Aspectos teóricos do pensamento histórico de Quentin Skinner
Uma insatisfação que sinto diante do tradicional método "textualista"
é que, embora seus expoentes em geral afirmassem estar escrevendo uma
História da Teoria Política, raras vezes o que nos apresentaram pôde
ser considerado, de fato, História.
Quentin Skinner
Quando falo de intencionalidade dos autores, não estou me referindo
ao significado dos textos ou elocuções, mas ao significado do ato de
escrever o texto ou proferir uma elocução. Na verdade, minha teoria
da interpretação, diferentemente de outras teorias mais tradicionais,
dá grande ênfase ao que chamo de atos linguísticos.
Quentin Skinner
Neste ensaio bibliográfico aplico-me a comentar alguns aspectos que considero
centrais no pensamento histórico de Quentin Skinner. Não tomo como propósito
acompanhar as alterações de suas visadas teóricas desde o aparecimento dos
primeiros ensaios de sua autoria, por volta dos fins dos anos 1960 e inícios
dos 70, até os trabalhos produzidos mais recentemente. Em cerca de quarenta
anos de intensa atividade intelectual é mesmo presumível que as técnicas
hermenêuticas propostas pelo historiador inglês tenham passado por alterações
mais ou menos sensíveis e que, em alguns pontos, o autor tenha até deixado de
concordar consigo mesmo.1 Entretanto, é igualmente natural que um núcleo de
pressupostos tenha resistido à ação transformadora do tempo, permanecendo como
eixo das concepções em relação às quais o autor manteve-se fiel, o que lhe
permitiu preservar-se vivo no interior do rico e variado campo teórico de sua
especialidade. É este "núcleo duro" apanhado em meio à leitura de seus textos
reatualizados e de seus depoimentos mais recentes acerca das técnicas
interpretativas das obras de pensamento , o objeto central desta análise.
No artigo "Razões da Filosofia Política", que integra o livro de ensaios Teoria
Geral da Política, Norberto Bobbio examinou o clima de tensão existente em
alguns campos limítrofes das Ciências Humanas. Nesse texto, o filósofo italiano
afirmou que "As nem sempre boas relações, para não dizer a desconfiança
recíproca, entre historiadores das doutrinas políticas e filósofos da política
são efeito de incompreensíveis (perdoem o trocadilho) incompreensões, quando
não de completos mal-entendidos".2 Há nesta ironia conteúdo para vastas
reflexões. E é nesse ponto que surgem diversas dúvidas, como as expostas por
John Horton, acerca da forma "mais adequada" e da real importância de se
estudar os chamados textos clássicos da Teoria Política. Para reconstruir o
significado histórico dos textos seria preciso estudá-los por uma perspectiva a
princípio histórica, empregando os métodos e práticas do historiador? Ou dever-
se-ia focá-los por um prisma filosófico como obras que pretendem oferecer
verdades gerais acerca da natureza da vida e da organização política com vistas
a avaliar a força de seus argumentos, a revelação de suas suposições e outras
coisas do gênero?3 Segundo a concepção de alguns historiadores do pensamento
político, a Teoria Política clássica pode ser adequadamente estudada lançando-
se mão do método histórico. Mesmo especialistas de relevo no campo da Teoria
Política, como o filósofo teuto-americano Leo Strauss, que tomaram o "partido
da intemporalidade" das ideias dos grandes pensadores, reconheceram a
necessidade do emprego de uma abordagem histórica dos textos políticos.4 Mas,
ainda que se tente dividir este problema em partes, para oferecer uma resposta
mais ordenada e rigorosa, a tendência é a de elevar a complexidade do debate
teórico. Isso porque são remotas as possibilidades de consenso sobre o que é ou
o que deve ser a referida abordagem histórica no estudo da Teoria Política e em
quais operações intelectuais ela consiste. O historiador inglês Quentin Skinner
observou o grau de complexidade da questão ao afirmar que "Há tantos tipos de
História quantas razões sérias para estar interessado no passado, e tantas
diferentes técnicas de pesquisa histórica quantos métodos racionais de seguir
esses interesses".5
O contextualismo linguístico professado por Quentin Skinner desenvolveu-se a
partir dos fins dos anos 1960 e inícios dos 70. As fontes constitutivas que
estabeleceram os seus marcos teóricos são bem diversas. Dentre as influências
mais diretas contam-se, além do pensamento histórico de Robin George
Collingwood, a filosofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein e de John Langshaw
Austin,6 bem como várias outras "escolas" contemporâneas das Ciências Humanas.
Naqueles anos 60 os artigos teóricos de Skinner despontaram como um conjunto de
considerações críticas no interior de um gênero tradicionalmente conhecido nos
países de língua inglesa como História do Pensamento Político.7 Nas pegadas de
Collingwood, ou seja, procurando repensar o pensamento dos autores do passado,
o contextualismo linguístico foi responsável por reflexões polêmicas no plano
das teorias da interpretação de textos frequentadas pelos historiadores da
Filosofia. Como se sabe, a História collingwoodiana é uma forma de
contextualismo radical das ideias, fundada na aposta de que há uma identidade
fundamental e/ou uma contiguidade natural entre o sujeito que interpreta e o
objeto alvo de uma análise. Sujeito e objeto são, por assim dizer, manufaturas
humanas, artefatos feitos do mesmo material. Ora, considerou Collingwood, tudo
aquilo que o homem realiza é feito em relação aos outros homens iguais a ele,
que são como ele. Há, portanto, uma "relação colaborativa" entre o pensador e o
leitor, porque ambos pertencem a uma mesma comunidade, a dos seres falantes.
Para Collingwood, interpretar era uma operação que consistia em introduzir-se
na cabeça dos autores do passado e olhar para as suas circunstâncias singulares
tentando vê-las com o olhar deles próprios. Radicalizando um pouco, isso é algo
assim como disse Nietzsche: "Só há um meio de compreender a tragédia grega: ser
Sófocles".8 Isso é também como afirmar: mais do que entender um pensamento, é
possível apropriar-se dele como se fosse nosso próprio pensamento.9 A referida
identidade fundamental de sujeito e objeto expressa pelo pensamento asseguraria
a realização do processo interpretativo. Segundo Collingwood, a interpretação
das ideias passadas seria possível porque, escapando da ação corrosiva do
tempo, o pensamento tornar-se-ia matéria acessível em diferentes épocas pois,
para além de um sentido do texto, poderia revelar-nos uma intenção, ou seja,
que "efeitos" sociais o autor pretendia produzir com o seu escrito. O
contextualismo de Skinner deriva diretamente dessa linhagem de interpretação. A
dívida ou os vínculos deste historiador para com o gênero de História
professado por Collingwood podem ser identificados em muitas passagens e/ou
confissões de sua extensa obra, como a que segue: "Ainda me recordo de quão
impressionado fiquei ao ler pela primeira vez a Autobiografiade R. G.
Collingwood, onde ele afirma que a história de todas as ramificações da
filosofia carece de um objeto estável, na medida em que as perguntas bem como
as respostas mudam continuamente". 10
O que passou a ser conhecido como "escola histórica de Cambridge da Teoria
Política" teve em Peter Laslett o seu primeiro expoente já nos anos 1940. Ele
foi, por assim dizer, o líder intelectual de uma geração posterior à sua
própria. A título de ilustração das contribuições de Laslett para a História do
Pensamento Político, foi ele quem descobriu que a mais importante obra política
de John Locke, o Tratado sobre o governo civil, havia sido concebida e escrita
muitos anos antes da Revolução Gloriosa de 1688-89. O fato é que se formara uma
longa tradição, sedimentada há mais de dois séculos, que dava por líquido e
certo que o texto de Locke era posterior à queda de Jaime II, e que fora
escrito com a finalidade explícita de legitimar a ascensão de Guilherme de
Orange.11 A partir da reflexão crítica de Quentin Skinner, que trabalhou sob a
orientação de Laslett em seus primeiros anos em Cambridge, a História do
Pensamento Político, gênero histórico com sólida tradição intelectual nos
Estados Unidos e na Inglaterra desde os inícios do século XX, conheceu um
notável impulso de renovação. Alguns textos teóricos escritos a partir dos anos
1960 por historiadores ingleses da Teoria Política como John Dunn, John Pocock
e o próprio Skinner, acabaram por desencadear debates que foram responsáveis
pela circulação de novos pressupostos no plano das teorias interpretativas dos
textos políticos. E a obra crítica desses autores deu origem a uma discussão
que ainda não se esgotou.
Em sua origem, essa corrente revisionista das teorias interpretativas de textos
políticos atacou algumas das concepções ainda hegemônicas na cena
historiográfica daqueles anos, abalando convicções há muito consolidadas. No
alvo de sua crítica estavam, principalmente, a carência de historicidade e o
pragmatismo imediatista predominantes na História do Pensamento Político anglo-
americana.12 Historiadores como Skinner, autor dos primeiros e mais enérgicos
ensaios teóricos em defesa de um novo programa de pesquisa, esgrimiram contra
uma História do Pensamento Político que ainda se ocupava em explorar aspectos
anacrônicos, simplificadores ou mesmo insustentáveis à luz dos avanços da
pesquisa histórica como, por exemplo, a equívoca ideia da "tradição" filosófica
do Ocidente. Para ele, era difícil conceber que os grandes textos da cultura
filosófica possuiriam um statusespecial de trans-historicidade porque foram
manufaturados por algumas mentes brilhantes do passado, mentes que teriam o dom
de cometer sortilégios como o de transformar os assuntos dos quais se ocuparam
em temas eternos e, portanto, obrigatórios tanto para a juventude grega ao
tempo de Platão quanto para os estudantes nas metrópoles norte-americanas e
inglesas nos meados do século XX. Se as questões filosóficas expostas por tais
mentes superiores fossem de fato eternas e ubíquas, tal foco analítico
permitir-nos-ia imaginar que Maquiavel, que Hobbes, ou mesmo que qualquer outro
grande pensador, em meio a seus transes de genialidade filosófica, poderiam ter
premeditado, por exemplo, o que deveriam escrever que pudesse ser digno de
ocupar utilmente a cabeça de leitores que viriam ao mundo quatro ou cinco
séculos depois deles.
A crítica à ideia de uma "tradição" como "circuito fechado" na história da
filosofia política clássica, na qual os grandes autores estariam integrados em
contínuo e aberto diálogo uns com os outros, foi desenvolvida nos seguintes
termos: "Um cânone de textos principais era amplamente visto na época como o
único objeto apropriado de pesquisa na História do Pensamento Político. A
razão, alegava-se, é que esses textos podem por definição ser considerados como
indo ao encontro de um conjunto de perenes questões definitivas do próprio
pensamento político. Era amplamente assumido que, se o estudo histórico da
moral ou da teoria política deve ter algum traço característico, este terá de
assumir a forma de extrair dos textos clássicos quaisquer insightsque eles
possam nos oferecer sobre questões gerais da sociedade política na época
presente. Eles estão lá para serem apropriados e postos para trabalhar".13 Uma
das orientações de Skinner era para que os historiadores da Teoria Política não
se concentrassem numa galeria de autores clássicos supostamente em diálogo.14
Em vez de tentar acompanhar uma animada e inteligente conversação desenvolvida
por sucessivas gerações de sábios pensadores,15 os historiadores da Teoria
Política deveriam avaliar os textos dos grandes autores nas tradições
filosóficas específicas em que surgiram. Isso porque a dita sabedoria
filosófica em afinado concerto ao longo de dois milênios e meio de história não
passava de mais uma dentre muitas mitologias,16 de uma patranha inventada pelos
golpes de criatividade de certos historiadores mais imaginativos, e logo
admitida por numerosos outros historiadores desprovidos de sentido histórico.
Ora, considerou Skinner, a ideia da tradição filosófica (o circuito fechado das
grandes mentes) era uma construção intelectual concebida por historiadores do
século XX para tentar compreender as complexidades do próprio tempo de
incertezas em que viviam. Movidos por impulsos presentistas, esses
historiadores desejavam estabelecer vinculações entre os vários livros por eles
considerados como clássicos da Teoria Política para, das culminâncias do saber
alcançado por tal procedimento, extrair as lições necessárias e aplicá-las às
circunstâncias de seu mundo. A percepção do autor em foco, e de uma série de
outros historiadores que rejeitaram o mito da tradição, era a de que nada havia
que comprovasse qualquer relação verdadeiramente histórica entre os ditos
grandes livros da referida tradição ocidental de Filosofia Política.17 e, sendo
assim, nada poderia haver de mais equivocado de um ponto de vista histórico que
a "atitude prática" adotada tanto como instrumento de análise do tempo presente
quanto como função legitimadora da relevância dos estudos históricos de tal
gênero.
Ao invés de focar a História do Pensamento Político como a pesquisa de
continuidades, de sequências de grandes ideias impactantes e, portanto,
"utilizáveis", o melhor ângulo a ser captado pelo historiador seria aquele de
uma História como investigação das linguagens políticas, ângulo que permitiria
a análise das sociedades passadas em relação dialógica consigo mesmas. A ideia
era identificar os horizontes historicamente variáveis da política, portanto,
não absolutos, para então penetrar nos mundos intelectuais perdidos no tempo e
tentar recuperar os sentidos que os escritores políticos formaram de si mesmos,
de seu tempo, de sua sociedade. Os inventores da ideia de uma tradição
filosófica autocentrada em questões perenes recusaramse a pensar na
possibilidade de um retorno ao passado por considerarem que os seus
dificultosos pontos cegos, que as suas embaraçosas zonas de sombras
constituíam-se numa empresa difícil e desprovida de fins úteis. Estudar ideias
que estavam ainda em fase de processamento nas sociedades já desfeitas pela
ação do tempo seria o equivalente a uma cansativa viagem, sem garantias de real
proveito. Nesse sentido, tal gênero de História atinava apenas com a
possibilidade de identificar consequências instrumentais para emprego seguro na
superfície clara e cômoda do presente, quando as grandes ideias filosóficas do
passado já haviam se tornado doutrinas bem estabelecidas e, por fim, pudessem
ser empregadas na orientação das melhores causas da atualidade. Daí, por
exemplo, a preferência pelo estudo das ideias de liberdade do liberalismo, e o
descarte da derrotada ideia de liberdade conforme expressa pela teoria neo-
romana.18
De fato, o primeiro obstáculo a ser transposto por essa nova História do
Pensamento Político seria o da consagrada ideia da tradição. Para Skinner,
aquilo a que se denominara tradição era apenas uma convenção acadêmica que
procurava destacar artificiosamente a série dos grandes pensadores
estabelecendo entre si uma prosa animada. A ideia da tradição prestava-se
também como uma teleologia retrospectiva, espécie de paradigma regulador para o
estudo da Teoria Política clássica porque, além dos diálogos entre autores,
estabelecia suposições como a de que o sentido dos sistemas filosóficos, de
Platão e Aristóteles a Rousseau e Hegel, foi o de projetar os valores e
amadurecer as instituições que pudessem vicejar nas sociedades democráticas e
liberais do século XX. Como teleologia retrospectiva, a História do Pensamento
Político deveria incrementar a formação dos cidadãos para a vida plena nessas
sociedades, oferecendo-lhes algumas armas teóricas para estabelecerem crítica
eficaz contra os valores malsãos propugnados pelos Estados totalitários. Ao
longo dos anos 1930-50, os historiadores que aceitaram a ideia da tradição como
uma entidade histórica autônoma ou mesmo como uma unidade e/ou totalidade
natural, acabaram por referendar um pressuposto prático: havia um fim educativo
nessas grandes filosofias e seu propósito era o de explicar o tempo presente à
luz dos mestres do passado. Entretanto, o fato evidente é que o interesse
centrado nos debates de cúpula dos maiorais da sabedoria filosófica pouco ou
nada revelava acerca dos "consumidores" contemporâneos ou mesmo dos críticos
primitivos das suas ideias políticas que, como seria razoável supor, foram
concebidas no interior de uma cápsula comum de tempo. De mais a mais, afirmar
algo tão esquemático como as ideias de tal autor serem desdobramentos ou
prefigurações das de outro dado autor nada ensinava que fosse "História
verdadeira" (expressão de Montesquieu). Argumentos como esses engrossaram a
crítica de uma falsa História do Pensamento Político que primava pela carência
de interação entre concepções filosóficas e sociedade.19 Ao analisar falhas de
tal natureza presentes na "História das ideias descarnadas" (expressão de
Lucien Febvre), o contextualismo linguístico inglês deu relevo à crítica do
divórcio entre as ideias e o mundo real, em níveis tão importantes como os das
condições de emergência, de circulação e de enraizamento de uma obra de
pensamento político.
Para críticos como Quentin Skinner, nesse gênero de História não era possível
identificar um interesse real em apreender as grandes obras de pensamento a
partir do sentido histórico singular que cada uma possuía. Desse modo, o autor
se colocou contra a "atitude prática" que se voltava para a utilização das
ideias passadas como preparação do exercício da cidadania nas sociedades
contemporâneas. A referida atitude prática é assim explicada por Michael
Oakeshott: "O homem prático lê o passado de trás para frente. Seu interesse
situa-se apenas no plano de um conhecimento de acontecimentos que se prestem a
ser relacionados com ações no tempo presente. Ele organiza o passado para
explicar o mundo atual, para justificar sua própria realidade, para tornar seu
mundo mais tranquilo, menos incerto".20
Historiadores como Skinner julgaram que faltava algo de mais substantivo às
tradicionais Histórias do Pensamento Político: historicidade, por exemplo.
Seria necessário, portanto, superar pressupostos falseadores que faziam dos
mestres do passado os guias do tempo presente. Em vez de selecionar "matérias
úteis" ou "utilizáveis", a interpretação contextualista preocupou-se em indagar
acerca de formas mais adequadas para se alcançar o sentido original de um
texto: aquele que o próprio autor havia concebido no tempo em que escreveu. Não
se tratava mais de realçar atitudes pragmáticas como a "do quê" estudar na
História do Pensamento Político para extrair "fins lucrativos", quero dizer,
para alcançar finalidades práticas. Tratava-se muito antes de estabelecer
critérios eficazes do "como" estudar uma obra de pensamento, do "como" formular
a um objeto por vezes perdido em passado distante perguntas de uma maneira
pertinente. O objetivo era tornar a História Intelectual um tipo de
investigação fundada na própria diferença essencial dos tempos históricos. "Em
particular", afirma o historiador em foco, "talvez verifiquemos que a aquisição
de uma perspectiva histórica nos ajude a tomar uma certa distância de alguns de
nossos pressupostos e hábitos de pensamento atuais, e, quem sabe, até a
reconsiderá-los. O estudo do passado não precisa ser menos instrutivo quando
desvenda contrastes, em vez de continuidades com o presente".21 Como se
apercebera um importante filósofo de uma geração anterior, Michael Oakeshott,
os textos antigos de fato não podem ser espelhos refletores de nossos
preconceitos. Ora, considera Skinner, os estranhos mundos de Maquiavel, de
Hobbes, enfim, dos autores canônicos da Teoria Política em geral, oferecem
aspectos bem mais interessantes se nos valermos de atitudes, digamos assim,
mais flexíveis, quando os confrontarmos.
Como já foi observado, a obra de Skinner acentua o reconhecimento da
irrelevância de uma filosofia da história subjacente à civilização ocidental. O
contextualismo linguístico por ele defendido colocou sob suspeita a chamada
"filosofia perene", perspectiva um pouco claudicante daqueles especialistas que
tendiam para a articulação muitas vezes descabida dos problemas do presente com
a interpretação do passado. De fato, uma das questões fundamentais enfrentadas
pelo contextualismo linguístico foi ter percebido que, das duas uma: ou a
história das ideias políticas se engessava de vez na procura incessante e
equivocada do sentido atual e do valor prático da tradição clássica, que de
Platão a Marx parecia formar um circuito fechado de interlocutores
privilegiados em contínuo diálogo; ou assumia "atitude histórica" reconhecendo
a natureza incontornavelmente datada de suas fontes. Desse modo, a História do
Pensamento Político deveria apreender as reais preocupações de um Aristóteles,
de um Maquiavel, de um Rousseau, de um Montesquieu, por exemplo, naqueles
elementos que revelassem à posteridade as intenções de um escritor político
confrontando-se com as questões que foram próprias de sua época. Para o autor,
Não podemos esperar atingir esse nível de compreensão estudando tão-
somente os próprios textos. A fim de percebê-los como respostas a
questões específicas, precisamos saber algo da sociedade na qual
foram escritos. E, a fim de reconhecer a direção e força exatas de
seus argumentos, necessitamos ter alguma apreciação do vocabulário
político mais amplo de sua época.22
Tais propósitos parecem demonstrar que não bastará ler atentamente um texto até
devassá-lo em suas filigranas mais sutis. Para alcançar o sentido autoral
provável numa obra de pensamento político seria necessário também conhecer os
seus elementos geradores. Isso para dizer que a compreensão de O Príncipeou do
Leviatã, por exemplo, passará pelo esclarecimento do vocabulário normativo, das
tensões sociais, dos conflitos políticos e ainda pelo alcance de toda uma gama
de elementos que fizeram as histórias italiana e inglesa nos séculos XVI e
XVII. Essa História do Pensamento Político proposta pelos contextualistas
ingleses parece reconhecer bem o valor de um arrazoado que nunca perderá seu
realismo: um autor é sempre um autor, acompanhado de suas circunstâncias. Assim
sendo, seria necessário diminuir em muito a ênfase de uma História interessada
apenas em ouvir ecos do passado no presente. Ao mesmo tempo, seria necessário
buscar uma interpretação do passado que tomasse como matérias-primas de base a
linguagem e a cultura, isto é, o texto e o contexto. Nesses aspectos residiria
a atitude teórica capaz de aproximar o historiador de uma compreensão histórica
dos discursos de gente morta há tanto tempo, empresa das mais complicadas como,
aliás, já havia observado um arguto filósofo da linguagem, o inglês Thomas
Hobbes. Nos Elementos da Lei, livro de 1640, Hobbes já advertia sobre a
opacidade dos textos antigos nos seguintes termos: "Ainda que as palavras
constituam-se nos registros que nos restaram das opiniões e desejos dos outros,
seus equívocos são tão comuns, de acordo com a diversidade de contextos e da
companhia em que andam, que deve ser extremamente difícil descobrir as opiniões
e o significado daqueles homens que se foram há muito tempo, e que não nos
deixaram outro testemunho disso, a não ser os seus livros". 23
Ao longo dos anos 1970, e no decorrer da década seguinte, o debate
historiográfico acerca das teorias de interpretação dos textos políticos acabou
por adquirir novos contornos, o que resultou no fortalecimento do
contextualismo linguístico como corrente de vanguarda. Naquela quadra, Skinner
persistiu na defesa de que a História do Pensamento Político deveria ocupar-se
com a reconstituição do sentido histórico das ideias. Tratava-se, portanto, de
continuar descobrindo o que os pensadores políticos pretenderam dizer em seus
textos. Para tanto, seria necessário recuperar as intenções de tais autores a
partir da análise do contexto histórico de produção de suas obras, levando-se
também em consideração os eventos e os debates travados frente às questões
políticas formuladas em seu próprio tempo por outros agentes. Consultado dessa
maneira, o texto do passado assumiria a dimensão de uma resposta consciente,
como se tratasse de uma dimensão de ato linguístico, o que poderia revelar seu
sentido quando focado em contraste com a sua época. Por essa perspectiva, a
operação interpretativa consistiria "... em aprender a ler e reconhecer os
diversos idiomas do discurso político da forma pela qual se encontravam
disponíveis na cultura e na época em que o historiador está estudando".24
Segundo John Pocock, uma atitude como essa tornaria possível dominar o
vocabulário normativo de autores do passado que, como testemunho de suas ideias
e de seus programas de ação, legaram-nos apenas escritos embaçados pelos
séculos. Acerca desse aspecto na análise dos textos antigos o próprio Skinner
observa a questão da seguinte forma: "... quando falo da retórica hobbesiana do
Leviatã, emprego essa palavra da maneira como o próprio Hobbes a entenderia,
segundo creio. Dito de outro modo, utilizo-a para descrever um conjunto
característico de técnicas linguísticas (...) derivadas das doutrinas retóricas
da inventio, da dispositioe da elocutio, os três elementaprincipais das teorias
clássicas e renascentistas sobre a eloquência escrita".25
Isso significa afirmar que a linguagem de Hobbes não é vidro transparente
através do qual o pensamento do autor pode ser apreendido pelo leitor sem que
se interponha entre ambos alguma interferência provocada pela ação deformadora
dos tempos históricos. O argumento central de Pocock e de Skinner é o de que o
domínio do vocabulário normativo que tanto descreve quanto legitima ações de
personagens históricos permitiria ao intérprete compreender a linguagem na qual
se expressou o autor do passado. Isso porque tal domínio possibilitaria
estabelecer contato com a mensagem que um dado escritor político tentou
transmitir para aqueles interlocutores que considerou como a sua audiência.
Dessa forma, o vocabulário normativo poderá ser compreendido como o contexto
linguístico, como a "vida" própria das palavras numa dada "instituição
explícita de tempo" (expressão de Castoriadis), como as convenções muito
específicas do processo de comunicação de uma dada cultura. Além do vocabulário
normativo, será também preciso reconhecer o estilo retórico do qual o autor
lançou mão para provocar, por exemplo, efeitos tencionados de ambiguidade. Ora,
Hobbes camuflou algumas passagens, ou mesmo partes inteiras do Leviatã, com
certos códigos retóricos, para poder falar, em tom menos ortodoxo e com um
pouco mais de segurança, de temas como crenças religiosas e dogmas, verdadeiros
campos minados nos meados do século XVII. E, mais ainda, num reino tomado pela
guerra civil que, na essência, também era guerra de religião. Para alcançar
seus objetivos, ele teve de "diluir" um pouco a verdade que pretendeu expressar
em algumas metáforas mais palatáveis a seus leitores contemporâneos, para não
sentir na própria pele os efeitos degradantes das masmorras ou de outros
"expedientes extraordinários" (expressão de Maquiavel) normalmente utilizados
contra a impertinência dos heréticos. Isso explica a defesa do emprego das
assim chamadas "estratégias retóricas oblíquas".26
Ao se reconhecer os diferentes idiomas do discurso tornar-se-á possível ao
historiador apreender o que o autor quis dizer. Como as ideias não se separam
da linguagem, é sempre por um processo de incorporação da escrita do autor do
passado que se ganharia o poder de pensar o que ele mesmo buscava pensar.
Apesar das inúmeras limitações dos métodos de análise e de interpretação, a
compreensão dos textos de autores antigos é uma operação intelectual possível,
defende o historiador em tela. Para tentar reconstituir o sentido original de
um texto político será preciso contrastá-lo com o contexto histórico em que foi
produzido, procurando obter informações detalhadas acerca do grupo social do
autor, a conjuntura em que escreveu sua obra, seus interesses intelectuais,
seus engajamentos políticos, etc. Esse inventário de problemas
historiográficos, esse questionário de dúvidas e de incertezas, da forma como
aparece nos textos de Skinner, resume-se à seguinte indagação: o que escritores
políticos como Maquiavel, como Hobbes ou, de uma maneira geral, como qualquer
outro pensador político, "estavam fazendo" quando escreviam? Nesse gênero de
pesquisa histórica trata-se, fundamentalmente, de empreender uma investigação
para estabelecer os elementos de uma autoria que teve, num ponto circunscrito
do passado, uma existência concreta, singular, datada, marcada por experiências
geradoras do próprio texto. Assim procedendo, o contextualismo linguístico de
Skinner acentua o poder que um autor do passado detém sobre sua própria
criação, o domínio que ele tem de seus próprios pensamentos. Em vez dos
conhecidos "significados privados" (expressão de Paul Ricoeur)27 ou seja,
aqueles sentidos subjetivos que são estabelecidos mais ou menos ao gosto do
freguês, porque o discurso fixado no suporte "texto escrito" escaparia dos
horizontes circunscritos das intenções autorais para tornar-se obra aberta nas
mãos de leitores imaginativos , Skinner pretende desvendar as singularidades
estabelecidas no passado pela própria autoria. Para tanto, o historiador das
ideias terá de percorrer o terreno cheio de obstáculos que é o tempo histórico,
atravessar as suas camadas de diferentes densidades, para assim transpor a
superfície do texto, o que significa que ele não deve se contentar com aquilo
que o texto aparentemente diz quando apanhado fora de seu ambiente natural.
Isso porque aquilo que um texto afirma ao leitor atual pode não coincidir, e
frequentemente não coincide, com o que quis afirmar o autor.28
Esse modelo ou técnica de interpretação revela seu rigor, quero dizer, as suas
propriedades positivas, na medida em que requer um conhecimento apurado das
convenções linguísticas (ou vocabulário normativo), convenções que deram forma
aos debates políticos do passado. Assim, não basta ler e interpretar as
passagens mais complexas dos textos clássicos da Teoria Política, advertem os
intérpretes contextualistas, meramente à luz dos próprios textos. É preciso ir
além, porque é necessário que o historiador se familiarize com o sentido
histórico das palavras e, por conseguinte, com o significado histórico das
ideias. Para tanto, ele deve elaborar um questionário inicial de problemas que
poderia partir de indagações como: o que tais ideias significavam no tempo em
que foram concebidas, por que foram concebidas, de que forma foram utilizadas e
que tipo de resultado efetivo pretendiam alcançar, ou seja, quais ações
práticas tencionavam desencadear? Como já foi afirmado, a orientação teórica
não mais deverá levar simplesmente ao "quê" estudar numa obra de pensamento. A
questão bem mais relevante será "como" acercar-se de tais intenções porque
raramente os mestres do passado lembraram-se de enunciálas com a clareza que
gostaríamos. Para uma tal empresa, serão necessárias ferramentas, ou seja,
instrumentos que se prestem ao inquérito histórico das ideias daqueles que só
deixaram os seus textos como pálidos vestígios de sua passagem pelo mundo.
O que ao historiador das ideias resta fazer é seguir um "método" apropriado
para compreender o sentido de uma linguagem que não é mais transparente. Apesar
de encoberto pelas camadas do tempo histórico, é possível distinguir o sentido
escondido nos textos do passado. Ora, se os homens pensam e utilizam a
linguagem de que dispõem no interior de uma dada cultura para expressar seus
pensamentos, além de uma atividade linguística eles também realizam uma ação
social. Se a linguagem é o meio para pensar e expressar sensações, sentimentos,
vontades, atitudes, etc., esse processo ganha forma e realidade efetivas em um
ambiente social. Então, ao dizer algo sobre o seu mundo histórico, o autor
manifesta seu desejo de realizar algo, expressa sua vontade de atuar. O jargão
técnico dos filósofos da linguagem a isso denomina por "atos de fala" ou "atos
do discurso". Assim sendo, tentar distinguir as conexões das ideias políticas
de um autor com o mundo histórico no qual elas foram geradas é parte de um
esforço que poderá levar à reconstituição do sentido original de um texto.
Se os autores pensaram e expressaram suas expectativas por meio da linguagem em
pleno curso de uma existência vivida em comum com outros indivíduos, descobre-
se o que pensaram pela investigação daquilo com que se ocupavam no momento da
elaboração do texto em estudo. A interrogação poderia ser assim formulada: o
que Maquiavel estava fazendo quando escreveu O Príncipe?Se for
possíveldistinguiro "lugar de elaboração" dessaobra(expressão de Pocock),
compreender-se-á coisas nebulosas como, por exemplo, o porquê de tal texto do
historiador de Florença ser tão estranho aos mais autênticos valores políticos
cultuados por ele mesmo. Ora, fica evidente a natureza bifronte do historiador
florentino, pois o seu pensamento político não forma uma unidade, ainda que O
Príncipee os Discursos sobre a Primeira Década de Tito Líviotenham sido
concebidos simultaneamente. Uma diferença tão gritante entre dois textos
políticos de uma mesma lavra é um problema difícil e a coisa tornase ainda mais
misteriosa porque não há nenhuma declaração esclarecedora por parte do autor
acerca da bem mais do que aparente descontinuidade de seus projetos políticos
em tais textos. Nesse ponto, a pesquisa de gênero também é um complemento
importante da interpretação, porque alarga a via de acesso aos meios de
expressão utilizados pelo autor. Com efeito, os espelhos de príncipes eram o
gênero literário mais adequado para uma empresa como aquela tentada por
Maquiavel em seu mais famoso livro.
Para concluir estas notas cabe dizer ainda que a tentativa de reconstituição do
vocabulário normativo por meio do qual se expressaram os escritores políticos
tornaria possível acessar o sentido original de uma obra de pensamento. Assim
sendo, o propósito de uma interpretação histórica do texto político seria o de
compreender os efeitos práticos gerados pelo exercício intelectual do autor, ou
melhor, de esclarecer acerca de que tipo de ação um determinado autor pretendia
desencadear a partir de ideias postas em circulação sob a forma de discurso
político para "esculpir" esta ou aquela realidade. Para ele, acessar esse
propósito seria possível colocando-se um discurso central em contraste com
outros discursos, fossem de autoria do próprio autor ou mesmo de interlocutores
que com ele estabeleceram relações.29 As relações intertextuais se
configurariam assim como uma ferramenta eficaz no trabalho da interpretação e
apreensão do sentido histórico das ideias. Para tanto, seria necessário cotejar
documentos pessoais do autor em tela, ou textos de variada autoria, desde que
entretecessem conexões com a obra escolhida como foco da análise. Como se
referiu o próprio autor, "... a análise do contexto que abarca uma obra
específica faz parte de um círculo hermenêutico muito mais vasto que a simples
exegese do texto".30 Assim, para alcançar uma compreensão do sentido atribuído
por Hobbes ao Leviatãnão bastará ler e reler o Leviatãvezes sem conta. Será
preciso ler o Leviatãconfrontando-o com outros testemunhos deixados pelo
próprio Hobbes. Mais do que isso, será adequado também comparar tais
testemunhos com os registros de autores que viveram sob as mesmas
circunstâncias de Hobbes. Skinner não deixa de observar a importância de
analisar as reações dos contemporâneos ao pensamento de um autor de relevo.31
Tal atitude é recomendada não meramente para uma melhor compreensão do grande
autor, mas para alargar o foco acerca da sua circulação e penetração em seu
contexto, a forma como foram percebidas suas ideias, como foram admitidas e/ou
recusadas.32