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BrBRHUHu0100-512X2008000200004

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National varietyBr
Year2008
SourceScielo

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O nomos e a lei: considerações sobre o realismo político em Carl Schmitt

"The political philosophy of the modern age (...) founders on the perplexity that the modern rationalism is unreal and modern realism is irrational" Hannah Arendt A associação entre as idéias de Carl Schmitt e a tradição do realismo político constitui uma espécie de lugar-comum mais ou menos estabelecido na interpretação do seu pensamento. As razões dessa identificação saltam à vista.

A sua ênfase nas situações de exceção, a sua repetida afirmação da insuficiência de um ponto de vista puramente normativo, a sua insistência na luta e no conflito como dados incontornáveis de uma abordagem concreta da política e do direito estão em plena sintonia com alguns dos principais eixos da ótica realista2. Assim, na alternativa entre ser e dever-ser, entre real e ideal, Carl Schmitt privilegiaria a particularidade dos antagonismos políticos e das relações de poder e de força em oposição à crença na possibilidade de conter a vida pública dentro de princípios racionais e universais.

Uma perspectiva similar pode ser encontrada nos textos em que ele se volta para a análise do direito e da política internacionais. nos anos da República de Weimar - ou seja, em um período anterior à sua maior dedicação às temáticas internacionais3 -, Schmitt recusava a possibilidade de pensar as relações políticas externas a partir de uma ótica universalista e humanitária. A compreensão do político baseada na distinção entre amigo e inimigo que ele propõe no livro Der Begriff des Politischen (O conceito do político) tem como desdobramento uma imagem do mundo como um pluriversum de unidades políticas que se definem de forma recíproca umas em relação às outras4. Nesse contexto, a guerra seria "o pressuposto sempre presente como possibilidade real" (BP, 34- 35) da existência política e seria viável pensar as relações internacionais em termos de categorias universais num mundo inteiramente despolitizado, no qual a própria noção de relações internacionais talvez não fizesse mais qualquer sentido. Por isso, Schmitt se volta contra o fundo humanitário sobre o qual se constituiria a idéia de uma "sociedade das nações" e afirma que "a humanidade não é um conceito político" (BP, 55), que, em um sentido preciso, a noção exclui a idéia de inimizade e a possibilidade da guerra.

Com algumas diferenças de foco e alguns importantes deslocamentos teóricos, a mesma ênfase na guerra como possibilidade real das relações entre unidades políticas se mantém nos textos de Schmitt especificamente voltados para a análise histórica e conceitual do direito e da política internacionais. Como ele observa no seu livro mais importante sobre o assunto, Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum (O Nomos da Terra no direito internacional do Jus Publicum Europaeum), de 1950, é inadmissível designar de maneira indiferenciada todo recurso à violência na forma da guerra como anarquia e considerar esta designação como a última palavra sobre a questão internacional da guerra. Uma circunscrição [Einhegung] da guerra e não a sua abolição foi até hoje o autêntico êxito do direito, foi até hoje a única realização do direito internacional. (NE, 159)5 Dessa forma, toda a análise de Carl Schmitt sobre as relações internacionais irá se pautar pela desconfiança em face de uma compreensão do direito que acredite ser possível a convivência entre os povos baseada em um consenso de natureza universal. Para ele, qualquer tentativa de pensar a paz tem que levar em conta a possibilidade da guerra. Esta última não seria uma perturbação ilegítima da ordem moral que deveria reger as relações internacionais, mas um traço da vida política cuja permanência tornaria patente a irredutibilidade do político a todo tipo de delimitação normativa. Sendo assim, um dos traços distintivos da abordagem de Carl Schmitt das relações internacionais residiria na sua insistência em considerar o direito a partir da possibilidade da guerra e a recusa do ponto de vista inverso, a análise da guerra a partir da possibilidade do direito.

Considerada à luz de algumas das polaridades que marcam a tradição do realismo político, a reflexão de Carl Schmitt parece se posicionar decididamente do lado de uma imagem do real concebida em termos da irredutibilidade das situações de exceção, da concretude das relações de força, da inevitabilidade do conflito, da possibilidade da guerra, da contingência do acontecer histórico e, ao mesmo tempo, em oposição à crença na universalidade da norma, na racionalidade abstrata do direito, na viabilidade de um consenso inclusivo, na superioridade moral da paz, na natureza incondicional dos princípios éticos. Não pretendo negar o papel que essas oposições desempenham no pensamento de Carl Schmitt.

Qualquer leitor atento dos seus textos não terá dificuldade em reconhecer a sua importância na elaboração do quadro que ele nos propõe da vida política, quer no âmbito interno, quer no externo. Mesmo assim, creio que, formulado nesses termos, o problema se mantém em um plano demasiadamente genérico e merece ser melhor qualificado. Para tanto, vou explorar alguns temas da narrativa que Schmitt constrói sobre a história do direito internacional na época moderna e, em particular, sobre a formação jus publicum Europaeum no livro O Nomos da Terra. O breve panorama que irei apresentar do livro é, por definição, esquemático. Ele tem por objetivo explorar um pouco mais de perto alguns dos elementos que permitiriam sustentar a filiação do relato de Carl Schmitt à tradição do realismo político. Em seguida, a partir da sua discussão sobre as origens da época moderna e da sua análise sobre o conceito de nomos, retornarei, em outras bases, ao problema do realismo político no seu pensamento.

Ordem estatal e relativização da inimizade O eixo do livro O Nomos da Terra está na análise do processo de formação e de declínio, entre os séculos XVI e XIX, do que Carl Schmitt denomina da "época interestatal do direito internacional" (NE, 112). Nesse período, a consolidação do Estado como forma por excelência de unidade política teria sido responsável pelo estabelecimento de um novo jus gentium. Assim, o direito internacional que se inaugura com a expansão do ocidente pelo mundo seria inseparável da "época da estatalidade [Staatlichkeit] européia" (BP, 17), na qual, segundo Schmitt, "os conceitos jurídicos foram inteiramente cunhados a partir do Estado e pressupuseram o Estado como modelo de unidade política" (BP, 10)6. A narrativa de O Nomos da Terra, como no prefácio ao livro o próprio autor faz questão de sublinhar (cf. NE, 6), parte da convicção de que esta época teria chegado a um fim: o mundo do jus publicum Europaeum, a sua ordem internacional e, em última análise, o próprio Estado, a despeito da permanência das categorias por eles geradas, pertenceriam a um tempo passado. Em face disso, Schmitt acredita que a única atitude possível seria um esforço de reconstrução intelectual das condições que teriam possibilitado um evento histórico único: o ordenamento planetário surgido a partir do sistema europeu de Estados. Afinal, em que consiste esse ordenamento? Qual é a sua singularidade histórica? Para Schmitt, a principal realização do jus publicum Europaeum ao longo dos seus quatro séculos de existência teria sido a contenção da guerra, ou seja, a limitação da destrutividade dos confrontos bélicos e a "relativização da inimizade" (BP, 11), com a conseqüente exclusão, no âmbito europeu, de conflitos voltados para a aniquilação do opositor. Esta "relativização da inimizade", nos diz ele, tornou-se possível graças à eliminação do problema jurídico da justa causa belli e do seu corolário, a guerra justa, do horizonte das relações internacionais. A noção de guerra justa constituía, segundo Schmitt, um traço essencial do ordenamento jurídico do ocidente medieval e tinha como pressuposto não a crença em uma noção de justiça objetiva e evidente em si mesma, mas também o reconhecimento e a aceitação da autoridade de uma potestas spiritualis, ou seja, o enraizamento dos princípios de justiça no interior de uma ordem institucional concreta e estável7. Com a crise da autoridade da Igreja decorrente do movimento da Reforma, a questão da justa causa se transforma em um fator de exacerbação da inimizade confessional e de desencadeamento de uma violência crescente. A ordem do Estado moderno teria sido uma resposta às conseqüências anárquicas e desagregadoras dos conflitos religiosos dos séculos XVI e XVII. A afirmação do monopólio do direito de guerra por parte do Estado implicou despojar os grupos em conflito dos princípios de legitimidade mutuamente excludentes que cada um deles reivindicava na luta contra o seu adversário. Com a soberania estatal, se constitui uma instância de decisão e ordenação da vida coletiva, que pretende ter um caráter último nos limites de um espaço circunscrito e, com isso, exclui, no interior desse âmbito, todas as decisões e ordens públicas alternativas. Dessa forma, a inimizade no sentido bélico é banida da esfera interna e relegada ao plano das relações internacionais, aonde ela se transforma em uma prerrogativa exclusiva do novo detentor do jus belli. Nesse plano, os conflitos não podem obedecer a outra referência que não seja a condição soberana de cada um dos Estados. Como observa Schmitt em seu livro sobre Thomas Hobbes, a guerra de um sistema interestatal não pode, à diferença das guerras religiosas, civis e partidárias, ser medida com os parâmetros da verdade e da justiça. A guerra estatal não é justa ou injusta, mas um assunto de Estado. Como tal ela não precisa ser justa. Ordo hoc non includit. O Estado tem a sua ordem em si mesmo, e não fora de si. Uma guerra não discriminatória, que não distingue entre o justo e o injusto em termos das relações jurídicas internacionais é, portanto, essencial ao direito internacional interestatal. (LSTH, 73-74).

A neutralização política das lutas religiosas no interior das fronteiras estatais seria solidária, portanto, de um processo de secularização, através do qual as bases teológicas e eclesiásticas sobre que se sustentava a idéia de justa causa vieram a ser esvaziadas da sua pretensão de legitimidade e do seu impacto público, cedendo lugar, aos poucos, a uma concepção laica da vida política. Assim, a formação do direito moderno, observa Schmitt, seria inseparável de um movimento de "desteologização da vida pública" (NE, 112); ou, para dizê-lo em outros termos, de uma "dupla separação" (NE, 91): a definitiva desvinculação entre a argumentação eclesiástica e teológico-moral e a argumentação jurídico-estatal e a igualmente importante desvinculação entre o problema de fundo jusnaturalista e moral da justa causa e o problema tipicamente jurídico-formal do justus hostis, o qual é diferenciado do criminoso, isto é, do objeto de uma ação punitiva. (NE, 91)8 A constituição no solo europeu de uma multiplicidade de unidades políticas equivalentemente soberanas nos limites do seu espaço territorial estaria na base dessa separação entre justa causa e justus hostis. O fato de que cada um dos Estados possa se apresentar como portador da ordem pública dentro das suas fronteiras os coloca em uma situação de igualdade como sujeitos de direito.

Dessa forma, a guerra entre Estados pode se tornar "um conflito armado entre hostes aequaliter justi" (NE, 114). A rigor, a justiça não está do lado de nenhuma das partes do conflito, que ambas se apresentam como iguais em direito9. Não é necessário, para que a guerra venha a ser pensada em termos jurídicos, discriminar o opositor como culpável pela infração de princípios éticos e, tampouco, os conflitos precisam conduzir a um esforço de aniquilação mútua. Nesse contexto, nos diz Schmitt, "o conceito de inimigo se torna passível de uma conformação [Formung] jurídica" (NE, 114). A autonomia do jurídico-estatal em face do teológico-eclesiástico conduz, portanto, a uma concepção do direito que, em última análise, se desvincula de todo princípio de justiça material (cf. NE, 129). Afirmar que o conceito de inimigo assume uma forma jurídica significa dizer que ele vem a ser concebido em termos fundamentalmente formais, ou, caso se prefira, em termos da sua "forma institucional" (NE, 161). Nada mais característico desse ponto do que a afirmação de Schmitt de que, no quadro do jus publicum Europaeum, "a justiça da guerra reside (...) na qualidade institucional e estrutural das formações políticas que travam a guerra em um mesmo plano" (NE, 115). A guerra, com isso, pode se converter em uma "guerre en forme" (NE, 113). Nesta última, à semelhança de um duelo, a justiça se desloca dos aspectos substantivos que opõe os adversários para a moldura formal dentro da qual o embate é travado. O conflito se apresenta como um "medir regrado de forças" (NE, 139), no qual as regras são previamente reconhecidas por ambas as partes em igualdade de condições e o resultado final não precisa ser interpretado como a vitória inevitável daquele que estava do lado certo (cf. NE, 115).

O mundo europeu como lugar do direito O quadro que o livro O Nomos da Terra apresenta sobre a singularidade e o significado históricos do jus publicum Europaeum permanecerá incompleto se não for incorporado um aspecto que até agora mantive em segundo plano. O Estado como fator de neutralização da guerra civil religiosa, como responsável pelo estabelecimento de uma ordem interna nos limites do seu espaço territorial, como detentor do monopólio do jus belli na esfera externa, todas essas imagens haviam sido elaboradas anteriormente por Carl Schmitt nos seus textos dos anos da República de Weimar10. Com a diferença de que ênfase maior, agora, desloca-se para os efeitos em âmbito internacional resultantes do surgimento da Staatlichkeit moderna. No entanto, como dizia pouco, o quadro se mantém incompleto, porque não levou em conta uma categoria que desempenha um papel decisivo na sua reflexão posterior a 1938 sobre direito e a política internacional: o espaço. Como o próprio Schmitt observa, "o Estado soberano não é apenas o novo conceito de ordem [Ordnungsbegriff] em geral (...), ele é acima de tudo o novo conceito de ordem espacial [Raumordnungsbegriff]" (SM, 405).

Segundo ele, as características do direito internacional europeu moderno e a sua circunscrição da guerra são inseparáveis de uma "nova consciência planetária do espaço" (NE, 54), surgida com a abertura dos oceanos e a descoberta do Novo Mundo. A época moderna é, a seu ver, igualmente o produto de uma "revolução espacial": toda vez que, por um novo avanço das forças históricas, por um desatar de novas energias, novas terras e mares ingressam no horizonte da consciência geral da humanidade, mudam também os espaços da existência histórica. Surgem, então, novas medidas e dimensões da atividade histórico-política, novas ciências, novas ordenações, novas vidas de povos novos ou renascidos. O alargamento pode ser tão profundo e surpreendente que transforme não apenas as medidas e os parâmetros de mensuração, não apenas o horizonte exterior dos homens, mas também a estrutura do conceito de espaço. Pode-se, então, falar de uma revolução espacial. (LM, 56-57) A descoberta do Novo Mundo significou, afirma Schmitt, uma mudança radical da consciência que os homens tinham do espaço e, simplesmente, eliminou todas as referências anteriores, antigas e medievais, a partir das quais o planeta era representado. Essa radical subversão das concepções tradicionais não encontraria nenhum precedente histórico e, com as descobertas do século XV e XVI, teria ocorrido "a primeira autêntica revolução espacial, que, no sentido pleno da palavra, abraça a Terra e mundo" (LM, 64). Por esse motivo, a época moderna teria testemunhado uma "revolução espacial planetária" (LM, 54), graças à qual a Terra pode ser apreendida, pela primeira vez, em sua totalidade. Nas palavras de Schmitt: "pela primeira vez na sua história, o homem recebeu em sua mão toda a real esfera terrestre como um globo" (LM, 65). A nova imagem do planeta teria colocado em questão não as representações tradicionais a respeito do espaço terrestre e do espaço em geral11, mas também, o que é mais importante para ele, as formas de ordenação do espaço que organizavam a cristandade no ocidente medieval, a Respublica Christiana. A crise desencadeada pelas descobertas dos séculos XVI e XVII, ao abalar aquelas representações tradicionais, teria desestabilizado os fundamentos da estruturação espacial do que até então se compreendia como o mundo. Nesse sentido, a redefinição e extensão da imagem geográfica da Terra traz consigo uma exigência da reorganização política e jurídica do espaço mundial. Mais precisamente: "a nova imagem global do mundo exigiu uma nova ordenação global do espaço" (NE, 54)12.

A Schmitt interessa, sobretudo, considerar as conseqüências políticas dessas transformações espaciais.

No quadro dessa análise sobre a redefinição do espaço mundial, a consolidação do Estado desempenha um papel fundamental. O Estado é, afirma Schmitt, "a única formação geradora de ordem desse período" (NE, 120). Mais ainda: em uma conjuntura de colapso das referências que até então haviam organizado espacialmente o mundo, como Raumordnungsbegriff ele "determina as novas representações da ordenação do espaço" (SM, 405). No entanto, a superfície do planeta que se organiza em termos propriamente estatais compõe, em O Nomos da Terra, apenas parcela da nova ordenação mundial. O solo estatal e as representações a ele associadas, se inscrevem em uma "ordenação compreensiva do espaço" (NE, 120), no interior da qual eles, simultaneamente, constituem uma parte e estabelecem os conceitos fundamentais. A "ordenação global do espaço" inaugurada com a época moderna se forma, portanto, a partir do mundo europeu e das suas estruturas estatais. Trata-se, como Schmitt não se cansa de repetir, de uma ordem eurocêntrica e interestatal. No entanto ela não se esgota, do ponto de vista da sua disposição espacial, na repartição do solo do Velho Mundo entre unidades políticas organizadas sobre uma base territorial. Seria preciso levar em conta, para além desse âmbito específico, os limites e demarcações através dos quais a superfície terrestre, com a abertura dos mares e a descoberta do Novo Mundo, foi apropriada, dividida, explorada. Dito de outra forma: seria preciso levar em conta os pilares sobre que se estabeleceu o nomos da Terra que marcou a época moderna13.

Deixo em aberto, momentaneamente, o sentido que Carl Schmitt atribui ao conceito de nomos. Mais adiante voltarei a esse ponto. Por ora, basta-me indicar que, segundo ele, a tentativa de estabelecer novas medidas e traçar novas fronteiras adequadas à nova imagem do globo foi inseparável de uma disputa em torno da apropriação das terras e mares recém descobertos. Por meio de um duplo movimento de Landnahme (apropriação da terra) e Seenahme (apropriação do mar), a superfície planetária que havia se aberto aos olhos do homem europeu começou a ser ordenada e a ordem, por sua vez, foi inscrita no espaço. Dessa forma, na organização do jus publicum Europaeum, o status jurídico da estruturação estatal do solo europeu se definiu em contraposição a dois outros ordenamentos espaciais.

Por um lado, observa Schmitt, foi fundamental que, desde o primeiro momento, o solo não europeu tenha sido encarado "como um espaço livre, como um campo livre para a ocupação e expansão européia" (NE, 55). Assim, a disputa pela apropriação de terras no Novo Mundo teria como pano de fundo uma concordância em torno do pressuposto de que apenas os povos europeus tinham direito àqueles espaços considerados por todos eles como livres. Para Carl Schmitt, tal concordância em torno da liberdade das terras recém descobertas e da prerrogativa exclusiva das nações do Velho Mundo em face delas foi um fator de redefinição da unidade européia em uma conjuntura de progressiva desagregação da sua anterior unidade cristã. Que o direito internacional da época moderna ainda possa ser designado como um "direito internacional cristão-europeu" (LM, 72) resulta do fato de que ele diz respeito a "uma comunidade dos povos cristãos da Europa em contraposição a todo o resto do mundo" (LM, 72-73). A referência aos povos cristãos - e, em seguida, às nações civilizadas - não pode nos fazer esquecer que, na análise de Schmitt, a competição pelo solo do Novo Mundo se , prioritariamente, em uma conjuntura histórica na qual não faz mais sentido falar da "autoridade de um ordo comum" (NE, 59); uma conjuntura, pois, em que a "comunhão dos príncipes e nações cristãs não contém (...) uma instância arbitral comum, concretamente legitimante" (NE, 62). Dessa forma, o essencial na constituição daquela comunidade reside no fato de que, a despeito dos violentos conflitos em torno da apropriação das novas terras, "os povos europeus, sem maior reflexão e planejamento, concordavam entre si em considerarem o solo não europeu da Terra como solo colonial, ou seja, como objeto da sua conquista e exploração" (LM, 74-75). Esse movimento conjunto de apropriação, segundo Schmitt, permite estabelecer uma fronteira, originalmente baseada na idéia de liberdade, que delimita a diferença entre status jurídico do solo estatal do Velho Mundo e o do solo colonial ou livre do resto do planeta. A qualidade jurídica específica das terras européias está no fato de que nelas se reconhece um "direito localizado"(NE, 63), ao passo que no Novo Mundo, dada a ausência de uma instância arbitral comum, prevalece o direito do mais forte. Em outros termos, a separação entre solo europeu e não europeu traz consigo uma clara distinção entre um espaço em que as relações são reguladas pelo direito e um outro no qual este direito simplesmente não tem vigência, ou seja, um "espaço de ação liberado de restrições jurídicas" (NE, 66).

Nesse contexto, pode-se compreender a diferença que Schmitt estabelece entre dois tipos de linhas de demarcação do espaço global surgidas com os tratados em torno da apropriação das terras do Novo Mundo: as rayas e as amity lines. As primeiras, que têm o seu exemplo mais acabado no Tratado de Tordesilhas, ainda se encontram no horizonte da antiga ordenação cristã e medieval do mundo e pressupõem o reconhecimento de uma autoridade espiritual, o papado, que serve de árbitro nos conflitos entre os Estados europeus pela partilha das terras recém descobertas. as amity lines "pertencem essencialmente à época das guerras de religião entre as potências marítimas católicas e protestantes que se apropriam de terras" (NE, 60). Nesse caso, a referência a uma instância de autoridade comum não faz mais sentido e a disputa pelas terras passa a ser regida por uma demarcação entre um âmbito aquém da linha - no qual vigem normas que regulam e contêm a guerra entre os Estados - e um âmbito além da linha - no qual se abre "uma esfera de emprego da violência subtraída ao direito" (NE, 66).

Para Schmitt, a delimitação de linhas de amizade dos séculos XVI e XVII teve o significado de um "imenso desafogo da problemática intra-européia" (NE, 62) e "serviu à circunscrição da guerra" (NE, 66) no Velho Mundo. Até certo ponto, essa afirmação se baseia em um argumento de natureza funcional. A transformação do além-mar em um "livre campo de luta" (NE, 66), juridicamente destacado do mundo europeu, teria o efeito de evitar que este último sofresse um impacto direto e imediato dos conflitos em torno das terras coloniais. , porém, um outro aspecto do argumento, um aspecto de natureza estrutural, que me parece ainda mais significativo. Nesse caso, os conflitos no solo europeu são "desafogados" porque, a partir da delimitação desse "livre campo de luta", abre-se a possibilidade de conceber "o âmbito do direito público europeu" como estruturalmente oposto ao espaço colonial, ou seja, "como uma esfera da paz e da ordem" (NE, 66). No quadro que Schmitt traça do jus publicum Europaeum, a circunscrição da guerra dentro de certos limites é inseparável da circunscrição de um espaço no seio do qual assume vigência e sentido um conjunto de regras de beligerância. Assim, a apropriação de terra no Novo Mundo implicou, para ele, um movimento concomitante de diferenciação e separação do solo europeu em relação ao solo "livre" do mundo colonial. Graças a este movimento a ordem do direito europeu teria ganho a validade efetiva de um direito localizado e enraizado no interior de um grupo humano específico, a comunidade de Estados do Velho Mundo. Com as linhas de amizade, se constitui "um espaço destacado, livre, ou seja, vazio de direito [rechtsleeren], como a clara contraposição a um direito antigo [alten], ou seja, colocado em um velho [alten] mundo" (NE, 67). A ordem interestatal do continente europeu se constitui contra o pano de fundo de um "âmbito liberado de restrições jurídicas" no além-mar. Nesse sentido, o "medir regrado de forças", a conflitividade contida dentro das formas estatais têm como contraponto o "emprego da violência subtraído ao direito", a luta, por assim dizer, informe da guerra colonial. Como Schmitt observa, "a circunscrição da guerra alcançada em relação à guerra terrestre européia refere-se apenas à guerra terrestre interestatal, que é travada em solo europeu ou equivalente" (NE, 155).

Dessa forma, a contraposição ao solo ultramarino como um lugar "vazio de direito" torna-se a condição para que o direito tenha lugar no solo europeu.

Com isso, teria sido possível preservar a imagem da Europa como lugar regido pelo direito, em uma circunstância em que se desagregavam os fundamentos tradicionais do jus gentium europeu e da potestas spiritualis que lhe era correspondente e se formava uma nova ordem internacional, desprovida de um centro de autoridade e "liberada dos vínculos supraterritoriais até então existentes" (NE, 100). Não por acaso, ao contrastar a estruturação espacial moderna com a da respublica christiana medieval, Schmitt afirma que "a nova ordenação do espaço não reside mais em uma localização [Ortung] segura, mas em um balanceamento, em um 'equilíbrio'" (NE, 36). Sob certos aspectos, este equilíbrio encontra a sua expressão mais clara nas relações surgidas entre Estados portadores de equivalente soberania territorial e na correspondente substituição, no campo das relações internacionais, da justa causa pela noção de justus hostis. Ao mesmo tempo, como venho procurando assinalar, essa situação de equilíbrio é, aos olhos de Schmitt, inseparável de uma ordenação global do espaço. "Espaços livres imensos, aparentemente infinitos", afirma ele, "possibilitaram e sustentaram o direito interno de uma ordenação interestatal européia" (NE, 154). Nesse sentido, é preciso considerar o outro espaço livre que, segundo o nosso autor, teria desempenhado um papel decisivo na estruturação do jus publicum Europaeum: o mar livre.

Terra e mar A partir do início dos anos 1940 - sobretudo a partir de 1942, com a publicação do livro Land und Meer (Terra e Mar), cujo subtítulo, significativamente, é Eine weltgeschichtliche Betrachtung (Uma consideração sobre a história mundial) -, a oposição entre terra e mar passa a ter um papel central na análise de Schmitt sobre as transformações espaciais que marcam a história da política e do direito internacional na época moderna. Para o jurista, a importância que a superfície marítima assumiu na ordem internacional moderna está diretamente associada à transformação da imagem do planeta que resulta da revolução espacial dos séculos XVI e XVII. Segundo ele, todas as ordenações espaciais anteriores a esse período, mesmo quando tiveram potências marítimas e talassocracias como suas protagonistas, foram definidas em termos terrestres (cf. NE, 19). Somente quando a Terra veio a ser concebida a partir de uma perspectiva planetária e os oceanos mundiais se abriram à exploração do homem europeu, ter-se-ia colocado a possibilidade e a necessidade de uma estruturação do espaço que abarcasse o conjunto da superfície planetária, englobando terra e mar. Com a nova imagem do mundo, consolida-se aos poucos uma ordenação do espaço voltada para o mar; uma ordenação que existirá ao lado daquela outra dirigida à parcela terrestre do planeta. Nesse contexto, a oposição entre terra e mar - cuja história poderia ser remontada a um longo passado de conflitos entre potências terrestres e marítimas e às disputas em torno de um mar interior - teria assumido, pela primeira vez, um alcance verdadeiramente global, determinando de forma decisiva as bases da ordenação jurídica e política do espaço mundial. Com isso, nos diz Schmitt, "a grande decisão histórica dessa época culminou na alternativa entre o mundo do mar e o mundo da terra, com um contraste [Gegensåtzlichkeit] e uma profundidade que jamais podia ter exibido anteriormente" (SM, 408)14. Afinal, em que consiste a alternativa entre terra e mar que a época moderna teria inaugurado? Antes de mais nada, no fato de que o mar, à diferença da terra, será considerado um espaço livre. Livre, porque superfície não estatal, ou seja, não sujeita às fronteiras e às demarcações territoriais que fazem parte do conceito de soberania. Em suma, "mar livre de uma ordenação estatal do espaço" (SM, 406). Assim, à terra firme - território de um Estado ou solo livre para a apropriação por um Estado - contrapõe-se o mar livre - superfície que "não é âmbito estatal, nem espaço colonial, nem é ocupável" (NE, 143). Terra e mar se apresentam no pensamento de Schmitt como portadores de duas ordenações espaciais igualmente referidas à totalidade do planeta, porém claramente diferenciadas entre si. Nas palavras do próprio autor, trata-se de "mundos distintos e de convicções jurídicas contrapostas" (LM, 87). Desse modo, seria possível falar de uma face terrestre e uma face marítima do jus publicum Europaeum, ou, mais precisamente, um direito internacional da terra e um direito internacional do mar. O caráter planetário da partilha entre as duas superfícies e a natureza contraposta da diferenciação entre elas conferem uma posição central à distinção entre terra e mar no quadro que Schmitt nos apresenta sobre a ordem internacional moderna. Esse contraponto entre o mundo da terra e o mundo do mar encontraria sua tradução mais acabada nas diferenças entre guerra terrestre e guerra marítima. Aqui, mais uma vez, a diferenciação entre espaços e a demarcação de limites trazem consigo a possibilidade de uma localização espacial das regras de beligerância que, aos olhos de Schmitt, será fundamental para a contenção da guerra alcançada pelo sistema europeu de Estados. A guerra terrestre, como vimos, constitui um conflito que coloca face a face Estados em igualdade de condições jurídicas. Por essa razão, deve envolver apenas os combatentes regulares, os exércitos estatais; a população civil e a propriedade privada permanecem, em princípio, excluídas da luta e de seus efeitos. A guerra marítima, por transcorrer em um espaço livre das marcas e das fronteiras da ordem estatal, obedecerá a critérios distintos. Esta será uma guerra que busca atingir o inimigo ferindo a sua economia, daí a importância de práticas como o bombardeamento e o bloqueio naval. Desse modo, a guerra marítima não preserva a população civil, nem a propriedade privada, nem os agentes neutros que mantém relações comerciais com o inimigo15.

Na análise de Carl Schmitt, deve estar claro, os conceitos de terra e mar são concebidos em termos simétricos. O espaço terrestre está referido ao Estado como Raumordnungsbegriff (conceito de ordenação espacial); a superfície marítima, por sua vez, constitui um âmbito de "não-estatalidade [Nicht- Staatlichkeit]" (NE, 146), no qual se atualizam liberdades, por definição, não estatais: a liberdade espacial dos mares e a liberdade de comércio marítimo.

Dessa forma, cada um dos espaços se revela portador de tendências características do mundo moderno e, por essa razão, o seu significado histórico é mais do que descritivo, não se restringindo ao delineamento das formas pelas quais a superfície do planeta foi ordenada a partir da descoberta do Novo Mundo. Em Carl Schmitt, terra e mar assumem, até certo ponto, o papel de categorias histórico-filosóficas, pois através delas se procura dar conta de algumas das principais linhas de força da dinâmica histórica da modernidade16.

A simetria entre os dois termos, por outro lado, tem uma feição claramente polêmica. Basta considerar que ao mar, como esfera da não-estatalidade, Schmitt freqüentemente associa a técnica, o individualismo, o liberalismo, o universalismo, o predomínio do econômico, o protestantismo. No pensamento do jurista alemão, desde as obras produzidas durante a República de Weimar, todas essas categorias estão em franca oposição à idéia de uma ordem política concreta.

Nem sempre, porém, Carl Schmitt, consegue manter a ponderação entre a intenção analítica e a carga polêmica dos conceitos de terra e mar. Em textos anteriores a O Nomos da Terra - como é o caso, sobretudo, de "Staatliche Souverånitåt und freies Meer" ("Soberania estatal e mar livre", de 1941) e, em alguma medida, em Land und Meer (Terra e mar, de 1942) -, ele tende a enrijecer o contraste entre os dois ordenamentos espaciais, a ponto de torná-los inconciliáveis e mutuamente excludentes. Em "Staatliche Souverånitåt und freies Meer", por exemplo, a diferença entre terra e mar se apresenta como uma "oposição total de dois mundos sem relação entre si" (SM, 408). Assim, à ordem terrestre e interestatal corresponderia o seu "contra-mundo polar [polare Gegenwelt]" (SM, 422), a ordem marítima, ignorante de limites e fronteiras e, por esse motivo, desligada de um marco espacial concreto. Nesse contexto, a polarização entre terra e mar encontra sua outra face em uma dramatização da alternativa política entre uma estruturação pluralista das relações internacionais - enraizada em um espaço planetário concretamente delimitado e dividido - e uma ótica universalista de fundo privado e econômico - derivada do domínio britânico sobre os mares e das pretensões de hegemonia mundial de seu principal herdeiro, os Estados Unidos17.

Em O Nomos da Terra, parece-me, uma mudança de tom. A polarização de fundo polêmico entre terra e mar se distende e a ênfase na dinâmica antitética dos dois espaços, ainda que não seja abandonada, cede espaço à imagem de um balanceamento. A foco agora está colocado na idéia de que, após a Paz de Utrecht (1713), a ordem internacional moderna "culminou em um equilíbrio entre terra e mar, no frente a frente [in dem Gegenüber] de duas ordenações distintas" (NE, 144; grifo do autor). Nessa conjuntura, o fato de que Inglaterra tenha se tornado a potência marítima mundial por excelência - ou, para empregar os termos de Schmitt, a passagem da ilha a uma existência marítima, "desenraizada e desligada da terra [entlandet]" (LM, 94) - passa ser visto como um componente fundamental desse equilíbrio. Nas palavras do autor: "somente a Inglaterra conseguiu dar o passo de uma existência medieval de feição feudal e terrena a uma existência-mar, puramente marítima, que fazia um contrapeso a todo mundo terreno [rein maritime, die ganze terrane Welt balancierende Meeres-Existenz]" (NE, 144). Essa decisão inglesa pelo mar - a Seenahme que a distanciará dos rumos do continente europeu - teria sido fruto de iniciativas privadas e estaria diretamente associada ao desenvolvimento técnico e industrial18. Dessa forma, na análise de Schmitt, a transformação da Inglaterra em senhora da liberdade dos mares e do comércio global traz consigo a potencialidade de uma "total deslocalização [totale Entortung]" (NE, 149), que viria a se concretizar com a técnica industrial moderna e a expansão de uma economia mundial cada vez mais dissociada de um espaço politicamente estruturado. No entanto, ao enfatizar a idéia de um equilíbrio entre espaços dotados de estrutura jurídica contraposta, Schmitt busca apresentar a Inglaterra como "o elo entre as distintas ordenações da terra e do mar" (NE, 144) e parece conceber o potencial de deslocalização da opção britânica emoldurado e contido dentro dos limites da organização eurocêntrica do espaço global. Esse ponto, a meu ver, torna-se claro quando se considera o papel que, segundo o jurista alemão, o constitucionalismo liberal e a livre economia teriam desempenhado no período de maturidade do jus publicum Europaeum, entre 1815 e 1914. Vejamos rapidamente esse ponto.

Um dos principais aspectos da análise de Carl Schmitt sobre a crise do jus publicum Europaeum no século XX reside na idéia de que foi na "economia [que] a antiga ordenação espacial da Terra perdeu evidentemente a sua estrutura" (NE, 210). Essa interpretação, na verdade, retoma uma antítese entre o político e o econômico que marcara seu pensamento nos anos da República de Weimar. Não cabe no âmbito desse artigo retomar os termos em que essa oposição é construída19, basta-me assinalar que, no pensamento de Carl Schmitt, ela continuamente remete à convicção de que não é possível constituir a partir da esfera econômica uma ordem concreta e efetiva. Como venho procurando assinalar, no contexto da discussão dos anos 1940 sobre o direito e a política internacionais, a natureza concreta da ordem está, grosso modo, vinculada a seu enquadramento no interior de um marco espacial particular. Não chega a surpreender, portanto, que Schmitt afirme que a "lógica de um pensamento de uma economia de mercado e de comércio mundiais" desemboca em "uma plena supressão de toda diferenciação territorial específica" (NE, 192). Nessa perspectiva, o século XX, ao trazer consigo a progressiva emancipação do econômico em relação ao político, acaba por ser palco de uma transformação da "soberania territorial (...) em um espaço vazio para processos sócio-econômicos" (NE, 226), a qual, sintomaticamente, terá como um dos seus principais protagonistas os Estados Unidos, autêntico herdeiro, na visão do autor, das concepções marítimas da Inglaterra. Todavia, note-se bem que, em O Nomos da Terra, essas tendências somente ganham pleno curso no século XX. No século XIX, diferentemente do que o leitor em princípio poderia esperar, a ampla aceitação das premissas da economia liberal teria criado "um espaço específico em termos de direito internacional, um livre mercado comum, que ultrapassava as fronteiras políticas dos Estados soberanos" (NE, 169) e teria sua mais clara expressão do ponto de vista jurídico-político na adesão generalizada ao "padrão do constitucionalismo como componente da ordenação do espaço" (NE, 170). Dessa forma, Schmitt chega a admitir a existência de "um direito internacional do livre comércio e da livre economia associado (...) à liberdade dos mares interpretada pelo império mundial inglês" (NE, 185), direito esse que seria um componente inseparável da ordem internacional do século XIX. Embora em clara tensão, as premissas estatais do jus publicum Europaeum e seus aspectos não estatais permanecem emoldurados no interior de um marco espacial concreto, o da ordenação eurocêntrica da superfície planetária e de seu equilíbrio entre terra e mar.

Como Schmitt observa em um texto posterior, enquanto essa ordenação e esse equilíbrio se mantiveram, "o mar não podia forçar por si uma decisão" (GS, 530). A tendência do econômico a suprimir as diferenciações espaciais em um "universalismo global, sem dimensão espacial [raumlos]" (NE, 208) parece, nesse contexto, estar contida dentro de um espaço politicamente estruturado. O declínio da ordem internacional centrada no mundo Europeu implicará uma inversão desse quadro, ou seja, levará a um estado de coisas em que "o espaço do poder econômico determina o âmbito direito internacional" (NE, 226)20. Nessa nova conjuntura, aquele antigo marco espacial se revelará incapaz de conter e enquadrar "uma economia mundial livre pensada em termos eurocêntricos, mas que ultrapassa todas as fronteiras" (NE, 200)21.

Assim, a tese reafirmada por Schmitt em diferentes oportunidades de que "a separação entre terra firme e mar livre foi o princípio fundamental e específico do jus publicum Europaeum" (NE, 155) deve ser interpretada à luz da importância que a noção de equilíbrio entre os dois espaços assume em O Nomos da Terra22. Como venho procurando discutir, a intensificação do contraste entre as duas superfícies inaugurada na época moderna não implica, nesse livro, apenas a diferenciação e a polarização entre dois mundos regidos por lógicas contrapostas e mutuamente excludentes. Para empregar uma expressão cara ao nosso autor, essa diferenciação acaba por desembocar em uma espécie Gestaltung, em uma configuração geral do espaço terrestre, que resulta de "uma conexão e cruzamento de vários ordenamentos distintos" (NE, 208). A ordem internacional moderna - com sua associação entre terra e mar, entre ordem estatal e liberdades não estatais, entre direito internacional interestatal e direito privado internacional, entre o particularismo das unidades políticas soberanas e o universalismo do parâmetro constitucionalista e do livre mercado - contém em si algo daquilo que, nos anos 1920, Schmitt denominou de complexio oppositorum, ou seja, uma configuração dos elementos díspares e contraditórios da "matéria da vida humana" (RK, 14), que, sem eliminar suas diferenças, os assimila em unidade compreensiva. Assim, no interior dessa Gestaltung da superfície planetária, a oposição entre terra e mar acaba por encontrar um balanceamento e o caráter múltiplo e informe da realidade histórica adquire, por assim dizer, uma forma própria23. Portanto, o jus publicum Europaeum, nos diz Schmitt, baseou-se em um duplo equilíbrio. Em primeiro lugar, o equilíbrio de terra e mar. A Inglaterra dominava sozinha o mar e não admitia nenhum equilíbrio de potências marítimas. Na terra firme européia, por outro lado, dominava um equilíbrio que não tolerava a hegemonia de uma potência terrestre. Seu fiador era a potência marítima Inglaterra. O equilíbrio de terra e mar constituiu o fundamento sobre o qual, em contrapartida, a terra, por meio de um equilíbrio ulterior e específico, foi em si balanceada.24 Procurei traçar, em linhas gerais, nas páginas precedentes o quadro que o livro O Nomos da Terra nos apresenta sobre a ordem internacional do jus publicum Europaeum. estamos, acredito, em condições de retornar ao ponto que me interessa: o problema do realismo no pensamento de Carl Schmitt. Como observei anteriormente, para ele, a principal realização do sistema europeu de Estados e da sua ordem internacional teria sido a contenção da guerra dentro de uma forma jurídica e, com isso, a relativização da inimizade nos conflitos externos. A Hegung da guerra, sua circunscrição dentro de uma determinada ordem jurídica, a separação entre o justus hostis e o criminoso, a limitação dos conflitos de fundo discriminatório e de aniquilação são designados, em diferentes oportunidades, por Schmitt, como um "grande progresso no sentido de humanidade" (BP, 11)25, como uma "racionalização e humanização de poderosíssimo efeito" (NE, 114). Essas afirmações têm, eu diria, um caráter claramente provocativo, pois não é possível reconhecer na narrativa de O Nomos da Terra qualquer desenvolvimento progressivo da racionalidade ou do "sentido de humanidade".

Pelo contrário, os principais protagonistas dessa história, os Estados soberanos, permanecem portadores de vontades autônomas, alheias a todo tipo de sujeição a uma ordem normativa que lhes seja exterior. Se é certo que a convivência entre esses Estados não é "um caos sem regras de vontades egoísticas de poder" (NE, 139), por outro lado, sua ordem tampouco nos é apresentada como o produto de pactos e compromissos a que cada uma das partes aceitaria se submeter. Imaginar que entidades soberanas em igualdade de condições admitam se sujeitar a obrigações desse gênero seria o mesmo, nos diz Schmitt, que acreditar nas "auto-sujeições de um artista especializado em se libertar de correntes [Selbstbindungen eines Entfessenlungskünstler]" (NE, 120). Assim, afirma ele em outra oportunidade, a guerra ganha forma no interior do sistema de Estados europeu, mas "não por meio de normas" (NE, 129). Em suma, o progresso que o jus publicum Europaeum teria sido capaz de promover no âmbito da guerra e da política internacional não seria o resultado da força normativa incondicionada da racionalidade ou do humanitarismo, mas sim da efetividade das relações que se estabeleceram entre "ordenações específicas, organizadas de forma espacialmente concreta" (NE, 129). Mais precisamente: para Schmitt, o "efeito racionalizante" (NE, 112) dessa ordem internacional pode ser compreendido à luz da ordenação global do espaço associada à emergência dos Estados modernos. Nas suas próprias palavras: a força vinculatória de uma obrigação de Estados soberanos em termos do direito internacional, não pode residir na problemática autovinculação dos soberanos que se mantém livres, mas no pertencimento comum a um espaço circunscrito [umhegten], isto é, baseia-se no efeito abrangente de uma ordenação concreta do espaço.

(NE, 198) Não é difícil reconhecer as bases sobre as quais, nesse caso específico, pode ser construída a associação entre o realismo político e o pensamento de Schmitt. A natureza obrigatória das regras do jus publicum Europaeum não nasce da força intrínseca de sua racionalidade normativa, ou, caso se prefira, de seu dever-ser, mas sim de uma configuração histórica concreta, de uma organização política particular do espaço, no interior da qual veio a se desenhar uma certa correlação de forças. A racionalização das relações internacionais possibilitada pela contenção da guerra interestatal européia seria nada mais do que o resultado da "força vinculatória de uma ordenação espacial eurocêntrica" (NE, 120) e do seu "sistema de equilíbrio" (NE, 137).

Não tenho intenção, como afirmei anteriormente, de me contrapor a esse juízo.

Pelo contrário, ele me parece, em linhas gerais, bem assentado. Digo "em linhas gerais", porque, ao se conservar nesse nível de generalidade, tal avaliação tende a ignorar algumas das premissas do argumento de Carl Schmitt. Gostaria, portanto, de voltar agora a minha atenção para essas premissas, em particular para os pressupostos de seu retrato histórico sobre o mundo moderno, ou, para ser um pouco mais exato, para as bases histórico-filosóficas a partir das quais a noção de modernidade se define como um conceito de época em seu pensamento.

Para tanto, retornarei brevemente à sua análise sobre as condições do surgimento do Estado moderno e da emergência da ordem espacial planetária posterior à descoberta do Novo Mundo.

Direito e modernidade Desde os anos da República de Weimar, Carl Schmitt concebe a consolidação da ordem estatal européia como uma resposta aos problemas políticos suscitados pelas guerras de religião dos séculos XVI e XVII. O Estado moderno se afirma como um elemento central do processo de neutralização do impacto político das divergências religiosas, promovendo, como foi anteriormente observado, uma "desteologização da vida pública". Nesse sentido, a sentença do jurista italiano Alberico Gentili, pronunciada no contexto do debate sobre a guerra justa, "silete theologi in munere alieno!" ("silêncio, teólogos, em matéria que lhes é estranha!")26, surge, aos olhos de Schmitt, como uma espécie de divisa não da nascente ordem internacional, mas também da própria época moderna. O silêncio dos teólogos nas questões políticas teria sua outra face no papel histórico do Estado como "o veículo da secularização" (NE, 97). Não é possível nos limites desse artigo aprofundar a análise sobre o conceito de secularização em Carl Schmitt, a começar pelo fato de que a noção não possui em seu pensamento um significado unívoco. Vou ater-me aos aspectos mais imediatos da sua abordagem sobre o tema no livro O Nomos da Terra - mais exatamente à relação que se pode estabelecer, a partir do problema da guerra justa, entre secularização, racionalização e desteologização -, pois creio que, com isso, teremos elementos suficientes para pensar o ponto que me interessa. Com efeito, a neutralização do problema da guerra justa tem, na análise do autor, duas faces complementares: por um lado, como assinalei anteriormente, ela implica uma "formalização jurídica" (NE, 91), por meio da qual a noção substantiva e teológica da justa causa belli é substituída pela conceito formal de justus hostis; por outro lado, ela torna problemática a própria noção de justiça sobre que se fundava a Respublica Christiana. As guerras de religião teriam inviabilizado a possibilidade de estabelecer a ordem sobre uma concepção incontroversa de justiça, que a própria definição sobre o que e quem é justo se torna fonte de conflito. A formalização jurídica da ordem é solidária, portanto, do esvaziamento de seus fundamentos religiosos substantivos. A guerra, mencionei esse ponto, ao se transformar em assunto estatal, se desvincula dos parâmetros da verdade e da justiça. O Estado, nesse contexto, se apresenta como "o portador histórico da desteologização e da racionalização" (NE, 131). Como observa Schmitt em sua análise sobre o Leviatã de Thomas Hobbes, "o soberano não é um Defensor Pacis de uma paz que remonta a Deus; ele é o criador de uma paz nada mais do que terrena, um Creator Pacis" (LSTH, 50).

A racionalização de que o Estado seria portador significa uma tentativa de estabelecer a ordem política sobre bases puramente mundanas e humanas, suprimindo toda referência à estabilidade de um fundamento transcendente. Dessa forma, a ciência jurídica européia, corolário inseparável da ordem estatal moderna, estaria "profundamente envolvida na aventura do racionalismo ocidental" (ECS, 69). em 1929, no texto "Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen" ("A época das neutralizações e despolitizações"), essa tentativa de secularização das bases da ordem assume a feição de um sucessivo deslizamento histórico do "centro da vida espiritual"27 - passando da teologia para a metafísica, em seguida para a moral, para a economia e, finalmente, para a técnica -, em busca de uma esfera neutra sobre a qual a razão ocidental procuraria constituir uma base segura e incontroversa para a existência coletiva. A cada novo esforço de neutralização e de fundamentação racional da vida comum, o que permanentemente retorna - sob a forma de um conflito político que desconhece a possibilidade de uma solução consensual e pacífica - é a inescapável contingência da ordem das coisas humanas. Assim, o direito se revela à altura do seu próprio empreendimento de ordenação racional da vida coletiva, quando reconhece os limites da própria razão; ou ainda, quando não se torna presa da pretensão de resolver dentro das formas da razão os impasses da contingência.

Para além da crise das bases religiosas e transcendentes da ordem, uma outra crise, ao mesmo tempo solidária e independente da anterior, desempenha na narrativa de Schmitt um papel inaugural: o abalo das representações tradicionais do espaço, resultante da descoberta do Novo Mundo. Segundo ele, a "revolução espacial planetária" do início da época moderna não possuiria termos de comparação com qualquer mudança precedente. Em suas palavras, ela não foi apenas um alargamento espacial do horizonte geográfico, particularmente vasto em termos da dimensão quantitativa do espaço, algo que sobreveio por si, como resultado da descoberta de novas partes de terra e novos mares. Pelo contrário, alterou-se, para a inteira consciência do homem, sob o impacto da total eliminação das representações tradicionais da antiguidade e do medievo, a inteira imagem do nosso planeta e, para além disso, a inteira representação astronômica da totalidade do universo. (LM, 64-65) Abre-se com a revolução espacial, por assim dizer, um outro vazio, resultante do colapso das representações tradicionais do espaço e da necessidade, desde então colocada, de estabelecer uma ordenação do novo espaço planetário28. A nova ordem internacional que surge como resposta a esse desafio trará consigo, no entanto, a marca da crise que está em sua origem. Lembremo-nos que, ao contrário da Respublica Christiana que a precedera, essa nova ordem, segundo o próprio Schmitt, carece de uma "instância arbitral legitimante" e não se baseia em uma "localização segura". Dessa forma, é preciso mais uma vez sublinhar que a regulação das relações internacionais e a circunscrição da guerra alcançada pelo Estado moderno é inseparável do surgimento no século XVI de "dois espaços 'novos', ou seja, não abrangidos pela ordenação até então existente da terra firme européia e, nesse sentido, 'livres'" (NE, 63): o solo não europeu do ultramar e a superfície dos oceanos mundiais. Por um lado, o mar se constitui como uma superfície no interior da qual ganha vigência um direito internacional específico, referido a liberdades que ignoram um marco espacial fixo e desconhecem o traçado de limites e fronteiras. Para Schmitt, isso se deve, em parte, ao fato de que a vigência e a localização do direito adquirem um significado distinto na terra e no mar. Na terra, a constituição de uma ordem jurídica estaria associada ao estabelecimento de limites, ao traçado de linhas de demarcação, à fixação de fronteiras. O mesmo não se verificaria no mar, pois na superfície marítima não seria possível instituir marcos espaciais estáveis.

"No mar", observa Schmitt, "os campos não se deixam semear e as linhas firmes não se deixam gravar" (NE, 13). Por isso, no início de Der Nomos der Erde, o mar nos é apresentado tendo em vista a relação problemática que ali se estabelece entre o direito e o espaço. "O mar", afirma o jurista, "não conhece a unidade patente entre o espaço e o direito" (NE, 13). Não por acaso, Schmitt considera que, com a abertura dos oceanos mundiais, a liberdade que inicialmente se impôs na superfície marítima teria sido uma "liberdade elementar", ou seja, decorrente da "idéia antiqüíssima, originária e elementar segundo a qual o mar é inacessível ao direito humano e à ordenação humana e é um espaço para a livre medição de forças" (NE, 153). A expressão mais acabada dessa liberdade estaria na atividade militar e econômica de piratas e corsários dos séculos XVI e XVII, atividade marcada por uma iniciativa privada carente de maior controle e regulação. Com o domínio britânico sobre os oceanos globais e o balanceamento entre terra e mar daí decorrente, as liberdades marítimas acabam por ser integradas à moldura da ordenação eurocêntrica do espaço global.

Ainda que o alto mar continue a se estruturar como um âmbito de não- estatalidade, estranho às linhas de demarcação da terra firme, nesse novo contexto teria ocorrido, nos diz Schmitt, uma "Hegung" (NE, 153). Após a Paz de Utrecht de 1713, a pirataria e o corso são criminalizados e, sob a tutela inglesa, a liberdade elementar dos mares cede terreno a uma "liberdade ordenada" (NE, 153).

O mesmo não se verifica no outro espaço livre em relação ao qual a terra firme européia teria definido o seu estatuto jurídico, o solo colonial do ultramar.

Ali, a liberdade não teria conhecido qualquer Hegung. O Novo Mundo, sabemos, foi concebido como um lugar em que as terras eram livres para a conquista e exploração européias, como "uma esfera de emprego da violência subtraída ao direito". Nesse sentido, o ultramar se incorpora à ordem do direito internacional europeu como o seu negativo, ou seja, como um espaço "vazio de direito". Como observa Carlo Galli, se é verdade que o balanceamento entre continente e Inglaterra, entre Estado territorial e império marítimo representa o eixo fundamental em função de que se constitui a ordem internacional européia, por outro lado, é necessário igualmente reconhecer que "aquele equilíbrio originário é, ao mesmo tempo, desequilíbrio"29. Vale a pena repetir o que disse anteriormente: para que o direito viesse a ter lugar no mundo europeu foi preciso "traçar" uma fronteira que demarcava a diferença entre dois espaços dotados de estatutos jurídicos distintos: o solo da Europa, no qual a convivência entre os Estados é regulada e as guerras circunscritas, e o solo ultramarino ou colonial não europeu, no qual essa regulação e essa circunscrição não tem validade. Na narrativa de Carl Schmitt, a racionalização jurídica das relações internacionais na época moderna se tornou possível devido a sua natureza localizada e, por esse motivo, ela podia ambicionar um alcance local30.

Sendo assim, quer do ponto de vista da construção da ordem interna, quer na ótica da ordem internacional, a modernidade seria testemunha de um hiato entre direito e realidade, entre a ordem do dever-ser e a do ser. Para Schmitt, a época moderna dissolveu as bases histórico-espirituais sobre as quais havia sido possível conceber algum tipo de mediação racional entre a pretensão normativa do direito e a experiência social. Como resultado, a ambição de racionalidade da ordem jurídica é obrigada a se confrontar com o seu próprio limite e com o caráter circunstancial da sua validade. Nesse contexto, a defesa e a invocação dos princípios universais e incondicionais de uma justiça natural ou divina tornam-se "slogans de guerra civil" (LeR, 418). Isso não significa que, para Carl Schmitt, o direito se veja reduzido à ordem legal positivada.

Como vimos, segundo ele, a ciência jurídica se constituiu no interior do processo histórico de desteologização e racionalização, que teve no Estado moderno um dos seus principais protagonistas. Nesse sentido, ela foi solidária do movimento de "formalização jurídica" que resultou do progressivo esvaziamento do significado público de uma concepção transcendente e objetiva da justiça - seja esta de caráter teológico ou de natureza metafísica. No entanto, esse movimento seria apenas parte da história. Isso porque, nos diz Schmitt: quando vista a partir de seus grandes horizontes que abraçam os séculos, a situação da ciência jurídica européia sempre esteve determinada por duas oposições: por um lado, a da ciência jurídica à teologia, à metafísica e à filosofia; por outro, ao mero conhecimento normativo de fundo técnico [technischen Normenkunde]. (LeR, 420) Se a secularização levada a cabo pelo Estado moderno implicou uma crescente dissociação entre ordem jurídica e princípios teológicos e metafísicos, simultaneamente ela conteria em si a possibilidade de uma conversão do direito em mera função e instrumento do comando estatal. Para Schmitt, essa tendência teria encontrado sua expressão mais acabada no positivismo jurídico e na transformação do Estado em uma "uma máquina que encontra seu 'direito' e sua 'verdade' apenas em si mesma, ou seja, no desempenho [Leistung] e na função" (LSTH, 70). Nesse contexto, a ordem jurídico-política se confunde com o mero funcionamento de um complexo de normas legais, que admitem um critério, o da operacionalidade. Concebido em termos de seus aspectos exclusivamente técnicos, o direito se reduzido a uma condição de total imanência, a uma objetividade que resulta, em última análise, do abandono de toda orientação normativa. Dito em outros termos: uma objetividade que decorre da renúncia à pergunta sobre os fins em nome da natureza neutra dos meios e que desemboca no predomínio de uma racionalidade despojada de todo conteúdo e centrada nos princípios do cálculo, da eficiência e da previsibilidade. Como observa Schmitt, "o exato funcionamento e a precisão interna da técnica moderna aparecem como qualidades autônomas, independentes de todas considerações religiosas, metafísicas, jurídicas ou políticas" (LSTH, 63). Transformado em uma simples expressão de uma racionalidade instrumental, o direito não remete para nada além do seu próprio operar. Nesse sentido, a pura tecnicidade seria "inteiramente profana" (ECS, 75), acabaria por reduzir a experiência à sua dimensão mais imediata e levaria a uma anulação das escolhas na absoluta imanência da função e do procedimento. Assim, o processo de "formalização jurídica" inaugurado com monopólio do jus belli pelo Estado moderno termina por desembocar nas formas vazias de um "tecnicismo legalitário" (LeR, 425)31. Com o predomínio de uma lógica instrumental e o esvaziamento do conteúdo da legalidade, o direito é despojado de todos os elementos que asseguravam a sua validade extra-legal. As normas jurídicas não valem em virtude de sua correspondência à Lei Natural, à Justiça ou à Razão, mas pelo simples motivo de que existem como a "pura legalidade de um dever-ser meramente positivado" (LeR, 421). Ao se converter em um modus operandi indiferente aos fins, o direito perde a sua capacidade de governar a vida social, tornando-se uma ferramenta à disposição de todos aqueles que quiserem dele se servir. Para Schmitt, a mera legalidade funcional não é capaz de oferecer qualquer resposta à pergunta sobre a legitimidade das escolhas que presidem a instrumentalização do aparato legal. Por isso, ele acredita que a progressiva absorção do direito em um sistema de legalidade concebido em termos técnicos abre o caminho para a "transformação da legalidade em uma arma da guerra civil"32.

De certa maneira, fecha-se um círculo que liga os pois pólos em relação aos quais a ciência jurídica teria definido a sua identidade histórica: a racionalidade substancial da teologia e a racionalidade formal da técnica. Cada uma à sua maneira seria presa da auto-suficiência de uma normatividade que se volta sobre si mesma, na presunção de uma correspondência não problemática entre seus princípios e a ordem das coisas33. A polaridade entre jusnaturalismo e positivismo jurídico ocultaria o fato de que, no fim das contas, tanto um quanto o outro desembocariam em uma concepção abstrata do direito. Em ambos os casos, o direito se fecha sobre si mesmo e, por assim dizer, se resolve em sua própria idealidade ou em sua própria factualidade. Contudo, em um contexto de esvaziamento do significado público das representações teológicas e metafísicas da justiça, a principal ameaça viria da separação entre legalidade e legitimidade ocasionada pela tecnificação do direito: desde o século XIX, a situação da ciência do direito européia está determinada pela cisão entre legalidade e legitimidade. O perigo que atualmente ameaça o espírito da ciência jurídica da Europa não vem mais da teologia e tampouco ocasionalmente de uma metafísica filosófica, mas de um tecnicismo desatado, que se serve da lei estatal como sua ferramenta. (LeR, 422) Para Schmitt, no entanto, esse tecnicismo, ao se fechar na sua própria lógica instrumental, não apresentaria uma resposta para o problema decisivo de como estabelecer uma mediação entre a abstração da idéia do direito e a contingência da existência concreta. Tal mediação, aos olhos de Schmitt, será efetiva caso admita que a lacuna entre racionalidade jurídica e a indeterminação da existência a ser ordenada não pode ser eliminada; dito em outros termos, caso reconheça que a passagem do direito à realidade não se ao modo de uma transição contínua, mas implica a descontinuidade de uma violência que impõe à experiência uma forma que ela não reconhece como sua. O direito se revelaria capaz de governar racionalmente a realidade ao assumir o desgoverno e a irracionalidade que estão na origem da sua própria efetividade.

Dessa maneira, a insistência de Schmitt na guerra, no conflito, nas relações de força e sua recusa concomitante de toda redução da ordem aos seus aspectos puramente normativos não significam negar ao direito a capacidade de dirigir normativamente a existência social. A seu ver, a mera afirmação da prioridade das relações de força e de poder sobre o direito conduziria a um equívoco simétrico ao da crença na auto-suficiência da ordem jurídica. Ou seja, o equívoco de tentar resolver a aporia constitutiva da relação entre direito e existência histórica acentuando unilateralmente um dos termos do problema. Com isso, a vida social se veria reduzida aos seus aspectos puramente factuais e, em última análise, se tornaria presa da mais completa indiferenciação niilista.

Toda tentativa de justificação normativa da existência comum assim como toda interrogação sobre sua legitimidade se tornariam irrelevantes. Nesse sentido, a ênfase unilateral na irredutibilidade da realidade histórica aos princípios da ordem jurídica ou moral é, aos olhos do nosso autor, paralela à conversão, característica do positivismo jurídico, do direito em norma legislada. Ambos seriam tributários de uma lógica da imanência, segundo a qual a ordem das coisas prescindiria de qualquer justificação. Tanto a reificação da legalidade - a redução da lei a um simples fato - quanto a reificação da realidade - a redução da experiência à sua dimensão imediata - implicariam o predomínio de um tipo de pensamento que "se mantém absolutamente objetivo [sachlich], ou seja, nas coisas [bei den Dingen]" (RK, 27). Em um caso como no outro, o problema da validade e da legitimidade se resolveria no aqui-e-agora de uma efetividade factual; ou ainda, na "tautologia de uma crua factualidade [rohe Tatsåchlichkeit]: uma coisa vale, quando vale e porque vale" (VL, 9). Para Carl Schmitt, no entanto, essas questões não poderiam jamais ser reduzidas à condição de um simples fato, a algo que, no seu mutismo moral, se "justificaria" por si mesmo, pela mera capacidade de se fazer presente no mundo das coisas.

À luz dessas considerações, imagino que os termos em que Schmitt formula o problema da validade da ordem jurídica se tornem um pouco mais claros. Para ele, o direito não se resolve no puro dever-ser de uma racionalidade normativa - seja esta a racionalidade substancial da Justiça ou a racionalidade formal da técnica - e tampouco pode ser reduzido à mera efetividade factual das relações de força. Ele procura, ao invés disso, pensar as condições em que ganhe vigência uma "forma, no sentido de uma configuração da vida [Lebensgestaltung]" (PT, 33). Para se tornar efetivo e não se perder em sua própria abstração, o dever-ser do direito tem que se abrir para um elemento que lhe é estranho, ou seja, para a realidade concreta em sua irredutibilidade última a toda ordem normativa. Por isso, Schmitt considera que "todo direito é 'direito situacional' [„Situationsrecht"]"(PT, 19). Essa observação tem duas conseqüências igualmente importantes em seu pensamento. Primeiro: a validade de uma ordem jurídica é condicional, ela pressupõe o estabelecimento de uma situação particular no interior da qual os princípios normativos do direito venham a ter sentido e adquiram vigência. Essa validade requer, portanto, a constituição de um "pedaço de ordem concreta"34, em que as normas sejam coletivamente reconhecidas, ganhando enraizamento na vida social e densidade histórica. A delimitação dessa porção de realidade configurada juridicamente implica um movimento de dupla face, por meio do qual o direito vem a regular os fatos porque a matéria da vida foi, por assim dizer, afeiçoada ao direito, porque criou-se um estado de coisas em que os fatos se tornaram passíveis de regulação jurídica. Em outras palavras: "todo direito é, em primeiro lugar, ordem concreta, ao passo que normas e regras obtém o seu significado e sua lógica na moldura de uma ordem concreta"35. Portanto, como disse pouco, não está em jogo aqui a afirmação "realista" da irredutibilidade do concreto às exigências abstratas de uma racionalidade normativa, mas a tentativa de estabelecer uma relação entre o abstrato e o concreto, entre o dever-ser da norma e o ser da realidade. Essa relação, em Schmitt, não é concebida simplesmente sob a forma da subsunção de um termo no outro ou da sua exclusão recíproca, mas como uma tensão em que os dois extremos se mostram mutuamente referidos. Trata-se, para ele, de pensar o fundamento concreto de uma ordem normativa abstrata. Segundo: o reconhecimento do caráter situacional da ordem jurídica e a correspondente admissão do hiato entre idéia jurídica e realidade histórica não permitiriam conceber o direito plenamente realizado na atualidade imediata da ordem existente. A rigor, o processo de realização do direito jamais se esgotaria em uma forma definitiva. Como observa Michele Nicoletti, o direito se apresenta em Schmitt como "um processo inexaurível de ordenação da realidade e não apenas como um sistema fechado, estático e fixo"36. A ordem jurídica, portanto, não encontra seu princípio de validade em si, em sua própria imediação, mas remete sempre para um "além" de sua mera identidade consigo mesma.

O nomos e a lei Por essa via, creio eu, entende-se o interesse especial que Carl Schmitt tem pelas situações constituintes, ou seja, pelas situações em que está em jogo a própria criação de uma ordem jurídica. Estas ofereceriam um ponto de vista privilegiado para se pensar o problema do fundamento de validade dessa mesma ordem. Em tais situações, não seria possível remeter a validade da ordem à estabilidade e à vigência das regras e das normas. Pelo contrário, a seu ver, a natureza originária dos processos constituintes resultaria do fato de que neles se estaria colocada a necessidade de criar as condições concretas em que normas se tornam aplicáveis aos fatos. Essas condições não seriam simplesmente deriváveis de princípios normativos antecedentes. Com isso, o direito seria obrigado a se confrontar com os aspectos extranormativos de sua própria validade, evidenciando a impossibilidade de uma ordem normativa ter seu fundamento em si mesma. Nas situações constituintes, portanto, o problema da validade e da legitimidade da ordem se transferiria do plano de um juízo ético ou jurídico - incondicionado e puramente normativo - para as mediações concretas por meio das quais o direito ganharia a realidade histórica e social.

Aos olhos de Schmitt, essa ênfase nos processos constituintes assume uma importância particular em uma conjuntura histórica e intelectual em que haveria a tendência a reduzir o direito à lei constituída. Para uma perspectiva que considera que "a legalidade moderna é acima de tudo o modo de funcionamento da burocracia estatal" (NE, 51), aqueles processos seriam desprovidos de significado histórico e de interesse intelectual. Em última análise, estaríamos diante de uma "questão não jurídica" (NE, 51). Isso porque o ponto de vista da legalidade estatal, nos diz ele, "não se interessa pelo direito da sua origem, mas somente pela lei do seu funcionamento" (NE, 51). Com isso, acredito que possuímos alguns elementos para abordar o significado do conceito de nomos e suas relações com o "realismo" da reflexão de Carl Schmitt sobre o direito e a política internacional.

A noção de nomos é, no pensamento de Carl Schmitt, uma das figuras por meio das quais ele procura pensar aquele "direito da origem" e o estabelecimento de uma "ordem concreta"37. Para ele, a idéia de nomos tem um caráter espacial, que está associada ao modo como uma determinada ordem ganha um lugar no espaço.

Nesse sentido, o conceito procura pôr em evidência a "unidade entre ordenação e localização [Ordnung und Ortung]" (NE, 13) que seria característica do direito.

Como observa ele, o espaço como tal não é evidentemente uma ordem concreta. Porém, toda ordem concreta e toda comunidade têm um conteúdo específico em termos de lugar e de espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que toda organização jurídica, toda instituição contêm em si suas concepções de espaço e, portanto, também trazem consigo sua medida interna e sua fronteira interna.38 O pensamento e a prática jurídica do século XIX, ao acreditarem ser possível esgotar o direito na legalidade estatal, teriam perdido a consciência dessa associação entre a ordem jurídica e o espaço. Por isso, Schmitt se recusa a traduzir a noção de nomos pela idéia de lei e busca resgatar aqueles que, a seu ver, seriam os significados primitivos da palavra. Tais significados permitiriam compreender o nomos como um "ato originário que funda o direito [rechtbegründenden Ur-Aktes]" (NE, 16). Esse ato de fundação se apresentaria sob a forma da ordenação de um espaço específico. Mais precisamente, trata-se de "um ato de ordenação e de localização, constituinte e espacialmente concreto" (NE, 47). Ao enfatizar o modo como localização e ordenação estão mutuamente referidas, como, enfim, uma ordem ganha um lugar no espaço ao ordenar esse mesmo espaço, Schmitt procura pôr em evidência a impossibilidade de dissociar, no momento mesmo de constituição de uma ordem jurídica, o plano do dever-ser em relação ao do ser. Aqui, o espaço não se apresenta um elemento neutro, no qual o direito, por assim dizer, vem a se depositar e se locomover.

Para que o direito ganhe realidade é preciso que o espaço venha a ser juridicamente estruturado e adquira uma diferenciação interna, assumindo fronteiras, linhas de demarcação e medidas que anteriormente desconhecia. Ou ainda, o direito ganha realidade partir do momento em que se "eleva um pedaço de terra a campo de força de uma ordenação" (NE, 40). Dessa forma, se introduzem no espaço diferenciações que delimitam um lugar de vigência do direito. Nesse sentido, observa Schmitt, "o direito e a paz repousam originalmente em cercamentos [Hegungen] no sentido espacial" (NE, 44; grifo do autor)39.

Ao tentar recuperar o significado original de nomos, Schmitt procura não resgatar sentidos da palavra que teriam se perdido em sua associação com as idéias de lei e legalidade, mas também especificar os atos que tornariam possível a localização de uma determinada ordem no espaço. Em "Nehmen-Teilen- Weiden", de 1953, ele afirma que o substantivo grego nomos é, em sua acepção primitiva, uma derivação do verbo nemein, tendo o seu sentido determinado por esse último. Segundo ele, esse verbo teria três significados distintos e interligados: designa, em primeiro lugar, o ato de apropriação (nehmen); em seguida, o de divisão e partilha (teilen); e, por último, o de apascentamento, cultivo, produção (weiden)40. Em "Nomos-Nahme-Name", de 1959, Schmitt incorpora um quarto possível significado da palavra nomos: o ato de nomeação, por meio do qual uma dada apropriação ganharia publicidade e visibilidade41. Uma discussão mais detida das implicações teóricas e políticas das interpretações etimológicas que Schmitt propõe talvez valesse um trabalho à parte. Interessa- me, aqui, considerar como essas interpretações permitem iluminar os processos graças aos quais localização e ordenação, espaço e direito vêm a convergir em um nomos. Trata-se de saber, portanto, como um determinado espaço vem a ser o lugar de uma ordem concreta. Dessa forma, os diferentes significados de nomos permitiriam designar os Ur-Akte, os atos originários, graças aos quais ganharia realidade "a primeira medição que funda todos os critérios de medida subseqüentes" (NE, 36). Nesse particular, o ato de apropriação (Nahme) - e, acima de tudo, a apropriação da terra (Landnahme)42 - desempenha um papel decisivo. Como Schmitt observa, "no começo, não está uma norma fundamental [Grund-Norm], mas uma apropriação fundamental [Grund-Nahme]"43. Recuperando uma formulação pouco citada, é o ato de apropriação que primeiramente "eleva" um determinado espaço a "campo de força de uma ordenação". E ele o faz, ao destacar esse espaço do restante da ordem das coisas, conferindo-lhe uma "medida interna" (NE, 38), que anteriormente não existia. Nesse sentido, a apropriação teria prioridade e anterioridade, conceitual e empírica, em relação aos demais significados de nomos. Não divisio primaeva sem occupatio ou appropriatio primaeva44.

O ato de apropriação - e a nomeação, divisão e produção que o acompanham - tornam possível o enraizamento do direito na realidade, graças a um processo que não seria compreensível, contudo, pela remissão a um dever-ser anterior.

Estaríamos, portanto, diante uma de "forma imediata [unmittelbare Gestalt]" (NE, 39), que não se estabelece por uma mediação normativa, mas resulta de um ato que institui uma configuração no espaço. O processo de apropriação, ao destacar um espaço específico diferenciando-o do resto, constitui "o primeiro título jurídico que está na base de todo direito ulterior" (NE, 17). Ele cria, portanto, "o mais radical título jurídico que existe, o radical title no sentido pleno e abrangente da palavra" (NE, 17). A ausência de mediação normativa, não significa, porém, que a feição constituinte de um nomos se resuma a um ato de força, resolvendo-se e esgotando-se em sua pura materialidade. A força de uma apropriação estaria, simultaneamente, no fato de que ela ordena o espaço, ao gravar nele diferenciações que lhe são, em última análise, alheias. Como Schmitt afirma, retomando uma fórmula de Kant, o nomos seria "a lei que distribui o meu e o seu de cada qual no solo" (NE, 18)45.

Desnecessário dizer que, para ele, essa lei não pode ser compreendida a partir de qualquer sentido normativista, mas seria a própria Landnahme, como "o núcleo efetivo de um acontecimento histórico e político inteiramente concreto" (NE, 18). A efetividade desse acontecimento residiria, entre outras coisas, no fato de que a separação entre o meu e o teu, instituída pela Landnahme, reúne em si, de forma inseparável, força material e, por assim dizer, força espiritual. Ela sentido ao solo, ao arrancá-lo da "ordem" na qual se encontrava anteriormente inserido, fosse esta ordem um "regime de apropriação" prévio ou o mero estado natural. Por isso, Schmitt refere-se à apropriação de terra e, por conseguinte, ao nomos como "o arraigar no império de sentido da história [das Wurzelschlagen im Sinnreich der Geschichte]" (NE, 19). Com isso, parece-me que se torna um pouco mais clara a imagem que Schmitt propõe do nomos como uma "forma imediata", ou ainda, como a "plena imediaticidade de uma força jurídica não mediada por leis" (NE, 42; grifo meu). O ato de apropriação, embora tenha um caráter imediato - ou seja, não possa ser concebido em termos de uma mediação normativa -, se apresenta como força jurídica em razão de sua capacidade de estabelecer uma "mediação" entre o plano do direito e da realidade, entre dever-ser e ser. O uso das aspas, no entanto, acaba por se fazer necessário, que a especificidade do nomos como "ato de legitimidade" (NE, 42) reside justamente no fato de que aqueles dois níveis não poderiam, a rigor, ser separados no momento de origem, de tal modo que mediação e imediação, dever-ser e ser tornam-se, no fim das contas, indistinguíveis.

Se voltarmos agora a nossa atenção, pela última vez, para as análises em O nomos da Terra, veremos com mais clareza o papel que a noção de nomos desempenha na narrativa de Carl Schmitt sobre a formação da ordem internacional moderna. Segundo ele, o nomos da Terra "não [é] uma série de regras e convenções internacionais, mas o princípio fundamental da distribuição do espaço terrestre"46. Sendo assim, a constituição de um nomos planetário foi, a seu ver, inseparável dos processos de apropriação, partilha e exploração que se seguiram à descoberta do Novo Mundo e à abertura dos oceanos mundiais. Como ele observa em Terra e mar, toda ordenação fundamental é uma ordenação do espaço. Fala-se da constituição de uma terra ou de uma parcela de terra como sua ordenação fundamental, seu nomos. Portanto, a verdadeira, a autêntica ordenação fundamental baseia-se, em seu núcleo essencial, sobre determinadas fronteiras e demarcações espaciais, sobre determinadas medidas e uma determinada repartição da terra. No começo de cada grande época está, portanto, uma grande apropriação de terra. Em particular, toda mudança e deslocamento significativos da imagem da Terra estão ligados a mudanças políticas mundiais e a uma nova divisão da Terra, a uma apropriação de terra. (LM, 71) assinalei anteriormente que, para Schmitt, a Landnahme do solo americano e a Seenahme das superfícies marítimas globais teriam tornado possível uma diferenciação dos espaços planetários, sem a qual a contenção da guerra alcançada pelo jus publicum Europaeum não teria sido possível. Talvez sequer seja exato falar de modo tão genérico de uma contenção da guerra. Isso porque, como vimos, a Hegung dos conflitos internacionais tem um caráter eminentemente europeu. E não poderia ser de outra forma. Na reconstrução proposta por Schmitt, não como dissociar a limitação da guerra da Hegung de um espaço, ou seja, da delimitação de um lugar no interior do qual as regras que regulam os conflitos façam sentido. Os processos de apropriação de terra e de mar, sua partilha entre as potências européias e a subseqüente exploração apresentam-se, aos olhos do nosso autor, como os atos históricos constituintes de uma "ordenação concreta do espaço". Eles traçam os limites, as fronteiras e as medidas que acabam por tornar possível a vigência de uma certa ordem das relações internacionais. Nesse sentido, o nomos planetário da época moderna é o produto de uma circunstância histórica singular e de um conjunto de respostas particulares ao desafio surgido com a transformação da imagem da Terra no alvorecer da época moderna47. "Ele resultou", afirma Schmitt na introdução de O Nomos da Terra, da fabulosa, inesperada descoberta de um Novo Mundo, de um acontecimento histórico irrepetível. Uma repetição moderna poderia ser concebida em termos de paralelos fantásticos, algo como os homens, a caminho da lua, descobrirem um novo e até então inteiramente desconhecido corpo celeste, que pudesse ser explorado e utilizado para o desafogo das suas lutas terrestres. (NE, 6) Com isso, reencontramos na análise do moderno nomos da Terra uma característica que, segundo Schmitt, seria essencial ao direito, sua natureza "situacional". A racionalização, a humanização, o progresso que a ordem internacional européia trouxe consigo seriam, por assim dizer, duplamente situados. Temporalmente: o nomos da Terra foi o produto de respostas particulares a questões particulares, surgidas em um contexto particular. Como tal, ele não escapa ao destino de tudo que é histórico, ou seja, está sujeito ao "caráter único e irrevogável do acontecer histórico" (GS, 531) e à constatação de que "uma verdade histórica é verdadeira uma única vez" (GS, 544). Espacialmente: a efetividade da ordem internacional européia tem como pressuposto a sua colocação no interior de uma moldura espacial específica. Sendo assim, seria preciso reconhecer sua natureza necessariamente local e, por conseguinte, seu alcance circunscrito. Como observei anteriormente, para Schmitt, a afirmação da natureza irremediavelmente situada do direito não significa uma abdicação diante da factualidade do real e uma renúncia à ambição de regular normativamente a vida social. Significa, antes, a compreensão de que a vigência concreta de uma racionalidade normativa requer a aceitação da natureza contingente de suas próprias soluções e, portanto, a admissão da ausência de fundamento racional último da própria ordem racional. Nesse sentido, a racionalidade do direito não residiria na natureza incondicional dos seus princípios, mas em sua capacidade de configuração da vida histórica. Dito em outros termos, em sua capacidade de conter - no duplo sentido de englobar, encerrar dentro de certos limites e restringir, refrear, deter - a indeterminação e a contingência da existência coletiva no interior de formas concretas. Como observa Michele Nicoletti, em Schmitt "não estão dados os conteúdos da justiça a serem aplicados na realidade (...), mas está dada uma 'forma', e é esta forma que analogicamente o direito deve repetir na tentativa de edificar ordenamentos e condições de vida humana"48. Nesse sentido, o lugar de uma racionalidade jurídica está definido pelo "esforço sempre precário de realizar fragmentos de ordem pacífica"49; um esforço cuja eficácia implica desistir da pretensão de passar do fragmento à totalidade; um esforço, enfim, que encontra sua própria condição de possibilidade no reconhecimento da irredutibilidade última da existência histórica aos princípios do direito. Por isso, aos olhos de Schmitt, a ordem do jus publicum Europaeum - a grande realização histórica da "filha primogênita (...) do racionalismo ocidental" (LeR, 421), a ciência jurídica européia - não pode significar mais que o estabelecimento de "um império da razão relativa" (NE, 114).


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