Por que o movimento é a essência da natureza?
Considerações iniciais sobre a Física
Ao ter um primeiro contato com a Física de Aristóteles o estudante de Filosofia
ou mesmo um leitor interessado qualquer poderá legitimamente se perguntar:
sabemos que a noção de movimento é muito importante nessa obra, visto que a
própria definição de entes naturais oferecida no livro II é a daqueles entes
que têm em si mesmos e por si mesmos a capacidade de movimento e repouso, mas
porque isso é assim? Ademais, como compreender a arquitetura conceitual de uma
obra que, como se sabe, não foi elaborada por Aristóteles no sentido em que
dizemos hodiernamente que um livro foi escrito pelo seu autor? As oito lições
sobre a physis, isto é, os oito livros agrupados e nomeados de Física por
Andrônico de Rhodes estariam fortemente relacionados entre si ou poderíamos lê-
los em grupos mais ou menos independentes de tratados que se ocupariam de
questionamentos correlatos? Que relação haveria, por exemplo, entre os dois
primeiros livros que tratam respectivamente do devir em geral (da genesis
portanto), a saber, do processo do vir a ser tanto dos artefatos quanto dos
entes naturais (conteúdo do livro I) e do devir natural (a physis) que ocorre
apenas com os seres vivos (conteúdo do livro II)? Mais ainda: o que isso tudo
teria a ver com o movimento (a kinesis) e com o papel predominante que ele
adquire nos livros sucessivos da Física que tratam das condições necessárias
para que se possa pensar o movimento (por exemplo, o lugar e o tempo) ou do
entendimento da própria natureza do movimento por meio da análise do infinito
ou do contínuo?
Ora, muito da complexidade da Física - e vale lembrar que os princípios dessa
obra presidirão todos os textos aristotélicos relativos à natureza, tais como
as suas investigações sobre os animais, a alma, ou o céu -, pode ser mais bem
compreendida por meio de uma análise minuciosa dos três primeiros capítulos do
livro III que tratam precisamente do movimento. Essas observações iniciais não
são originais1, mas, dada a sua importância para o entendimento geral da
Física, bem como dado o pouco conhecimento de que desfrutam, julgamos adequado,
no âmbito de um congresso dedicado à compreensão da physis na Filosofia Antiga,
explorá-las um pouco mais.
O parágrafo inicial do livro III coloca claramente a questão da inter-relação
entre o livro II, cujo conteúdo é a natureza, com os livros III e IV.
Aristóteles começa reafirmando aquilo que ele já havia definido no livro
anterior, a saber, que "a natureza é princípio de movimento e mudança" e
conclui afirmando que: dado que a investigação que ele está fazendo é
precisamente sobre a natureza, "é preciso não ignorar o que seja [o] movimento,
pois ao desconhecê-lo necessariamente se desconheceria também a natureza"
(Phys. III 1, 200b 14-15). A seguir, ele apresenta de modo sucinto, mas
bastante fiel ao que será tratado na sequência do próprio livro III e no livro
IV, a saber: a análise do movimento que pertence às coisas contínuas e do
infinito, intimamente conectada ao contínuo - visto que, por definição,
contínuo é aquilo que é infinitamente divisível em outros contínuos -; e a
análise do lugar e do tempo - imprescindíveis para que se possa pensar o
movimento - e do vazio, do qual o Estagirita nega veementemente qualquer
existência, diferentemente do que ele faz com o infinito, do qual, como se
sabe, nega apenas a sua existência atual, mas não o seu modo de ser potencial.
Ora, levando-se em conta que o aprofundamento da discussão sobre o movimento,
na qual Aristóteles especificará os tipos de movimento que existem (de acordo
com algumas de suas categorias), bem como a diferença dos mesmos em relação à
mudança serão objetos do livro V - pois ainda no livro IV Aristóteles afirma
claramente que para as análises que então está realizando não importa
diferenciar entre movimento e mudança (cf. Phys. IV 10, 218 b19-20) - e que o
livro VI se ocupará precipuamente da investigação acerca do contínuo, percebe-
se claramente a centralidade e importância desses capítulos iniciais do livro
III e de que modo eles, por assim dizer, "amarram" conceitualmente os livros
centrais da Física.
Essa "amarração" é justificada metodologicamente, pois nas palavras do próprio
Aristóteles "o estudo das coisas particulares é posterior ao estudo sobre as
comuns" (Phys. III 1, 200b 24-25). Com efeito, desde o início da Física, mais
precisamente no primeiro capítulo do primeiro livro ele já nos havia advertido
quanto ao método que ele adotaria nessa obra: "por isso é preciso ir das coisas
universais para as particulares" (Phys. I 1, 184a 23-24: dio ek ton katholou
epi ta kath'hekasta dei proienai). Sendo assim, faz sentido que ele investigue
primeiramente o movimento, considerado globalmente, isto é, sem especificá-lo
categorialmente e sem diferenciá-lo da mudança, antes de proceder às
determinações que ele fará do mesmo no âmbito do livro V. Note-se que o mesmo
procedimento metodológico, exposto claramente no primeiro capítulo do livro I2,
já havia sido adotado na estruturação dos dois livros inicias da obra, visto
que no primeiro ele analisa o conceito mais amplo e menos determinado de
genesis para somente no segundo especificá-lo tratando então dos conceitos de
physis e de poiesis, ou mais precisamente de techne , ou seja, do processo de
geração tanto dos entes naturais quanto dos entes produzidos3. Voltemo-nos,
contudo, à análise do movimento tal como Aristóteles a elabora nos três
primeiros capítulos do livro III.
2. Pressupostos iniciais para a análise dos três primeiros capítulos do livro
III:
Aristóteles mobiliza alguns de seus conceitos mais conhecidos para pensar o
movimento, a saber, ele faz uso das noções de ato e potência, assim como das
categorias a fim de tentar apreender a essência do movimento. Em primeiro
lugar, é preciso compreender que para Aristóteles não pode haver movimento ou
mudança à margem das coisas, pois estas mudam sempre consoante as categorias de
substância, quantidade, qualidade ou lugar. Note-se, pois, que essa
diferenciação categorial é a base mesma da diferenciação posterior,
estabelecida no livro V, entre os diferentes tipos de movimento, ou seja,
crescimento e diminuição, alteração, translação e a mudança. Não há, portanto,
nenhum sentido em atribuir ao movimento aqui analisado um estatuto apenas
substancial: ele necessariamente é um movimento - seja ele quantitativo,
qualitativo ou local - que ocorre em uma substância. Mesmo quando mais tarde,
mais exatamente no livro V, Aristóteles diferenciar estes tipos de movimento da
mudança (metabole), esta não poderá ser simplesmente pensada como uma
substância, mas sim como algo que ocorre com a substância. Como então
caracterizar esse algo que ocorre seja em a própria substância (crescimento e
diminuição, alteração ou translação) seja com a própria substância (geração e
corrupção) de um modo mais global? A saída de Aristóteles é a de recorrer aos
conceitos modais de ato e potência. Tanto no caso da substância, quanto no caso
das demais categorias, elas podem ser pensadas quer potencialmente, quer
efetivamente. Como veremos, os três primeiros capítulos dessa obra nos oferecem
uma breve, mas intricada e densa análise do movimento e da mudança propondo-nos
uma definição que parece abarcar ambas essas formas de devir natural que serão
distinguidos pelo Estagirita apenas no livro V.
Do ponto de vista metodológico, Aristóteles procede nesses três capítulos de
modo bastante peculiar4, pois, ao invés de começar realizando a sua tradicional
investigação dialética acerca das posições filosóficas dos pensadores
pregressos, ele, após mostrar a pertinência do estudo do movimento para o
conhecimento da natureza - pois, como ele mesmo enfaticamente afirma, se não
conhecermos o movimento, desconheceremos igualmente a natureza na medida em que
a noção de movimento está implícita na própria definição de natureza -
anunciará seu intento de oferecer uma definição geral de movimento.
Antes de expor essa definição de movimento, entretanto, Aristóteles enuncia
aquilo que Filopono, em seu comentário ao terceiro livro da Física, denominou
os três axiomas fundamentais que possibilitam a emergência de tal definição, a
saber: a) existem apenas coisas que são em atualidade e coisas que são em
potência e em atualidade e estas últimas só podem se manifestar sob a figura de
uma das categorias, b) o relativo está associado ao ativo e ao passivo e, em
geral, ao movente e ao movido e o móvel move-se pela ação do movente e, por
fim, c) não há movimento para além das coisas ditas em correspondência às
categorias do ser cujas determinações estão presentes nas categorias do
movimento de modo duplo, ou seja, em seu aspecto presencial ou em sua ausência.
Analisemos mais de perto, a seguir, cada uma dessas premissas antes de nos
determos na definição de movimento que Aristóteles nos oferecerá na sequência.
O primeiro axioma parece bastante claro e já anuncia a importância das
determinações modais na definição de movimento que será proposta pelo
Estagirita. Ele afirma peremptoriamente que tudo o que é, pode ser apenas de
dois modos: ou como pura atualidade, caso das "primeiras substâncias" (protai
ousiai) que são, na linguagem do De interpretatione (23a23ss), "atualidades sem
potência" (aneu dynameos energeiai). Ora, é curioso observar que nesse mesmo
passo do Peri hermeneias Aristóteles mencione, nessa escala ontológica dos
seres estabelecida por critérios modais, além dessas atualidades puras, as
atualidades acompanhadas de potência, o que corresponde exatamente ao afirmado
nesse primeiro axioma que estamos investigando, mas, sobretudo, que ele
mencione também (pace Filopono) aquilo que "jamais é em atualidade, mas apenas
potência" (oudepote energeiai einai alla dynameis monon). Isso é especialmente
significativo, pois no início do capítulo um do livro III, antes mesmo de
enunciar os seus axiomas, Aristóteles já havia mostrado a íntima correlação
entre o movimento e o infinito, na medida em que ao ser um contínuo, o
movimento tem de ser definido por meio de sua infinita divisibilidade. Ora,
aqui em seu primeiro axioma essa possibilidade de algo ser somente em potência
não é explicitada, mas sabemos que é exatamente esse assunto que ocupará o
Estagirita nos capítulos sucessivos do livro III nos quais ele analisará
minuciosamente a noção de infinito (apeiron). Ele concluirá essa pesquisa sobre
o apeiron com a tese, essencial para a compreensão da definição de movimento,
que o infinito existe sim de algum modo, qual seja, potencialmente.
O segundo axioma refere-se à noção de relativo e é importante observar que o
capítulo três desse terceiro livro investigará detalhadamente o par ação/
paixão5 e especialmente o par movente/movido com o intuito de determinar onde
efetivamente se dará o movimento: no movente ou no movido. Entenderemos melhor
a importância desse axioma, contudo, somente após termos enunciado e discutido
a definição aristotélica de movimento.
Passemos então ao terceiro e último axioma. Ele enuncia que não se pode falar
da existência de um movimento à margem das coisas, pois as coisas mudam sempre
segundo a substância, o quanto, o qual ou o lugar. Assim como não pode haver um
ente que não esteja subsumido a uma das categorias do ser, parece igualmente
não poder haver nenhum movimento à parte das categorias nas quais o movimento
pode ocorrer e que são precisamente as quatro acima citadas. Mais importante
ainda: Aristóteles afirma que para se pensar no movimento é preciso supor
sempre a duplicidade de perspectivas ínsita a cada uma dessas categorias do
movimento, ou seja, no caso da substância, a forma e a privação, no caso da
qualidade, o branco e o negro, no caso do quanto, o completo e o incompleto, e
no caso do lugar, o acima e o abaixo ou o leve e o pesado. Embora o Estagirita
conclua a exposição desses axiomas afirmando que há tantas espécies de
movimento e mudança quanto espécies de ente, sabe-se que isso não se sustenta,
pois não há sentido algum em se falar de um movimento ou de uma mudança que
ocorra segundo o relativo ou segundo o tempo. O relativo e o tempo pertencem à
análise do movimento de outro modo, a saber, na medida em que eles são itens
constitutivos para se compreender o próprio movimento. Por conseguinte, não
pode simplesmente haver um movimento temporal ou relacional, pois todo
movimento ocorre no tempo e poderá ser quantificado pelo tempo, bem como ocorre
porque há um movente e um movido, ou seja, um algo que atua e um outro algo que
sofre e que recebe a ação daquele primeiro (o movimento, portanto, ocorre
sempre entre o par relativo movente-movido).
3. A análise da definição de movimento
Após a exposição de seus três axiomas, Aristóteles enuncia a sua primeira
formulação da definição de movimento, qual seja: "o movimento é a atualidade do
ente em potência enquanto tal" (Phys. III 1, 201a10-11: he tou dynamei ontos
entelecheia, hei toiouton, kinesis estin). Note-se que ele a enuncia sem ter
feito previamente nenhuma investigação dialética sobre as teses de outros
pensadores acerca do movimento e sem tampouco ter realizado uma investigação
inicial na qual haveria perguntado se o movimento realmente existe (a famosa
pergunta ei esti), antes de procurar determinar por meio de uma definição o que
ele é (o questionamento pelo ti esti). Muito provavelmente Aristóteles julga
desnecessário se perguntar a essa altura de sua inquirição pela existência ou
não do movimento, pois já no livro II da Física ele havia afirmado
enfaticamente que "tentar demonstrar que a natureza existe é ridículo", pois
lhe parece óbvio que dentre as coisas que são, muitas são entes deste tipo e,
por conseguinte, tentar demonstrar as coisas evidentes por meio das obscuras
seria próprio apenas de quem não soubesse discernir as coisas que são mais
cognoscíveis em si mesmas das coisas que não o são (cf. Phys. II 1, 193a2-6).
Resta-nos agora, portanto, tentar entender essa primeira formulação da
definição de movimento, bem como as duas formulações subsequentes. O primeiro
ponto importante a observar nessa formulação inicial é que o termo entelecheia
não pode ser traduzido com um termo processual qualquer, como por exemplo, o
termo atualização, sob pena de a definição proposta ser redundante, pois se
definiria então movimento por alguma ideia de processo ou passagem, em suma,
pela própria ideia de movimento. Devemos, por conseguinte, traduzi-lo
necessariamente por ato ou atualidade. Adiantando um pouco a forte e importante
conclusão a que Aristóteles chega quase nas linhas finais do curto segundo
capítulo desse breve tratado do movimento, é difícil apreender o que seja o
movimento, como ele mesmo afirma, pois o movimento não pode ser somente
privação, potência ou atualidade, mas ele de fato é, ele existe de algum modo.
O fato mesmo de ele ser algo, é indicado pelo Estagirita pelo termo
entelecheia. Em outras palavras, o movimento é e por ele ser ele é dito ser uma
atualidade. Mas o que exatamente ele é? Ele não pode ser uma pura atualidade,
tampouco uma pura potência, de modo que a estratégia teórica de Aristóteles
parece ser aquela de amalgamar esses dois conceitos opostos de atualidade e
potência para tentar expressar isso que, segundo nosso próprio autor, é difícil
de apreender, mas que existe. Por essa razão, o Estagirita o define
primeiramente como atualidade do ente em potência enquanto tal. O que
significaria a cláusula hei toiouton? O exemplo de Aristóteles pode nos ajudar
a visualizar melhor o que ele quer exprimir por meio dela. Ele nos diz que a
atualidade do ente em potência enquanto tal pode ser ilustrado pelo exemplo do
construível. E o que é o construível? Obviamente não é a casa, pois quando esta
existir efetivamente, a construção já terá acabado. Mas, note-se que o
construível tampouco são os tijolos, as madeiras ou as telhas enquanto tais,
pois em si mesmos esses materiais são precisamente apenas tijolos, madeiras e
telhas. Onde encontrar então o construível? Ele só existirá enquanto existir a
construção, mas se esta caracteriza o processo do que ocorre com o construível,
este propriamente nada mais é do que esses materiais que servem como matéria
prima da casa considerados, contudo, não em si mesmos, mas sim em vista de
outra coisa, a saber, da casa. A atualidade do construível é a construção na
medida em que o movimento, aqui a construção, ocorre no móvel, ou seja, ocorre
naquele membro do par relacional que recebe o movimento e não no seu correlato
que atua sobre ele.
Um outro exemplo fornecido por Aristóteles parece apontar na mesma direção
assegurando assim ao Estagirita uma precisão maior em sua formulação inicial.
Pensemos em uma estátua de bronze. O bronze enquanto tal, isto é, na medida em
que o consideremos em si mesmo, é distinto do ferro ou da prata. Ele possui,
portanto, uma essência e esta é precisamente a de ser bronze e não, por
exemplo, ferro ou prata. Ora, a atualidade de sua potência de ser bronze só
pode ser a atualidade de sua potência de sofrer um processo de deteriorização
natural, o que é diferente de ele ser em potência uma estátua. Embora ambos
esses processos sejam igualmente atualidades de potências, uma delas é natural
e a outra artificial.
Diante desse exemplo, Aristóteles refaz a sua primeira formulação da definição
de movimento e propõe a seguinte: "A <atualidade> do ente potencial, quando em
atualidade, está em atividade não enquanto ele mesmo, mas sim enquanto móvel"
(Phys. III 1, 201a28-29: he de tou dynamei ontos, hotan entelecheia on energei
ouch hei auto all' hei kineton). Qual o ganho conceitual dessa reformulação? O
ganho parece ser o de diferenciar com maior clareza a atualidade de algo
considerado em si mesmo, por exemplo, o bronze enquanto bronze, de sua
consideração enquanto móvel. Mas essa ressalva também parece complicar as
coisas, pois o processo de deteriorização natural do bronze não seria
igualmente movimento, no sentido mais amplo com que o Estagirita emprega esse
termo aqui? Será que só poderemos falar em movimento ao levarmos em
consideração uma intervenção extrínseca ao ente móvel que determinaria o seu
fim? Mas isso seria absurdo, na medida em que Aristóteles quer justamente
definir um movimento natural. Com efeito, não é o conceito mesmo de natureza
como princípio e causa imanentes do mover-se e do estar em repouso, que,
segundo ele, nos forçaria a ter de definir primeiramente o movimento? Por que
então os exemplos por ele trabalhados e não apenas mencionados (como outros
exemplos a que ele apenas alude como o do ensino, da cura, da rotação, do
saltar, do amadurecimento e do envelhecimento) são os de produtos - a casa e a
estátua de bronze - e não os de processos naturais? Por que então ele faz
questão de diferenciar a atualidade do bronze enquanto bronze e a atualidade do
bronze enquanto estátua? Por que distinguir o ser do bronze e o ser de algo
móvel em potência? O bronze em si mesmo não poderia ser pensado igualmente como
a atualidade de sua potência natural, isto é, de sua decomposição?
Tentemos aclarar algumas dessas questões. No caso da construção, podemos
facilmente diferenciar três etapas lógicas da mesma, a saber, o momento em que
há apenas os materiais de construção - tijolos, madeiras e telhas -, mas em que
eles ainda não são visados por um construtor enquanto algo único que
Aristóteles denomina genericamente pelo termo oikodometon, a seguir, o tempo em
que esses materiais são vistos como algo único por um construtor que pretende
construir uma casa e, por fim, o momento em que a casa já foi construída. Claro
que a construção propriamente dita só ocorre então no tempo intermediário e não
no momento inicial ou no momento final desse processo. Obviamente, nesse
exemplo, como no outro da estátua de bronze, Aristóteles simplifica
drasticamente seus exemplos, pois antes de haver tijolos e telhas eles teriam
de ser fabricados, o que envolveria um outro tipo de movimento. Igualmente no
caso do bronze, temos de levar em conta que este ao não ser uma liga metálica
encontrada enquanto tal na natureza se constitui somente por um processo
artificial no qual se reúnem minerais de cobre e estanho que serão processados
em um fogo, no caso da Antiguidade, alimentado a carvão. Apenas por meio da
reação química gerada entre o anidrido carbônico e os minerais de cobre e
estanho é que se obterá o metal desejado, ou seja, o bronze propriamente dito.
Em outros termos: também aqui, fazendo abstração desse movimento anterior que
seria necessário para produzir o bronze propriamente dito, podemos discernir
lógica e didaticamente três etapas: o momento em que se tem o bronze, o tempo
em que essa nova liga metálica é considerada pelo artesão tendo em vista a
estátua que ele quer produzir e, por fim, o momento em que a estátua já tiver
sido realizada. Percebe-se claramente nesses dois exemplos que o olhar do
construtor ou do artesão é essencial para que aquilo que não existe, a saber, a
casa e a estátua, sejam vistos como potencialmente presentes no que de fato
existe: tijolos e telhas, de um lado, bronze, do outro. Sabe-se perfeitamente
que há um paralelismo entre as causalidades operantes nos entes naturais e nos
entes produzidos, como Aristóteles mesmo o afirma no livro II e conhece-se
também o fato de ele recorrer frequentemente aos exemplos artificiais para
explicar os naturais, provavelmente motivado por uma importante premissa
epistemológica de seu pensamente, a saber, o de que é mais fácil conhecer
primeiramente o que é mais cognoscível para nós para depois conhecermos o que é
mais cognoscível em si mesmo. E os artefatos por nós produzidos são, sem
dúvida, mais cognoscíveis para nós, enquanto os entes naturais, embora mais
cognoscíveis em si mesmos, são-nos mais dificilmente conhecidos. Apesar dessas
observações metodológicas, fica difícil compreender plenamente, contudo, o
passo no qual Aristóteles afirma que a atualidade do bronze enquanto bronze não
é movimento, pois tenderíamos a pensar que também essa atualidade fosse kinesis
ou, na linguagem do livro V, metabole. Por que então ele afirma que isso não é
assim? A reflexão dele nesse passo parece indicar que ele quer diferenciar uma
unidade substancial, subjacente a tudo o que se move ou muda, mas ao mesmo
tempo manter uma diversidade entre os aspectos contrários que propriamente
mudam (enfim, a discussão presente no livro I). De modo que, como ele afirma,
embora o sangue seja o mesmo, a doença ou a saúde que o acometem não são
idênticas, caso contrário, seria o mesmo adoecer e sarar. O mesmo se passa, diz
ele elipticamente, com a cor e o visível. E, em seguida, ele oferece a terceira
enunciação de sua definição: "é evidente que o movimento é a atualidade do que
está em potência enquanto em potência" (Phys. III 1, 201b4-5: he tou dynatou,
hei dynaton, entelecheia phaneren hoti kinesis estin). Pensemos no exemplo da
cor e do visível e tentemos entender um pouco melhor o que Aristóteles deseja
explicitar. A cor e o visível, diz ele nesse passo, não são o mesmo, assim como
o a atualidade do bronze enquanto bronze não é a mesma que a atualidade do
bronze enquanto estátua, isto é, a atualidade do visível enquanto visível não
seria idêntica à atualidade do visível enquanto cor. O visível (horaton)
funcionaria aqui como o construível (oikodometon)? E a cor seria então o
resultado do visível? Mas isso não levaria à estranha conclusão de que não mais
haveria o visível quando se vê a cor? Isso parece um tanto bizarro, pois no DA
quando investiga o horaton ele o identifica explicitamente à cor por duas vezes
(cf. DA II 7, 418a26ss). Todavia, ao retomarmos o exemplo do construível,
talvez isso se torne mais compreensível. Podemos perceber tijolos e telhas, mas
poderíamos perceber o construível enquanto tal? Em outros termos: o construível
é objeto de algum tipo de percepção? A resposta parece ser que não, pois o
construível não é ver simplesmente tijolos e telhas, mas sim vê-los tendo em
vista a casa e esse "ter em vista" evidentemente não é algo que pertença à
esfera perceptiva. Por outro lado, o DA afirma explicitamente que a kinesis
juntamente com a eremia, ou seja, o movimento e o repouso são sensíveis comuns.
Como relacionar de maneira coerente esses dois textos? De acordo com a passagem
elíptica do livro III, faria sentido afirmar que o visível enquanto tal não é a
cor, mas apenas a condição não perceptiva que possibilitaria a visão da cor e
que quando vemos efetivamente a cor não mais podemos ver o perceptível enquanto
tal? A brevidade da passagem na qual o Estagirita menciona a cor e o visível
não parece nos fornecer elementos suficientes para uma clara resposta.
Apenas no capítulo dois do livro terceiro é que Aristóteles mencionará, ainda
que apenas alusivamente, as posições de outros pensadores sobre o movimento.
Como dissemos, ele primeiro define o que é o movimento no capítulo um e somente
após fazê-lo é que ele confronta a sua maneira de conceber o movimento com a
daqueles, que ele não nomeia e que teriam definido o movimento como alteridade,
desigualdade e não ser. Filopono pensa que ele se refira aos pitagóricos muito
provavelmente porque o próprio Aristóteles mencione aqui o célebre passo da
Metafísica onde ele estabelece duas colunas com pares de opostos que
representaria a posição dos pitagóricos e que nessa coluna o movimento, dado a
sua indeterminação constitutiva, deveria ocupar o lado dos termos privativos.
Além disso, algumas passagens do Timeu (cf. 57e-58c) e do Sofista (cf. 256 d-e)
parecem testemunhar a presença dessas ideias sobre o movimento no próprio
Platão. Mas, na medida em que o movimento para Aristóteles não pode ser pensado
apenas em termos negativos tais como a privação ou a potência, mas tampouco em
termos presenciais como se fosse apenas uma atualidade, resta a ele relacionar
essas duas esferas o que ele faz em sua própria definição ao afirmar que o
movimento é a atualidade do potencial enquanto potencial. Isto quer dizer: nem
pura atualidade, nem mera potência, mas sim atualidade de uma potência enquanto
potência. Essa atualidade é diferente, pois ela é constitutivamente incompleta.
E essa incompletude está diretamente relacionada ao fato do movimento ser um
contínuo e de este ser definido, segundo Aristóteles, por meio da noção de
infinito como aquilo que é infinitamente divisível. Ou seja: a análise do
movimento apresenta as mesmas dificuldades que a do infinito e a do contínuo.
Trata-se de uma realidade cuja essência reside em sua incompletude, mas que,
apesar disso, existe. Por isso, a sua definição deve afirmar a realidade de
algo que é, daí o termo entelecheia e, ao mesmo tempo, deve poder indicar que
isso que é, possui uma deficiência em si mesmo, isso jamais chegará a se
completar, pois quando estiver completo, o movimento ele mesmo não mais existe.
Exatamente isso ocorre no caso da estátua ou da casa. Quando terminadas, nada
mais resta do movimento. E enquanto este existir, o produto acabado a que esse
movimento conduz não pode existir.
O problema abordado por Aristóteles no terceiro capítulo é o que diz respeito
aos termos relativos. O que ele precisa afirmar é que o movimento envolve um
par de opostos, algo que age e algo que sofre essa ação, mas onde exatamente o
movimento se daria: naquilo que move ou no móvel? O Estagirita procura
esclarecer essa questão por meio de um exemplo que lhe é particularmente caro,
qual seja, o do ato de apreender. Ele ocorre em quem ensina ou em quem aprende.
Evidentemente que para Aristóteles ele só pode ocorrer no que aprende, caso
contrário, teríamos de aceitar o absurdo de que quem ensina, exatamente isso
que ensina, aprende. Ou ainda que quem vai de Atenas para Tebas faz o mesmo que
se ele voltasse de Tebas para Atenas. Percebe-se claramente o que o Estagirita
deseja com esses exemplos. Ele quer enfatizar que o percurso é o mesmo, mas que
uma coisa é ir para Tebas e outra voltar de Tebas. Assim como aprender não é
ensinar, ir não é voltar. O que ocorre é que em ambos os casos se dão uma
atualidade do que move e outra do que é movido, mas ambas essas atualidades são
na verdade uma e a mesma, isto é, elas são a única atualidade, por assim dizer,
de um mesmo movimento lido apenas em dois sentidos opostos. O caminhar que pode
ser ir ou voltar e o ensino (tomado em sentido amplo como o duplo ato de
ensinar e aprender) que pode ser o ensinar ou o aprender. Essa concepção geral
dos relativos, portanto, do que move e do móvel, é fundamental para Aristóteles
por dois motivos: primeiro porque a forma precisa ser transmitida pelo contato
do que move com o movido, e isso é exatamente o que é afirmado algumas vezes
nesse terceiro capítulo e segundo porque como a série tem de ser finita a fim
de ser cognoscível, é necessário postular a existência de um primeiro movente
imóvel que move sem ser movido, dando origem assim à cadeia causal de motores
moventes e movidos. Mas o paradoxo é que se essa cadeia causal que caracteriza
a teologia aristotélica - que parte do movente imóvel que é pura atualidade,
passando pelos entes físicos que são atualidades com potências de ser e de
devir - tem de possuir necessariamente um primeiro termo imóvel, mas que move,
não será jamais possível determinar o primeiro movimento no qual qualquer
movimento teria começado. Podemos tão somente constatar que ele começou, mas no
interior de cada série cinética o primeiro membro é inalcançável e isso porque
pelo fato de o movimento ser um contínuo, sempre que se acreditar ter podido
determinar um início da série cinética poder-se-á a partir dele recuar
infinitamente, pois qualquer grandeza contínua possui a propriedade essencial
de poder ser infinitamente divisível. Um interessante paradoxo que surge com
essa discussão pode ser bem ilustrado com o fato de que para a percepção uma
grandeza não pode ser infinitamente divisível, pois o infinito só existe em
nosso pensamento, como Aristóteles nos mostra muito bem em sua análise do
infinito, jamais em puro ato. Assim, para a percepção, como o interessante
capítulo 6 do De sensu mostra muito bem, toda e qualquer grandeza perceptível
possui uma grandeza mínima, diferentemente da análise noética que podemos fazer
quando consideramos essa grandeza com o nosso pensamento e dizemos que toda e
qualquer grandeza é, por definição, infinitamente divisível. Poderíamos extrair
daí a conclusão de que apenas o intelecto, portanto, nos faculta a
possibilidade de compreender plenamente o movimento, dado que este é um
contínuo e este por definição só pode ser conhecido pelo infinito que, a sua
vez, não existe em ato, mas apenas em potência? Mas, se for assim, como devemos
então compreender o realismo aristotélico? O movimento, ou melhor, os entes
móveis existem e não precisam ser demonstrados, pois são evidentes, mas poderia
alguém provido tão só da faculdade de percepção conhecer o movimento? Não seria
necessário supor que ele precisasse também recorrer ao intelecto, pois é este
que nos possibilita pensar o infinito? Sendo assim, o modo dos animais
conhecerem os entes móveis seria realmente o mesmo modo de nós o conhecermos?
Quando Aristóteles afirma em um passo do livro VI da EN que o reto e o branco
são o mesmo para todos, mas que o que é bom e o que é saudável é distinto para
peixes e homens (cf. 1141 a), poderíamos igualmente sustentar isso em relação
ao movimento? Poderiam os animais compreender o movimento tal como um homem o
faz? Poder-se-ia "ver" o construível de outro modo a não ser com os "olhos da
mente"? Os animais não estariam vendo apenas as coisas particulares? Teria essa
capacidade de, por assim dizer, "ver" o construível alguma relação com a noção
de empeiria em Aristóteles? Uma noção pouco estudada, mas essencial para se
estabelecer a ligação entre as percepções e o pensamento?
Um impasse final que gostaríamos de mencionar aqui é o fato de Aristóteles
propor dois procedimentos aparentemente diversos para a análise do movimento.
Primeiramente a análise oferecida nesses três breves e densos capítulos
iniciais do livro III e posteriormente as intricadas análises métricas
propostas em todo o livro VI. Como relacioná-las? Seriam análises propostas em
épocas diversas? O fato é que no livro VIII da Física Aristóteles retoma sua
definição do movimento e parece preferi-la ao método métrico apresentado no
livro VI. Esse método parece estar profundamente inspirado no confronto com
Zenão e com seus paradoxos sobre o movimento. Com efeito, o fato de que a única
alusão a outras teses sobre o movimento no livro III diga respeito aos
pitagóricos ou a Platão parece indicar que Aristóteles considerava Zenão como
um negador radical do movimento (o que fica claro das análises desenvolvidas no
primeiro livro da Física) e que, ao contrário, ele via nos pitagóricos ou em
Platão apenas tentativas insuficientes de compreender a essência do movimento.
Parece que a linguagem métrica desenvolvida à exaustão no livro VI para refutar
Zenão e que faz uso principalmente da isometria entre grandeza, tempo e
movimento e da infinitude potencial presente em cada um deles não interessa
mais ou pelo menos não interessa mais tão fortemente a Aristóteles no livro
VIII onde ele retorna explicitamente à definição de movimento proposta no livro
III (cf. 251 a8-10 e 257 b6-9). Poderíamos dizer então que o retorno às
análises sobre noções modais e os termos relativos presentes no livro III
estaria mais conforme a necessidade do livro VIII de se postular um termo
inicial para a série aparentemente infinita movente-móvel? A análise métrica,
trabalhada minuciosamente no livro VI, que enfatiza a propriedade de
divisibilidade potencial infinita de todo e qualquer contínuo, ao contrário,
nunca poderia ter sido utilizada por Aristóteles para postular um primeiro
movente imóvel. Parece ser essa, portanto, a razão principal desse retorno
ocorrido no livro VIII à definição de movimento tal como previamente elaborada
no livro III.