Idealismo e refutação do idealismo na filosofia crítica de Kant
O estabelecimento bem fundado da doutrina que Kant apresenta como solução dos
problemas essenciais da teoria do conhecimento e intitula "idealismo
transcendental" depende, em grande medida, do sucesso de duas etapas que fazem
parte do projeto da Crítica da Razão Pura (CRP)2. A primeira consiste na
fundamentação da tese de que nosso conhecimento racional discursivo só pode ter
como objeto os fenômenos, isto é, as coisas na medida em que são submetidas a
determinadas condições epistêmicas3, sensíveis e intelectuais, do sujeito
transcendental, e não as coisas tais como elas são em si mesmas. A segunda é
uma prova da possibilidade do conhecimento fenomênico objetivo através da
demonstração de que determinados conceitos e princípios a priori que regulam
nossa atividade racional discursiva possuem validade objetiva.
Quanto à primeira etapa, toda gnosiologia comprometida com a tese de que
conhecemos em última instância objetos "externos", "coisas em si mesmas", seja
ela de viés empirista ou racionalista, é acusada de inconsistência por não
sobreviver a uma série de dificuldades que o Idealismo Transcendental pretende
ter evitado. Dentre elas, comprometeriam as gnosiologias empiristas, de um
lado, o ônus da explicação da possibilidade do próprio conhecimento entendido
como um corpo de proposições necessárias sobre objetos, uma vez que teria de
ser contingente todo "conhecimento" que tem sua origem última na experiência;
de outro, o fracasso das explicações de que aquilo que não passa de uma
constatação contingente de ocorrências seja apreensão de estados de coisas em
si mesmos, dada a impossibilidade de um acesso direto e privilegiado do sujeito
cognoscente a entidades extrarepresentacionais ou extralinguísticas em sentido
absoluto. Em relação às teses gerais da gnosiologia racionalista, as
dificuldades concentrar-se-iam na suposição dogmática (sic.) da possibilidade
de um acesso cognitivo a objetos mediado exclusivamente pelos recursos de uma
lógica geral e indiferente às limitações impostas pelas condições sensíveis de
todo conhecimento, que são também condições da fenomenalidade do objeto
conhecido.
Quanto à segunda etapa, concernente ao problema da justificação de validade
objetiva, a posição da CRP é a de que a subordinação das coisas às condições da
fenomenalidade não só não compromete como legitima o projeto filosófico de
provar a possibilidade do conhecimento objetivo. Justamente na medida em que
consideradas segundo formas a priori sensíveis e intelectuais, podem as coisas
assumir o estatuto de objetos, se apresentar como distintas das meras
representações subjetivas de objetos e se disponibilizar ipso facto como
critérios da verdade de nossos enunciados cognitivos. Kant parece conectar essa
prova a uma demonstração de que o conhecimento objetivo, além de possível,
possui uma anterioridade, que chamaremos aqui de primado epistêmico4, em
relação ao autoconhecimento do sujeito, à consciência dos seus estados
subjetivos nas sínteses de percepções que ele efetua e à autoconsciência
(apercepção).
A primeira etapa, pode-se chamar de uma refutação da doutrina gnosiológica que
Kant intitulará "Realismo Transcendental" (em suas diversas versões,
eventualmente antagônicas)5, caracterizada pela incapacidade de conceber a
distinção crítica entre condições epistêmicas da possibilidade do conhecimento
e condições ontológicas da possibilidade das coisas mesmas. Quanto à segunda,
trata-se, em sentido amplo, do projeto geral kantiano de refutação do idealismo
(diagnosticado por Kant em suas versões "problemática", "dogmática" e
"empírica"), que se apresenta como um conjunto de argumentos voltados contra
aqueles que, defendendo a impossibilidade de um acesso perceptivo imediato ou
inferencial-causal a objetos do "mundo exterior", ou bem impugnam ceticamente a
possibilidade de todo conhecimento objetivo, ou bem sustentam, seja no nível
empírico, seja no transcendental, um problemático primado epistêmico da
consciência subjetiva das percepções e da autoconsciência em relação ao domínio
da objetividade.
No presente trabalho, interessamo-nos pela segunda etapa.
É razoável esperar de qualquer projeto filosófico comprometido com a tarefa de
refutar o idealismo em matéria de conhecimento algum nível de aproximação em
relação ao princípio geral da doutrina que a tradição filosófica consagrou com
o título de "realismo". Com efeito, nos três momentos em que aborda ex professo
o tema na CRP, Kant confronta seu interlocutor com uma gnosiologia realista, ou
talvez com o caráter realista de sua teoria transcendental do conhecimento.
Como qualquer realismo, o de Kant alega um primado das "coisas", dos "objetos",
do "real" - entendidos como o "outro" do sujeito - relativamente ao domínio da
"consciência", da "representação", da "ideia". Mas como o título com o qual a
gnosiologia crítica de Kant se quer fazer reconhecer é justamente o de
"idealismo" (a saber, transcendental), e como sua astronômica metáfora da
"inversão copernicana" é flagrantemente uma condenação do realismo filosófico,
é preciso que o realismo do projeto refutativo de Kant se explique muito
cuidadosamente.
Kant apresenta de modo explícito seu projeto "realista" de uma refutação do
idealismo essencialmente em três momentos da CRP. Uma primeira elaboração do
tema aparece no quarto Paralogismo da Dialética Transcendental da primeira
edição da obra, chamado "Paralogismo da Idealidade (da relação exterior)"
(A367-380). Encontramos, em seguida, o título "Refutação do Idealismo"
introduzindo uma subseção (B274-279), presente apenas na segunda edição da
Crítica, do tópico dedicado aos Postulados do Pensamento Empírico em Geral,
situado no interior da Analítica dos Princípios. Finalmente, aparece numa nota
do Prefácio a essa mesma segunda edição (BXXXIX-XLI) uma apresentação de
objetivos e uma sumária reformulação do que o filósofo assume ser o percurso
argumentativo fundamental da tarefa pretendida na seção acima mencionada da
Analítica dos Princípios6.
Em todas as suas versões, a refutação é apresentada como devendo emergir de um
argumento através do qual se pretende que o "jogo do idealismo se volte contra
ele mesmo" (B276). Trata-se de mostrar que a consciência que o sujeito tem de
si mesmo e de seus estados subjetivos, que se expressa na proposição "Eu
penso", pressupõe o conhecimento de estados de coisas objetivos distintos dele.
Veremos que essa formulação, geral e válida, em princípio, para as duas versões
da Crítica, esconde dificuldades interpretativas e alguma evolução de
estratégia e conteúdo entre 1781 e 1787. Mas apesar das diferenças concernentes
ao escopo e à radicalidade da prova almejada, parece claro que ambas elegem o
idealista empírico como interlocutor e adversário do argumento. Kant
caracteriza esse personagem como um realista e dualista transcendental
frustrado, que, tendo constatado a impossibilidade do conhecimento das coisas
tais como elas são em si mesmas, termina por advogar o trancamento da
subjetividade na cápsula da sua interioridade representacional e concluir,
dogmática ou ceticamente, que o que chamamos de conhecimento objetivo não passa
de um fluxo de impressões perceptivas desprovidas de qualquer objetividade7.
Acreditamos, entretanto, que essa não é a única versão possível do princípio
idealista que rivaliza com o idealismo transcendental kantiano e, se confundido
com este, ameaça a inteligibilidade da teoria crítica de Kant como um todo.
Propomos que a seção da Crítica intitulada "Refutação do Idealismo", assim como
sua versão compactada na nota do Prefácio e sua versão prévia no quarto
Paralogismo da edição A, não esgotam o projeto kantiano de uma refutação do
idealismo, mas constituem em conjunto o acabamento de uma das duas etapas em
que se desdobra esse projeto na Lógica Transcendental. Defendemos que a
refutação assume essa forma bipartida pelo fato de que são essencialmente duas
as figuras do idealista que a argumentação kantiana implicitamente apresenta na
interlocução de sua filosofia transcendental. Uma delas é a do idealista que
duvida da possibilidade do conhecimento objetivo; a outra, a do idealista que
admite essa possibilidade, mas subordina, de algum modo, o domínio da
objetividade cognitiva à instância da autoconsciência.
No que segue, concentraremos nossa análise interpretativa nesses dois momentos
da primeira Crítica: a Refutação do Idealismo e a Dedução Transcendental.
Procuraremos identificar e caracterizar dois distintos movimentos
argumentativos anti-idealistas, correspondentes às duas faces assumidas pelo
interlocutor idealista da CRP. Chamaremos essas figuras de idealista cético e
idealista da autoconsciência, e discutiremos as hipóteses de que (i) a
refutação kantiana do primeiro tem início na Deduçãoe se conclui na seção da
Refutação, e de que (ii) a Deduçãocontém um projeto de refutação do segundo
interlocutor, que não é necessariamente um cético em matéria de conhecimento.
Finalmente, esboçaremos a pergunta sobre se e em que medida o projeto
gnosiológico-refutativo de Kant, entendido na perspectiva dessa forma
bipartida, permanece vulnerável a algum nível de idealismo indesejado.
Particularmente, perguntaremos se ele apresenta uma prova suficiente contra o
interlocutor que, apesar de admitir, por hipótese, tanto a possibilidade do
conhecimento objetivo quanto seu primado epistêmico em relação às duas formas
de consciência do Eu elaboradas na obra - consciência dos estados internos e
autoconsciência -, subordina o domínio da objetividade à instância
transcendental de uma consciência de objetos. Trata-se de investigar se esse
último idealista é Kant ou se, contra ele, Kant precisa fornecer ainda a prova
de que a vigência do domínio de uma alteridade radical em relação ao Eu é uma
condição tanto da constituição e vigência quanto da auto-referência
representativa daquilo que Kant designa como consciência transcendental.
Refutação do idealismo e o problema do ceticismo
Com base em referências kantianas, de um lado, a posição empirista em matéria
de conhecimento é tal que põe em dúvida apenas o apriorismo do que Kant designa
como conhecimento objetivo, e não o acesso do sujeito cognoscente a estados de
coisas objetivos. Contra ela, Kant teria que provar apenas (o que evidentemente
não é pouca coisa) que esse conhecimento está fundado em princípios
constitutivos da experiência, pertencentes a priori ao sujeito e, portanto,
necessários e universalmente válidos. De outro lado, podemos entender
kantianamente como cético aquele pensador que desconfia não apenas da
possibilidade de um conhecimento a priori, mas antes possibilidade do
conhecimento tout court, isto é, de um acesso, no modo da subsunção de
intuições a conceitos, a objetos ou estados de coisas independentes e distintos
da ocorrência dos nossos estados perceptivos.
Ora, sabe-se que Kant caracteriza o projeto dedutivo da primeira Crítica como o
de fornecer uma prova da validade objetiva da unidade da apercepção e das
categorias do entendimento dela derivadas. Mais especificamente, a Dedução deve
provar que as categorias são condições da possibilidade do conhecimento de
objetos, entendidos como aquilo cuja representação imediata e singular, vale
dizer, cuja intuição empírica, se dá numa instância outra e heterogênea em
relação àquela a que pertencem essas categorias, isto é, se dá alhures. Sabe-se
também que essa instância intuitiva outra é, particularmente em sujeitos
racionais finitos como nós, apenas a faculdade da sensibilidade espaço-
temporal.
Se nesse horizonte a Dedução se propõe a refutar não apenas o empirismo
gnosiológico, mas também o ceticismo em matéria de conhecimento8, seu
procedimento completo deve consistir essencialmente: (i) numa demonstração de
que as categorias, enquanto conceitos a priori, são condições da possibilidade
do conhecimento de dados intuídos; (ii) numa demonstração dessa validade
objetiva voltada para um interlocutor que admite ainda menos que um acesso
cognitivo a posteriori a objetos, vale dizer, para alguém que admite, no
máximo, ter intuições. Acreditamos que a Dedução se propõe a cumprir essa
tarefa (e a cumpre apenas parcialmente, como veremos adiante) adotando a
estratégia que consiste em derivar a possibilidade do uso (objetivo) das
categorias a partir da premissa de uma consciência pré-judicativa de um diverso
de representações temporais.
Podemos encontrar nos parágrafos da Dedução no mínimo o esboço de dois caminhos
argumentativos que, partindo de uma premissa em princípio cética (a mera
consciência de intuições), apontam para uma prova da possibilidade do
conhecimento objetivo. Em questão, estará sempre o que o §18 chama de uma
relação de derivação entre a unidade subjetiva e a unidade objetiva da
apercepção9.
O primeiro caminho, problemático, creio, assumiria a forma de um argumento ad
hominem que implicaria duas decisões interpretativas prévias: primeiro, que a
chamada unidade subjetiva da apercepção seja compreendida não como ordenação
associativa contingente de dados do sentido interno, mas como a unidade de um
reconhecimento judicativo de estados subjetivos. Poderíamos dizer com algumas
ressalvas: como a unidade de juízos de percepção. Segundo, que se aceite a
definição de juízo do §19, chamada nos Primeiros Princípios Metafísicos da
Ciência da Natureza(PPM) de "definição precisamente determinada de juízo": "a
forma lógica de todos os juízos consiste na unidade objetiva da apercepção dos
conceitos contidos neles"10.
Isso aceito, o argumento assim se construiria: primeiro, a mencionada
"definição precisamente determinada" determina que todo juízo possui validade
objetiva, comprometendo-se com uma pretensão de verdade, ou, com uma pretensão
de caracterização universalmente válida de estados de coisas objetivos. Isso
tem de valer inclusive para aqueles juízos a respeito do que Gerold Prauss
chamou de "objetos subjetivos"11. Segundo, a unidade subjetiva da apercepção,
enquanto apercepção empírica, seria um juízo acerca de objetos do sentido
interno, e não uma consciência pré-categorial e meramente associativa12.
Conclusão: a mera atualização de minha consciência de estados subjetivos
garante que suponho a possibilidade do conhecimento objetivo, o que só pode se
dar mediante a atividade de regras a priori de determinação de relações
objetivas entre as representações, isto é, mediante a atividade das categorias
do entendimento. A explicação é que não posso, pelo menos do ponto de vista da
razão, ao mesmo tempo julgar, isto é, erguer uma pretensão de verdade, sem
supor que seja possível isso que pretendo, a saber, conhecer objetivamente.
Ora, pretensão de verdade é justamente o que o adversário da Dedução considera
uma ilusão. Assim, esse adversário acabaria afirmando precisamente o que ele
pretende negar, a saber, que tem sentido pretender conhecer objetivamente.
Sucintamente, as dificuldades que se pode atribuir a essa linha argumentativa:
a primeira consiste no caráter meramente definitório do argumento no que
concerne à noção de juízo. Afinal, o adversário da Dedução não precisa admitir
que, ao expressar pensamentos através da ligação de representações, esteja se
servindo do discurso como um meio para apreender a existência objetiva de
estados mentais. A segunda e mais importante: no argumento, ainda que se aceite
a natureza judicativa da consciência dos nossos estados internos, não é
exatamente a possibilidade do conhecimento objetivo o que está sendo
demonstrado como uma condição da descrição conceitual dos estados mentais: é,
antes, a necessidade de uma suposição de natureza modal (ou talvez mesmo
psicológica). A explicação é que, segundo o argumento, para julgar sobre minhas
percepções, não posso deixar de acreditar, em virtude do caráter no mínimo
assertórico de todo juízo tomado isoladamente, que é possível conhecer objetos.
Mas isso não exclui que seja impossível conhecer objetos, e que minha suposição
contrária esteja simplesmente equivocada. Ora, a prova a que parece almejar
Kant no projeto geral da Dedução não é a da necessidade de uma crença, mas a da
necessidade de uma possibilidade, a qual necessidade independe, a princípio, da
crença nela e logicamente a precede.
O segundo caminho argumentativo indicado na Dedução parece apontar para o
caráter derivado in concreto da unidade subjetiva da apercepção evitando as
dificuldades acima. Tratar-se-ia, na Dedução, de fornecer uma prova de que no
ato de consciência subjetiva de minhas intuições, suponho a possibilidade
sensu. Para Paton, "Kant sublinha o fato de que os atos judicativos em que a
apercepção empírica se manifesta são o reconhecimento ou memória de
representações ou estados mentais passados, o que parece incluir (...) o
conhecimento dos nossos estados mentais (PATON, H. J. Kant's Metaphysic of
Experience. New York: George Allen & Unwin LTD, The Humanities Press, 1965,
4th impression, p.402, nosso grifo) Para Allison, "Kant considera apercepção
empírica como equivalente a autoconhecimento empírico, isto é, como um modo de
consciência pelo qual representamos nós mesmos a nós mesmos como objetos do
sentido interno" (ALLISON, H.E. Kant's Transcendental Idealism: an
interpretation and defense. New Haven and London: Yale University Press, 1983,
p.156, nosso grifo).do conhecimento de estados de coisas objetivos não
simplesmente porque julgo e/ou aplico a cópula "é"; antes, esse ato de
consciência é condicionado pela aplicação das categorias, e somente por isso
aplico a cópula "é". Isso significa: qualquer nível de consciência de
ocorrências sensíveis é eminentemente categorial, ainda que, no registro do
sentido interno, a atuação das categorias não resulte na produção de
conhecimento objetivo. Demonstrado, portanto, o uso "pré-reflexivo" das
categorias - que H. Allison chama "papel protoconceitual das categorias" como
"regra de apreensão" de dados intuídos, e a que B. Longuenesse se refere com a
expressão "uso das categorias como meros guias de sínteses"13 -, pode-se então
pretender provar que esse uso tem como pressuposto a possibilidade de seu uso
objetivo, pelo que a Dedução atingiria sua finalidade. O que essa interpretação
sugere é que é possível manter a tese forte kantiana da heterogeneidade dos
poderes representativos - isto é, que posso ter intuições sem pensar atualmente
as intuições que tenho - e subordinar a algum nível de pensamento conceitual
não a receptividade dos dados, mas a consciência dos dados como recebidos.
Assim, as categorias não seriam apenas condições da possibilidade do
conhecimento objetivo dos dados intuídos. Elas seriam isso pelo fato mesmo de
que são, antes, condições da possibilidade de toda e qualquer consciência
representativa de intuições sensíveis, de tal modo que, a partir de agora, o
problema da distinção entre subjetivismo e objetividade seria o da distinção
entre o uso pré-reflexivo das categorias e seu uso objetivo-cognitivo.
Argumentativamente consistentes ou não, esses dois caminhos visam a fornecer a
mesma prova: admitida a mera consciência de representações (ou intuições),
entendida como a econômica concessão do cético, deve-se admitir o domínio da
objetividade - seja porque toda consciência empírica é categorial (ou
protocategorial), seja porque o que se admite aqui como premissa é um auto-
conhecimento judicativo. Pergunta-se então: em que medida a argumentação
kantiana contra o ceticismo em matéria de conhecimento teórico, como propusemos
acima, começa na Dedução, mas só se consuma na Refutação do Idealismo?
A passagem da premissa do §16 - a noção de um múltiplo de representações minhas
em geral - para a do §18 - o sentido interno entendido como consciência de um
múltiplo de representações temporais - define a estratégia da Dedução de
inferir a unidade objetiva da apercepção (portanto, o conhecimento objetivo) a
partir da consciência empírica de nossos estados sucessivos. Com efeito, a
segunda parte da Dedução, particularmente o §26, é uma explicação de como,
através da síntese transcendental da imaginação, a unidade originária de
apercepção se conecta com a intuição pura do sentido interno, isto é, o tempo.
Tudo indica, entretanto, que Kant reconheça que a subordinação de
representações temporais às regras necessárias da apercepção judicativa ainda é
menos do que uma demonstração da possibilidade do conhecimento objetivo. Esta
depende, é verdade, de uma prova de que podemos ordenar nossas representações
sucessivas segundo regras necessárias provenientes da unidade da apercepção
originária. Mas depende também de uma prova de que essas representações remetem
ao objeto. Para Kant, isso equivale a demonstrar que as regras originárias da
apercepção também se aplicam àquilo que é dado alhures (andertwårts)14, que se
nos antepõe (dawider ist)15, que é portanto "outro" em relação ao sujeito. Até
que isso fique demonstrado, representações temporais regradas por princípios
intersubjetivos podem consistir em conteúdos exclusivamente mentais.
Como bem se sabe, o meio pelo qual nos relacionamos de modo imediato com a
alteridade objetiva é o espaço, definido na Estética Transcendental como forma
do sentido externo. Sendo assim, a prova da possibilidade do conhecimento
objetivo em sentido estrito iniciada na Dedução permanece inconclusa até que se
demonstre a ligação entre a atuação das categorias na síntese das
representações temporais e sua aplicação a objeto dados no espaço. Parece ser
isso a que Kant se propõe nas seções da CRP dedicadas diretamente ao tema da
refutação do idealismo. Tudo indica que Kant pretenda aqui completar o projeto
dedutivo mostrando que a consciência que temos dos nossos estados internos
temporais, cuja sujeição a regras necessárias fora demonstrada (sic.), envolve
de algum modo a referência a uma alteridade em relação a nós indispensável na
constituição da objetividade. Consideremos então as versões da Refutação em sua
argumentação contra o idealista cético.
O quarto Paralogismo da CRP A
O objetivo de Kant no quarto Paralogismo A da CRP é fornecer, contra o
idealismo empírico, uma prova de que a realidade do "mundo exterior" não é
duvidosa; antes, ela é tão certa quanto a das representações de nossa
experiência interna. Sua estratégia consiste, em primeiro lugar, na defesa da
doutrina do idealismo transcendental como capaz de disponibilizar um domínio de
objetividade que é ao mesmo tempo "exterior" em relação ao âmbito de uma
consciência de estado privados e "interior" relativamente ao objeto
transcendental. Em segundo lugar, na refutação da hipótese de que, apesar de
logicamente admissível, o acesso a uma objetividade espacial não se realizaria
de fato, estando em seu lugar sempre produtos ficcionais da imaginação.
Quanto à primeira etapa, trata-se, de saída, de aproximar o idealista a ser
refutado do pressuposto fundamental do realismo transcendental. Kant
caracteriza esse interlocutor, portanto, como partidário da doutrina segundo a
qual espaço e tempo são condições das coisas em sua vigência ontológica, e o
conhecimento é entendido como conhecimento delas, consideradas "em si mesmas",
como os legítimos objetos exteriores ao sujeito.
Ao defender a possibilidade do conhecimento das coisas tais como são em si
mesmas, o realista transcendental é chamado "dualista" em sentido
transcendental, título que designa um partidário da doutrina de que àquelas
coisas, consideradas como os objetos exteriores, temos um acesso perceptivo
imediato. Tese de Kant: o reconhecimento da indemonstrabilidade desse acesso
torna o realista transcendental um idealista empírico. Não porque o faria
desconfiar do alvo do conhecimento objetivo (as coisas em si mesmas), mas
porque o faria negar a ou duvidar da possibilidade de o atingir. Dualista
transcendental decepcionado, o idealista empírico passa a advogar a reclusão do
sujeito no interior do domínio da consciência e conclui, dogmaticamente ou
não16, que o que chamamos de conhecimento objetivo não passa de um fluxo de
impressões desprovidas de objetividade.
Em seguida, Kant se propõe a desfazer a assimilação, que seria o apanágio da
gnosiologia metafísica e ontológica de toda a tradição, entre objeto cognitivo
e objeto transcendental. Do ponto de vista da reflexão filosófico-
transcendental, não só não podemos ter nenhum acesso, seja perceptivo imediato,
seja inferencial-causal, às coisas consideradas independentemente do domínio
subjetivo-representacional, como tampouco se define o conhecimento como
correspondência do pensamento em relação às coisas tais como elas são em si
mesmas. Assim, em sentido transcendental, seria correta a doutrina crítica
chamada idealismo, que recusa o dualismo e a cognoscibilidade do objeto
transcendental, mantendo o sujeito cognoscente dentro dos limites do domínio
representacional. O que podemos conhecer, afirma Kant oito vezes na seção dos
Paralogismos, são "meras representações".
Finalmente, Kant empenha-se por mostrar que essa restrição idealista do
horizonte da cognoscibilidade ao domínio meramente representacional não é, em
todos os níveis de reflexão, um obstáculo ao "conhecimento objetivo" do "mundo
exterior". É que o universo das meras representações pode ser considerado em
referência ao sentido interno apenas, pelo qual nos tornamos conscientes dos
nossos estados subjetivos, ou em referência ao sentido externo, pelo qual
referimos aquelas ao objeto entendido como algo "outro" e "externo" em relação
ao sujeito. Que, em sentido transcendental, o objeto do conhecimento pertença
ao domínio da idealidade (ao domínio subjetivo-representacional), não implica
que ele esteja desqualificado ao estatuto de objeto externo, mundo exterior ou
coisa fora de nós (ausser uns). Ao contrário, o pertencimento, em sentido
transcendental, ao domínio da idealidade é a condição de uma "exterioridade"
legitimamente cognitiva. Ou: a interioridade transcendental do objeto do
conhecimento é a condição de sua exterioridade empírica relativamente à
consciência que tem o sujeito de seus estados internos. Assim se explica a tese
kantiana de que o idealista transcendental é também um realista e um dualista,
a saber, em sentido empírico (A370).
O argumento proposto por Kant para, no quadro do idealismo transcendental,
desmontar a hipótese da ficcionalidade de nosso acesso a objetos espaciais se
constitui nos seguintes passos:
(i) todo o trabalho ficcional da imaginação opera necessariamente sobre a base
de percepções espaciais (A373-4); (ii) a simples percepção espacial
necessariamente representa algo de real no espaço17, e (iii) o caráter
perceptivo-representacional dessa realidade a torna tão indubitável e
imediatamente acessível quanto a realidade dos nossos estados internos18.
Assim, admitindo-se, como é plausível esperar de um interlocutor idealista
empírico, que temos consciência imediata de nossos estados representacionais
internos, e que é o estatuto representacional destes que torna sua realidade
imediatamente acessível, o fato de os estados de coisas chamados externos
serem, na perspectiva idealista transcendental, igualmente perceptivo-
representacionais tornaria a realidade destes tão imediata e indubitável quanto
à daqueles. Se, ademais, toda operação imaginativa se processa sobre a base de
percepções de realidade espacial, deveríamos concluir que nossa autoconsciência
implica a realidade do chamado mundo exterior.
A Refutação do Idealismo na CRP B
Assim como no texto dos Paralogismos A (367), a Refutação da edição B adota,
curiosamente, Descartes como interlocutor privilegiado. O idealismo cético que
ele sustenta de acordo com o primeiro texto torna-se aqui um idealismo material
(leia-se: empírico)19problemático (B274), tão louvado quanto aquele, por ser
"racional e conforme uma maneira de pensar filosoficamente rigorosa" (B275).
Mas esse acréscimo da edição B apresenta, em relação à refutação de 81, algumas
modificações estratégicas e conceituais importantes.
Em primeiro lugar, o novo argumento parece substituir a preocupação do quarto
Paralogismo A com o problema da existência / realidade do "mundo exterior" pela
preocupação com a chamada "experiência externa". "A prova exigida", anuncia
Kant, "deverá, pois, mostrar que temos também experiência e não apenas
imaginação das coisas exteriores" (loc.cit.). Aparentemente, portanto, a
demonstração prevista é mais contida do que o percurso da primeira edição. Mas
dado que esta última, como vimos, termina limitadamente focada nessa mesma
"experiência" representacional do mundo externo, a versão B parece ao fim e ao
cabo se anunciar cúmplice do princípio da internalização do objeto do
conhecimento, e tão tímida quanto a versão A em relação à ontologia do "fora de
nós". Todavia, em flagrante confronto com essa aparência, a "Prova do Teorema"
em B275 defende, mais audaciosamente, que todo o quarto Paralogismo, a
"existência de coisas reais que percebo fora de mim", que "não [são] (...)
simples representação de uma coisa exterior a mim" (B275-6).
Em segundo lugar, a nova versão, à diferença da antiga, pretende mostrar que a
mencionada "experiência externa" não é nem apenas possível, nem apenas
imediatamente acessível; ela é mais imediatamente acessível do que a
"experiência interna", isto é, do que a consciência que tem o sujeito dos seus
estados internos no tempo. Kant anuncia nos seguintes termos as teses
idealistas a serem refutadas: primeiro, a tese de que "a única experiência
imediata é a experiência interna", e segundo, a de que "a partir dela inferimos
[a existência das] coisas externas". Em vez disso, tratar-se-á de mostrar que a
"experiência externa a rigor é imediata", enquanto "somente por seu intermédio
é possível (...) a experiência interna" (B276). Nessa inversão consiste o
projeto refutativo de mostrar que "o jogo do idealismo se volta contra ele, com
a maior razão" (loc.cit).
Em terceiro lugar, a estrutura argumentativa que conduz a essa inversão é
significativamente distinta da estratégia dos Paralogismos A. Enquanto na
primeira edição o caráter representacional da experiência externa a torna
solidária da interna, na segunda, a experiência externa é apresentada como o
permanente relativamente ao qual se faz possível a consciência do fluxo de
nossos estados internos temporalmente determinados20.
Considerando em conjunto o texto da Refutação e sua reelaboração na nota do
Prefácio B, a argumentação se desdobra nos seguintes passos: (i) na medida em
que tenho consciência dos meus estados internos, identifico-os como ocupando
posições temporais determinadas, que fazem da "consciência empírica da minha
representação" (BBXLn) uma "consciência empírica da minha existência" (loc.cit)
determinada; (ii) as posições temporais dos meus estados, e com isso minha
existência, só podem ser determinadas relativamente a algo de permanente; (iii)
nada há de permanente "em mim" capaz de desempenhar o papel de contraponto fixo
da sucessão temporal de meus estados internos. Toda suposta "representação
permanente [em mim] (...) pode ser muito variável e mutável (...), mesmo as
representações da matéria" (BBXLIn). É bem verdade que a consciência
intelectual da minha existência na representação Eu sou apresenta-me como um Eu
permanente. Todavia, não desempenha a função de conferir determinação às
posições temporais de meus estados internos porque não é consciência intuitiva
e, por conseguinte, não se representa o Eu permanente como determinado em sua
existência; (iv) conclusão: a consciência que tenho das representações do meu
sentido interno só é possível pela existência de um permanente externo extra-
representacional.
Convém mencionar o modo como Kant se refere a essa última exigência, que parece
realmente contrastar com os resultados da aplicação do princípio de
internalização na versão A. No texto da Refutação, Kant afirma que "a percepção
desse permanente só é possível através de uma coisa exterior a mim, e não pela
simples representação de uma coisa exterior a mim" (B275, grifos do autor), e
que "a determinação da minha existência no tempo só é possível pela existência
das coisas reais..." (B276). Já na nota do Prefácio, assevera que "tenho (...)
segura consciência de que há coisas exteriores a mim que se relacionam com o
meu sentido..." (BBXLIn); que "a própria experiência interna depende de algo de
permanente que não está em mim e que portanto só pode ser exterior a mim, e com
o qual tenho que me considerar relacionado" (BBXL-In); que tenho um "sentido
externo [que] é já em si relação da intuição a algo real fora de mim..."
(BBXLn); finalmente, que meu sentido interno prova que tenho "a representação
de algo permanente (...) que tem que ser uma coisa distinta de todas as minhas
representações e exterior a mim", e que "não é idêntico a uma representação
permanente" (loc.cit. São de Kant todos os grifos das citações)21.
Seja como for, sublinhe-se, para nossos propósitos no momento, que Dedução e
Refutação incorporam o projeto de demonstrar a possibilidade do conhecimento
objetivo contra o ceticismo gnosiológico. A primeira, pretendendo demonstrar
que a consciência subjetiva dos nossos estados intuitivos internos envolve o
exercício das categorias, entendidas como regras universais e necessárias
derivadas da unidade da apercepção transcendental; a segunda, propondo-se a
provar que aquela mesma consciência empírica submetida às categorias supõe um
algo (permanente, nos termos da versão B) externo que é propriamente o foco do
conhecimento objetivo. Ambos os movimentos consistem em argumentos ad hominem,
o primeiro partindo da premissa da unidade subjetiva da apercepção para
concluir a possibilidade de sua unidade objetiva, entendida como regulação
necessária; o segundo, da premissa da consciência empírica dos nossos estados
internos para concluir existência de um "fora de nós" mais imediatamente
acessível do que eles. Resta mostrar que o idealista cético a quem, em
conjunto, Dedução e Refutação pretendem se opor não é o único adversário da
gnosiologia transcendental de Kant. Trata-se, então, de esclarecer em que
medida a primeira dessas seções também apresenta um argumento contra o que
chamamos acima de idealista da autoconsciência.
Refutação do idealismo - o problema da autoconsciência
Segundo nossa reconstrução, as seções da Refutação tomadas em conjunto
sustentam (i) que a consciência empírica que o sujeito tem dos seus estados
internos é condicionada pela representação de um elemento permanente espacial
"externo", que será caracterizado como objeto do conhecimento em sentido
estrito, e (ii) que nossa consciência desse permanente externo é tão imediata
quanto ou mais imediata do que a consciência dos nossos estados internos.
Ocorre, entretanto, que, segundo os §§16-18 da Dedução, esta última também só é
possível sob a pressuposição de que posso me referir a mim mesmo como a unidade
do ato de pensamento e como sujeito idêntico e numericamente uno de meus
estados representacionais. Chamaremos aqui essa auto-referência - o "Eu penso"
do §16 - de autoconsciência, consciência de si, ou apercepção (pura). De que
modo se deve compreender a relação "principial" da autoconsciência com o
conhecimento objetivo, é algo que Kant muito se esforçará por esclarecer ao
longo da Dedução e, sobretudo, algo de que depende essencialmente sua posição
enfaticamente divergente em relação à (sua compreensão da) doutrina cartesiana
do cogito.
Do ponto de vista que aqui nos interessa, três pontos merecem atenção especial.
Em primeiro lugar, deve-se reconhecer o esforço de Kant - do qual os §§ 24 e 25
da Crítica talvez sejam o maior exemplo - por distinguir o que em princípio o
cartesianismo identifica: o princípio transcendental da apercepção e a
consciência empírica (cognitiva ou não) que temos dos nossos estados internos.
Enquanto, para Kant, o primeiro consiste na consciência estritamente
intelectual da unidade do ato do pensamento, a última resulta da síntese de
intuições do sentido interno segundo o modo como ele é "afetado" pela
primeira22.
Em segundo lugar, o que as seções da Refutação pretendem desqualificar é o
primado de uma forma de consciência dos estados internos - e não o da
autoconsciência (apercepção) - em relação à consciência dos objetos do sentido
externo23. Mais precisamente, trata-se de inverter o primado, supostamente
cartesiano, da experiência interna relativamente à externa, o que significa
kantianamente: o primado do autoconhecimento intuitivo relativamente ao
conhecimento objetivo stricto sensu.
Terceiro: algumas passagens das duas versões da Dedução parecem justamente
asserir o primado da autoconsciência (apercepção) em relação ao conhecimento de
objetos externos. Um consistente recenseamento delas se encontra em dois
artigos de Guido Almeida sobre a Dedução Transcendental24, dois quais cito
apenas duas, uma de cada edição da Crítica: na versão A, Kant afirma que "a
apercepção pura fornece um princípio da unidade sintética do múltiplo em toda
intuição possível" (A116)25; sobre a edição de 87, cito o comentador: "no
próprio título do §17, lemos: 'o princípio da unidade sintética da apercepção é
o princípio supremo de todo o uso do entendimento' (B136), o entendimento sendo
definido em seguida neste mesmo parágrafo como 'o poder dos conhecimentos'
(B137)26.
Considerados esses três pontos, parece haver motivos para acreditar que a
autoconsciência se apresente tanto como condição da consciência empírica dos
nossos estados internos, como também - ou melhor, justamente na medida em que é
- anterior, principial e quiçá genética em relação ao conhecimento objetivo.
Com efeito, que tanto ela (autoconsciência) quando o conhecimento objetivo
sejam condições da consciência dos nossos estados internos, não implica nenhuma
conclusão acerca da hierarquia epistêmica que situa, um em relação ao outro,
esses dois princípio condicionantes. Nesse sentido, refutar o primado da
consciência dos estados internos em relação ao conhecimento objetivo (projeto
da Refutação) não é o mesmo que refutar o primado, sobre o mesmo conhecimento,
de algum outro princípio que essa consciência supõe e que, com efeito, a
condiciona. Em suma, aceito o argumento da Refutação, ainda é possível que o
elemento subjacente à consciência do fluxo perceptivo interno se apresente em
última instância como a autoconsciência de um sujeito numericamente idêntico, e
que esta preceda do ponto de vista epistêmico-metodológico ou mesmo constitua
ontologicamente (na condição de ratio essendi) o domínio do conhecimento
objetivo27. Trata-se, portanto, aqui, de uma discussão que ultrapassa o
confronto com idealista cético para contrapor o projeto refutativo kantiano com
o interlocutor que temos chamado de idealista da autoconsciência.
É bem verdade que um dos passos da Refutação consiste na tese de que o interior
do domínio representacional não seria capaz de fornecer o contraponto
permanente indispensável para a possibilidade da consciência da sucessão das
percepções. Essa restrição, de fato, desclassificaria a candidatura da
autoconsciência (evidentemente representacional) ao posto28. Mas não menos os
objetos espaciais, na medida em que entendidos como "meras representações" do
sentido externo. Seja como for, o mencionado passo da Refutação precisa ser
embasado por uma demonstração de que o mais forte candidato representacional a
princípio e condição do conhecimento objetivo (qual seja, a unidade e
identidade numérica do sujeito autoconsciente, que é uma condição da
consciência do fluxo perceptivo) só é capaz de fornecer o buscado contraponto
permanente na medida em que, inversamente, se encontra subordinado ao - ou pelo
menos não seja anterior e epistemicamente independente do - domínio de uma
exterioridade objetiva, esta sim o permanente último.
Novamente, é na Dedução Transcendental, e não na Refutação do Idealismo, que
acreditamos encontrar um esboço de refutação desse interlocutor remanescente,
idealista, mas absolutamente não-cético em matéria de conhecimento, que apenas
sustenta o primado epistêmico da autoconsciência em relação ao conhecimento de
objetos. Trata-se de discutir, primeiro, em que medida é a ele, e não ao
interlocutor da Refutação, que cabe legitimamente o epíteto de "idealista
cartesiano"; e em seguida, como a Dedução se comporta em relação à sua posição
gnosiológica.
Quanto ao primeiro ponto, é surpreendente que tanto no quarto Paralogismo de
81, quanto na Refutação B, Kant faça explícita referência a Descartes como
interlocutor do argumento que ali se desenvolve.
Registre-se, em primeiro lugar, que o adversário da Refutação é alguém que
advoga o privilégio da "experiência interna" relativamente à externa. Mas a
proposição cartesiana Eu penso, eu existo, derivada exclusivamente do exercício
do ato de pensar e imediatamente acessível (ao contrário do conhecimento de
"realidades externas"), é no mínimo problematicamente traduzida pelo conceito
kantiano de "experiência interna". Em Descartes encontramos antes o primado
epistêmico de um conhecimento de si que prescinde de sensibilidade, o que para
Kant, além de não se chamar "experiência", é epistemicamente inaceitável.
Em segundo lugar, a Refutação é explicitamente caracterizada como um argumento
contra o idealista empírico, portanto, contra o cético em matéria de
conhecimento. Isso parece implicar que o Descartes de Kant é alguém que, após
haver constatado a impossibilidade de um acesso perceptivo imediato a objetos
externos, teria abandonado o projeto de chegar a eles pelo duvidoso caminho da
inferência causal, e teria sucumbido à tese do confinamento do sujeito ao mundo
interno das representações, que seria o mundo das percepções dos seus estados
indiscriminadamente subjetivos. Ademais, visto que ele não afirmaria a
impossibilidade, mas apenas duvidaria da possibilidade de um conhecimento de
objetos externos, mereceria o honroso título de "idealista cético", "benfeitor
da razão humana" (A377), que, ao contrário do idealista chamado dogmático,
estimularia a razão crítica ao exercício das reflexões na direção da inversão
copernicana no domínio da filosofia.
Mas como bem se sabe, após haver duvidado sistematicamente da existência do
mundo exterior até determinado momento da construção do sistema das Meditações,
Descartes não somente pretende fornecer uma prova da existência e da
cognoscibilidade do mundo exterior (em sentido absoluto, não-interiorizado),
como também emprega, com esse fim, uma teoria da causalidade, o que é para Kant
explicitamente inaceitável e incompatível com o perfil do interlocutor cético
da Refutação. Ao lado da doutrina segundo a qual o conteúdo das ideias são
realidades objetivas, Descartes busca provar existência e cognoscibilidade do
"fora de nós" aplicando a noção de causalidade, se não indiscriminadamente ao
domínio das ideias (às chamadas ideias sensíveis), pelo menos a uma ideia, a
saber, a do infinito. Assim, podemos afirmar que o idealista problemático,
empírico, cético, não-dogmático e não-irracional que Kant procura e quer ver em
Descartes na Refutação é o Descartes que, partindo da dúvida e passando pela
inferência "eu penso", pára na conclusão "eu existo". Portanto, não é
Descartes.
Balanço feito, tudo indica que a posição final da gnosiologia cartesiana está
muito mais próxima do que nomeamos aqui idealismo da autoconsciência, que
funciona na Lógica Transcendental como um dos adversários da Dedução29, e não
da Refutação- a qual se volta contra o idealismo cético. Em primeiro lugar,
porque se pudéssemos traduzir o Eu penso, eu sou cartesiano pela noção kantiana
de "experiência interna", deveríamos dizer que são ao mesmo tempo cartesianas e
não-céticas as teses de que "a única experiência imediata é a experiência
interna", e que "a partir dela inferimos [a existência das] coisas externas".
Em segundo, porque, a rigor, não podemos traduzir o Eu penso, eu sou cartesiano
pela kantiana "experiência interna". A versão cartesiana desta expressão,
indicada na proposição Eu penso, deve, ao contrário da kantiana, designar um
ato exclusivo do pensamento, o qual é para Kant sempre pré-cognitivo, não-
experiencial e, a rigor, apenas aperceptivo. E queremos crer que é a Dedução
que se acha comprometida com a tese de que a "experiência externa a rigor é
imediata" e "somente por seu intermédio é possível..." o Eu penso como
expressão da unidade transcendental da apercepção. Chegamos com isso à segunda
pergunta acima formulada: como a Dedução se comporta em relação ao idealismo
cartesiano da autoconsciência?
Já no §16, Kant manifesta alguma preocupação com ele imediatamente após inferir
a unidade originária da apercepção a partir do conceito de um múltiplo de
representações consideradas como minhas. Sobre "essa identidade completa da
apercepção de um múltiplo dado na intuição", afirma que ela "contém (enthålt)
uma síntese de representações, e só é possível pela (ist nur durch...möglich)
consciência dessa síntese" (B133).
De um lado, o vocabulário da continência não desautoriza a tese da
independência e do primado da apercepção relativamente ao múltiplo de
representações dadas. Com efeito, é razoável aceitar que o que contém subsista
anterior ao e independentemente do seu conteúdo, a ponto de poder ser mais
imediatamente cognoscível do que ele e "aplicável" a ele. Esse modo de
caracterizar a relação entre a unidade da apercepção e as representações dadas
soa cúmplice de leituras cartesianizantes do kantismo, que concebem a
consciência de si como anterior e principial relativamente às representações
sintetizadas, aplicando-se tardiamente a elas de modo a conferir objetividade à
síntese contingente e pré-aperceptiva em que originalmente se organizariam30.
O complemento da passagem, cuja conjunção, queremos crer, deve ser interpretada
como explicativa, parece, no entanto, bloquear essa leitura. Ao mesmo tempo em
que revela o princípio de unificação de um múltiplo dado, a apercepção é
tornada primeiramente possível pelas representações cujo caráter de um múltiplo
ou série ela revela31. Nesse sentido, enquanto consciência de um Eu subjacente
espontâneo que, em princípio, nada é senão o caráter de série da série das
representações enquanto minhas, a apercepção não subsiste independentemente dos
elementos da série representativa, não confere gênese aos objetos ordenados,
nem consiste num conhecimento anterior ao conhecimento dos elementos da série
representativa. Em suma, Kant aqui parece não pretender atribuir à
autoconsciência nem um primado ontológico, nem um primado epistêmico em relação
à consciência dos objetos representados.
Sabe-se que na chamada primeira parte da Dedução, os objetos representacionais
relativamente aos quais Kant pretende demonstrar a validade objetiva da
apercepção transcendental são "intuições em geral". Mas a tarefa da segunda
parte, associada à da Refutação, é concluir aquela demonstração apresentando a
relação da apercepção especificamente com os dados de nossa intuição sensível
espaço-temporal, vale dizer, com os objetos do nosso conhecimento. Se isso se
faz, pode-se dizer que a autoconsciência tampouco possui algum primado
(ontológico / epistêmico) em relação ao domínio dos objetos do conhecimento. Ao
contrário, é somente na medida em que me torno explicitamente consciente de
representações enquanto minhas, e não primeiramente de mim mesmo, que posso me
tornar consciente de mim mesmo como princípio subjacente da unidade delas.
Sobre a possibilidade do idealismo irrefutado
Encontra-se na Dedução um emprego terminológico que identifica a prova anti-
idealista do primado do "domínio da objetividade" em relação à autoconsciência
com uma prova do caráter "originário" da chamada unidade objetiva da
apercepção. Esse emprego é acompanhado de importantes decisões conceituais.
Sabe-se que a palavra Apperzeption, tradução da latina conscientia,
originalmente não tem conotação reflexiva32. Apperzeption como autoconsciência
- consciência de si de um sujeito como sujeito uno e idêntico da pluralidade
das suas representações - é um uso tardio. Sabe-se também que Kant se serve dos
termos nos dois sentidos: consciência de si e consciência de objetos, de modo
que a unidade objetiva da apercepção pode ser ou bem a consciência da unidade
de um Eu, ou bem unidade da consciência de estados de coisas objetivos como
resultado do recolhimento das intuições a conceitos de objetos em juízos33.
Tudo indica que é o segundo sentido que Kant confere à expressão quando se
trata de refutar o suposto primado epistêmico cartesiano (idealista
problemático) da autoconsciência subjetiva. A tese de que o mundo externo é
mais imediatamente cognoscível seria assim expressa por Kant como a tese do
primado da unidade objetiva da Apperzeption como consciência de objetos. O
elemento originário suposto em toda consciência que o sujeito tem de si mesmo
(seja na consciência empírica dos estados internos, seja na consciência de si
como sujeito lógico do ato de pensar) é umaconsciência de estados objetivos. Em
suma, a consciência do Eu só é possível sob o pressuposto de que é possível a
consciência do não-Eu.
O que se pergunta, por fim, é se com essa demonstração Kant consegue se ver
livre de todo idealismo indesejável e estabelecer o idealismo transcendental
como, segundo a letra do Prefácio, o caminho seguro de uma metafísica
purificada pela Crítica. Alguma ameaça idealista ainda permanece quando o
refutador do idealismo julga ter encontrado o elemento originário e o princípio
último de sua concepção do conhecimento na noção de apercepção objetiva,
consciênciade objetos? Ainda que não se interprete esse dado originário que
parece ser a unidade objetiva da apercepção como consciência de si, ela
permanece uma forma de consciência, a saber, da unidade das representações
enquanto representações de um objeto. Isso pode manter aberta a possibilidade
de que o domínio da objetividade seja epistemicamente anterior à
autoconsciência somente na medida em que resulta da atividade constituinte de
uma consciência que se atualiza nas formas lógicas do julgar. E talvez deva ser
preciso evitar que a Dedução apareça, ao fim e ao cabo, como a prova de um
primado, se não epistêmico-metodológico, ao menos transcendental, do Eu puro
como consciência transcendental em relação ao domínio da objetividade.
Enfim, pertence à letra e ao espírito do kantismo uma refutação do que pode vir
a ser esse idealismo remanescente em sua versão mais radical? Uma refutação que
se apresente como a prova não só de que a consciência da unidade e identidade
de um Eu puro depende do conhecimento objetivo, mas também de que a unidade e
identidade da consciência objetiva se constitui a partir de (e em cooperação
com) uma "objetividade" ante-representacional e, a rigor, pré-consciente...
Talvez seja isso, afinal, assimilar, sem realismo simplista, a ideia de que
algo só pode merecer o título de Gegenstand se lhe pertence uma incontornável
alteridade em relação ao Eu, ou por outras, se estiver absolutamente lá: "fora
de nós".