Religião e política no pensamento de Maquiavel
Maquiavel é conhecido pelo propósito, firmado em O Príncipe, de considerar
"mais conveniente seguir a verdade efetiva da coisa do que a imaginação desta"
(Il Principe, capítulo XV). Na análise do fenômeno religioso, podemos constatar
a utilização deste "método": a religião é examinada a partir de seus efeitos
práticos, ou seja, pela capacidade de despertar tanto o medo quanto o amor dos
cidadãos a favor do vivere civile. Em outras palavras, "seguir a verdade
efetiva da coisa" implica em privilegiar a "causa eficiente". Tratando-se da
religião, consiste num determinado procedimento metodológico que analisa esse
fenômeno por sua capacidade de cumprir a tarefa cívica de mobilizar os homens a
favor do fortalecimento do Estado. Em semelhante modo de considerar as coisas,
as questões teológicas perdem importância. Diante disso, como fica o papel da
Providência? Pode-se ainda afirmar que ela dirige o destino dos homens?
Sustenta-se ainda a convicção cristã de que a marcha dos homens é uma ascensão
para Deus?1
Tommasini,2 numa extensa nota de sua magistral obra sobre a vida de Maquiavel,
apresenta a polêmica histórica em torno do pensamento religioso maquiaveliano.
As posições, na avaliação deste biógrafo, variam do elogio à condenação:
enquanto para alguns, como H. Plato, Maquiavel considerou a religião,
sobretudo, como condição indispensável para a manutenção da liberdade, para
outros, como C. Cantú, o Secretário da República de Florença foi o fundador da
doutrina do Estado ateu que forjou, sobre o modelo greco-romano, a nova
civilização, suprimindo Cristo e o Evangelho. Concordamos com Tommasini: o
melhor modo de estudar o pensamento religioso de Maquiavel não é o de verificar
se foi "cético ou crente, se foi pagão ou cristão, se estava mais próximo da
Reforma ou de Loyola, e sim o de ver historicamente, na ordem do movimento e do
pensamento religioso, como ele se conduziu, o que pensou, o que fez".3
Acatando a sugestão de Tommasini, podemos dizer que, para Maquiavel, não há a
menor dúvida de que a origem da religião é puramente humana e possui, como toda
instituição, fundadores e chefes. Aliás, e de modo mais preciso, é no ato
fundador de uma religião que se revela de modo mais elevado a virtù de um
indivíduo: "Entre todos os homens dignos de elogio, os que mais louvor merecem
estão os que foram chefes e fundadores das religiões" (Discorsi I, 10). Por ser
de origem humana, a religião também está sujeita às leis de nascimento,
desenvolvimento e morte que determinam todos os elementos criados: "Nada é mais
certo do que o fato de que todas as coisas do mundo têm um termo. (...) Falando
de corpos mistos, como repúblicas ou seitas, digo que são salutares aquelas
alterações que as reconduzem ao seu princípio" (Discorsi III, 1).
Ainda que não exista ato humano que traga maior glória a alguém do que fundar
uma religião, o valor propriamente dito de uma religião, para Maquiavel, não é
derivado da fama de seu fundador, do conteúdo dos ensinamentos, da verdade dos
dogmas ou da significação dos mistérios e ritos. Numa palavra, daquilo que se
costuma chamar "essência da religião". Pelo contrário, a grandeza de uma
religião decorre da função e importância que ela exerce em relação à vida
coletiva. Ambas, função e importância, são de caráter normativo: a religião
ensina a reconhecer e a respeitar as regras políticas a partir do mandamento
religioso. Essas normas coletivas podem assumir tanto o aspecto coercivo
exterior da disciplina militar ou da autoridade política quanto o caráter
persuasivo interior da educação moral e cívica para a produção do consenso
coletivo. Como é possível que um mesmo fenômeno obrigue, ao mesmo tempo,
externa e internamente? Não estaríamos, aqui, diante de uma contradição no
pensamento maquiaveliano? Gennaro Sasso, notando também esse duplo significado
da religião,4 esclarece que se trata "de um contraste muito mais do que de uma
contradição".5
Com efeito, a fundação e estabilidade de um Estado dependem da virtù, não
apenas do príncipe, mas também do povo. Assim, a dupla função da religião, de
coerção e de persuasão, coincide, respectivamente, com a virtù do príncipe e a
do povo. A religião, compreendida como instrumentum regni, requer do príncipe a
capacidade de servir-se de modo sagaz da fé do povo para levá-lo à obediência
da lei civil. Quer dizer, somente um príncipe virtuoso é capaz de levar o povo
a temer a desobediência às ordens do Estado como se fosse uma ofensa a Deus. E
por que o povo estaria mais propenso a obedecer às ordens divinas do que às
humanas? Para Maquiavel, isso se deve à superioridade da eficácia do mandamento
divino em relação à lei humana para submeter o povo, pois este "teme muito mais
romper os juramentos do que as leis por prezar mais o poder de Deus do que o
dos homens" (Discorsi I, 11).
No entanto, nenhuma construção política pode ser erigida e mantida unicamente
com instrumentos extrínsecos, com base em uma coerção externa tão-somente.
Maquiavel chama expressamente a atenção para o fato de que o Estado não pode
depender apenas da virtù excepcional de um homem, pois "se um é apto para
organizar, não durará muito a coisa organizada se a coloca sobre os ombros de
um só" (Discorsi I, 9). É imprescindível, portanto, contar com a virtù do povo
para alcançar a estabilidade do Estado. A fé religiosa, compreendida como a
vida profunda do povo expressa nos bons costumes e na educação moral e cívica,
constitui-se na razão de ser da virtù política dos membros e no fundamento
interno do Estado. Vamos proceder, na seqüência, a um exame mais detalhado, com
base nos textos da obra de Maquiavel, desses dois distintos significados da
religião.
A função de coerção externa da religião ou a submissão ao poder instituído
Maquiavel introduz o tema da religião, no primeiro livro dos Discorsi, na
perspectiva do ordinatore. Isto é, daquele que, se não irá propriamente
inventar a religião, tem, contudo, por tarefa estruturá-la e estabelecê-la em
preceitos bem visíveis. Foi o que coube a Numa, sucessor de Rômulo:
Embora Roma tenha sido fundada por Rômulo e se reconheça como filhas
suas o nascimento e a educação, os céus, julgando que as leis
(ordini) de Rômulo não bastavam para tanto império, inspiraram o
senado romano para que elegesse Numa Pompílio como sucessor de
Rômulo, de modo que as coisas que este deixou de lado foram reguladas
por Numa. Este, encontrando um povo ferocíssimo e querendo reduzi-lo
à obediência civil com as artes da paz, recorreu à religião como
elemento imprescindível para manter a vida civil (civilità ) e a
constituiu de modo que, por muitos séculos, não havia tanto temor a
Deus como naquela república, o que facilitou todos os empreendimentos
que o senado ou os grandes homens de Roma planejaram levar a cabo
(Discorsi I, 11).
O problema político do sucessor de Rômulo era o de "reduzir" seu povo "à
obediência civil". Fazê-lo, porém, com a força que provém da "ferocidade" não
apenas resultaria em algo puramente provisório, mas criaria rapidamente um
movimento cujo termo final seria a dissolução da sociedade. Isso porque, no
âmbito de uma coletividade política, a força enquanto tal somente pode ser a da
maioria, enquanto a obediência necessária ao vivere civile pode ser devida
unicamente a uma minoria. Portanto, para garantir à comunidade política coesão
e duração, o fundamento da obediência precisa ser buscado em algo diverso da
força.
Isso explica porque Numa, para alcançar seu objetivo (de reduzir à obediência
civil um povo ferocíssimo), não tratou o povo no terreno que lhe era próprio
enquanto agente do Estado, isto é, o da força, mas compreendeu que precisava
voltar-se "às artes da paz". Estas, na passagem da obra maquiaveliana citada
acima, não consistem em outra coisa senão na religião, apresentada como o
instrumento capaz de subtrair o sentimento da obrigação política do exclusivo
domínio da força, e, por isso mesmo, definida "como elemento imprescindível
para manter a vida civil". Numa compreendeu, pois, que a força não é o elemento
fundamental para levar o povo à obediência, nem a medida das relações internas
de um vivere civile. Isso mostra o papel fundamental exercido pela religião
para a substituição da força pela civilità .
Em razão de quais artes a religião é capaz desse feito? Maquiavel é claro:
religião é timore di Dio. O fundamento da religião para Maquiavel é, pois, o
medo de um Deus que, ainda que seja apresentado como algo que tem certa feição
humana, considerado em si mesmo não constitui razão de obrigação política e de
vínculo social. Contudo, ainda que o medo de um Deus não tenha nada que o faça
critério e fundamento de comportamentos políticos e sociais por si mesmo, pode
tornar-se tal graças à intervenção prudente de um legislador que saiba
alimentar, orientar e, sobretudo, organizar em instituições estáveis esse
sentimento humano, tornando-o, assim, apto a suscitar coesão política e
obediência civil.
Uma coisa é, portanto, a religião na sua dimensão antropológica, de um misto de
medo ancestral e sentimento de inferioridade. Outra coisa é o aspecto da ordem,
a constante e visível organização institucional que a prudência do legislador
pode dar às necessárias expressões deste mesmo sentimento, trazendo, com isto,
benefícios políticos essenciais. Parece evidente que o interesse de Maquiavel
está, acima de tudo, na segunda dimensão; ou, pelo menos, se ocupa da primeira
somente como fundamento da segunda.
Considerando, pois, que a religião, em seu fundamento, é essencialmente "temor
de Deus", de que modo se pode intervir nesse sentimento humano? Como é possível
fazer dela a alavanca capaz de produzir comportamentos individuais e coletivos
politicamente úteis? São vários os instrumentos referidos por Maquiavel, com
destaque à simulação, aos juramentos e aos vaticínios. Examinaremos adiante
algumas passagens de utilização desses expedientes.
Antes disso, porém, vamos aprofundar a análise acerca do comportamento de Numa,
na passagem referida acima, para explorar outro aspecto implicado no uso
político da religião: o de disfarçar no mandamento religioso a norma política.
Constatamos que Numa ocultou seu projeto político, de "reduzir o povo à
obediência civil com as artes da paz", no mandamento religioso. Graças à
religião, Numa conseguiu fazer com que o povo aceitasse as leis de exceção, com
as quais obteve a ordem e a paz.
Mostra-se aqui uma clara diferença entre o príncipe e o povo em relação ao
significado do fenômeno religioso: enquanto para o primeiro a religião é um
instrumento político, um meio eficiente para submeter os súditos às leis e à
obediência, para o povo ela contém um temor sagrado que o faz respeitar os
preceitos legais como se fossem mandamentos divinos. O conhecimento da
diferença entre a norma política e o mandamento divino é do domínio unicamente
de quem governa. Numa sabia disso e, sagazmente, explorou essa diferença em
favor do Estado. A lei civil, quando é apresentada como simples vontade
soberana do Estado, tem uma eficácia muito menor do que se aparece como
mandamento divino. Por esse motivo, diz Maquiavel: "Nunca houve um legislador
que tenha dado leis extraordinárias a um povo e não tenha recorrido a Deus,
pois de outro modo não seriam aceitas." (Discorsi I, 11)
Essa concepção, que faz da religião um instrumento de poder e a transforma num
meio útil para a ação política, tem levantado contra Maquiavel a crítica de que
para ele a religião serve unicamente aos interesses particulares de um
príncipe. É um mal-entendido. Temos de admitir, é verdade, como mostrou a
passagem acima referida, que Numa se serviu da religião para "manter a vida
civil". Isto é, encontrou na religião um recurso conveniente para o
fortalecimento do seu domínio. No entanto, Maquiavel louva o uso político da
religião apenas na medida em que isso resulta em benefício da coletividade e
não da glória pessoal do príncipe. A correção dessa conclusão pode ser
verificada no motivo que levou Maquiavel a aprovar a atitude de Numa e dos
dirigentes romanos em geral: "Pode ver-se, quem considera bem a história
romana, o quanto a religião foi útil para comandar os exércitos, animar o povo,
manter os homens bons e envergonhar os maus." (Idem)
Considerada como valor instrumental, a religião é, portanto, um elemento de
grande eficácia política. Usada com a devida prudência, constitui uma
alternativa ao emprego da força bruta para assegurar a ordem e a paz interna.
Oferece um meio para comandar sem recorrer à violência física. Esse recurso é,
sobretudo, útil quando os argumentos racionais são impotentes para convencer os
homens. É o caso, por exemplo, daquelas coisas "cujas vantagens são conhecidas
por um homem prudente, mas que não apresentam em si mesmas razões evidentes que
possam persuadir os outros. Por isso, os homens sábios, querendo evitar essa
dificuldade, recorrem a Deus" (Discorsi I, 11). Em outras palavras, o apelo à
força irracional da religião converte-se num meio eficiente para o príncipe
convencer o povo da legitimidade de suas ações e da pureza de suas intenções,
objetivo que não seria alcançável recorrendo unicamente à razão.
Dessa maneira, a religião se constitui no meio de persuasão privilegiado do
qual os governantes podem dispor para fazer com que o povo admita um bem do
qual a razão, tão-somente, não bastaria para convencê-lo. É um fenômeno
irracional, mais poderoso sobre o espírito do povo do que a própria razão,
fenômeno este cuja utilização prudente torna-se a garantia mais segura do êxito
do Estado. É isso que motiva o elogio que Maquiavel faz a Numa: "Considerado,
portanto, tudo, concluo que a religião introduzida por Numa foi uma das
principais causas da felicidade daquela cidade, porque ela produziu boas
instituições (ordini); e boas instituições engendraram boa fortuna e da boa
fortuna nasceu o feliz êxito de seus empreendimentos" (Discorsi I, 11).
Aqueles que comandam conhecem a influência que o mandamento divino exerce sobre
a mente do povo. Para Maquiavel, podem servir-se dessa crença até mesmo quando
percebem que se trata de um embuste: "[Os príncipes de uma república ou reino]
devem favorecer e acrescentar todas as coisas que surjam a favor dela
[religião] ainda que as julguem falsas e o farão tanto mais quanto mais
prudentes e mais conhecedores das coisas naturais forem." (Discorsi I, 12) Os
dirigentes políticos são sabedores de sua obrigação em relação à coletividade.
Eles devem manter o povo unido e obediente ao Estado, pois somente sob esta
condição garantem a continuidade da ordem e da paz, que asseguram a vida e a
segurança de todos. Como "conhecedores das coisas naturais", são capazes de
servir-se dos acidentes favoráveis, isto é, dos aparentes milagres, para
fortalecer a crença religiosa e, conseqüentemente, o Estado, sem, contudo,
acreditar neles. Assim, quando o dirigente faz parecer uma decisão sua como
expressão da vontade divina, deve ser julgado apenas por sua maior ou menor
habilidade em conseguir o intento, e não moralmente de ter manipulado as
doutrinas religiosas. Tenenti esclarece essa questão alertando que, para o
florentino, a religião é a paixão útil mais eficaz que existe para alimentar a
força civil e política, mas não um patrimônio de verdade. Entre esta e a
religião não há uma medida comum.6
Governantes e governados conhecem a verdade da religião de modo diferente.
Segundo Gérard Namer, "o príncipe conhece a verdade da religião de maneira
racional, ao passo que o povo, quando muito, conhece-lhe a falsidade quando a
intenção de embuste do mediador lhe é descoberta".7 Enquanto aqueles que
governam conhecem a verdade da religião por si, os governados a conhecem pela
mediação da autoridade dos que governam. Todo segredo está, então, na maneira
de interpretar a mensagem divina ao povo. Para o príncipe, ela é sempre apenas
útil; para o povo, a religião significa a exteriorização de um mandamento
divino.
A passagem da religião como sentimento individual à religião como instrumento
indispensável para a ação política é ilustrada por Maquiavel através de uma
série de exemplos extraídos da história romana. Em todos eles fica claro que a
questão principal não é a da verdade da religião e sim a da interpretação da
vontade divina por aqueles que comandam e a favor de seus propósitos. Trata-se
aqui de completar o ponto que deixamos em suspenso anteriormente: examinar os
expedientes que fazem da religião um instrumento apto para produzir
comportamentos individuais e coletivos politicamente úteis. Vamos examinar os
que nos parecem essenciais.
Comecemos pela simulação, la finzione: Numa, explica Maquiavel, sentiu que sua
autoridade seria insuficiente para "introduzir instituições novas e inusitadas
naquela cidade [Roma]". Compreendendo, porém, a importância e a necessidade de
tal empreendimento, "simulou ter familiaridade com uma Ninfa, de quem recebia
conselhos para serem transmitidos ao povo" (Discorsi I, 11). A fraude,
evidentemente, só era do conhecimento de Numa. O povo avaliou a veracidade pelo
resultado e este não poderia ser melhor: "Maravilhando-se, pois, o povo romano
da bondade e prudência de Numa, cedia ante todas as suas argumentações."
(Discorsi I, 11) Não é diferente no caso de Camilo: tendo os soldados romanos
saqueado a cidade de Veios, entraram no templo de Juno "sem tumultos, devotos e
cheios de reverência" (Discorsi I, 12), e perguntaram à deusa se queria ir com
eles para Roma. Como havia quem pensasse ter escutado ela dizer "sim", "lhes
parecia ouvir aquela resposta que pressupunham para sua pergunta, opinião e
credulidade que foi inteiramente favorecida e acrescentada por Camilo e por
outros homens importantes da cidade" (Discorsi I, 12).
Interpretar a atitude simuladora de Numa e Camilo como um simples problema de
fraude ou de embuste leva a não compreender a real natureza da questão. O
verdadeiro problema não é saber se há ou não algum conteúdo de verdade na
religião, e, sim, o de canalizar os sentimentos e as energias que a religião
suscita no espírito dos homens numa direção politicamente útil e construtiva.
Isso justifica a necessidade de esses homens dissimularem o próprio juízo no
confronto das coisas que dizem respeito à religião. Igualmente, é o que
fundamenta a exigência de fingir uma atitude exatamente oposta, cultivando e
protegendo e, na situação concreta, também suscitando tudo quanto seja capaz de
favorecer o sentimento religioso coletivo. Podemos até mesmo dizer que os
"príncipes de uma república ou reino", como Camilo e Numa, são tanto mais
eficazes no cumprimento de suas tarefas em relação à religião quanto mais
autônomos a respeito do sentimento religioso eles forem.
Um segundo expediente pode ser observado no modo como os romanos se serviam dos
augúrios e oráculos. Encontramos, a esse propósito, uma seqüência de exemplos
no capítulo XIII do primeiro livro dos Discorsi. O primeiro refere como a
religião se prestou para levar o povo a escolher "todos os novos tribunos
dentre os nobres": estes, divulgando que "os deuses estavam irados porque Roma
havia usado mal a majestade de seu império" ao escolherem os tribunos somente
dentre os plebeus, anunciaram que "não havia outro remédio para aplacar as
divindades, senão reduzindo a eleição dos tribunos aos patrícios" (Discorsi I,
13). O povo, "amedrontado pela religião", fez o que lhe foi pedido. O segundo
oferece um exemplo do modo "como os capitães dos exércitos se valiam da
religião para tê-los [os soldados] dispostos a um empreendimento" (Idem).
Cansados por causa do longo sítio à cidade de Veios, os soldados queriam
voltar. Foi então que "os romanos inventaram que Apolo e outros oráculos haviam
profetizado que a cidade de Veios seria tomada no ano em que as águas do Alba
extravasassem suas margens" (Idem). O boato reanimou a tropa que, após um sítio
de dez anos, finalmente conquistou a cidade. O terceiro revela o modo pelo qual
a nobreza utilizou os "livros sibilinos" para defender-se contra o tribuno
Terêntilo e sua lei de limitação do poder dos cônsules interpretando-os de modo
a profetizarem "que a cidade corria perigo de perder a liberdade caso houvesse
sedição civil" (Idem). O embuste, mesmo descoberto, "não por isso deixou de
inspirar tanto terror no peito da plebe, que arrefeceu seu entusiasmo de segui-
la" (Idem). A importância do recurso aos augúrios é resumida, finalmente, pelo
próprio Maquiavel na abertura do capítulo XIV do primeiro livro dos Discorsi:
Os augúrios não somente eram o fundamento em boa parte da antiga
religião dos gentios, como dissemos acima, mas também eram a causa do
bem-estar da República romana. Por isso, os romanos lhes prestavam
mais atenção do que a qualquer outra coisa e usavam deles nos
comícios consulares, ao iniciar um empreendimento, ao enviar os
exércitos, ao travar uma batalha, e em toda ação importante, civil ou
militar, jamais levaram a efeito uma expedição sem antes persuadir os
soldados de que os auspícios lhes prometiam a vitória (Discorsi I,
14).
Para Maquiavel o problema fundamental não é o da comunicação da vontade divina
aos homens. A possibilidade de uma Revelação divina é uma questão teórica da
qual Maquiavel não se ocupa explicitamente. É muito provável que, pessoalmente,
acreditasse nisso.8 Não é isso, porém, o que lhe importa. Trata-se sempre,
desde a ótica de quem comanda, de uma interpretação de sinais considerados
pelos homens em geral como manifestações da vontade divina. Como esses sinais
nunca se manifestam de maneira clara e acessível a todos, é sempre por uma
linguagem cifrada que o divino se comunica com o humano, requerendo a mediação
de um intérprete. Este faz os sinais significarem aquilo que convém àqueles que
comandam. No entanto, Maquiavel condiciona tal utilização a um critério: o
resultado deve convergir para um bem coletivo. É esse efeito positivo,
reconhecido por todos, o que valida a sua utilização. A exigência, bem
compreendido, não é de natureza moral, mas política. Uma interpretação cujo
efeito é manifestamente favorável apenas às minorias privilegiadas, ou a algum
dirigente no poder, tem por conseqüência o descrédito no oráculo ou nos
augúrios. Essa perda da fé na mensagem produz a desordem, que prejudica a
continuidade estável da vida do Estado. Essa é a razão pela qual Maquiavel
condena semelhante forma de utilização da religião.
O terceiro expediente são os juramentos, dos quais Maquiavel mais vezes recorda
o uso, especialmente pelos romanos. É significativo trazer, a esse propósito, o
exemplo que Maquiavel extrai de Tito Livio:
Examinando infinitas ações, do povo romano em seu conjunto ou de
muitos dos romanos individualmente, se vê como aqueles cidadãos
temiam mais romper um juramento do que a lei, como quem estima mais o
poder de Deus do que o dos homens, como se vê manifestamente pelos
exemplos de Cipião e Mânlio Torquato: porque, depois da derrota que
Aníbal havia infligido aos romanos em Cannes, muitos cidadãos haviam
se reunido e, desesperando da salvação da pátria, combinaram
abandonar a Itália e refugiar-se na Sicília. Inteirando-se disso,
Cipião foi buscá-los com a espada desembainhada na mão e os obrigou a
jurar que não abandonariam a pátria. Lúcio Mânlio, pai de Tito
Mânlio, que logo foi chamado Torquato, havia sido acusado por Marco
Pompônio, tribuno da plebe. Antes que chegasse o dia do julgamento,
Tito foi buscar Marco e, ameaçando-o de morte se não jurasse retirar
a acusação contra seu pai, obrigou-o a prestar juramento. Este, por
respeito ao que havia jurado, retirou a acusação (Discorsi I, 11).
Um outro exemplo bem ilustrativo da eficácia do juramento é o referido no
capítulo XIII do primeiro livro dos Discorsi: os tribunos, para forçar a
promulgação da lei terêntila, não se opuseram à ocupação do Capitólio por
"bandidos e escravos" (Discorsi I, 13). O povo, "convencido por um certo Públio
Rubério" de que a reivindicação não era oportuna, jurou "não transgredir a
vontade do cônsul" (Discorsi I, 13) e o Capitólio foi tomado pela força. Como o
cônsul Públio Valério foi morto no ataque, seu substituto, Tito Valério,
entendeu que o juramento permanecia válido. A isso se opuseram os tribunos
"dizendo que o juramento havia sido feito ao cônsul falecido" (Discorsi I, 13).
O povo, porém, "por temor religioso, preferiu obedecer ao cônsul a seguir os
tribunos [...]. Temendo perder toda sua dignidade, os tribunos entraram em
acordo com o cônsul, consentindo em obedecê-lo" (Discorsi I, 13).
As passagens nos levam a compreender que, no uso que se faz do juramento, este
chega a estabelecer, ainda que por meio de uma involuntária manifestação de
responsabilidade da parte do indivíduo, uma poderosa conexão entre o medo
íntimo de um Deus e uma obrigação pública de caráter político. Essa é a razão
pela qual o juramento é o instrumento por excelência de uso político da
religião. Nos exemplos referidos, notamos que a dimensão religiosa, expressa no
juramento, é determinante em relação à política. Isso é particularmente verdade
no sentido de que, nas situações extremas, a religião, mais do que a política
com seus costumeiros instrumentos e sentimentos (as leis, a força, o amor à
pátria, a honra), é capaz de constituir-se num âmbito explicativo e motivador
de comportamentos individuais e coletivos.
Com efeito, consideremos o exemplo dos cidadãos (a "plebe") que, para defender
a pátria, não conseguem encontrar razões, ou mesmo reconhecer a obrigação, no
amor pela pátria e suas leis e que, ao invés disso, sentem-se coagidos a isso
em virtude de um juramento. Consideremos, igualmente, o caso do tribuno da
plebe que, "para obedecer ao juramento feito", esquece a "honra sua" e "o ódio"
nos confrontos em relação àqueles que o haviam injuriado. Em suma, nos
confrontos entre grandes e plebe, os comportamentos que a própria política não
consegue suscitar, os suscita a religião.
Contudo, a dinâmica na qual se produz o juramento torna evidente que aquelas
manifestações da religião que vêm em auxílio da política não têm uma origem
autônoma, não são um movimento espontâneo e imediato do espírito do povo. Pelo
contrário, estas manifestações da religião são o produto de uma vontade
política bem determinada.9 Observando os exemplos citados por Maquiavel,
percebemos claramente a dinâmica do juramento: ele não resulta de um ato
espontâneo, de uma obrigação coletiva que uma comunidade dá voluntariamente a
si própria, mas, muito antes, é sempre o efeito de uma coerção. Cipião
constrange os cidadãos a jurarem que não abandonariam a pátria; Tito Mânlio
obriga, sob a ameaça das armas, Marco Pompônio a jurar que retiraria a acusação
contra seu pai. Cutinelli-Rèndina nota aqui uma circularidade no uso político
do juramento religioso: "Considerada na perspectiva do juramento, a relação
entre religião e política se revela, então, complexa e, por assim dizer,
circular: a política tem necessidade da religião, mas esta religião da qual a
política tem necessidade é, por sua vez, um produto da própria prudência
política".10
No segundo exemplo, o da lei terêntila, aparece claramente que, no uso que a
política faz do juramento religioso, se mostra a oposição fundamental presente
em toda comunidade política. Revela-se e, ao mesmo tempo, contribui fortemente
para mantê-la. A narrativa do episódio é aberta e posteriormente fechada com a
indicação do sujeito-fruidor do uso político da religião, que é sempre a
nobreza ou a ordem senatorial: "entre os primeiros recursos de que usou a
nobreza para remediar a situação estava a religião"; "e assim a religião
permitiu que o senado vencesse dificuldades que, sem ela, jamais teriam sido
vencidas" (Discorsi I, 13). Nesse episódio, Maquiavel concentra toda sua
descrição sobre o juramento extorquido à plebe. Trata-se de um juramento ao
qual a plebe romana se sentia presa a tal ponto que preferiu não seguir os
próprios representantes, com grave prejuízo para estes últimos: "a plebe, por
temor religioso, preferiu obedecer ao cônsul a seguir os tribunos"; "temendo os
tribunos perder então toda sua dignidade, puseram-se de acordo com o cônsul
para prestar-lhe obediência" (Idem).
O comportamento, nos confrontos dos juramentos, revela uma profunda diferença
social. Trata-se de uma diferença que, por vezes, separa o ordinatore, junto
com os maiorais dos quais necessita valer-se, de todos os outros; outras vezes,
e com maior freqüência, opõe o omore da nobreza ao da plebe. Em todas as
situações, e isso é o essencial, divide, e é através dessa divisão que passa a
possibilidade de fazer um uso político da religião. Portanto, a sabedoria
política requer que essa diferença seja mantida e alimentada. No entanto, e
isso é fundamental, a diferença mantida e alimentada pelo uso político da
religião não pode aparecer como manipulação dos grandes em favor dos interesses
exclusivos destes.
Enquanto a boa interpretação reforça a unidade e eficácia do Estado, a má
condena os chefes. O povo suspeita da interpretação quando o príncipe não
consegue disfarçar o interesse partidário. Na Roma antiga, quando os oráculos
"começaram a falar como os poderosos (a parlare a modo de' potenti), e essa
falsidade foi descoberta pelo povo, os homens se tornaram incrédulos e
apropriados para perturbar qualquer ordem boa" (Discorsi I, 12). Somente um
príncipe corrompido é capaz de acreditar que a autoridade religiosa está
inteiramente a seu serviço. Ao reduzir as instituições religiosas à mera fraude
a serviço do poder, ele as destrói. Dessa maneira, compromete a própria
sobrevivência do Estado, uma vez que, por causa disso, os homens mostram-se
"apropriados para perturbar qualquer ordem boa". Ainda que se trate sempre de
uma interpretação de sinais tidos como manifestação do divino, a leitura desses
sinais jamais pode ser tal que o povo se perceba como um mero instrumento útil
a serviço dos poderosos. Quando o discurso e o cerimonial religiosos passam a
ser simples expressão do interesse privado, a religião não consegue mais
vincular o cidadão ao Estado. O povo pode até continuar submisso, mas já não
será mais por um amor cívico e sim pela coação nascida da força das armas ou da
ameaça do castigo eterno. Em todo caso, a religião perdeu sua força
mobilizadora. A conseqüência inevitável é a decadência do vivere civile.
O caráter de persuasão interna da religião ou a produção do consenso coletivo
O que fez a grandeza da religiosidade romana, segundo Maquiavel, foi o fato de
ela não se restringir ao seu valor meramente instrumental, de uso político
preponderantemente a favor dos que comandam. Mais radicalmente ainda, esta
função simplesmente não teria sido possível se ela não correspondesse, ao mesmo
tempo, a um modo de ser, à natureza de seu povo: se o povo romano se submeteu à
ordem política em virtude do mandamento religioso foi porque reconheceu nele um
valor. Os legisladores romanos souberam compreender que a religiosidade de um
povo é um dado fundamental e inseparável de um conjunto de qualidades, dentre
as quais podemos destacar os bons costumes, o devotamento ao bem comum e o amor
à pátria, o cumprimento das leis e o respeito sagrado pela autoridade, a
coragem dos soldados e a fidelidade dos cidadãos.
Maquiavel determina de maneira precisa a exemplaridade de Roma, que deve,
segundo ele, indicar o caminho de toda ação política, militar e civil. Mas o
que significa, precisamente, para Maquiavel, esse retorno ao exemplo romano?
Certamente, como havia sido para as gerações precedentes, não renascer com
eles, pois a época presente já não era mais percebida como de renascimento, e
sim de crise e de decadência. Por isso, essa exemplaridade romana significava,
para o florentino, muito antes, encontrar o critério para compreender e
criticar mais a fundo a época presente. Desse modo, a questão não é mais a de
constatar a diferença entre a maneira romana de fazer política e aquela dos
contemporâneos italianos. Trata-se, isto sim, de explicar o como e o porquê de
uma tal diferença. O fundamento e o critério de julgamento que torna isso
possível é a religião.
No início do segundo livro dos Discorsi, Maquiavel se propõe a explicar porque
o amor à liberdade, que caracterizava os antigos, desapareceu nos modernos. A
execução dessa tarefa o leva a uma análise comparada da religião dos antigos e
a dos modernos. Em relação a essa comparação, Cutinelli-Rèndina alerta que, "na
realidade, o problema que Maquiavel se coloca é o da virtude política e as
condições que a desenvolvem e a tornam possível ou que, pelo contrário, a
condenam à inércia e, finalmente, ao declínio definitivo"11.
No paralelo que Maquiavel faz, parece ver no cristianismo unicamente vícios e
no paganismo apenas virtudes. Primeiro, o cristianismo fazia "estimar pouco as
honras mundanas, enquanto o paganismo as tinha como sumo bem, sendo mais
arrojado em suas ações" (Discorsi II, 2). Segundo, na liturgia cristã "a pompa
é mais delicada do que magnífica" (Discorsi II, 2), enquanto na pagã "não
faltava a pompa, nem a magnificência e a elas se acrescentava o ato de
sacrifício, cheio de sangue e de ferocidade (...) e este espetáculo, sendo
terrível, tornava os homens semelhantes a ele" (Discorsi II, 2). Terceiro,
enquanto o paganismo "beatificava unicamente homens cheios de glória mundana,
como os capitães de exércitos e os príncipes das repúblicas, (...) o
cristianismo glorificou mais os homens contemplativos do que os ativos"
(Discorsi II, 2).12 Quarto, o cristianismo "colocou o sumo bem na humildade, na
abjeção e no desprezo das coisas humanas, enquanto [o paganismo] o punha na
grandeza de ânimo, na fortaleza corporal e em todas as coisas adequadas para
fazer fortes os homens" (Discorsi II, 2). Qual o resultado de semelhante
comparação? Segundo Maquiavel, o modo de viver estimulado pelo cristianismo
"parece que tornou o mundo fraco, convertendo-o em presa de homens malvados, os
quais podem manejá-lo com plena segurança, vendo que a totalidade dos homens,
para ir ao paraíso, pensa mais em suportar suas opressões do que em vingar-se
delas" (Idem).
Expor as razões do amor que os antigos votavam à liberdade equivale para
Maquiavel a explicar porque os modernos perderam esse sentimento. E a causa
está na religião, pois os conteúdos desta estão na origem dos diferentes tipos
de educação que, por seu turno, constituem o fundamento dos diferentes
comportamentos civis, políticos e militares. A diferença na natureza das ações
políticas que resultam das duas religiões provém da maneira oposta de
considerar as coisas do mundo:
Pensando de onde poderia nascer que, nos tempos antigos, os povos eram mais
amantes da liberdade que neste, creio que procede da mesma causa pela
qual os homens atuais são menos fortes, ou seja, da diferença entre
nossa educação e a dos antigos, que está fundada na diversidade de
ambas as religiões (Idem).
Assim, o critério de distinção entre a virtude dos romanos e a corrupção geral
dos modernos reside unicamente na diferente educação e, portanto, nas
diferentes religiões existentes entre os antigos e os modernos. A fraqueza dos
modernos e a exemplaridade dos antigos têm seu fundamento na diversidade
radical de suas religiões e do conteúdo delas. Significa dizer que o mundo
moderno tornou-se politicamente impotente por causa de sua religião assim como
o mundo antigo havia fundado sua exemplaridade sobre as qualidades específicas
da religião que lhe era própria.
Podemos concluir disso, então, que o cristianismo é incompatível com as
virtudes próprias do ideal republicano? Seria o caso, talvez, de ressuscitar o
paganismo antigo e substituir o cristianismo por ele? Não, não é isso o que
Maquiavel pensa, nem sugere. O problema, assegura ele, está na incapacidade dos
homens "que interpretaram nossa religião segundo o ócio [a inação] e não
segundo a virtù [a ação]" (Idem). O problema está, pois, na maneira como a
religião cristã foi ensinada ao longo dos séculos. Ela foi se espiritualizando
a ponto de cindir seus propósitos das necessidades mundanas. Se, ao invés
disso, "os príncipes das repúblicas cristãs tivessem mantido esta religião tal
como foi constituída por seu fundador, estariam os Estados e repúblicas cristãs
mais unidos e felizes do que o estão" (Discorsi I, 12).
Colonna d'Istria notou muito bem que a essência da crítica de Maquiavel à
religião foi a de mostrar que "toda religião, também o cristianismo, deve ser
julgada em relação com um fim que não é especificamente religioso, mas
político: a ligação com a liberdade e o bem comum",13 cuja forma mais elevada é
o amor à pátria. É o cristianismo compatível com esse ideal? Se os homens, diz
Maquiavel, "se dessem conta de que ela permite a exaltação e a defesa da
pátria, veriam que ela quer que a amemos e a honremos e nos preparemos para ser
de tal modo que possamos defendê-la" (Discorsi II, 2). Religião alguma pode se
opor à defesa da liberdade, nem se conciliar com posições que pleiteiem a
renúncia do amor à pátria. A afirmação de que o cristianismo contradiz o
destino dos povos e os entrega aos seus inimigos, que poderíamos, de alguma
maneira, depreender da passagem citada acima ("A totalidade dos homens, para ir
ao paraíso, pensa mais em suportar suas opressões do que em vingar-se delas" '
Idem), deve ser interpretada à luz da explicação que o próprio Maquiavel se
encarrega de dar na seqüência: "Interpretaram nossa religião segundo o ócio e
não segundo a virtù" (Idem).
Ainda que essa explicação possa elucidar a razão pela qual o antigo amor pela
liberdade se perdeu, o esclarecimento levanta um novo questionamento: Se a
diversidade das religiões e da educação própria a cada uma delas é o que
explica o diferente comportamento dos povos em relação à liberdade, como foi
possível à religião cristã infiltrar-se no espírito dos altivos povos da
Antigüidade, educados no valor da liberdade? Maquiavel apresenta duas respostas
distintas a essa questão, uma no capítulo II e outra no capítulo V do segundo
livro dos Discorsi.
A resposta avençada por Maquiavel no âmbito do segundo capítulo é simples e
clara. O próprio poder romano, ao vencer todos os povos do mundo e privá-los de
qualquer liberdade, tornou os espíritos propícios para acolher a esperança
ilusória de viver da contemplação do mundo e na expectativa do paraíso. Em
outras palavras, o cristianismo pôde infiltrar-se completamente nos povos da
Antigüidade, porque Roma, tendo-os conquistado e tornado servos, erradicou da
alma deles o amor e o gosto pela liberdade.
Maquiavel oferece uma segunda explicação do triunfo do cristianismo no decurso
do capítulo V do segundo livro dos Discorsi. A explicação surge num quadro que
parece ter a pretensão de explicar a fundação e existência de qualquer religião
e, desse modo, isentar Roma da acusação de haver aberto as portas ao
cristianismo e, com isso, extinguindo nos povos o amor à liberdade. O argumento
é construído a partir da análise da "regra geral" que determina a sobrevivência
das religiões:
Quando surge uma nova seita, isto é, uma religião nova, sua primeira
preocupação, para alcançar reputação, é extinguir a antiga. Quando
acontece que os organizadores da nova seita falam uma língua
diferente, a extinguem facilmente. Isso se vê claramente observando o
comportamento da seita cristã com respeito à pagã, pois anulou todos
os seus ordenamentos e cerimônias, e apagou toda lembrança da antiga
teologia (Discorsi II, 5).
Com a nova explicação, o cristianismo perde sua especificidade. Como uma
religião entre outras, surge e permanece da mesma maneira que qualquer outra
religião e possui o mesmo caráter político que caracteriza todas elas. Tem uma
origem no tempo e uma duração determinada na história. A religião, não é
diferente de qualquer outra instituição humana, segue um movimento comum:
nasce, permanece e desaparece segundo lhe é imposto pelo ritmo eterno do
cosmos. Nessa perspectiva, não existe mais qualquer diferença entre
cristianismo e paganismo. Todas as religiões são iguais, seja quanto à origem,
seja quanto à sua finalidade. Bem ao contrário da primeira explicação, o
cristianismo não é nem mais nem menos imperfeito do que as outras religiões.14
O cristianismo, porém, não aceita esse nivelamento: apresenta-se como religião
revelada e, por isso, como a única verdadeira. Isso faz com que o conquistador
cristão não queira ser assimilado, nem assimilar. Não quer ser identificado com
os homens e povos que submete. Parte simplesmente do pressuposto da
superioridade de sua religião sobre qualquer outra. Diferentemente do paganismo
romano, que permitia aos povos conquistados a manutenção de suas crenças
religiosas, o cristianismo procura impor sua fé por meio de um processo de
eliminação dos símbolos religiosos e culturais existentes e sua substituição
pelos cristãos. Foi isso que o motivou nas cruzadas contra os muçulmanos. Foi
assim que agiu contra os nativos na América espanhola no processo de conquista
durante o final do século XV.
Embora a ação substitutiva seja conseqüência inevitável da "regra geral" que
determina o nascimento, a permanência e o desaparecimento histórico das
religiões, Maquiavel critica essa sanha destruidora do cristianismo. O motivo
da censura não é o fato de o cristianismo impor-se às demais religiões. Isso,
afinal, é um resultado inevitável do processo histórico ao qual todas as
religiões estão submetidas. Maquiavel condena o cristianismo, mais precisamente
seus dirigentes, porque esse movimento se nutre do descrédito lançado sobre
esse mundo e da vã esperança no além como prêmio. A pietosa crudeltà de
Fernando de Aragão, rei da Espanha, "expulsando e espoliando os marranos do seu
reino" (Il Príncipe, capítulo XXI), dá a medida exata daquilo que Maquiavel
reprova na Igreja, particularmente naqueles que a comandam: sob o pretexto de
travar uma guerra santa, pratica as piores atrocidades com o único objetivo de
alimentar a ambição política de ampliação de seu domínio.15 Essa ambição vem
encoberta por um manto de santidade. Por certo, Maquiavel não ignora que,
doutrinariamente, o cristianismo desaprova os males da guerra, o amor à
violência, a crueldade vingativa, os ódios inexpiáveis, a resistência obstinada
dos vencidos e a brutalidade dos vencedores. Contudo, e é isso que Maquiavel
não aceita, o cristianismo condena essas práticas não porque são más em si
mesmas, e sim porque revelam a vinculação, o apego apaixonado a este mundo.
Quando a crueldade é praticada sob o pretexto da salvação da alma imortal, ela
não só é justificada, como é até recomendada, acusa o florentino.
Assim, o cristianismo, ao mesmo tempo que condena, também legitima a prática de
uma "piedosa crueldade" de tal magnitude que nem os antigos foram capazes de
imaginar algo semelhante. À violência e crueldade praticadas pelos antigos por
amor à "honra e glória" mundanas, o cristianismo opõe uma violência e crueldade
santas, que matam e aterrorizam em nome da vida eterna no céu. Há um evidente
uso político da religião cristã. Diferentemente do paganismo antigo, porém, não
visa ao bem comum terreno, e sim à salvação eterna de almas imortais. Está
nisso a razão principal da reprovação de Maquiavel ao modo de agir dos
príncipes cristãos. A diferença tem um agravante: os chefes da religião pagã
estavam submetidos às exigências políticas e, no uso que faziam da religião,
tinham sempre em vista o bem comum sob pena de sofrerem pessoalmente as
punições decorrentes dos tumultos e dissensões que uma falsa interpretação da
religião poderia provocar.16 Já os chefes da Igreja cristã, recrimina
Maquiavel, vivem impunes e se aproveitam das dissensões que eles criam e
mantêm, "porque não temem um castigo que não vêem e no qual não acreditam"
(Discorsi III, 1).
Maquiavel tem uma idéia muito clara do papel desempenhado pela Igreja Católica
na Europa em geral, mas particularmente na Itália. A severa crítica que
endereça à Igreja, particularmente aos seus dirigentes mais distintos, pode ser
resumida em quatro pontos principais.
Primeiro, o comportamento do clero levou ao enfraquecimento do sentimento
religioso na Itália: "Os maus exemplos desta corte [da igreja romana] destruiu
na Itália todo sentimento de piedade e de religião, o que tem infinitos
inconvenientes e provoca muitas desordens, pois ali onde há religião se supõe
todas as virtudes, onde ela falta se deve supor todos os vícios. É, portanto, à
Igreja e aos sacerdotes que os italianos devem o fato de viver sem religião e
sem moral" (Discorsi I, 12). O agravante, nesse caso, é o fato de o
enfraquecimento da fé religiosa ter sido provocado exatamente por aqueles que
deveriam ser os primeiros a zelar por ela! Como se comportam os chefes
religiosos? Simonia, cupidez, relaxamento dos costumes, toda espécie de abusos
em proveito próprio. Francesco Guicciardini, fiel auxiliar dos papas na época,
exclama: "Ninguém mais do que eu deplora a ambição, a cupidez e a fraqueza da
gente da Igreja".17 O historiador chega a confessar que, não fosse a posição
que ocupou junto a diversos papas, teria amado Martinho Lutero unicamente para
"ver essa multidão de celerados reduzidos à condição que eles merecem, isto é,
ou purgados de seus vícios ou privados de toda a autoridade".18
Segundo, o exercício do poder temporal pelos papas provocou a divisão dos
Estados italianos. Para saciar sua sede de poder, os papas empregaram métodos
de enfraquecimento dos territórios italianos, o que favoreceu os interesses dos
estrangeiros. Para assegurar sua supremacia, não hesitaram em chamar em seu
auxílio as potências estrangeiras à Itália. No curto período da sua vida
pública, Maquiavel assistiu a duas invasões da Itália e uma da Espanha. "Este
modo de proceder [...] é o que manteve e continua mantendo desunida a Itália"
(Istorie Fiorentine I, 9), conclui o florentino.
Terceiro, a sede de poder dos papas levou à ruína moral da Igreja na Itália. No
entendimento de Maquiavel, "temos a prova mais marcante desta decadência no
fato de que os povos mais próximos da Igreja Romana, a capital da nossa
religião, são justamente os menos religiosos" (Discorsi I, 12). Maquiavel
deplora que os papas não se restrinjam à sua missão espiritual, tal como no
princípio do cristianismo: "Os sucessores de São Pedro eram reverenciados pela
santidade de suas vidas e milagres; o exemplo que deram ampliou tanto a
religião cristã que a ela os príncipes tiveram de obedecer para acabar com
tanta confusão que havia no mundo" (Istorie Fiorentine I, 9). Tivessem os papas
se limitado à sua missão espiritual, teriam evitado a ruína moral na qual a
Itália se encontra.
Quarto, a Igreja é o principal obstáculo à unificação da Itália: "Um país não
pode estar unido e feliz se todo ele não estiver submetido à obediência de uma
república ou um príncipe, como sucedeu na França e na Espanha. E a causa porque
a Itália não chegou à mesma situação, e não tenha nem uma república ou príncipe
que a governe, é unicamente da Igreja" (Discorsi I, 12). Maquiavel acusa o Papa
de ser demasiado fraco para liderar a unificação dos Estados italianos, mas, ao
mesmo tempo, suficientemente forte para impedir que outro o faça (Idem).
Maquiavel, seguindo os passos que Marsílio dera dois séculos antes, mostra que
o exercício do poder temporal pela Igreja corrompe sua missão espiritual. A
religião cumpre uma função essencial na estrutura social. É dela que provém a
coesão interna do povo e o devotamento à pátria como a um mandamento religioso.
A fé religiosa inspira o amor cívico e cultiva a virtù coletiva sem a qual
nenhum Estado sobrevive. Os chefes da Igreja, quando se imiscuem na vida do
Estado, destroem o sentido espiritual identitário que funde o povo numa nação.
O poder exercido pela autoridade religiosa, devido ao seu caráter divisionista,
leva o povo a descrer. Paradoxalmente, portanto, a luta do Estado contra a
Igreja, travada por muitos príncipes na época, era, no fundo, um modo de
defender a religião contra a Igreja. Uma Igreja secularizada perde a função que
lhe cabe no universo político maquiaveliano. Além de esvaziar o sentimento
religioso do povo, um papa sequioso de poder temporal arriscava provocar a
reação dos Estados colocando em perigo a vida das populações.
Maquiavel pensa que o cristianismo tomou aos olhos de muitos crentes o sentido
exclusivo de resignação ao sofrimento terrestre, de renúncia à luta humana e
social. Esse sentido se opõe frontalmente à virtude cívica, que deve encontrar
na religião uma fonte de inspiração para a exaltação do serviço à pátria. O que
fazer para regenerar a fé cristã? Como agir para recobrar o primitivo vigor? De
que maneira "os príncipes das repúblicas cristãs" devem se comportar para que a
religião cristã volte a ser "tal como foi constituída por seu fundador" (Idem)?
Maquiavel é do entendimento de que o caminho que a religião deve seguir é o
mesmo que o das demais instituições, como, por exemplo, os Estados. Todos os
"corpos mistos" devem ser periodicamente reconduzidos àquela condição
originária que constitui a razão de sua existência: "Para querer que uma seita
ou uma república viva longamente, é necessário retornar freqüentemente para o
seu princípio" (Discorsi III, 1), ensina Maquiavel. O que há no princípio das
instituições que possui essa força de renová-las? Maquiavel responde: "Em todos
os princípios das seitas, das repúblicas e dos reinos existe forçosamente
alguma bondade, graças à qual recobrarão sua primitiva reputação e sua
capacidade de crescimento" (Idem).
Em relação às religiões, especificamente, o bom efeito dessa prática pode ser
comprovado, segundo Maquiavel, através dos exemplos de São Francisco e São
Domingos:
Quanto às seitas, vemos quão necessário é que exista nelas essa
renovação, por exemplo, de nossa religião. Esta, se não tivesse
retornado às suas origens graças a São Francisco e São Domingos,
teria sido completamente extinta. Estes, com a pobreza e com o
exemplo da vida de Cristo, a despertaram na mente dos homens, onde já
estava esquecida. Suas novas ordens (ordini nuovi) foram tão
poderosas que, graças a elas, a desonestidade dos prelados e dos
chefes da Igreja não conseguiram arruiná-la. (...) Essa renovação,
portanto, manteve e mantém esta religião" (Discorsi III, 1).
A necessidade de retornar ao princípio é uma exigência inevitável que brota da
natureza histórica da instituição religiosa. As religiões, assim como os
Estados, estão submetidas à lei inelutável da geração e da corrupção. O
cristianismo sobreviveu ao longo dos séculos, porque soube "retornar às suas
origens" renovando as bases sobre as quais está assentado.19
Maquiavel extrai dessa origem histórica das religiões duas conseqüências que
evidenciam sua compreensão da finalidade da religião. Primeiro, que é vã a
oposição entre religião revelada (cristã) e não-revelada (pagã). Segundo, que é
absurda a idéia de uma Providência divina reguladora das coisas mundanas. A
primeira conseqüência permite-lhe sustentar a função política da religião: por
ser criação humana e não divina, a religião deve ser julgada por sua eficácia
em relação ao cumprimento de finalidades mundanas, particularmente a de
desenvolver o "amor à pátria" (Discorsi II, 2). A segunda conseqüência
possibilita-lhe evidenciar a sua tese da determinação humana (ainda que não de
modo absoluto) dos acontecimentos históricos: contra as interpretações
fatalistas, que querem atribuir as calamidades e as adversidades em geral à
fortuna ou a Deus, Maquiavel afirma o papel decisivo da virtù denunciando a fé
numa Providência reguladora como fuga, desleixo e incapacidade política.