Em discurso que
foi recebido com duro silêncio, Marshall prometeu apenas elevar em 500 milhões
o capital do Export-Import Bank. O programa de reconstrução européia ajudaria a
América Latina uma vez que restaurava mercados para as matérias-primas e
produtos tropicais. Tão logo a Europa reconstruísse seu parque industrial, a
América Latina teria, novamente, uma fonte alternativa de bens de capital. Tais
argumentos significavam, para os latino-americanos, a confirmação do
tradicional papel de sua região como fornecedora de matérias-primas para o
mundo industrial. De todo modo, entre 1945 e 1952, as vinte nações americanas,
em conjunto, receberam menos ajuda econômica dos Estados Unidos do que a
Bélgica ou o insignificante Luxemburgo" (Rabe, 1988, p. 17).
Mais do que qualquer outro país latino-americano, o Brasil sentiu-se traído
pela atitude estadunidense e assistiu, perplexo, ao declínio de sua relação
especial com os Estados Unidos, sem que o país obtivesse as compensações às
quais acreditava fazer jus por sua tradicional aliança e seu empenho na Segunda
Guerra. Com a morte de Roosevelt, em abril de 1945, ficou incumprida sua
promessa (feita a Getúlio Vargas) de que o Brasil obteria um assento permanente
na futura Organização das Nações Unidas. Ainda assim, foi ampla a convergência
entre os dois países nos foros internacionais durante o governo do marechal
Eurico Gaspar Dutra.
No plano econômico, a frustração das expectativas de ajuda estadunidense
aproximou o Brasil dos demais países latino-americanos. Com a eleição de Vargas
para um mandato que se iniciou em 1951, foi claramente retomado o discurso
brasileiro no sentido de buscar a reciprocidade ao apoio dado aos Estados
Unidos no plano político com medidas práticas de ajuda econômica. A eclosão da
Guerra da Coréia forneceu o contexto para a retomada da "barganha
nacionalista", ao aumentar o poder de negociação latino-americano vis-à-vis os
Estados Unidos. Assim, durante a IV Reunião de Consulta dos chanceleres
Americanos, realizada em Washington, em 1951, os Estados Unidos tentaram, sem
sucesso, criar uma "Força Armada Interamericana" para intervir no conflito da
Coréia, conseguindo apenas a aprovação de uma declaração anti-soviética.
As intervenções do chanceler brasileiro, João Neves da Fontora, nesse encontro
foram inovadoras do ponto de vista do discurso diplomático brasileiro, ao
buscar equacionar segurança e desenvolvimento, e ao inserir o Brasil
inequivocamente no âmbito dos países latino-americanos e subdesenvolvidos: "Já
na sessão de abertura da Reunião de Consulta, o ministro das Relações
Exteriores do Brasil, respondendo, em nome dos países latino-americanos, ao
discurso do presidente dos Estados Unidos da América, procurou estender o
alcance daquele ponto da agenda [segurança hemisférica], de modo a conciliar as
exigências do programa de cooperação de emergência com os imperativos do
funcionamento e desenvolvimento da economia de cada qual, criando uma atmosfera
de trabalho e bem-estar para todos" (RMRE, 1951, p 10-11, grifo meu).
A mudança de atitude brasileira foi reconhecida no próprio Relatório do
Ministério das Relações Exteriores em termos bastante distintos do tradicional
discurso pan-americanista de apoio irrestrito aos Estados Unidos. Os conceitos
de países menos desenvolvidos, economias subdesenvolvidas começaram a ganhar
curso na retórica diplomática brasileira, bem como a noção de que o Brasil era
parte integrante da América Latina rompendo com um discurso que vinha do
Império, dos vizinhos hispânicos como o "outro" que ajudava a definir a
identidade brasileira.
Esse novo enfoque, obviamente, tinha seus limites que ficaram claros, por
exemplo, no encaminhamento da proposta de Perón de reconstituição do Pacto do
ABC. Vargas enfrentava forte oposição interna por parte da UDN, de alguns
setores militares e da imprensa , para manter inalterado o alinhamento com as
posições estadunidenses e recusar qualquer iniciativa de cooperação com a
Argentina peronista. Perón, por sua vez, retomando a concepção de Rio Branco,
propunha a coordenação entre as três maiores economias da América do Sul, com
um claro sentido antiimperialista. O novo Pacto do ABC seria, no entanto,
recusado pelo governo brasileiro, o que condenou a iniciativa ao fracasso e as
relações brasileiro-argentinas a um período de esfriamento.
A relativa marginalização favoreceu a consolidação da identidade comum dos
países latino-americanos, tendo como marco, a criação da Cepal. O Brasil
respondeu a esse desafio, no governo Kubitschek, com a proposta da Operação
Pan-Americana (OPA), definida com precisão como a primeira iniciativa
brasileira feita com base em "um estado de consciência verdadeiramente latino-
americano" (RMRE, 1958, p. 3).
Com o lançamento da Operação Pan-Americana (1958), o discurso diplomático
brasileiro passou a centrar-se francamente na noção de identificação do Brasil
com seus vizinhos latino-americanos. Ainda que houvesse uma evidente
preocupação (presente explicitamente nos principais pronunciamentos) de realçar
o caráter do Brasil como país ocidental e, portanto, alinhado ao bloco liderado
pelos Estados Unidos, o tema da reivindicação de assistência para o
desenvolvimento e para a industrialização do país e da América Latina foi
projetado ao primeiro plano do discurso diplomático. Não houve, no entanto,
sinais claros de aproximação com outros países em desenvolvimento extra-
regionais e, inclusive, foi mantida a política de apoio ao colonialismo
português.
A análise dos discursos proferidos na abertura das Assembléias das Nações
Unidas durante a gestão de Kubitschek dá a medida dessa mudança. Já em 1957,
antes, portanto, do lançamento da OPA, Oswaldo Aranha em seu pronunciamento
"possivelmente terá sido o primeiro representante do Brasil a deixar de
singularizar o país como situado no universo europeu-norte americano, para
caracterizá-lo primeiro como latino-americano e, depois, em desenvolvimento"
(Seixas Corrêa, 1995, p. 108). Nos anos seguintes essa ênfase seria reafirmada.
Em seu discurso de 1959, Augusto Frederico Schmidt, explicou ao Plenário da ONU
os objetivos da OPA nos seguintes termos: "A Operação Pan-Americana visa a
reforçar o conteúdo econômico do Pan-Americanismo, mediante a adoção de um
conjunto de medidas enérgicas e coordenadas, suscetíveis de remover os
obstáculos ao desenvolvimento dos países da América Latina, cujas economias
necessitam de vigoroso impulso para que ultrapassem o estado de atraso em que
se encontram e ingressem numa era de industrialização, aproveitamento máximo
dos recursos e ativo intercâmbio" (apudSeixas Corrêa, op cit, p. 124).
Com a Política Externa Independente dos presidentes Jânio Quadros e João
Goulart, o Brasil passou a se identificar concretamente com os países em
desenvolvimento e trouxe para o discurso diplomático brasileiro, em termos
claros, as questões do debate Norte-Sul. Para além dos países latino-
americanos, a Política Externa Independente buscou incorporar os países da Ásia
e da África, advogou abertamente em prol da descolonização e, mesmo, fez
aberturas para os países do Leste Europeu. Os oradores brasileiros passaram a
dar destaque ao conflito Norte-Sul, que ganhou preeminência sobre a divisão
entre Leste e Oeste. O chanceler Affonso Arinos, ao abrir a XVI Sessão da
Assembléia Geral da ONU, em 1961, disse: "O mundo não está somente dividido em
Leste e Oeste. Esta separação ideológica faz esquecer a existência de outra
divisão, não ideológica mas econômico-social, que distancia o Hemisfério Norte
do Hemisfério Sul. Se a aproximação entre Leste e Oeste poderia ser atingida em
termos de acomodação ideológica, a diminuição da enorme diferença entre Norte e
Sul só será alcançada planejadamente, através do auxílio eficaz dos países
desenvolvidos do Norte aos povos subdesenvolvidos do Sul" (apud Seixas Corrêa,
op cit, p. 143).
O discurso mais representativo e, talvez, mais importante desse período foi, no
entanto, o pronunciado pelo chanceler João Augusto de Araújo Castro na Sessão
de Abertura da Assembléia Geral de 1963. Naquela oportunidade, Araújo Castro
empenhou-se em "identificar afinidades fundamentais que operassem como fatores
de coesão entre os países desejosos de superar os constrangimentos da
confrontação ideológica" (Seixas Corrêa, op cit, p. 158). Essas afinidades, que
criavam uma forte dimensão de identidade entre os países em desenvolvimento,
eram os três D's: desarmamento, desenvolvimento e descolonização. No
entendimento de Araújo Castro, a superação da crise dos mísseis em Cuba (em
outubro do ano anterior) franqueou novos espaços de manobra para os países em
desenvolvimento. Nas suas palavras: "Nem tudo é Este ou Oeste nas Nações Unidas
de 1963. O mundo possui outros pontos cardinais. Esses termos, que dominavam
toda a política internacional até há pouco tempo, poderão eventualmente ser
devolvidos à área da geografia. O esmaecimento do conflito ideológico e a
progressiva despolitização dos termos Este e Oeste vieram também trazer algumas
conseqüências tanto políticas como semânticas nos conceitos de neutralismo ou
de não-alinhamento. O neutralismo ou o não-alinhamento vai perdendo sua solidez
e sua consistência à medida que se tornam menos rígidos os pólos que o
sustentava. Não podemos perder de vista que o mundo mudou do último outubro
para cá, e não podemos deixar de explorar ao máximo as possibilidades de
negociação que se abriram com a assinatura do recente Tratado Parcial sobre
experiências nucleares" (apud Seixas Corrêa, p. 162-163).
A Política Externa Independente reforçou essa identidade latino-americana do
Brasil ao mesmo tempo que identificou interesses comuns entre o país e as
demais nações em desenvolvimento, situando claramente o Brasil como país do
Terceiro Mundo. No plano continental, a exclusão de Cuba do sistema
interamericano deixou patente a função da identidade americana como forma de
controle, com o argumento de que o socialismo não seria compatível com a
condição de país americano.
Com o golpe de 1964 e o início do governo Castello Branco, a política externa
brasileira sofreu uma modificação radical. Ainda que o cenário internacional,
após a crise dos mísseis, tenha passado a caracterizar-se pela progressiva
détente entre os dois grandes blocos da Guerra Fria, a visão de mundo imposta
pelos novos governantes brasileiros recuperou a idéia de uma bipolarização
rígida no plano internacional, o que reduzia as possibilidades de atuação
diplomática aos limites do alinhamento com o bloco ocidental. Ainda que
advertisse a necessidade de "fazer distinção entre os interesses básicos da
preservação do sistema ocidental e os interesses específicos de uma grande
potência", Castello Branco pregava o alinhamento brasileiro às posições
ocidentais.
A despeito do breve realinhamento com os Estados Unidos durante o governo
Castello Branco, já na gestão do general Costa e Silva, a diplomacia brasileira
pôde voltar a dizer que considerava ultrapassada a Guerra Fria. Houve um
progressivo retorno à identidade de país em desenvolvimento e de país latino-
americano. O Brasil tornou-se, na ONU e em outros foros, um dos pontos focais
pela busca de uma nova ordem econômica internacional.
No período do general Emílio Garrastazu Médici, com a aceleração do crescimento
econômico, a política externa passou a incorporar também a idéia do Brasil como
potência emergente que, ainda que continuasse a apoiar a transformação da ordem
internacional, estava "preparado para assumir as responsabilidades que lhe
competem no tocante aos países de menor desenvolvimento relativo, tanto no
plano bilateral, quanto no multilateral" (Mário Gibson Barbosa apud Seixas
Corrêa, op cit, p. 266). Houve, ainda, um progressivo retorno da dimensão
latino-americana da identidade internacional brasileira. Conforme assinalou o
chanceler Gibson Barbosa em discurso na ONU, em 1973, ademais da preocupação
com o desenvolvimento, "dominante da política externa do Brasil", o país,
"consciente de suas responsabilidades e de seus encargos globais", tinha como
sua orientação prioritária "uma íntima cooperação com todos os países em
desenvolvimento e, especialmente, com os da América Latina" (apudSeixas Corrêa,
op cit, p. 292).
A política do "pragmatismo responsável", sob o impacto da crise do petróleo e
das crescentes fricções com os Estados Unidos, acentuou a identificação do
Brasil com os países do Terceiro Mundo e com a América Latina. Em termos
regionais, no entanto, acirrou-se a discussão com a Argentina sobre o
aproveitamento energético dos rios da Bacia do Prata. A diplomacia brasileira
tomou a iniciativa de propor aos países amazônicos um tratado similar ao
alcançado na Bacia do Prata. Em conseqüência, o Tratado de Cooperação Amazônica
foi assinado, em julho de 1978, entre Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador,
Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
Com a assinatura do Acordo Tripartite Brasil-Argentina-Paraguai foi resolvida
(já durante o governo do general João Figueiredo) a questão com a Argentina, o
que permitiu uma maior aproximação entre os dois países. Durante a gestão do
chanceler Saraiva Guerreiro, o Brasil assumiu posições fortemente terceiro-
mundistas, com patente acercamento às nações em desenvolvimento e ênfase na
identidade latino-americana do país. Assim, no discurso de abertura da
Assembléia Geral da ONU em 1979, o embaixador Guerreiro sublinhou que: "Embora
conservando seus traços e peculiaridades, os países da América Latina se
aproximam cada vez mais. Com a expansão do campo de entendimentos, será
necessário acordar novas formas de ação conjunta. Por sua parte, o Brasil está
pronto a cooperar e é nosso interesse que a paz e o descontraimento prevaleçam
em nossa região e que os países da América Latina possam enfrentar, ombro a
ombro, a luta comum pelo desenvolvimento. Com esse objetivo desejamos trabalhar
com outras nações de todas as partes da América Latina" (apud Seixas Corrêa, op
cit, p. 354-355).
O fracasso da reunião de Cancun, em outubro de 1981, debilitou o diálogo Norte-
Sul (que foi enterrado, na mesma cidade, na reunião do G-7 de 1985), cuja
reativação foi uma demanda presente nos discursos brasileiros até o fim do
governo Figueiredo. Por outro lado, a Guerra das Malvinas, em 1982, enfraqueceu
ainda mais a retórica americanista na medida em que os Estados Unidos, em
desacordo ao estabelecido no Tiar, apoiaram abertamente a Grã-Bretanha, uma
potência extra-regional, contra a Argentina.
Com a redemocratização, a consolidação da identidade latino-americana do Brasil
acabou plasmada na própria Constituição de 1988, que determinou que o Brasil
"buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da
América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de
nações" (artigo 4º, parágrafo único). Em termos de resultados concretos, a
superação da rivalidade com a Argentina, permitiu a formação do Mercosul, desde
então uma das grandes referências da identidade internacional brasileira.
Vale notar que, durante todo o período que vem do Império até o início da
década de 1990, ainda que a expressão "América do Sul" pudesse eventualmente
fazer-se presente no discurso diplomático brasileiro, o conceito não era usado
com fins identitários. No que se refere especificamente às vertentes da
identidade brasileira diretamente relacionadas com o conceito de América no
Sul, a retórica da diplomacia brasileira, ao longo do período republicano,
concebeu o Brasil ora como país americano, ora como país latino-americano; mas,
apenas incidentalmente, como país sul-americano e sem que essa condição tivesse
o significado de uma identidade ou de um projeto comum restrito aos 12 países
que passaram a ser englobados pela expressão América do Sul no discurso
corrente após a Segunda Guerra.
A expressão "América do Sul", com a afirmação do conceito de América Latina
(inventado em 1850, mas só consolidado completamente após 1945), passou a
definir uma entidade geográfica que inclui os doze países americanos ao sul da
República do Panamá (exclusive) e a Guiana Francesa. Em comparação, verifica-se
que os conceitos de América do Norte e América Central, até recentemente, eram
encarados de forma mais ambígua com a presença do México ora em uma, ora em
outra dessas entidades. De todo modo, em termos da elaboração de identidades
internacionais, a clivagem entre os países do continente americano deu-se entre
os Estados Unidos e a América Latina com o Canadá e os países do Caribe
alinhados em termos simbólicos a um e outro, respectivamente.
As reuniões de presidentes da América do Sul
O conceito de América Latina consolidou-se a partir da construção de um
imaginário comum por intelectuais da própria região com o Brasil muitas vezes
recebendo ou atribuindo-se um papel peculiar nessa arquitetura identitária ;
mas, também, como uma representação do "outro" para a sociedade estadunidense,
como um contraconceito assimétrico de suas auto-atribuídas virtudes. No
entanto, a adesão do México ao Nafta, em 1992, contribuiu para erodir o
conceito de América Latina, ao aproximar decisivamente um de seus pólos mais
importantes, o México, do "outro" desse conceito: os Estados Unidos.
Foi nesse contexto de crise da idéia de América Latina, agravada pela percepção
de que o cenário internacional poderia passar a ser regido por megablocos
econômico-comerciais que a diplomacia brasileira resgatou, durante a primeira
gestão do chanceler Celso Amorim, o conceito de América do Sul inicialmente por
meio da formulação de uma proposta de Área de Livre Comércio Sul-Americana
(Alcsa). Assim, durante a VII Cúpula do Grupo do Rio, em outubro de 1993, o
presidente Itamar Franco apresentou sua proposta de criação da Alcsa, que seria
implementada com base na estrutura institucional da Aladi. Ressalte-se que não
sendo o Suriname e a Guiana membros da Aladi a proposta não contemplava, na
realidade, a integralidade da América do Sul. De todo modo, foi uma primeira
aproximação ao conceito de América do Sul tal como ele é expresso hoje no
discurso diplomático brasileiro.
Durante a primeira gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso, a proposta
de Alcsa foi progressivamente esquecida e a idéia de integração sul-americana
bastante suavizada. Em termos práticos, a discussão sobre a proposta de Alca,
apresentada na Cúpula de Miami, tornou-se o fulcro dos debates sobre integração
entre os países americanos, com conseqüências importantes na própria discussão
sobre as identidades desses países. Mesmo a coesão interna do Mercosul não
deixou de sofrer nesse processo.
Por iniciativa pessoal do presidente Fernando Henrique Cardoso, com base em seu
projeto de desenvolvimento regional para o Brasil a partir dos eixos de
desenvolvimento concertados no programa "Avança Brasil", foram realizadas as
duas primeiras Reuniões de presidentes da América do Sul. Ainda que outros
temas tenham sido tratados nos dois encontros, a ênfase recaiu sobre as
questões da infra-estrutura regional, e de consolidação e proteção da
democracia. A despeito do enfoque bastante específico, a noção de América do
Sul, depois de 2000, voltou a ser um dos conceitos-chave do discurso
diplomático brasileiro. Com as Cúpulas de Brasília (2000) e Guayaquil (2002), a
definição de "América do Sul" na retórica diplomática brasileira adquiriu,
finalmente, contornos definidos englobando as doze nações (e só estas), que
foram convidadas para participar dos dois encontros, ainda que tenha havido
observadores de outros países.
O governo Luiz Inácio Lula da Silva e a prioridade sul-americana
Com o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a América do Sul passou
a ser apresentada no discurso diplomático como a maior prioridade brasileira. O
projeto, ademais, ganhou novos contornos. As negociações econômico-comerciais
foram retomadas, em novas bases, permitindo a superação dos impasses que
obstaculizaram a conclusão do acordo Merrcosul-CAN durante os oito anos do
governo anterior. O reconhecimento das assimetrias entre os países sul-
americanos, essencial para a superação das dificuldades nessas negociações
resgatou, e aplicou na prática, o discurso de transformação da ordem
internacional que havia caracterizado a diplomacia brasileira por muitos anos.
A demanda de uma "nova geografia econômica" atualizou, em termos mais
realistas, os fundamentos do discurso em prol da construção de uma nova ordem
econômica internacional.
O governo Lula esteve, desde o início, comprometido com a idéia de mudanças na
ordem internacional. Conforme estabelecido no discurso do presidente e de seu
chanceler, o ponto de partida para uma nova inserção do Brasil no cenário
internacional é a América do Sul consolidada a partir da reconstrução do
Mercosul, das negociações com a Comunidade Andina e da incorporação do Chile,
da Guiana e do Suriname no esforço de integração. Segundo o presidente, "nós
chegamos à conclusão de que era preciso juntar toda a América do Sul para fazer
um Mercosul forte" (Lula da Silva, 20.11.2003). Respaldado por esse novo
contexto, o Brasil começou a buscar parcerias com países similares: África do
Sul e Índia (e também com a China e a Rússia). Alcançado esse ponto, "vamos
criar um bloco que vai ter praticamente metade da Humanidade" (idem, ibidem). A
estratégia de reforço da cooperação Sul-Sul tem passado também pelo diálogo e
cooperação com a África e com os países árabes, como demonstram as iniciativas
de Cúpulas entre os países sul-americanos e os países árabes, realizada em
2005, e também com os países africanos, prevista para o 2006.
Complementando essas diretrizes e apoiando-se também nessas novas parcerias,
retomou-se com vigor a participação brasileira no processo de reforma da ONU e
o projeto de obtenção de um assento permanente no Conselho de Segurança. Esse
passo é considerado fundamental para aproveitar a janela de oportunidade aberta
pela reformulação em curso nas relações internacionais de poder. Com isso, o
"Brasil deixaria de ser apenas objeto de decisões e obrigado a cumpri-las e
passaria a ser sujeito, parte efetiva do processo de decisões, que será central
para a constituição e gestão do sistema internacional" (Guimarães, 2000, p.
118). A necessidade de reforma da ONU e da participação do Brasil, de forma
permanente, em uma nova versão do Conselho de Segurança da entidade tornado
mais representativo pela presença de representantes das diversas regiões do
planeta e também dos países em desenvolvimento _ tornou-se um dos objetivos
principais da política externa brasileira.
No contexto de uma Terceira Reunião de Presidentes da América do Sul, convocada
pelo presidente peruano Alejandro Toledo, deu-se a criação da Comunidade Sul-
americana de Nações (Casa). Na Declaração de Cusco, de 8 de dezembro de 2004,
definiram-se os parâmetros e metas da Casa. Nessa ocasião, os países sul-
americanos comprometeram-se, entre outros objetivos, a: "(...) desenvolver um
espaço sul-americano integrado no âmbito político, social, econômico, ambiental
e de infraestrutura, que fortaleça a identidade própria da América do Sul e que
contribua, a partir de uma perspectiva subregional e em articulação com outras
experiências de integração regional, para o fortalecimento da América Latina e
do Caribe e lhes outorgue uma maior gravitação e representação nos foros
internacionais" (Declaração de Cusco).
Nos dias 29 e 30 de setembro passado, realizou-se, em Brasília, a Primeira
Reunião de Chefes de Estado da Comunidade Sul-americana de Nações, inaugurando-
se um novo momento das relações regionais. A criação da CASA responde às
mudanças ocorridas no cenário global e no contexto do continente americano.
Mais do que a "circunstância do Brasil", a América do Sul é a referência para a
inserção brasileira no mundo do século que se abre. Ultrapassada a etapa das
Reuniões de presidentes da América do Sul, os processos de integração da região
ganharam uma nova institucionalidade, desde a perspectiva integradora dos
esforços subregionais trazida pela criação da CASA.
É importante lembrar, no entanto, que ao afirmar a vertente sul-americana da
identidade brasileira não se está excluído completamente as dimensões latino-
americana e continental. A América Latina continuará a ser um conceito útil em
diversos contextos por exemplo, como grupo parlamentar no âmbito de
organizações internacionais. Não há nenhum sentido prático em se pensar, por
exemplo, na substituição do Grupo Latino-Americano e do Caribe (Grulac) por um
grupo exclusivamente sul-americano. Nesse caso, essa troca far-se-ia em
detrimento dos interesses concretos da atuação internacional do Brasil e dos
países sul-americanos. Pode-se imaginar, no entanto, que a maior coordenação
dos países da América do Sul sirva para melhor articular os interesses sul-
americanos dentro do Grulac. Outras instâncias, como o Grupo do Rio, também
poderão beneficiar-se de uma ação combinada de seus membros sul-americanos, sem
perder sua abrangência e sua especificidade.