Por uma metafísica de tramas: o mundo sem arché
1. A metafísica de paisagem
A história (oficial) da ontologia no ocidente parece ser uma história de uma
busca por uma imagem final ' uma imagem total, capaz de englobar tudo e que se
pareça com uma lista de ingredientes para qualquer receita. Trata-se de uma
imagem de uma tabela periódica, uma tabela onde têm lugar objetos, substâncias,
propriedades, eventos, estados, fatos e coisas que tais. O esforço parece ser o
de apresentar os componentes de uma imagem. Uma imagem: ser é ser passível de
contemplação de algum ponto de vista privilegiado. Ser é ser parte de uma
paisagem que poderia ser vista de alguma parte.
A metafísica deveria, então, apontar para uma paisagem que, em princípio,
poderia ser visível desde algum ponto de vista especial; e sua tarefa é a de
proporcionar um vislumbre desta perspectiva (que torna inadequada ou parcial
qualquer outra perspectiva). A metafísica é assim entendida como a empreitada
de, uma vez alcançado o ponto adequado para a contemplação, inventariar o que
há no mundo, apresentando uma ontologia.1 Haveria, desse modo, uma paisagem
original, alheia a toda interação que temos com ela e, de modo mais geral,
alheia a qualquer trama que algum dos componentes suscita, impele ou propicia
sobre qualquer outro.
O pensamento em metafísica se orientou pela busca de uma ordem por trás do
caos. Talvez por isso a preocupação ontológica se concentrou em buscar
categorias e classes de entes. A filosofia do que existe tem seu foco em um
esforço de almoxarife: uma tipologia das coisas. Estes tipos últimos são a
base, o fundamento das coisas ' uma suposta arché ' que rege pelo menos as
coisas naturais.2 A imagem da paisagem, desse modo, se associa a imagem da
realidade última, da paisagem na qual todas as demais paisagens colapsam.
Trata-se de uma imagem desprovida de qualquer interferência de qualquer outra
parte da imagem.
É certo que a imagem foi objeto de todo tipo de críticas endereçadas à
possibilidade mesma de qualquer conhecimento metafísico. Como seria possível
ascender a este ponto de vista privilegiado que permite ver as coisas com
independência dos nossos hábitos, da constituição das nossas condições para a
experiência, das nossas predisposições e das nossas capacidades conceituais?
Alguns argumentos, em grande medida tributários das suspeitas de Hume, tentaram
estabelecer que toda imagem do mundo que sejamos capazes de apresentar não é
mais do que uma correlação entre nós e as coisas. Uma visão de um olho
universal posicionado em parte alguma não pode ser alcançada e, se é assim, não
há a possibilidade de um conhecimento metafísico (ou nem sequer de termos
crenças metafísicas verdadeiras). Uma vez que o conhecimento metafísico não
pode ser outra coisa senão uma paisagem contemplada de um sítio neutro, ele
fica parecendo inatingível. Porém, ainda assim, a imagem (da paisagem) persiste
como a imagem de uma impossibilidade.
Podemos diagnosticar um dilema com respeito às suspeitas acerca do conhecimento
metafísico. Ou a metafísica é uma empreitada possível já que podemos alcançar
(ou vislumbrar) um ponto de vista em que as coisas possam estar dissociadas da
correlação que elas tenham com as outras (e conosco), ou tal ponto de vista é
inalcançável e não podemos mais do que tratar da correlação entre nós e as
coisas. Ou seja, ou podemos alcançar a perspectiva neutra através da qual vemos
as coisas mesmas com independência de nossa interferência nelas ou nos
conformamos com nossas próprias perspectivas sobre as coisas (como uma solução
de segunda categoria, já que a perspectiva que importa não pode ser alcançada).
Diante deste dilema, muitas vezes nos encontramos em um movimento pendular
análogo àqueles que McDowell tornou populares (1994). Sentimos, por um lado, a
atração de buscar uma paisagem sem interferência, de uma arché do mundo que
seja independente de nossas capacidades e sentimos, por outro lado, a atração
de uma suspeita de que tudo o que pensamos está permeado de um elemento que é,
em algum sentido, irremediavelmente nosso.
Esse par de atrações promove um movimento pendular. Este movimento provoca
diferentes respostas em filosofia. Começaremos mencionando apenas duas.
Podemos, por exemplo, adotar certos realismos locais conjugados a uma imagem
global do conhecimento que implique que não podemos senão conhecer as coisas
tais como elas aparecem para nós. Ou seja, podemos ter atitudes realistas que
atendem a um pólo de atração associadas a uma atitude geral kantiana que atende
ao pólo oposto de atração. A segunda resposta é, como no caso dos pêndulos de
McDowell, enfrentar o perigo de uma oscilação permanente. Na primeira resposta
tentamos conciliar os dois polos; na segunda, assumimos que eles são
inconciliáveis.
Uma outra resposta possível é considerar um ponto de vista que pareça mais
tangível. Caso a paisagem de um ponto de vista de parte alguma3 seja
inacessível, resta-nos a paisagem de um ponto de vista que seja, em algum
sentido, nosso. Trata-se não de um ponto de vista de uma só pessoa ou de um
bando, mas de um ponto de vista que carregue consigo certa universalidade e
alguma corrigibilidade (pois se pode fazer a distinção entre o que parece e o
que é de fato visível desse ponto de vista). Kant explorou essa possibilidade
considerando que podemos ter uma maneira de conceber as coisas ditadas por um
sujeito transcendental que transfere a seus fenômenos uma universalidade e uma
necessidade. O recuo é de uma paisagem vista de parte alguma rumo a uma
paisagem vista por nós, onde o nós, de algum modo fora da paisagem, ganha
contornos e critérios de identificação estáveis. No entanto, pode haver
suspeitas de que possamos conceber um nósfora da paisagem, fora daquilo que
está acessível ao nosso ponto de vista ' nosso suposto conhecimento, mesmo que
dos fenômenos. Neste caso, o nosso ponto de vista pode parecer o ponto de vista
em que nós nos colocamos em parte alguma, em uma espécie de mirante estrangeiro
à paisagem contemplada. O nós é assim colocado fora da paisagem (paisagem para
nós) e, portanto, teremos que ter dele um conhecimento metafísico, do tipo que
se tentou exorcizar.4 Ou seja, o nós não pode ser um nós-para-nós, ele não pode
ser visto do nosso ponto de vista, mas antes de um ponto de vista de parte
alguma. Se quisermos mais do que um nós para nós5, o nóstem que ser conhecido
desde fora de nós já que o nosso ponto de vista não pode senão contemplar
paisagens de interações entre nós e o mundo. O nosso ponto de vista só pode ser
um ponto de vista estável se pudermos ter algum conhecimento do nós ' por
exemplo, de sua extensão. Tal conhecimento do nós estaria sujeito às mesmas
críticas que assolam as pretenções de conhecimento metafiśico entendido como um
acesso a uma paisagem vista de parte alguma.6
A ideia de uma paisagem vista de parte alguma a ser desvelada supõe uma
diferença original (ou final) entre quem vê e o que é visto. Tal diferença
original inaugura o que queremos chamar de metafísica de paisagem. E esta ideia
é parte tanto da busca metafísica por uma visão de parte alguma quanto da
crítica a essa busca, que procura substituir as pretensões da metafísica por
uma doutrina do mundo para nós. No primeiro caso há uma paisagem vista de parte
alguma de onde se pode determinar como são as coisas. No segundo caso, há uma
paisagem vista por um nós que está fora da paisagem e fixo. Ou seja, os dois
lados do dilema são reféns da metafísica de paisagem: ou há um ponto de vista
de parte alguma ' e a crítica ao conhecimento metafísico advoga que tal ponto
não pode ser alcançado ' ou temos que apostar em um ponto de vista nosso. Em
ambos os casos, é suposta uma paisagem contemplada de alguma parte
privilegiada.
Se pudermos exorcizar tal metafísica, poderemos fazer repousar o movimento
pendular. Gostaríamos de explorar aqui a possibilidade de uma metafísica que
não comece e nem termine com a concepção de uma paisagem e de um ponto de vista
privilegiado.
2. A metafísica de tramas: planos, improvisos e implementações
Uma metafísica de paisagem é aquela em que o mundo pode ser capturado por uma
lista de elementos (finita ou infinita) que o compõem. A ideia de paisagem
encoraja a tese de que há um mobiliário fixo do mundo, seja visto por nós seja
visto de alguma parte. Recusar a ideia de que há uma paisagem subjacente ao
mundo significa que toda metafísica deve ser feita não desde fora, mas sempre
dentro de uma paisagem. Uma metafísica que recuse a noção de paisagem abandona
a ideia (de almoxarifado) de que o exercício metafísico é (apenas) aquele de
apresentar uma lista de dramatis personae do mundo. Ou seja, que personagens
permanentes são suficientes para determinar todas as tramas que têm lugar no
mundo. Em contraposição a uma metafísica da paisagem, nós queremos propor e
esboçar uma metafísica de tramas, segundo a qual nenhuma lista de almoxarifado,
nenhuma paisagem, torna dispensável o apelo às tramas que têm lugar com a
interação das personagens. De fato, e isto ficará mais claro em seguida, se uma
metafísica de paisagem é uma peça que designa um papel a ser desempenhado por
cada personagem, uma metafísica das tramas é um espaço de improvisação. A
improvisação que se segue de que cada personagem pode esbarrar em outras
tramas.
Podemos começar a entender o que está em jogo na possibilidade de uma ontologia
das tramas evocando a distinção de Deleuze e Guattari entre plano de imanência
e plano de transcendência. Trata-se de uma distinção entre planos que é também
uma distinção entre dois sentidos de 'plano'. Um plano pode ser um projeto, um
princípio oculto,
que dá a ver aquilo que se vê, a ouvir aquilo que se ouve..., etc.,
que faz a cada instante que o dado seja dado, sob tal estado, a tal
momento. Mas ele próprio, o plano, não é dado. Ele é oculto por
natureza. Só se pode inferi-lo, induzi-lo, concluí-lo a partir
daquilo que ele dá (simultaneamente ou sucessivamente, em sincronia
ou diacronia). [...] É um plano de transcendência. (1980/2007, v. 4,
p. 54).
O plano de transcendência é como uma paisagem subjacente ao que é dado, como
uma partitura que não se ouve na música ou um edital que não é ele mesmo parte
da prova de um concurso. Trata-se de um plano enquanto organograma, roteiro,
conjunto de instruções. E há um outro plano, um outro sentido de plano, chamado
de plano de composição e que é
um plano de imanência e de univocidade. [...] por mais que cresça em
dimensões, ele jamais tem uma dimensão suplementar àquilo que se
passa nele. [...] É, portanto, um plano de proliferação, de
povoamento, de contágio; mas esta proliferação nada tem a ver com uma
evolução, com o desenvolvimento de uma forma ou a filiação de formas.
É menos ainda uma regressão que remontaria a um princípio. É, ao
contrário, uma involução, onde a forma não para de ser dissolvida
para liberar tempos e velocidades. (1980/2007,v. 4, p. 55-6).
O plano de imanência é onde os acontecimentos precisam estar ' nele há a
univocidade dos acontecimentos, eles estão no mesmo pé. É nele que as
organizações têm lugar, elas precisam ter lugar neste plano para que elas se
dêem, para que delas algo aconteça. O plano de imanência não é um ponto de
vista a ser ocupado, é antes o espaço onde as ocupações têm lugar. Não é o
projeto do acontecimento, é o plano onde têm lugar os acontecimentos.
Queremos fazer uso desta distinção entre o plano de organização e o plano de
imanência (onde ocorre a implementação da organização) da seguinte maneira. O
plano de transcendência inaugura uma paisagem e um ponto de vista sobre o mundo
' como a partitura inaugura o que há para ser executado na música. Em uma
metafísica de paisagem, não há mais do que um plano de transcendência, isto é,
um ponto de vista exclusivo a partir do qual tudo pode ser contemplado. A
execução da organização planejada apenas cumpre o plano já que as tramas não
são mais do que consequências das personagens. Uma metafísica de tramas, em
contraste, entende que o plano de implementação é um plano comum a mais de um
plano de organização, ele é o plano de imanência. Porque o plano de imanência é
o plano de implementação de toda e qualquer paisagem, ele não é uma paisagem '
ele é um plano em um sentido inteiramente diferente. O plano de imanência é o
plano das tramas. Segundo uma metafísica de tramas há sempre mais de um plano
(de organização) sendo implementado no plano comum das tramas. Ou seja, um
plano de organização isolado falha (ou pode falhar) porque ele compartilha um
plano de imanência com outros planos e, assim, cada plano afeta os demais.
Segundo uma metafísica de tramas não há nenhum habitante que, introduzido em um
plano (de organização), torne este plano o único plano (de organização). A mera
introdução de qualquer habitante no plano de organização não é capaz de tornar
considerações sobre a implementação irrelevantes. Nenhum elemento, por mais
complexidade que introduza, poderá dar conta da co-extensão planos (de
organização). Podemos enunciar a tese substancial de uma metafísica de tramas
(que chamaremos de TMT) da seguinte maneira: há um plano de imanência. Este
plano, só um, não pode ser reduzido a nenhum conjunto de planos de organização.
Se introduzimos o plano de imanência, introduzimos a insuficiência das
personagens, e das paisagens, já que a implementação do plano (de organização)
faz com que elas não bastem já que elas dividem o mesmo plano de imanência com
outros projetos, com outras organizações.
Uma metafísica de tramas atenta para o que os movimentos das personagens
produzem em alianças com outras personagens igualmente presentes ' já que o
palco é palco de mais de um roteiro. Se esses movimentos forem inventariados,
as tramas são reduzidas a paisagens. TMT é a tese segundo a qual tal redução
não pode se dar já que a implementação mesma de qualquer roteiro requer um
palco onde outras coisas estão sendo implementadas. Há sempre a madeira do
palco se decompondo, o barulho da rua, os organismos que pairam pelo ar em
torno dos atores. TMT é uma tese acerca da irredução: as tramas não podem ser
reduzidas a paisagens, não basta apresentar o mobiliário do universo.
A ideia de uma metafísica de tramas advém de uma tentativa de exorcizar o
dilema em que a crítica ao conhecimento metafísico nos coloca: entre prosseguir
buscando paisagens de parte alguma ou nos contentar com alguma paisagem vista
por nós. Trata-se de uma metafísica no sentido de se ocupar com o que há, não a
partir da busca de uma paisagem, mas do desvelamento de tramas que ocorrem em
todos os âmbitos e que se dão em um mesmo plano. Não há como descrever o plano
senão pelo que ocorre nele ' trata-se de um plano de acontecimentos. Neste
sentido, não há uma ontologia subjacente às tramas, a implementação das tramas
é tudo o que constitui algo que pode ser considerado como o mobiliário último
do universo. Assim, não há uma metafísica da contemplação de uma paisagem, mas
antes um envolvimento em uma teia de tramas. Este é o sentido de TMT, exorcizar
a metafísica da sedução da paisagem.
Ideias relacionadas com a metafísica das tramas podem ser também encontrada em
muitos momentos da história da filosofia ocidental. Algo dela está talvez
presente na noção de polemos de Heráclito7, que fazia da polêmica um elemento
central de como são as coisas. Os esforços para trazer a tona uma concepção do
mundo baseada em forças e devires, como tentou fazer Nietzsche, também indicam
elementos em que o mundo é pensado não em termos de personagens, mas antes em
termos de atores e suas performances.8 Ao longo do século XX e, sobretudo, na
virada para o século XXI podemos encontrar elementos que apontam para uma
metafísica de tramas, em trabalhos como os de Whitehead (1929), Bergson (1907/
2007), Souriau (1943/2009), Deleuze e Guattari (1980/2007), Latour (1987),
Cantwell Smith (1996), Kit Fine (2005) e em geral em torno dos debates recentes
acerca do realismo especulativo (Harman 2009, por exemplo). TMT, de certa
maneira, explicita o que parece estar em questão em todos estes esforços.
Esboçamos, a seguir, algumas teses metafísicas que se coadunam e que nós
consideramos bastante encorajadas por TMT. Não queremos dizer, contudo, mais do
que o seguinte: as teses que apresentaremos compõem uma entre um indeterminado
número de metafísicas de tramas possivelmente incompatíveis entre si.
3. A indexicalidade no mundo
Uma diferença crucial entre a metafísica de paisagens e a metafísica de tramas
diz respeito à indexicalidade. Uma maneira de começar a considerar se há
elementos indexicais no mundo é invocar a distinção de McTaggart (1908) entre
duas componentes do tempo, que ele denomina de série A e de série B. A série B
é a série formada por datas ordenadas em uma série regular não-indexical, como
a série dos anos, dos dias ou das horas, tal como aparece nos calendários
(...2010, 2011, 2012...). A série B é ordenada desde um ponto de vista que não
está em parte alguma da série. A série A, por sua vez, é composta de momentos
ordenados de acordo com uma posição dentro da própria série (...ano passado,
este ano, ano que vem...). Ou seja, os momentos no tempo de acordo com a série
A são sempre relativos a uma posição no tempo. A série B não oferece uma noção
de passado, presente e futuro ' é como se as componentes da série estivessem
dispostos em uma ordem que não indicam a passagem do tempo. Na série B, segundo
McTaggart, nada se passa porque a ideia de mudança requer que um presente tenha
se tornado passado, requer recursos que apenas a série A pode prover. McTaggart
argumenta que a série A parece implicar que o mesmo fato pode ser passado,
presente e futuro de acordo com alguma perspectiva temporal. Ele considera que
a série A é ao mesmo tempo essencial ao tempo e à mudança e tem consequências
intoleráveis já que os eventos do mundo, por exemplo, teriam que ser sempre
tomados como eventos passados, presentes ou futuros em relação a um referencial
' a um tempo presente em particular. McTaggart entende que qualquer escolha de
um referencial temporal em particular é arbitrária já que será relativa, pelo
menos, à posição do observador no tempo. Por essa razão, ele defende a
irrealidade do tempo. Vale notar que esta tese se segue da conexão que ele via
entre o tempo e a série A; se ele aderisse ao que muitas vezes se chama de B-
ismo, a tese de que o tempo não requer a série A, não haveria nada que
impelisse McTaggart a rejeitar a realidade do tempo.
A posição de McTaggart é exemplar com respeito à metafísica de paisagem. Ele
recusa a realidade do tempo porque, tendo a série A como componente essencial,
somos obrigados a aderir a três teses sobre a realidade que, juntas, conflitam
com as intuições constitutivas de (pelo menos a maior parte das) metafísicas de
paisagem: a realidade deve ser neutra (deprovida de uma perspectiva
privilegiada), absoluta (desprovida de mais de uma perspectiva) e coerente (sem
contradições). Vale a pena considerar um pouco estas três teses.
Segundo a primeira tese, a realidade deve ser neutra no sentido de ser a mesma
vista de qualquer parte (e também por qualquer um, em qualquer estado etc.). É
uma paisagem de parte alguma e, portanto, não pode haver um ponto de vista
privilegiado quando se trata de inspecionar a realidade ' ainda que haja pontos
de vista (por exemplo, o da lente de um microscópio potente) que nos ajudem a
ver a realidade que poderia ser vista independente de qualquer perspectiva (por
alguém, em princípio). Um versão de A-ismo (que ao contrário do B-ismo entende
que a série A é imprescindível ao tempo) toma o tempo presente como um tempo
privilegiado ' o presentismo. O presentismo é um A-ismo que preserva o caráter
absoluto e o caráter coerente da realidade abrindo mão de uma perspectiva de
parte alguma em favor de uma perspectiva presente.
Segundo a segunda tese, a realidade deve ser absoluta, ela não pode ser ela
mesma indexada, aquilo que é real não pode ser apenas real-para-uma-
perspectiva. O A-ismo que nega a tese da realidade absoluta defende que há uma
relatividade interna ao mundo. Trata-se de um perspectivismo ou um realismo
quanto a perspectivas já que o mundo ele mesmo é feito de perspectivas ' elas
não são inseridas desde fora mas são inerentes a ele.
Segundo a terceira tese, a realidade é coerente. Ou seja, há um requisito de
consistência a ser obedecido por tudo o que é real. O presentismo e o
perspectivismo aderem a essa tese. Kit Fine (2005) analisa as alternativas que
se abrem ao A-ismo e abraça uma forma de A-ismo que rejeita a coerência da
realidade e que ele denomina de fragmentalismo. O fragmentalismo sustenta, com
o perspectivismo, que há perspectivas imanentes à realidade e, com o
presentismo, que a realidade é ela mesma absoluta. A manobra é de postular uma
über-realidade que conjuga as realidades indexadas por todas as perspectivas e
que, ela mesma, não é coerente (ainda que as realidades indexadas o sejam).
Esta über-realidade não é uma visão de parte alguma, mas antes um aglomerado de
perspectivas que podem incluir eventos como "estou sentado" e "estou de pé" uma
vez que as indexações temporais desaparecem. Como sempre estou observando as
coisas desde dentro de alguma perspectiva, sou coerente; mas a über-realidade
ela mesma não é. Ela é neutra e absoluta, mas não é uma perspectiva nem uma
paisagem. Em comum com o perspectivismo, o fragmentalismo mantém que a
realidade contém perspectivas e que não pode ser observada como uma paisagem. O
fragmentalismo, contudo, retém um elemento de metafísica de paisagem: há uma
über-realidade que reúne as perspectivas, porém ela as engloba sem as suprimir.
Ela não é como uma unter-realidade feita do conteúdo puro das diferentes
perspectivas (e assim delas desprovida), e sim como uma aglomeração cubista9
das diferentes perspectivas, cada uma amontoada sobre as demais. Não se trata
de algo que possa ser visto, mas apenas concebido por um exercício de
aglutinação de perspectivas.
Kit Fine procura estender o fragmentalismo para outros domínios onde a
indexação por perspectivas pareça se impor.10 Contra a neutralidade, posições
como a de David Lewis (1986) consideram que os mundos possíveis, incluindo o
atual estão em pé de igualdade. São posições de realismo neutro, que podem ser
fragmentalistas ou perspectivistas ' e como tal, podem ser defendida com base
na suspeita de que há uma medida de chauvinismo em abandonar a tese da
neutralidade da realidade e em adotar uma perspectiva privilegiada. No caso do
realismo modal de Lewis, por exemplo, dizer que o mundo atual é um mundo
possível entre outros e que não tem nada de substancial que o distinga
significa dizer que a atualidade é indexical - ser o mundo atual é ser
estemundo. A atualidade não é nada senão uma posição em relação aos outros
mundos possíveis e a nós, que estamos em um mundo possível em particular. Ser
atual não é uma propriedade que possa ser contemplada como uma paisagem, mas um
indexical que diz respeito a posições particulares e a interações a partir
delas.
TMT ela mesma parece evocar uma dimensão de indexicalidade: as tramas se dão em
interrelações. A mera presença de sangue quente no corpo de um cavalo atrai o
bote do carrapato de Uexkull11, já que o cavalo passava ali por perto do galho
onde estava o carrapato e seu sangue estava em uma termperatura maior do que o
ponto de referência. Porém a trama não se reduz a paisagens já que o cavalo tem
uma origem particular e um destino (ele pode estar fugindo de um dono que quer
higienizar completamente sua pele) que vão agora afetar a vida do carrapato. A
trama do carrapato, e a do cavalo, acontecem no mesmo plano de implementações '
este plano não é cartografado a partir de uma visão de parte alguma, mas é
feito de indexicais, proximidades relativas, intensidades comparativas.
Incidentalmente, é interessante notar que a série B está conectada com o plano
de organização, com a ordenação indiferente aos acontecimentos no plano comum
das implementações.
A indexicalidade intrínseca ' e as formas de A-ismo que dela decorrem ' pode
esclarecer um pouco mais a espécie de metafisica de paisagem que decorre do
esforço (kantiano e pós-kantiano) de tratar apenas das coisas para nós motivado
pelas críticas à possibilidade de conhecimento metafísico. Kit Fine favorece os
A-ismos que mantêm a tese da neutralidade (perspectivismo, fragmentalismo)
contra aqueles que a abandonam (por exemplo, o presentismo). Chamemos estes
últimos de A-ismos não-neutros. Uma posição como a de Kant é uma posição que,
diante do caráter perspectival das coisas, prefere rejeitar a neutralidade para
garantir o caráter absoluto e coerente da realidade ' um A-ismo não-neutro. A
perspectiva supostamente estável do nósé uma perspectiva privilegiada que não
confere realidade a nenhuma outra. Há apenas uma perspectiva ' que contempla o
mundo como uma paisagem ' e as coisas vistas a partir dela. Assim como o
presentismo, as outras formas de A-ismo não-neutro precisam motivar a tese de
que uma perspectiva merece ser escolhida em detrimento das demais. O A-ismo
não-neutro é uma forma de metafísica de paisagem já que apenas uma perspectiva
oferece o ponto de vista que permite contemplar aquilo que há (para esta
perspectiva). As alternativas de A-ismo neutro, por outro lado, consideram que
há uma multiplicidade de perspectivas associadas à indexicalidade, já que as
coisas são coisas-para-nós para algum nós, nenhuma das quais mais real que
nenhuma outra.
4. Disposicionalidade no mundo
TMT parece também encorajar uma metafísica que não seja atualista. Ou seja, uma
metafísica onde haja alguma coisa como possibilia, conexões disposicionais
entre eventos, potências e capacidades. O tema é amplo e merece atenção maior
do que o escopo dessa seção, portanto nos limitaremos a indicar alguns
elementos em que os não-atualismos apontam em direções convergentes com as
metafísicas de tramas concentrando nosso foco em disposições.
Diferentes maneiras de entender as disposições têm sido propostas (Martin 1994,
Mumford 1998, Ellis 2002). Uma delas nos parece bastante interessante do ponto
de vista de uma metafísica de tramas em sua relação com perspectivas e
indexicalidade. Molnar (2003) propõe que tomemos disposições como sendo casos
primitivos de intencionalidade que ele chama de intencionalidade física. Molnar
toma as quatro características que Brentano associa à intencionalidade e
procura mostrar que ela é a marca do disposicional e não (apenas) do que é
mental, como queria Brentano. As quatro características são as seguintes:
a) Direcionalidade. Algo intenciona (alguma coisa) quando de algum modo está
dirigido ou direcionado a algo diferente de si mesmo. Assim, acreditamos que a
terra é redonda, desejamos um copo d'água. Analogamente, a solubilidade em um
sal está direcionada à água ' é como se uma parte do mundo se direcionasse à
outra e, assim, a pressupusesse ou a postulasse.
b) Direcionalidade ao que não existe. Algo pode intencionar o que não existe,
como quando alguém acredita em pégaso ou em flogisto ou deseja uma montanha de
ouro. Analogamente, uma semente pode estar direcionada a um solo que não existe
ou que ela nunca vai encontrar e um sal pode ser solúvel mesmo em um ambiente
sem nenhuma água.
c) Direcionalidade a protótipos. Algo pode intencionar um tipo em vez de um
objeto. Assim, desejamos água e não um copo d'água em particular. Analogamente,
um sal se dissolve em qualquer água, um carrapato suga o sangue de qualquer
mamífero, uma semente germina em qualquer terra fértil.
d) Opacidade e sensibilidade a modos de apresentação. O elo intencional é
sensível ao modo como o objeto intencionado se apresenta. Essa característica
parece marcar a intencionalidade mental: sabemos coisas sobre Clark Kent ou a
estrela da manhã que não sabemos sobre o Super-Homem ou a estrela da tarde.
Analogamente, um sal não se dissolve em água congelada e um carrapato não ataca
um mamífero que está vestindo uma armadura.
Assim, Molnar aponta para disposições como propriedades intencionais
direcionadas a coisas que não necessariamente existem (b acima), que podem ser
protótipos satisfeitos por mais de um item particular (c acima) e que estão
condicionados a um modo de apresentação (d acima). Com Molnar, podemos entender
que certas partes do mundo estão dispostas a alguma coisa, como o carrapato
está disposto a se alimentar de um mamífero.
Disposições carregam ao seu redor cenários que podem ser condensados em
condições ceteris paribus. Estar disposto é já pressupor essas condições e
atuar como um dispositivo ceteris paribus(que chamaremos de DCP), um
dispositivo de introdução (ou pressuposição) de um ambiente fixo. Um DCP se
direciona a protótipos e age em relação a eles. Muitas partes do mundo são
DCPs, não apenas mentes humanas, mas também carrapatos, abelhas e sais. Não há
um elo entre um sal e uma porção de água em particular, mas apenas entre o sal
e o protótipo água. DCPs tratam as demais coisas segundo protótipos e, assim,
inauguram perspectivas. O carrapato trata como indiferenciado (para ele)
qualquer mamífero e distingue entre regiões do corpo do mamífero que são
indiferentes para a pulga. Uma perspectiva é uma matriz de diferenças e
indiferenças.12 DCPs, introduzindo protótipos, introduzem essas matrizes.13
Disposições, enquanto personagens de uma ontologia, produzem e habitam regimes
de sensibilidade que não podem ser descritos por uma metafísica de paisagem.
5. Perspectivas no mundo
TMT pode parecer incitar alguma forma de relativismo, seja individual ou
cultural, uma vez que instaura uma ontologia aberta, sujeita a reinvenções,
relativa a indexações, onde o que há está em uma trama. Parte do incômodo que
emerge é dissipada se considerarmos o caráter ontológico do relativo ' ele não
é uma dimensão da nossa maneira (insuficiente) de contemplar o mundo, mas é
antes uma dimensão do mundo. O mundo é, ele mesmo, fragmentado. As teorias que
fazemos sobre o mundo são parte deste mundo e por isso são relativas ao que as
circunda. Teorias são produtos de alianças que se provaram resilientes entre
todo tipo de elementos do mundo. O caráter ontológico do relativo pode ser
expresso assim: teorias não são torres de controle que permitem vistoriar o que
há como uma paisagem; elas são outros elementos que são compreendidas apenas
desde perspectivas e apenas compostas com outras coisas afetam a trama das
coisas.
O caráter ontológico do relativo está associado à rejeição da ideia de que há
uma perspectiva privilegiada ' a rejeição das diversas formas de A-ismo não-
neutro. Tudo é relativo a alguma coisa, a alguma medida, se quisermos, e não há
nenhuma medida que pode ser tomada sempre e para todas as coisas. Perspectivas
não estão prontas ' elas são tramadas.
Aqui estamos também na vizinhança do trabalho de antropólogos como Tânia Stolze
Lima (2005) e Viveiros de Castro (2009) sobre o multinaturalismo perspectivista
ameríndio. Viveiros de Castro contrasta o mononaturalismo europeu ' associado
ao multiculturalismo ' com o multinaturalismo dos nativos do baixo Amazonas.
Ele considera que o trabalho antropológico é uma espécie de ontografia
comparada e enxerga com bons olhos a adoção de um multinaturalismo. Segundo o
mononaturalismo, há uma realidade de fundo, uma unter-realidade, que poderia em
princípio ser acessível como uma paisagem vista por alguém ainda que invisível
para nós. Há várias maneiras de ver e se relacionar com uma natureza ' as
relações são de alguma maneira posteriores a ela e as coisas são de uma maneira
ou de outra independentes da relação que estabelecemos com elas. É como se a
relações não fossem constitutivas, apenas elementos acidentais acoplados aos
elementos naturais. É do mononaturalismo que surge a ideia de que algumas
coisas (indexações, disposições, conexões etc.) são uma segunda criação a
partir do ponto de partida do que veio pronto, de uma base, de uma paisagem
primordial. O multinaturalismo, por outro lado, elimina essa realidade de fundo
e a substitui por uma ontologia do relacional com espaço para o que é indexical
' todos os substantivos são tratados como demonstrativos ' e para a
multiplicidade de perspectivas que não compartilham nada em principio e que
podem se multiplicar, se reagrupar e se recompor. As perspectivas são partes do
mundo. O multinaturalismo permite uma comparação entre perspectivas que não
envolve a busca de um máximo fator comum (onde o mononaturalismo procura o
natural comum às diversidades de perspectiva), mas antes uma aproximação do que
são duas coisas em perspectivas diferentes. No exemplo de Viveiros de Castro, o
sangue é para a onça o que o cauim (cerveja de mandioca) é para os humanos ' só
se traduzimos sangue por cauim começamos a poder entender a perspectiva da
onça. Não há substrato comum entre o sangue-para-humanos e o cauim-para-a-onça,
há antes um elemento abstrato comum entendido como aquilo com que nos
relacionamos como sendo cauim. Nada é substancialmente nada, e todas as coisas
estão em relação com outras ' essas relações, que constituem protótipos, estão
presentes em todos os âmbitos do universo.
Há aqui um contraste importante entre a metafísica de paisagem e a metafísica
de tramas. Paisagens estão associadas à ideia de que os componentes do mundo
satisfazem um padrão de identidade universal. A metafísica de paisagem
comumente endossa algum critério de existência para estabelecer que classe de
entes constituirá a ontologia, ou seja, que condições um objeto deve satisfazer
para que seja considerado real (por exemplo, ser material). Um critério que
estabelece condições necessárias e suficientes de existência decide a priori
como serão tratados os objetos em casos limítrofes (como objetos intencionais,
abstratos e fictícios) e serve, deste modo, como condição de possibilidade para
um princípio universal de extensionalidade. E princípios de extensionalidade,
por sua vez, que funcionam como um método para se determinar o sentido de
nossos termos, em geral têm de supor já estabelecidas, segundo um padrão comum,
as identidades dos entes que servirão como extensões. A identidade está
vinculada a um padrão de discernibilidade universal. Em contraste, uma
metafísica de tramas aponta em favor de uma ontologia em que coabitam
diferentes padrões de extensionalidade.14
Pensamos que o plano de imanência é um campo pré-extensional. Cada perspectiva
(cada relato ontológico ou descrição completa do mundo) é a aplicação de um DCP
sobre a composição do plano de imanência, criando condições extensionais para
que opere algum tipo de princípio de substituição e se possa falar em uma única
ontologia. Ou seja, chamamos de perspectiva a fixação de uma paisagem
ontológica, isto é, um ambiente extensional. Nenhum objeto coexiste em mais de
uma perspectiva do mesmo modo. É certo que podemos falar, dentro de cada
perspectiva, de indiscernibilidade dos idênticos e, portanto, de itens que tem
sua identidade preservada através de mundos possíveis. Mas a extensionalidade
requer objetos cuja identidade é decidida sob um ponto de vista de parte
alguma. A marca da metafísica de paisagens é o fascínio pelos objetos e por
critérios não-relacionais de identidade. A metafísica de tramas, em contraste,
é uma espécie de multipaisagismo, em que as paisagens são sempre relativas a
alguma perspectiva. Em uma ontologia de protótipos, as relações precedem
qualquer objeto. A trama consiste em que é somente dentro de uma perspectiva
que os objetos transitam com uma mesma identidade, sendo que perspectivas são,
elas mesmas, arranjos de estados intencionais.
A metafísica de tramas não é uma metafísica instaurada por algum princípio de
extensionalidade: cada perspectiva é um ponto de vista sobre a imanência
indexado dentro da própria imanência. Não há perspectiva de parte alguma pois
toda perspectiva é a implementação de um plano de transcendência sobre e desde
a o plano dos acontecimentos. A imanência é pois um plano de opacidades
referenciais em que as perspectivas se relacionam produzindo e desmantelando
ambientes de protótipos. Não é um plano de objetos, mas um plano de
confluências. E é nas confluências que têm lugar as tramas. As perspectivas
indexam elementos dentro de outras perspectivas e na própria imanência. Elas
são o ponto de partida das tramas, o conflito entre pontos de vista, entre as
relações que compõem aquilo que há.
6. Em direção a um an-arché-ismo ontológico
A metafísica de tramas pretende oferecer uma alternativa ao dilema entre os
problemas da metafísica de paisagens e as dificuldades do abandono de qualquer
pretensão metafísica. Neste trabalho procuramos não mais do que esboçar o que
seriam metafísicas de tramas e traçar em linhas gerais alguns elementos de uma
metafísica assim que congrega três realismos: acerca das indexicalidades,
acerca das disposições e, em consequência, acerca das perspectivas. Essa
metafísica, como dissemos, é uma dentre as que podem ser encorajadas por TMT.
Tal tese aponta em direção a uma imagem do mundo onde não há uma arché, mas
antes uma confluência de projetos (que podem ser pensados em termos de
perspectivas, posições e disposições) que partilham de um espaço comum. Se
estamos certos quanto à pertinência de TMT, a metafísica pode deixar de ser uma
atividade totalizante e passar a ser uma atividade de composição com os
elementos diversos que constituem a realidade.