Em defesa de Adorno: a propósito das críticas endereçadas por Giorgio Agamben à
dialética adorniana
Nichts kann unverwandelt gerettet werden, nichts, das nicht das Tor
seines Todes durchschritten håtte.1
Adorno
Adorno foi um dos primeiros a acusar a significação excepcional que possui
Auschwitz para a história da civilização ocidental, significação que aponta
para sua atualidade mais flagrante. Com lucidez e clarividência
impressionantes, compreendeu ele que Auschwitz emerge como paradigma por
excelência de nossa modernidade esclarecida, o do campo de segregação.
Ora, é precisamente esse tema, segundo o qual Auschwitz vem evidenciar de
maneira insofismável o nómos oculto da civilização ocidental, que Agamben
explicita e desenvolve na terceira parte ("O campo como paradigma biopolítico
do moderno") de seu livro Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Em vez
de se deter nos campos (quer de concentração, quer de extermínio) como o local
onde se realizou a condição inumana mais absoluta que teve lugar na face da
Terra, Agamben se pergunta antes: o que é um campo? Qual sua estrutura
jurídica-política? Por que semelhantes eventos puderam nele ocorrer? É esse
questionamento que o leva a olhar o campo não como um fato histórico e uma
anomalia atinente ao passado, mas sim "como a matriz oculta, o nómos do espaço
político em que ainda vivemos".2
É certo que, depois de Auschwitz, o campo não mais se materializa numa
circunscrição precisa, bem situada e delimitada. O campo como estado permanente
de exceção, no qual a lei é suspensa e o indivíduo, despojado de toda
humanidade, apresenta agora uma localização deslocante, em que toda forma de
vida e toda norma podem ser virtualmente capturadas: "O campo como localização
deslocante é a matriz oculta da política, que devemos aprender a reconhecer
através de todas as suas metamorfoses, desde as zones d'attente de nossos
aeroportos até a certas periferias de nossas cidades."3
Agamben, portanto, não se reporta ao campo de concentração de Auschwitz como um
acontecimento histórico e determinado restrito ao passado. Tal como para Adorno
' que certa vez escreveu que toda nossa existência deveria ser vista como campo
de concentração4 ', Auschwitz se apresenta para Agamben como paradigma de
tantos outros campos que pontuaram e continuam pontuando a história ocidental,
campos em cuja circunscrição, atualmente cada vez mais imprecisa e deslocante,
uma vida nua se põe à completa mercê de um poder biopolítico soberano. O mesmo
vale para a figura do Muzelmann. Esses habitantes espectrais dos campos de
concentração alemães da Segunda Grande Guerra, essas figuras apagadas no corpo
e na alma a flutuar entre a vida e a morte, que tão pequena atenção receberam
até hoje por parte da historiografia dos campos, constituem, para Agamben, bem
mais que uma categoria de personagens singulares de nossa lúgubre história
recente. Pois eles constituem o paradigma por excelência desta vida nua a
habitar os campos, de ontem e de hoje, em que um poder biopolítico se exerce.
Não por outra razão, Agamben se empenha por retirá-los do lugar marginal e
obscuro que ocupam em nossa história e colocá-los no centro da cena, à luz da
ribalta. Afinal, a figura do muçulmano evidencia com toda crueza a ambição
suprema e inconfessa de uma biopolítica: a completa e consumada dissociação ser
fisiológico/ser dotado de logos (ou ainda animal/homem, zoè/bios). Dissociação
que também se patenteia em outras figuras a ele assemelhadas.
Assim como os "muçulmanos", são também exemplares desta vida nua, capturada na
esfera de agenciamento e controle total de uma biopolítica, as VP
(Versuchepersonen), cobaias humanas tomadas dos campos para experimentos
científicos, os pacientes em coma terminal, cujas funções vitais se mantêm às
custas de aparelhos, qual banco de órgãos à espera do momento do transplante
para doação.5 Como casos extremos, "muçulmanos", cobaias humanas e pacientes em
coma terminal mostram-se exemplares no intuito de evidenciar o princípio
reinante na esfera biopolítica de captura de uma vida nua, esta vida matável e
insacrificável, isto é, cuja morte não configura homicídio nem tampouco
celebração de sacrifício. Princípio amiúde escamoteado, mas que se encontra
atuante, em maior ou menor grau, nos inúmeros "campos" erigidos pelo Ocidente
em nossa história mais recente, em que se confinam favelados, refugiados,
populações inteiras de excluídos, vegetando à margem do sistema de capitalismo
global, quando não submetidas a uma intervenção militar "humanitária".
A propósito da disjunção supracitada entre ser fisiológico e ser dotado de
linguagem ' tão reiterada por Agamben como desígnio último de uma biopolítica
', seria preciso contemplá-la à luz da história da metafísica ocidental tal
como concebida por Heidegger, uma história orientada pela abstração idealista
de toda materialidade viva e corpórea, cuja ambição última teria sido, desde o
princípio, a consumação do espírito como substância separada, abstraída de
todas as formas concretas de vida. Disjunção que faria figurar, de um lado, a
loquacidade sobranceira e doadora de sentido de todo espiritual; de outro, a
materialidade corpórea surda e inexpressiva, ou relegada à insignificância e à
passividade. Disjunção que ainda podemos reconhecer desdobrada na figuração, de
um lado, de um corpo político instituído ou constituído pelo ser de relação (ou
dotado do poder de relação); de outro, do indivíduo isolado como corpo
fisiológico pura e simplesmente, segregado do corpo político e destituído de
voz ativa ou expressão.
A este respeito, a consonância com as formulações que encontramos na Dialética
do esclarecimento de Adorno e Horkheimer, notadamente as relativas à denegação
de nossa natureza animal, é de fato extraordinária. Temos mesmo, por vezes, a
impressão de estarmos lendo Adorno, mais precisamente o Adorno materialista
dialético afeito a Benjamin, numa nova terminologia.
Pensemos, por exemplo, na idéia de uma "máquina antropológica ocidental", que é
como Agamben designa esta sistemática (e fatídica) operação do logos racional
de que se encontra cativa toda metafísica ocidental, operação lógica de
distinção promovida pelo conceito na apreensão da identidade que implica, ao
mesmo tempo, segregação do não-idêntico, criando cesuras e disjunções ' homem/
animal, natureza/cultura, vivente/falante, logos/voz. Operação que, assim
fazendo, produz e reproduz inevitavelmente zonas de exceção, as quais acabam
por se tornar a regra. Em duas palavras, a máquina antropológica ocidental, ao
mesmo tempo em que promove a identificação do humano, produz a segregação do
animal-inumano, num processo sistemático e reiterado que termina recaindo na
absoluta indistinção animal-humano, patente como nunca dantes no cenário de
Auschwitz.6 Ora, tal formulação não lembra deveras o Umschlag dialético do
esclarecimento que recai no mítico, a humanidade na animalidade, a cultura na
barbárie? De fato, reencontramos desenvolvida em Agamben, certo que com outra
terminologia, mais poética e menos dialética, a emblemática sentença da
Dialética do esclarecimento, "o mito já é esclarecimento e a modernidade
esclarecida recai no mítico". Assim, quando lemos que "toda Lichtung é desde o
princípio uma Nichtung",7 são os ecos daquela sentença que reverberam nas
palavras de Agamben.
Pois, tal como enunciado na Dialética do esclarecimento, a afirmação da
identidade humana funda-se no princípio de simultânea apreensão (da essência
humana) e exclusão (da natureza animal). Na exata medida em que opera mediante
um processo sistemático de capturas e segregações que como tais não se tomam
(posto que se põem como apreensão da essência, esclarecimento da identidade
mais própria), tal "máquina antropológica" termina por não reconhecer que toda
identificação por ela promovida configura uma simultânea aniquilação do que se
viu excluído em nome da identidade imposta. Conseqüentemente, a clara distinção
por ela definida está sempre a abrir zonas de exceção, as quais acabam por
recair na total indistinção homem-animal.
Imagem e dialética
Ora, bem me parece que podemos ler boa parte dos ensaios de Agamben como um
exercício de construção de imagens dialéticas, de inspiração assumidamente
benjaminiana, que busca acompanhar, ao longo da história de nossa civilização,
tal fatídico proceder da "máquina antropológica ocidental", a qual, obcecada
pela clareza do logos, mergulha a humanidade nas trevas da mais rematada falta
de distinção. Pois o que as imagens dialéticas assim configuradas intentam
captar é algo que não é nem humano nem animal, algo que figura numa zona de
indistinção a cada nova distinção do humano promovida, em diferentes momentos
da história da cultura, pela operação de sua "máquina antropológica". Tais
imagens buscam, pois, dar a ver este algo para o qual não temos nome e que não
somos capazes de definir claramente, posto que se põe entre homem e animal,
numa zona de indistinção. Claro está que este algo encontra sua imagem
paradigmática e exemplar na figura do muçulmano. Isto é, nesta figura que se
apresenta, com efeito, como morto-vivo, como um ser cuja vida não é
verdadeiramente vida, ou como um ser cuja morte não pode ser declarada morte.
Nesta figura, enfim, em que se consuma a inscrição na vida de uma zona morta e,
na morte, de uma zona viva.8
As imagens dialéticas configurar-se-iam, destarte, a partir de um procedimento
não lógico (isto é, não na forma de distinções dicotômicas próprias de
identificações classificatórias), mas sim analógico, bem expresso através de
figuras bipolares e tensionais da forma nem A, nem B (entendamos: nem homem,
nem animal; nem morto, nem vivo, etc.), em que os termos opostos, compreendidos
como dois pólos de uma mesma tensão dialética, perdem sua identidade própria.9
Consumada nessa oscilação insolúvel entre termos opostos, a imagem dialética
desenharia, necessariamente, uma figura de ambigüidade, correlata a uma
suspensão de sentido, suspensão esta posta no horizonte de uma futura doação de
sentido. Tais imagens dialéticas são ainda descritas por Agamben como "imagens
móveis de um ser de passagem", destarte capazes de captar a ambivalência
latente entre os dois pólos do humano, quais sejam, ser vivente e ser dotado de
linguagem.
Encontra-se latente aqui um momento utópico-messiânico, notemos, prefigurado
por este gesto de tornar inoperante a máquina antropológica, deixando sem
efeito as categorias dicotômicas por ela sistematicamente rearticuladas como
resultado de uma dinâmica de poder. No momento em que suas categorias viessem a
perder sua razão de ser, a relação homem-natureza deixaria de ser marcada pela
dominação do natural pelo humano ' ou melhor, deixaria de ser marcada pela
dominação pura e simplesmente, uma vez que as categorias do humano e do animal
mergulham hodiernamente na mais absoluta indistinção. Então, homem e animal
viriam a figurar numa relação ociosa, cujo paradigma seria o do deleite
conseqüente à consumação do prazer.10
Isso tendo sido dito como apresentação da ensaística agambeniana e de sua
relação com a dialética do esclarecimento ocidental, gostaria de me reportar a
uma das recriminações que Agamben endereça à dialética adorniana (mais adiante
tratarei de uma segunda recriminação com esta relacionada). Segundo essa
recriminação, a filosofia adorniana não teria admitido aquela ambigüidade
essencial às imagens dialéticas benjaminianas, ou não teria suportado a
ambigüidade perturbadora de tais imagens dialéticas, em função de um pendor
idealista que ela não pôde deixar de acalentar. No fundo, ela teria sido
incapaz de se libertar da noção hegeliana de dialética. Escreve Agamben:
O que Adorno parece não compreender, ao tentar em última análise
remeter a dialética a sua matriz hegeliana, é que o essencial, para
Benjamin, não é o movimento que conduz a Aufhebung da contradição
através da mediação, mas o momento de suspensão, no qual o próprio
termo de mediação vem a ser exposto como zona de indiferença entre
dois termos opostos, zona como tal necessariamente ambígua.11
Para uma boa compreensão desse posicionamento de Agamben francamente favorável
às imagens dialéticas benjaminianas, tal como ele as entende, ao mesmo tempo em
que contrário à dialética adorniana, não podemos deixar de recorrer a um ensaio
de sua autoria consagrado justamente ao problema do método em Adorno e
Benjamin. Trata-se do ensaio "Le prince et le crapaud: le problème de la
méthode chez Adorno et Benjamin", que integra a coletânea Enfance et
histoire.12 A partir de um trabalho de leitura e interpretação da já célebre
troca de correspondências ocorrida entre os amigos na segunda metade da década
de 1930, na qual aflora a referida desavença metodológica, Agamben acusa a
impostura teórica, como se lhe afigura, em que incorre Adorno na defesa das
categorias hegeliano-marxistas de mediação e totalidade.
Retomando a recriminação que Adorno dirige então contra Benjamin, segundo a
qual sua "dialética", carente da devida "mediação pelo processo global",
situar-se-ia na encruzilhada enfeitiçada de magia e positivismo, Agamben
observa, com boa dose de perspicácia, que o espectro que tanto atormenta Adorno
nestas formulações ' a admissão tácita de uma relação de fato causal por falta
de mediação dialética ' ronda antes sua própria concepção de dialética, daí a
necessidade encarniçada que demonstra de exorcizá-lo. Assim é que a alardeada
"mediação dialética pelo processo global" tão reclamada por Adorno talvez não
faça mais que salvar as aparências de um determinismo (no fundo causal)
pressuposto, mas não assumido, na sua própria concepção dialética da relação
entre a superestrutura cultural (domínio da produção espiritual) e a estrutura
econômica (domínio da reprodução material).
Com efeito, a acusação de um determinismo implícito só faria sentido para uma
dialética que, à semelhança da hegeliana, continuasse a operar com as
distinções metafísicas correlatas à distinção material/espiritual, tal como a
disjunção entre estrutura econômica e superestrutura cultural. Ora, para
Agamben, este seria o caso da dialética adorniana, incapaz de se libertar do
pendor idealista da dialética hegeliana, mas não seria seguramente o caso das
imagens dialéticas benjaminianas que, à semelhança do que ocorre na reflexão de
Marx, almejam apreender a interpenetração do material e do espiritual tal qual
consumada na práxis:
O farisaísmo que implica a separação entre estrutura econômica e
superestrutura cultural permanece intacto se se faz do processo
econômico a causa determinante que a mediação se encarrega depois de
recobrir pudicamente [e pacientemente, poderíamos acrescentar,
lembrando a paciência hegeliana do conceito] mediante seu véu
dialético. O único materialismo verdadeiro é aquele que suprime
radicalmente esta separação, sem jamais considerar a realidade
histórica como a soma de uma estrutura e de uma superestrutura, mas
como unicidade imediata dos dois termos na práxis.13
É esta indistinção consumada na práxis entre os domínios espiritual e material
que, segundo Agamben, as imagens dialéticas benjaminianas almejariam contemplar
na configuração de suas constelações, à diferença das concepções dialéticas de
matriz hegeliana, cujo idealismo enrustido ainda carregaria o ônus das
distinções metafísicas da ordem do material/espiritual (homem/animal, ser vivo/
ser dotado de linguagem, vida biológica (zoè)/"forma de vida" (bios), estrutura
econômica/superestrutura, etc.).
Ora, tal recriminação dirigida à filosofia adorniana porta, a meu ver, uma
tremenda dose de injustiça, posto que desabona, duma só penada, toda crítica
acerba e pertinaz que o próprio Adorno endereça a Hegel no esforço de
elaboração de sua dialética negativa.14 Seja como for, se é certo que Adorno e
Agamben compartilham, em linhas gerais, a caracterização da fatídica
reviravolta dialética do esclarecimento como consumação dos desígnios últimos
da metafísica ocidental, o mesmo talvez não se possa dizer da reflexão
filosófica (ainda dialética?) elaborada por cada um deles com o expresso
propósito de se libertar daquela fatídica dialética, ou ao menos de não
compactuar com ela, rompendo o feitiço de que se encontra cativa.
Agamben, quanto a ele, concede ao momento imagético da linguagem um privilégio
ímpar na expressão do horror inconcebível estampado na face da civilização
ocidental por Auschwitz, tomado como paradigma exemplar de tantos outros campos
a ele assemelhados persistentes em nossa história. Privilégio outorgado à
expressão artístico-poética pela virtude de dar voz à surda mutilação que
sustenta a abstrata uniformidade do mundo tecnocrático hodierno. No limite,
privilégio concedido à imagem artística pela capacidade de fazer ressaltar, nos
traços de normalidade do existente, a caricatura grotesca de Auschwitz, do
mesmo modo que a literatura de Kafka, para citar um exemplo, foi capaz de
prefigurar de forma assombrosa a realidade dos campos de concentração.
Privilégio este correlato, evidentemente, a uma desconfiança bem nietzschiana
perante todo silogismo da razão, toda cabriola dialética, sobretudo em vista da
realidade do campo, que volta a emergir com violência assustadora em nossos
dias aqui e ali. Compreendemos, nesses termos, o procedimento de que amiúde se
serve Agamben e que consiste em recorrer a um caso extremo, ou limite, como
imagem exemplar de um processo sistematicamente escamoteado na normalidade da
existência. A imagem do caso singular e excepcional busca iluminar o que via de
regra se oculta na normalidade da existência, sobretudo quando, como ocorre em
nossos dias, o caso excepcional tende a tornar-se a regra, confundindo-se com
ela num permanente estado de exceção.15
De maneira notável, assim, a escritura de Agamben realiza a confluência do
momento conceitual com o momento imagético-expressivo. Seus ensaios florescem,
com efeito, naquela região de limiar em que o texto filosófico não mais se sabe
distinguir da obra artístico-literária; é nesta região intervalar que medram e
desabrocham. Ora, não recriminaria Adorno, na ensaística de Agamben, esta
dissolução, que nela se leva a termo, das fronteiras que delimitam os âmbitos
de competência do conhecimento racional e da expressão artística? Não
argumentaria ele que seus ensaios "filosóficos" teriam se rendido ao momento
retórico da linguagem, em detrimento do momento de elaboração conceitual?
Sim, porque, para Adorno, o domínio da filosofia não se equipara ao âmbito
estético, nem tampouco com ele se confunde. Com efeito, muito embora em seus
primeiros escritos, que denotam forte influência de Benjamin, Adorno tenha
advogado uma imbricação de elementos artístico-filosóficos (assim, por exemplo,
na noção de imagem dialética formulada em sua tese sobre Kierkegaard), sua obra
posterior termina decididamente por recusar tal ambigüidade mantida por
Benjamin, delimitando dois âmbitos distintos de competência: de um lado, o da
dialética conceitual, de outro, o da imagem estética ' sem que a afirmação de
tal disjunção, é bom que se diga, tenha revogado a mútua e fecunda participação
do conceitual no mimético, que continua sendo sumamente apreciada por Adorno.
Desse modo, a reapreciação do elemento retórico e sensual do conceito, de um
lado, bem como do distanciamento reflexivo atuante na mimese artística, de
outro, são exigências que não devem redundar, para Adorno, na dissolução dos
limites próprios de cada esfera de competência.16
Compreendemos destarte que se a atenção micrológica advogada pela dialética
adorniana a tudo que se mostra insignificante e inexpressivo aos olhos do
conceito se faz, é certo, em favor do momento mimético, ela não se faz, em
contrapartida, em detrimento da elaboração conceitual. A teoria capaz de fazer
justiça ao mais ínfimo e desprezível não é, certamente, uma teoria propensa a
abrir mão de si mesma, ante a matéria sensível, em nome da apreensão mimética
ou imagética pura e simples; muito menos uma teoria feita de declamações de
boas intenções e sentimentos para com o desprezado pelo conceito. Não se perfaz
sem trabalho do conceito, sem esforço conceitual, uma teoria capaz de
corresponder ao apelo exercido pela matéria sensível e corpórea, e, assim,
reconhecer como significativo o que foi desprezado como insignificante pelo
próprio conceito. Pois é somente uma conversão do olhar teórico ' não sua
renúncia ' que pode tornar relevante o que até então aparentava ser desprezível
e insignificante. Eis a crítica adorniana que, segundo creio, acerta em cheio a
postura de Agamben. Condena-se à impotência uma teoria que renuncia a si mesma
em prol da imagem mimética, almejando, na melhor das intenções, acolher o
momento de prazer e dor tornado inexpressivo pela apropriação conceitual.
Somente no seio de uma nova configuração ou constelação teórica, aquilo que era
relegado como inexpressivo e irrelevante pode vir a ganhar uma significação até
então insuspeita, tornando-se então digno de atenção e interpretação.17
Não obstante a pertinência dessa argumentação, seria preciso ainda se perguntar
se tal reorientação do olhar teórico não deve seu impulso germinal precisamente
à reapreciação da relevância da componente mimética ' e isto em favor de uma
leitura da Dialética negativa atenta à primazia que ela não deixa efetivamente
de conceder à componente mimética, e que corresponde exemplarmente à invocação
de Agamben por uma dialética "liberada de toda abstração". O apelo exercido
pelo micrológico, a atenção concedida ao momento somático de prazer e dor, não
se encontra efetivamente na raiz da exigência por uma nova e redentora
constelação conceitual capaz de lhe fazer justiça? Uma indagação como essa, que
faz inverter os termos da questão deixando-a em suspenso, é bem própria da
dialética negativa adorniana.
A esse respeito, a ambigüidade é de fato notável, e não procura ser dirimida em
momento algum por Adorno ' o que parece escapar inteiramente a Agamben. Uma
leitura atenta do último aforismo de Minima Moralia seria para tanto
proveitosa. A filosofia só faz jus a um ponto de vista redentor, lemos ali, na
medida em que se abre à perspectiva das próprias coisas em sua indigência
imanente (e não quando apela para o transcendente); na medida em que logra
"produzir perspectivas nas quais o mundo venha a se mostrar em suas alienações,
em suas feridas e em suas fraturas, tal como um dia, indigente e deformado,
aparecerá à luz messiânica".18 Destarte, essas perspectivas efetivamente
redentoras não derivam da reelaboração teórica pura e simples executada como
que a partir de si mesma, mas sim do contato mais vivo com os objetos. Do
contato resultante ' porque não dizer? ' de um abandono mimético, de uma
entrega sensível aos objetos, subtraído da violência exercida pelo conceito.
Não é exclusivamente de si mesma que a dialética extrai sua força redentora de
iluminação (donde vemos desde já que Agamben se equivoca redondamente quando
critica a dialética adorniana por recair em mera contemplação teórico-estética
da redenção), mas do contato com as próprias coisas: sua luz promana
concomitantemente dos objetos, cujo anseio pela redenção ela contempla. Numa
formulação algo retórica, que procurasse dar conta dessa ambigüidade insolúvel,
poderíamos dizer que tal constelação teórica esclarece por amor das próprias
coisas mortificadas, cujo brilho não de todo extinto ela logra captar.
Penso que seja o bastante para fazer ver a extrema e crucial relevância que
possui o momento materialista para a dialética negativa adorniana, e, por
conseguinte, o quão injusta se afigura a recriminação formulada por Agamben,
que nela acusa um renitente e comprometedor pendor idealista. Passemos, então,
para a segunda recriminação que Agamben dirige a Adorno.
Esteticismo e messianismo
A certa altura de seu comentário sobre a Epístola de S. Paulo aos Romanos, Le
temps qui reste, Agamben endereça à filosofia de Adorno uma crítica de outra
ordem ' muito embora, como veremos, relacionada com a anterior. Segundo essa
crítica, a dialética adorniana teria recaído numa estetização do messianismo.
Retomemo-la em rápidas pinceladas, no intuito de evidenciar seu fulcro, qual
seja, a perda de identidade a que se inclina o sujeito verdadeiramente
messiânico.
Escreve ali Agamben: "Apesar das aparências, a dialética negativa é um
pensamento que não é de forma alguma messiânico, e que se encontra mais próximo
da tonalidade afetiva de um Jean Améry que de Benjamin."19 A tonalidade afetiva
a que se refere Agamben nesta passagem não é outra senão a do ressentimento,
aquela para a qual tudo o que aconteceu, conquanto contingente, assume o
caráter de algo irreparável. Claro está que este "tudo o que aconteceu" alude
muito particularmente aqui à eclosão da Segunda Grande Guerra (carregando em
suas entranhas o horror inominável da Shoah) em lugar da acalentada emancipação
da humanidade para a qual a filosofia adorniana, assim como toda filosofia
materialista de filiação marxista, acreditava contribuir decidida e ativamente
com sua reflexão sobre a práxis revolucionária.
A filosofia teria estado então prestes a se realizar, mas o momento de sua
realização se perdeu, e definitivamente. Agamben corrobora tal apreciação
lembrando a famosa sentença do início da Dialética negativa: "A filosofia
sobrevive porque falhou o momento de sua realização." Contingente e irreparável
ao mesmo tempo, o acontecimento histórico fatídico teria marcado de forma
indelével a filosofia adorniana, colocando-a sob o signo da impotência. A
emancipação da humanidade, antes considerada uma possibilidade concreta
inscrita na história, passa a ser vista como aparência nunca realizável. Nesse
sentido, seria sintomática a frase final do último aforismo de Minima Moralia,
de que se serve Agamben para corroborar sua tese, segundo a qual: "a própria
questão sobre a realidade ou a irrealidade da redenção se torna praticamente
indiferente".20 Desde então, Adorno teria procedido a uma estetização do
messianismo sob a forma do comme si. O que quer dizer que à sua filosofia (ou à
filosofia em geral) teria restado apenas contemplar eternamente as coisas tais
como elas se apresentariam do ponto de vista da redenção. "É o fato de ter
perdido o momento de sua própria realização que obriga a filosofia a contemplar
ad infinitum a aparência de redenção. A beleza estética é, por assim dizer, o
castigo que a filosofia deve sofrer por ter faltado com sua realização."21
Para que fizesse justiça a um autêntico messianismo, teria faltado à filosofia
adorniana um gesto capaz de quebrar o sortilégio que a condena a tão-só
contemplar, impotente, o mundo sob a luz de uma redenção sempre aparente. Mas
que gesto de potência seria este? Nenhum outro senão aquele gesto paradoxal
evocado pela famosa sentença pauliniana que Agamben toma por divisa: o gesto de
potência que se consuma na impotência, ou no assentimento da impotência. E
aqui, sim, nos acercamos do ponto nevrálgico desta crítica dirigida a Adorno
por Agamben. Afinal, a renúncia à realidade da redenção não se deve
propriamente à estetização do messianismo, visto que a estetização, ela
própria, se deve a uma falta anterior, característica de um temperamento
propenso ao ressentimento, que Agamben acusa expressamente quando afirma que
Adorno não abre mão das pretensões identitárias e das prerrogativas do sujeito.
É com este sujeito aferrado a si mesmo e a suas representações que o
messianismo pauliniano intenta ajustar contas por meio de seu comme non. A
vocação messiânica, enfatiza Agamben, solapa e anula antes de tudo o sujeito:
"A vinda do messias significa que todas as coisas ' e, com elas, o sujeito que
as contempla ' são capturadas no comme non, evocadas e revogadas no mesmo
movimento."22
O sujeito autenticamente messiânico não pode pretender contemplar o mundo à luz
da redenção apegado a suas representações, entre as quais se incluem,
certamente, aquelas produzidas por uma dialética idealista como a de Hegel, de
que Adorno, segundo Agamben, não teria conseguido se libertar completamente.
Não, o sujeito autenticamente messiânico só contempla o mundo redimido na
medida em que ele próprio se perde no que pode ser redimido: "o sujeito que
pretende salvaguardar-se e manter-se infinitamente a salvo na aparência da
redenção perde a partida quando contempla a própria ruína".23 O gesto
genuinamente messiânico deve, assim, atender a um impulso de dessubjetivação,
de perda de si mesmo em nome do outro, ou de tantos outros, oprimidos e
sacrificados pela marcha da história. Esse gesto só se perfaz, portanto,
mediante a derrocada da subjetividade pretensamente autárquica e soberana,
derrocada solidária a toda massa de criaturas injustiçadas na história, e não
(como alfineta Agamben) por meio da construção de um discurso engenhoso e bem
pensado (como o da dialética adorniana!) capaz de estimar e registrar a
perda.24
A dialética adorniana, em suma, não faria jus a uma vocação verdadeiramente
redentora, segundo Agamben, por não consentir com esse movimento de
dessubjetivação ' movimento que deve presidir não só o gesto verdadeiramente
messiânico, mas também, seja dito de passagem, a concessão de voz ao outro,
própria do autêntico testemunho, como noção inaugural de uma nova ética.
Em vista deste breve apanhado da crítica agambeniana à estetização do
messianismo, caberia desde logo indagar até que ponto a desavença aqui
existente entre Adorno e Agamben-Benjamin não se prenderia a esta confiança,
que Adorno julgaria certamente demasiada, depositada na perda de identidade e
de autonomia do sujeito hodierno ' a qual, aliás, o próprio processo histórico
leva a termo, em conformidade com aquela dialética mencionada anteriormente.
Caso em que a crítica seria recíproca. De sua parte, Adorno recriminaria o
gesto agambeniano afeito à dessubjetivação, ou à derrocada das pretensões
identitárias do sujeito, como um gesto de abandono às potências míticas, uma
vez que no seu cumprimento o sujeito abriria mão definitivamente do
distanciamento crítico-reflexivo (tão prezado por Adorno) somente graças ao
qual lograria ele cobrar consciência da falsa identidade assumida na totalidade
social, visando à realização de uma autêntica figura de identidade que
superaria a alienação vigente.
Nisso nos faria crer, com efeito, uma leitura simplista da obra adorniana.
Porém, uma leitura rigorosa e atenta, especialmente de sua obra tardia, revela-
nos que é bem mais elaborado do que se costuma supor o tratamento dispensado a
essa questão. Como procuraremos mostrar a seguir, a exposição de Adorno a esse
respeito, se não avaliza inteiramente a posição defendida por Agamben, mostra-
se surpreendentemente avizinhada a ela.
O sujeito crítico reclamado por Adorno não deixa de ser o indivíduo, é certo,
mas não o indivíduo no sentido tradicional, isto é, o indivíduo burguês nascido
como garante das práticas de mercado, cuja "autonomia" tão-só reproduz os
requisitos do liberalismo econômico ' e cuja capacidade de livre
autodeterminação já não passa, em nossos dias, de ficção extrema e desesperada.
É nesse sentido que o sujeito crítico adorniano cumpre um papel distinto
daquele desempenhado pelo sujeito transcendental kantiano, e também pelo
empírico. Pois a doutrina de Kant (e também, num certo sentido, a de Freud)
sustentou o pressuposto teórico de identidade e autonomia do indivíduo
comprometido com a práxis social capitalista. Para Adorno, em contrapartida, o
sujeito efetivamente crítico é aquele ' e só aquele ' que se mostra capaz de
renunciar a esta autonomia de cunho marcadamente liberal. Ele é,
fundamentalmente, indivíduo capaz de se abrir à experiência que se encontra
interditada na totalidade social dominada pela frialdade burguesa. Seu
diferencial seria, portanto, a capacidade de padecer perante a exterioridade
empírica da sociedade, de fazer a experiência doída de sua insignificância:
esta é "a pedra de toque, o motor da mediação necessária para romper o feitiço
da identidade".25
Paradoxalmente, assim, é só através da renúncia ao imperativo concorrencial e à
exigência de identidade e autonomiaque o existente lhe impinge, ou da renúncia
ao ferrenho imperativo de autoconservação (mediante o acolhimento de sua
própria morte, num gesto de antecipação da morte que o mercado lhe destina),26
que, em Adorno, o indivíduo, enquanto sujeito de reflexão crítica, lograria
deixar de ser mero reflexo das práticas de mercado, retomando a consciência do
processo histórico de modo a intervir na práxis ' e reconquistando destarte uma
verdadeira autonomia, poderíamos acrescentar.
Mas por onde apanhar esta existência individual tornada espectral,
fantasmagoria abstrata aferrada em si mesma, como algo de mítico? Questão cuja
resposta poderia talvez formular sumariamente nos seguintes termos: tal
experiência só se mostra acessível, para Adorno, no único vestígio de
individualidade ainda remanescente, vale dizer, na experiência do sofrimento e
da finitude, que abre caminho para a expressão. Ao contrário de sustentar uma
pretensa identidade e aferrar-se a uma ilusória autonomia, o sujeito crítico
reclamado por Adorno é o que logra acolher sua diferença e heteronomia, o que
significa, ser capaz de ser afetado pelos objetos fazendo a experiência de sua
morte.27 Desse modo, numa passagem notável da Dialética negativa, Adorno
assevera ser a aceitação da finitude a condição necessária para libertação de
uma existência empedernida, cegamente aferrada na autoconservação, assim como
para redenção de um espírito cativo do sortilégio de ser eterno: "Nada que não
se transmute pode ser salvo, nada que não tenha atravessado a porta de sua
morte. ( ) O gesto de esperança consiste em não reter nada daquilo que o
sujeito intenta tomar como ponto de apoio, nada daquilo que lhe promete sua
duração."28
Conclusão
Esta brevíssima reapreciação do pensamento adorniano concernente às pretensões
identitárias do sujeito hodierno faz soar em falso, segundo penso, a acusação
de "estetização do messianismo" a ela endereçada por Agamben. Mais ainda, a mim
me parece que, em certo sentido, a filosofia adorniana leva mais a sério o
anseio pela redenção e mostra-se mesmo mais prenhe de esperanças que o
messianismo advogado por Agamben. Isto porque o pensamento de Adorno continua
fiando-se no poder esclarecedor do logos ocidental, ou melhor, no poder do
conceito de, apesar do conceito, voltar-se sobre si mesmo no intuito de
reconhecer o elemento não conceitual a ele subjacente, acolhendo o momento
corpóreo ou somático por ele mesmo renegado em vista da reconciliação. Assim
como continua confiando, apesar de tudo, na capacidade de reflexão e
distanciamento crítico do sujeito que, como escreve ele, empreende a penosa
passagem pela porta de sua morte, isto é, do sujeito que se abre para a
dolorosa experiência da cabal heteronomia a que se vê submetido na totalidade
administrada.
Quanto a Agamben, não apostaria ele no processo em curso de liquidação do
indivíduo autônomo, assim como da racionalidade subjetiva que lhe é solidária,
cegamente convencido de que tal derrocada prenuncie necessariamente sua
redenção? Não estaria ele, com efeito, imbuído da crença messiânica no advento
de uma outra humanidade, a se cumprir no dia em que tiver lugar uma espécie de
depuração do logos racional ou discursivo, que seria igualmente sua consumação,
com a qual a humanidade ver-se-ia enfim libertada de um logos centrado no
sujeito e da inarredável ilusão de verdade que ele encerra? Ou, com outras
palavras, não confiaria ele que a redenção tenha lugar no dia em que tanto o
sujeito como o logos nele centrado se consumem renegando-se a si mesmos? Dia
este de juízo final, em que o poder da linguagem viria a se voltar contra a
própria linguagem, fazendo com que o juízo não mais se realize no domínio do
logos ou da linguagem, mas sim sobre a linguagem ' linguagem sendo aqui
entendida como logos discursivo e também racional, indistintamente. Lemos no
ensaio "Idéia do Juízo Final":
O juízo final não é um juízo na linguagem, que como tal jamais poderá
ser verdadeiramente decisivo ( ). Ele é antes um juízo sobre a
linguagem, que na linguagem elimina a linguagem da linguagem. O poder
da linguagem deve ser voltado contra a linguagem. O olho deve mirar
seu ponto cego. A prisão deve encerrar a si mesma. É o único meio
pelo qual os prisioneiros poderão se libertar.29
O fato de Agamben, no que designa por "logos ocidental", confundir as figuras
da razão e da linguagem contribui decisivamente, a meu ver, para esta recaída
num messianismo negativo. Pois, em virtude desta falta de distinção, ele se
encontra impossibilitado de pensar uma outra figura de razão capaz de voltar-se
sobre si mesma de outra forma que não a da negação redentora. Como é o caso da
proposta adorniana de reapreciação e incorporação do elemento retórico-
discursivo, em atenção ao apelo do momento mimético-corpóreo (de prazer e de
dor) por parte do logos conceitual, tal qual elaborada na Dialética negativa.
Em sua Dialética negativa, com efeito, Adorno advoga uma noção de dialética
atenta à negatividade da sensibilidade segregada no entendimento, vale dizer,
atenta à renitência do desejo encadeado no pensamento, assim como à ânsia
imorredoura de redenção que habita o que já não tem esperança. A Dialética
negativa se avizinha, assim, de uma teoria estética justamente porque se
encontra imbuída da esperança, latente no mundo, de que a frialdade reinante
possa ceder, despertando a simpatia pelo que sofre.
Como já observamos, o mais relevante para a emancipação do cerrado contexto de
ofuscação seria, segundo esta dialética, conseguir captar os vestígios mais
desprezíveis deixados no existente, vestígios cada vez mais relegados ao
esquecimento pelo progresso do pensamento identificador. Pois não é senão a
partir da matéria e das categorias da própria imanência que se poderia vir a
expressar o que a transcende. Se ainda se pode falar que a metafísica sobrevive
é no instante de sua queda, e não no salto para o absolutamente outro. Assim, o
autêntico anseio de transcendência da situação atual é algo que se efetiva no
contato mais íntimo com o objeto ' por isso mesmo incompatível com o apelo de
uma transcendência sacrossanta ', quando se deixa guiar pelo impulso expressivo
do sujeito. Daí afirmar Adorno que a condição de verdade do pensar filosófico
reside na atenção concedida ao momento somático de prazer e dor, ou melhor, na
sua capacidade de abandonar-se à eloqüência da dor.
Por-se-iam os ensaios de Agamben à altura de uma concepção tão visceral do
pensar filosófico? Não será verdade que, neles, o pensamento, definido pelo
próprio Agamben como impulso de apreensão do sofrimento da voz na linguagem,30
se encontre cativo do encanto da linguagem, ou do momento imagético da
linguagem? Não escapa a Agamben que a dialética adorniana se avizinha de uma
teoria estética não porque, teoria distanciada do mundo, só lhe reste a eterna
contemplação de uma imagem transcendente de redenção, mas sim porque, teoria
entranhada no mundo, intente, ao contrário, contemplar o anseio imorredouro
pela redenção que habita o imanente, sensível e corpóreo?
Se, conforme lemos no último aforismo de Minima Moralia, mencionado por
Agamben, a questão da realidade ou irrealidade da redenção se apresenta como
questão secundária para a dialética adorniana, é porque a questão primeira e
fundamental diz respeito à filosofia, e não à teologia, isto é, diz respeito à
exigência extrema e mesmo dilacerante imposta à razão para superar a si mesma
através de si mesma, entendamos, sem apelar para uma dimensão teológica
redentora, asseguradora da redenção. Com outras palavras, a questão de saber se
a redenção é acontecimento efetivamente inscrito na existência concreta (neste
sentido real) ou, ao contrário, mera imagem desta pobre existência concreta sem
remissão (neste sentido aparente), esta questão da realidade efetiva ou não da
redenção, dizia, torna-se irrelevante não em si mesma, mas em face do caráter
desesperado que assume o esforço da razão para transcender a si mesma sem
recorrer ao tranqüilizante e consolador transcendente teológico. Em vista
disso, a recriminação feita a Adorno por Agamben bem poderia voltar-se contra
ele mesmo. Afinal, é a redenção na qual se crê como realidade efetiva,
assegurada de antemão pelo curso da história, que Adorno ajuíza ser uma
aparência tão ilusória quanto reconfortante.