A INTERAÇÃO ENTRE A FORMA E A MATÉRIA EM TOMÁS DE AQUINO E AS INTERAÇÕES DO
SISTEMA CARTESIANO
O tema da interação entre as substâncias no sistema cartesiano é motivo de
debate entre Descartes e uma série de autores no século XVII, que argumentavam
pela impossibilidade da alma causar movimento no corpo. Este é o caso de
Elisabeth:
[...] como a alma do homem pode determinar os espíritos dos corpos
para fazer as ações voluntárias, (nada mais sendo que uma substância
pensante). Pois parece que toda determinação do movimento se faz pela
impulsão da coisa movida, pela maneira que ela é impulsionada por
aquilo que a move, ou melhor, pela qualificação e figura da
superfície desse último. (Elisabeth para Descartes, 6/16 de maio de
1643; AT, III, 661)
A autora considera absurda a ideia de que algo desprovido de matéria, e,
consequentemente, incapaz de impulso por contato, possa ser causa de qualquer
movimento: "E eu advogo que me será mais fácil conceder a matéria e a extensão
à alma, do que a capacidade de mover um corpo e de ser movido a um ser
imaterial" (Elisabeth para Descartes, 10/20 de junho de 1643; AT, III, 685).
Também Gassendi levanta a mesma dificuldade: "Como há contato sem corpo, quando
(à luz natural é evidente [que]) tocar e não tocar não pode ocorrer sem corpo?"
(AT, VII, 341).
Descartes, ao responder à Elizabeth, apresenta o exemplo do peso, que para os
escolásticos é um princípio imaterial, inerente aos corpos, e que move um corpo
para baixo assim como a alma move o corpo do homem. Ao fazêlo, Descartes não
está defendendo nenhuma qualidade oculta do peso, o que considera erro já
eliminado da física.1 A noção medieval de peso, mesmo errada, parece ser para o
autor um bom exemplo da facilidade com a qual se pode inteligir, sem
necessidade de explicação ulterior, um princípio não material que causa
movimento sem contato:
Por exemplo, supondo que o peso é uma qualidade real da qual nós não
podemos ter outro conhecimento senão daquela força de mover os corpos
para o centro da terra, nós não penamos para conceber como ela move
esses corpos, nem como ela lhe é unida. E nós não concebemos que isso
se faz por um contato real de uma superfície contra outra, pois
experimentamos, em nós mesmos, que temos uma noção particular para
concebê-la; e eu creio que usamos mal dessa noção ao aplicá-la ao
peso, que nada é de realmente distinto dos corpos, como eu espero ter
mostrado na Física, mas que nos foi dado para conceber o modo como a
alma move o corpo. (Descartes a Elisabeth, 21 de maio de 1643; AT,
III, 667-668)
Descartes sugere a Elisabeth que a interação entre a alma e o corpo opera de
modo idêntico à relação entre a forma e a matéria na teoria do movimento dos
escolásticos.2 Se, ao modo de Carriero_(2009), entendermos Tomás de Aquino como
parâmetro do aristotelismo escolástico referido por Descartes, podemos
investigar o peso como um tipo de movimento e compreender como a forma opera,
para Descartes, como princípio interno nos corpos naturais.3 Hattab_(2009) fia-
se neste tipo de abordagem do texto de Descartes, embora tenha se concentrado
em compreender a alma como forma substancial, deixando pouco explorado o
exemplo do peso da correspondência.
Neste artigo, mostro como a forma e a matéria, entendidos como princípio
intrínseco do movimento, tal qual encontramos no aristotelismo de Tomás de
Aquino, são apropriados por Descartes em seu exemplo do peso contra
interpretações materialistas da interação entre substâncias no sistema
cartesiano.4 O exemplo, que analiso a partir das correspondências, é um dos
poucos casos em que se encontra a relação entre o hilemorfismo e o materialismo
apontados diretamente pelo próprio autor.5 Por fim, mostro como o sistema
cartesiano é muito mais dependente de Deus para explicar a causa da interação
entre corpos que o sistema de Tomás de Aquino.6
Tomás de Aquino classifica o movimento segundo as diferentes categorias do ser
("In I Phys." lect. 1). Trata-se de uma classificação em vista do fim, uma vez
que a forma só ocorre no sujeito do movimento, ou seja, na matéria, quando o
movimento finda, dando origem a uma estrutura composta pelo substrato material
e pela forma, sendo que tal composto não existia no princípio do movimento.7 Há
o movimento do sujeito quanto à sua forma acidental e há mudança na categoria
da substância. O movimento quanto à forma acidental ocorre nas três categorias
que admitem contrários: a qualidade, na qual o movimento é denominado
alteração, na quantidade, na qual é denominado aumento e diminuição, e na
categoria do lugar, na qual é denominado locomoção ("In III Phys." lect. 1). O
outro movimento, denominado mudança, ocorre na categoria da substância.8 Para
realizar tal empreita, investigo a teoria do movimento de Tomás, com ênfase nas
noções de forma e matéria, e termino tratando do movimento celeste, antes de
retornar para uma breve consideração final sobre o ocasionalismo do sistema
cartesiano.
Para Tomás de Aquino, o movimento entendido como o ato do que é em potência,
com respeito ao que é em potência, ocorre entre dois términos, sendo um
terminus ex quo, início do movimento, e outro terminus in quem, aquilo em vista
de quê o movimento ocorre, ou seu fim: "requer dois términos: um do qual o
movimento tem início e outro para o qual o movimento procede, pois todo
movimento é de algo para algo" ("In V Phys." lect 1, 641; vide "in V Meta."
lect 11, 2361). Há que se notar que se exclui a possibilidade de que o próprio
movimento seja fim, uma vez que aquilo que se move, move-se em vista de uma
determinação que ainda não existe. Seria, então, contrassenso que o movimento
fosse seu próprio fim (ScG IV, 82), assim como também seria se os términos
fossem móveis, de sorte que todo movimento principia e termina com a ausência
de movimento:
Portanto, diz primeiro que aquilo que é movido primeiro e por si
difere do término (in quem) para o qual tende o movimento e do
término (a quo) do qual o movimento teve início. Isto é evidente com
respeito à madeira, ao calor e ao frio. Pois no movimento de
calefação, a madeira é o móvel que difere do calor que é o término
(ad quem) para o qual, e do frio que é o término (a quo) do qual.
("In V Phys." lect. 1, n. 5)
Os términos do movimento são contrários que se caracterizam pela eliminação
recíproca, seja esta eliminação parcial ou integral. Em outras palavras, os
términos são mutuamente excludentes, motivo pelo qual se diz que o movimento
ocorre entre opostos ("In V Met." lect. 2). A oposição entre os términos é
qualificada, tratando-se de contrapor o perfeito ao imperfeito, o ser ao não
ser:
E diz que não apenas a geração é contrária a geração e a corrupção
com respeito ao que é natural e antinatural, mas todos os movimentos
e o repouso são contrários deste modo. Assim, o movimento para cima é
contrário ao movimento para baixo (uma vez que o alto e o baixo são
lugares contrários) e cada um desses movimentos é natural para algum
corpo. Pois o fogo naturalmente sobe e a terra desce. Ademais, para
cada um desses movimentos há diferentes contrários com respeito ao
que é natural e antinatural. ("In I Phys." lect. 10, n. 6)
Há, entretanto, razões para que se conceba um terceiro elemento entre os dois
términos. Isto porque, uma vez que o princípio e o fim do movimento são
contrários, não é o princípio do movimento que se transforma, aos poucos, no
fim. Por exemplo, em um corpo quente que esfria, não é o calor, início do
movimento, que esfria ou, do mesmo modo, não é o úmido que se torna seco. Deve-
se acrescentar a isso que há identidade no que se move e continuidade no
movimento entre um término e outro, de tal sorte que o sujeito do movimento
permaneça o mesmo do princípio ao fim ("In I Phys." lect. 11 e 12).
Aporta-se, desse modo, a três termos do movimento, segundo Tomás: o sujeito que
se move, a perfeição ou fim do movimento, e a privação ou início do movimento.9
O sujeito do movimento, apto a transitar entre os dois términos, é a matéria. O
fim do movimento, sua perfeição, é a forma por meio da qual o sujeito do
movimento, a matéria, recebe uma determinação. O terceiro termo do movimento, a
privação, não é distinto numericamente do sujeito ("In I Phys." lect. 15), a
matéria, embora dela se diga "privação" para, com isso, indicar que não
permanece no sujeito que se move, assim como se diz "matéria" daquilo que
permanece ("In I Phys." lect. 12 e 13). Uma vez que a privação é numericamente
idêntica ao sujeito há, na verdade, dois princípios do movimento, o próprio
sujeito, substrato ou matéria, e a forma.
A esta divisão acrescenta-se outra, a divisão do ser em potência e em ato,
sendo ela a responsável por mediar a passagem entre a privação e a recepção da
forma ("In I Phys." lect. 9). O termo "ato" designa o princípio e o fim do
movimento, sendo também chamado ato da forma ("In IX Met." lect. 3). O sujeito
do movimento não é o ser em ato, uma vez que ainda não recepcionou a forma, nem
é o não ser, exceto se se entende a expressão como indicando a privação da
forma a ser recebida. Tal sujeito em movimento, o substrato material, é dito em
potência para o ato. Ademais, uma vez que o ato é o fim do movimento e também o
fim da potência, pode-se afirmar que o movimento é a transição da potência para
o ato, restando denominá-la ato imperfeito. Cabe notar que se diz "imperfeito"
porque o sujeito em movimento ainda não realizou o seu fim e, nesta media, é
incompleto, uma vez que se relaciona a um ato futuro, o que indica sua privação
ou potência:
Pois, quando a água é quente somente em potência, não há movimento.
Quando está quente, o movimento de calefação terminou. Mas quando
participa de algum modo do calor, embora imperfeitamente, está em
movimento para o calor. Pois, aquilo que esquenta, paulatinamente
participa do calor mais e mais. Pois o movimento é o ato imperfeito
do calor, existindo na calefação não somente enquanto ato, mas na
medida em que já existe em ato, possuindo uma ordenação para um ato
ulterior. ("In III Phys." lect. 2, n. 3)
Pode-se investigar o movimento segundo a natureza, o que nos permite
compreender o movimento na sucessão do tempo. Nesta investigação, partese da
privação e move-se em direção à perfeição de uma determinação do ser. Há,
porém, outra possibilidade, a de se investigar a perfeição segundo a natureza
do sujeito que se move. Neste caso, dá-se anterioridade ao ato, uma vez que a
perfeição já se encontra na natureza do sujeito, como seu melhor fim, aquilo
que lhe é desejável. Nesta investigação, prioriza-se a noção de desejo ou
inclinação da matéria: "Dado que a forma é algum tipo de bem e desejável, e a
matéria, que não é outra coisa senão a privação da forma, por sua natureza a
procura e a deseja" ("In I Phys." lect 15, n. 8). O que é desejável à matéria é
a forma, entendida como sua perfeição, ou término de seu movimento.
A noção de desejo ou inclinação aparece como elemento relevante do movimento
para baixo promovido pela forma ou qualidade do peso de um dado corpo. É a
noção de inclinação ou desejo que explica porque, para Descartes, não há uma
simples relação de analogia entre a qualidade do peso, e seu movimento para
baixo, e a alma, e sua capacidade de causar movimento no corpo. A relação a que
Descartes se refere com o exemplo é de identidade, motivo pelo qual sempre
retorna ao exemplo, como o faz para Arnauld cinco anos depois de tê-lo
formulado para Elisabeth: "De sorte que nós não encontramos dificuldade para
inteligir de que modo a alma move o corpo, quando eles [i.e., os escolásticos,
compreendem] de que modo tal gravidade faz a pedra cair" (Descartes para
Arnauld, 29 de julho de 1648; AT, V, 222-223). Tal qual Tomás concebia que o
peso move um corpo para baixo, segundo sua inclinação ou desejo, assim também
se deve compreender como a alma, que não é extensa, causa movimento no corpo
segundo sua inclinação ou desejo.
Para Descartes, entretanto, inclinação ou desejo são noções derivadas do
pensamento e não se pode, por exclusão, admiti-las na extensão, nem na
natureza, exceção feita à união substancial do homem. Em vista dessa limitação,
com seu exemplo Descartes informa a seus contemporâneos que os escolásticos
aristotélicos erraram ao tentar explicar o movimento dos corpos naturais por
meio da forma e da matéria. Informa, ainda, que o erro decorre de terem
entendido o movimento humano como paradigma para tratar de todos os movimentos
na natureza. Agindo desse modo, transformaram a alma humana em forma e a
distribuíram para toda a natureza. Porém, com isso, viram-se obrigados a
conceber que também os corpos naturais inanimados tem inclinações e desejos,
como os corpos pesados teriam o desejo ou inclinação para baixo:
Porém, a evidência de que aquela ideia de gravidade foi decorrente
principalmente de outra [ideia], a que eu tinha de alma, é que supus
que a gravidade carregasse os corpos até o centro da terra, como se
eles contivessem em si alguma cognição dele [i.e., do centro da
terra]. Pois não poderia proceder deste modo sem que [alguma]
cognição fosse feita, nem qualquer cognição pode ocorrer senão na
alma. (AT, VII, 442)
O exemplo de Descartes, deve-se acrescentar, não afeta somente a interação
entre a alma e o corpo, mas principalmente a interação entre corpos. Isto
ocorre porque, para os interlocutores de Descartes, o impacto não pode ser
entendido como a causa da transferência de movimento entre corpos no sistema
cartesiano, considerando que a extensão não guarda nenhuma qualidade ou força
que possa transmitir. Com o exemplo dos corpos pesados, Descartes quer forçar
seu interlocutor a concluir que a transferência de movimento, mesmo entre
corpos, é causada por algo distinto da matéria, algo que não pode ser derivado
da noção primitiva de extensão e que se assemelha a uma inclinação ou desejo,
tal qual os escolásticos postularam existir entre os graves e seu lugar natural
baixo.10
A solução, entretanto, aponta para a dificuldade de se inteligir a relação
entre dois corpos. Uma vez que corpos são derivados da extensão, não pode
ocorrer neles nenhuma ideia de inclinação ou vontade, tal qual a forma
determinando a matéria, que seja a causa do movimento transmitido por contato.
A ideia de contato, uma vez que também decorra exclusivamente da extensão, não
pode ser tratada como idêntica à inclinação ou vontade que causa a
transferência do movimento de um para outro corpo, e nada haveria nos corpos
que pudesse ser inteligido como causa do movimento: a extensão é inerte, ou
seja, isenta de formas. Aporta-se, desse modo, a uma dificuldade legítima de se
explicar a interação entre corpos.
Para alguns cartesianos do século XVII, toda e qualquer interação entre corpos
é causada não por contato, mas pelo intelecto divino, assim como o movimento do
corpo de um homem é causado pelo seu intelecto. Esta é a solução de La Forge
para a dificuldade:
Sustento que não há criatura, espiritual ou corpórea, que possa mudar
a si ou qualquer de suas partes no segundo instante de sua criação se
o criador não o fizer ele mesmo, uma vez que foi ele que fez esta
parte da matéria no lugar A. Por exemplo, não apenas é necessário que
ele continue a produzi-la se ele deseja que ela continue a existir,
mas também, uma vez que ele não pode criá-la em todo lugar, nem pode
criá-la sem lugar, ele deve por si colocá-la no lugar B, se ele a
quer ali, pois se ele a quisesse colocar em algum outro lugar, não
haveria força capaz de removê-la de lá. (La_Forge,_1974, 240)
A interpretação de La Forge não é incompatível com algumas passagens de
Descartes, ao contrário, como se pode perceber na seguinte carta:
Por outro lado, a força movente pode ser o próprio Deus, conservando
o mesmo tanto de translação na matéria que ela possuía no momento
primeiro da criação; ou pode ser a substância criada, que é a nossa
alma, ou qualquer outra coisa para a qual ele deu a força para mover
um corpo. (Descartes a More, agosto de 1649; AT, V, 403404)
Esta concepção, ocasionalista, tem por propósito preservar a matéria
geometricamente descrita e livre de qualquer princípio ou força, idêntico à
forma do aristotelismo de Tomás de Aquino e que não possam ser derivados da
noção primitiva de extensão. Momento a momento, o Deus de Descartes move,
atribuindo a um corpo o movimento que se encontrava em outro corpo, de tal
sorte que a quantidade total de movimento na natureza permaneça a mesma. A cada
momento que Deus move os corpos, cria o mundo, uma vez que não há ação de Deus
que não seja criação.
Se se admitir esta interpretação ocasionalista, o preço explicativo pago por
Descartes ou, ao menos, por cartesianos como La Forge para eliminar da natureza
as qualidades ocultas parece, à primeira vista, alto demais. É, certamente, um
preço que Tomás de Aquino não precisa pagar ao sustentar, com seu sistema
hilemórfico, um princípio intrínseco aos corpos naturais como causa de seu
movimento natural. A que se notar que tanto para Tomás quanto para Descartes a
matéria é passiva. Porém, a causa efetiva em Tomás é parte da estrutura de cada
corpo natural que se move segundo suas determinações naturais. Como as
determinações são distintas para cada espécie, não há um conjunto de leis
gerais do movimento, mas a totalidade de espécies criadas.
O preço pago por Descartes, embora alto quanto à causalidade, permite que ele
abandone as determinações segundo a espécie e adote um conjunto unificado de
leis do movimento. O que das leis da natureza se intelige é que Deus age para
preservar a mesma quantidade de movimento no mundo, desde o primeiro momento da
criação. A preservação do movimento, por seu turno, deriva da própria
imutabilidade de Deus, e esta deriva de sua perfeição. Deus age no mundo,
portanto, segundo o princípio da conservação, mas o faz especialmente quando um
corpo colide com outro.
Segue-se que é maximamente consistente com a razão, que acreditamos
com base somente nisto, que Deus moveu as partes da matéria de
diferentes modos quando primeiro as criou, e que agora conserva toda
a matéria do mesmo modo pela mesma razão que ele a criou antes, que
ele conserva a mesma quantidade de movimento nela sempre. (AT, VIII,
62)
Evidentemente, também se pode dizer com correção, em Tomás de Aquino, que Deus
é a causa do movimento. Porém, ele não o é como causa eficiente dos movimentos
naturais dos corpos compostos de matéria e forma. Em Tomás, Deus não atua
momento a momento para conservar o movimento dos corpos naturais. O movimento é
causado segundo a forma, uma vez que é por meio dela que o substrato recebe a
determinação. Contudo, uma vez que é na matéria que ocorre o movimento, a causa
motora não é delimitada apenas pela forma, mas também pela condição passiva da
matéria de receber a ação ("In III Phys." lect. 5, 314). Afinal, o movimento
produzido pela forma não pode ser contrário à disposição material de recebê-la.
Não sendo contrário, diz-se do movimento que é natural, necessário; sendo
contrário à disposição material, diz-se que o movimento é antinatural e ocorre
por violência.11
Para todo movimento natural há uma dupla relação entre o motor e o móvel, uma
vez que se pode dizer de ambos na categoria da quantidade e nas categorias da
passividade e da ação, sendo estas duas últimas as que tratam do princípio ou
fim do movimento ("In III Phys." lect. 5, 314). Tem-se, assim, a combinação das
quatro causas. A eficiente conecta o motor ao móvel e está garantida pela
internalização do princípio formal do movimento. Este, no que concerne à
atividade, é causado pela forma e, no que concerne à passividade, é recebido
pelo substrato, causa material do movimento. Como todo movimento é em vista de
um fim, de um terminus in quem que é a determinação pela recepção da forma, as
causas formal e material resolvem-se na causa final por diferentes modos. A
causa formal doando a ação e a causa material recebendo a ação. Acrescente-se,
como já dito, que o ato é anterior a potência, de sorte que, aquilo que é
resultado do movimento, de algum modo preexiste, não numericamente, mas em
espécie. Enquanto tal, permanece estável, perfeito, para além das contingências
do mundo natural.
A participação no que permanece estável, perfeito, para além do mundo natural
não pode residir nos compostos de matéria e forma do mundo sublunar, uma vez
que não estão isentos de movimento e mudança.12 Faz-se, assim, necessário o
mundo estável no qual não existe contrários, nem geração ou corrupção. Tomás,
seguindo Aristóteles ("In II De caelo", lect. 1), assume a divisão do mundo em
duas partes distintas, a terrestre ou sublunar, e a celeste ou supralunar. A
parte sublunar é passível de geração e corrupção, bem como dos demais
movimentos das categorias acidentais da quantidade, da qualidade e do lugar. No
mundo sublunar, corpos compostos de matéria e forma transformam-se o tempo
todo. Na parte celeste ou supralunar não há quatro elementos, mas apenas um
quinto, que não é passível nem de geração, nem de corrupção, e que se move tão
somente com movimento local, circular e uniforme ao redor do centro geométrico
do mundo.13
Poderia haver dúvida quanto a perfeição dos corpos celestes precisamente por
conta de moverem-se com movimento circular, ferindo, desse modo, a relação
direta que há entre perfeição e imobilidade. Entretanto, Tomás de Aquino
sustenta que o movimento local, por meio do qual os corpos celestes realizam
seu movimento circular, é o que menos indica imperfeição. Isto porque, o que se
move com movimento local sofre apenas movimento externo, ao passo que todos os
outros movimentos indicam alterações intrínsecas ao móvel (ScG III, 82).
Ademais, os corpos celestes estão mais próximos da imobilidade e,
consequentemente, mais próximos da perfeição, uma vez que não passam por
mudança em sua substância, segundo a geração e a corrupção, nem em sua
qualidade, por alteração. Pode-se, ainda, argumentar que Tomás segue muito
próximo o texto do "De caelo", ao entender que a imobilidade da qual
Aristóteles trata diz respeito a passagem entre contrários. Movimentos locais
simples podem ter apenas um contrário, como é o caso dos corpos da região
sublunar, movendo-se para o alto ou para o baixo. Na região supralunar,
entretanto, só há ocorrência de movimento simples circular, que carece de
contrários.14
Ainda assim, os corpos celestes, uma vez que se movem com movimento circular
local, são movidos por outro,15 e como o regresso não pode continuar ao
infinito, faz-se necessário um primeiro motor imóvel, este sim, permanente,
imutável, perfeito (ScG I, 13). Contudo, há que se esclarecer como tal motor
pode mover sem ser movido, uma vez que, como vimos, ao menos na natureza, o ato
precede a potência e todo princípio de movimento parece ser intrínseco.
Evidentemente, a pergunta pelo motor imóvel do movimento não instaura uma causa
efetiva, externa aos corpos naturais. Sejam os motores das esferas celestes,
seja o primeiro motor, nenhum deles funciona como causa eficiente dos corpos
naturais, mas como causa final, uma vez que causam movimento por serem
desejados (O'Connor,_1948).
Pode parecer estranho que todos os entes celestes, ao desejarem a imobilidade,
façam exatamente o contrário, ou seja, movam-se. Contudo, o que desejam, o que
a imobilidade exprime, é a perfeição e a permanência. O desejo de perfeição se
realiza duplamente: no âmbito natural pela inclinação que a matéria tem para
receber a forma, mas também na garantia de que há estabilidade e perfeição em
um primeiro motor que é o início de todo movimento. Há, desse modo, uma redução
do movimento à perfeição, entendida como a imobilidade do primeiro motor. A
imobilidade garante que o primeiro motor seja perfeito, na medida em que nenhum
movimento pode levá-lo à corrupção, a perda de seu ser em ato (Kretzmann,_1966,
409, n. 1). Ademais, o ser imóvel é puro ato, não possuindo nenhuma privação
que possa se caracterizar como início do movimento (ST I, q. 9, a. 1). Emerge,
desse modo, outro princípio motor, porém um que não se encontra no domínio da
física, da natureza:
E não apenas o primeiro motor e o primeiro sujeito são considerados
quanto a geração, mas também todos os que lhe são consequentes. E,
assim, é evidente que pertence à filosofia natural considerar a
forma, o móvel e a matéria. Pois há dois tipos de princípios motores,
o que se move e o imóvel. Um motor que não é móvel não é natural,
pois não tem em si o princípio do movimento. E tal é o princípio
motor que é ao mesmo tempo imóvel e primeiro para todos os móveis,
como será exposto no Livro VIII. ("In II Phys." lect 13, n. 5)
A resolução do movimento na imobilidade pode ser assim descrita (Aertsen,_1988,
138): primeiro, o movimento é reduzido ao princípio natural, interno aos entes
naturais, a matéria e a forma, que se relacionam tal como a potência e o ato.
Na sequência, o movimento é reduzido a causas externas aos entes naturais, a
saber, o princípio ativo, agente e fim. O fim, é governado pela permanência ou
eternidade, o que requer uma ordenação ou hierarquia dos móveis segundo sua
menor mobilidade. Tal ordem reserva aos corpos celestes o lugar no mundo de
maior importância, uma vez que são tais corpos os que possuem menor mobilidade,
considerando que não mudam substancialmente nem se alteram qualitativamente.
Por fim, o movimento é reduzido ao primeiro motor imóvel.
Há coerência entre o início do processo de redução do movimento, quando se fala
dele no domínio da natureza, e a conclusão do processo, quando se trata do
movimento no domínio da perfeição do primeiro motor. No domínio da natureza, o
movimento é entendido a partir da matéria e da forma e, dada a garantia de
redução ao primeiro princípio imóvel, tem-se que a resolução natural, em cada
ser, de seu movimento natural, é garantia de perfeição, término do movimento
segundo a essência. Há que se notar que o movimento não termina com a
transmutação do ser que se move, mas com sua perfeição. O ser, ao término do
movimento permanece o mesmo, porém recebe uma determinação que não lhe era
efetiva no início do movimento.
A cosmologia de Tomás de Aquino parece, à primeira vista, introduzir
complexidade desnecessária à explicação da causa do movimento. Porém, há que se
considerar que a natureza, o mundo sublunar, pode, em Tomás, ter seu movimento
investigado em separado do céu, mundo supralunar, e do primeiro motor imóvel. A
investigação requer um único princípio interno aos corpos compostos para
explicar a causa dos movimentos de quantidade, qualidade e lugar, bem como da
mudança na categoria da substância, sob certo aspecto. Para tanto, Tomás
mobiliza as noções de matéria e forma, potência e ato, e inclinação ou desejo
natural. Descartes, ao apresentar o exemplo do peso a seus contemporâneos, crê
encontrar identidade entre o princípio interno de movimento, tal qual
encontramos em Tomás, e o pensamento como causa dos movimentos dos corpos. Ao
eliminar a forma dos corpos materiais, entretanto, Descartes vê-se obrigado a
constituir um Deus interventor que, a cada momento, causa os movimentos
naturais, segundo leis de conservação de sua criação. O grande ganho
explicativo de Descartes assenta-se, precisamente, no pequeno conjunto de leis
naturais que substitui a plêiade de essências e suas respectivas determinações,
em vista das quais, para Tomás e para o aristotelismo escolástico, cada
movimento era causado. Elisabeth, Gassendi e Arnauld, entretanto, parecem
reticentes em abandonar a ideia de que deve haver algo na matéria que, por
contato, transfere movimento de um corpo para outro.
1Vide o ataque contra a noção de qualidade dos escolásticos, na carta de
Descartes a Morin, em 13 de julho de 1638 (AT, III, pp. 199-200). Vide também,
sobre a exclusão nos corpos de tudo que não seja derivado da extensão, o ataque
aos princípios vitais da fisiologia no "Traité de l'Homme" (AT, XI, p. 202).
2Não se trata de analogia, mas de relação de identidade, uma vez que em ambos
os casos há interações entre o pensamento ou forma e extensão ou matéria
(Garber,_2001a, pp. 176-177).
3Assumo, tal qual Carriero, que o aristotelismo tomista teve papel relevante na
construção dos debates nos quais Descartes se envolveu. Embora Carriero formule
sua hipótese pensando nas "Meditações", acredito que hipótese semelhante pode
ser sustentada para os embates sobre a interação entre as substâncias presentes
nas correspondências e debates com Elisabeth, Gassendi e Arnauld que trato
aqui. Carriero expõe a hipótese na seguinte passagem: "Eu acredito, entretanto,
que aspectos gerais do tomismo aristotélico auxiliaram a moldar os debates de
Descartes e estabeleceram o cenário para boa parte de suas inovações
filosóficas – muito mais do que outras formas de aristotelismo ou outras
tradições de pensamento. Eu assumo (e isto não é controverso) que os
professores jesuítas de Descartes em La Flèche deram-lhe uma boa impressão do
aristotelismo tomista e (isto talvez seja mais controverso) que aquele
treinamento deu-lhe algo que funcionou como um tipo de concepção padrão contra
a qual desenvolveu sua própria filosofia, semelhantemente ao modo como seu
próprio pensamento deu a Espinosa e a Locke um ponto de partida de suas
próprias filosofias" (Carriero,_2009, p. 6).
4Hattab acrescenta outro argumento aos de Carriero_(2009). Para a autora, a
noção de forma substancial contra a qual Descartes escreve tem origem em Tomás
de Aquino (Hattabh,_2009, p. 31ss).
5Concordo com Hattab, para quem: "René Descartes dá poucos argumentos que
apoiam diretamente sua rejeição das formas em favor dos mecanismos. Ademais, as
poucas razões que oferece em seu corpus estão encriptadas e são difíceis de
decifrar" (Hattab,_2009, p. 1).
6Ao menos à luz de interpretações ocasionalistas, como a de Hatfield_(1979) e
Garber_(2001a, b, c). Para uma concepção não ocasionalista da interação entre
substâncias, vide: Westfall_(1971) e Della_Rocca_(2002). Para minha posição
sobre a questão, que procura compatibilizar a posição ocasionalista e uma certa
quantidade de movimento na matéria, vide Custódio_(2013).
7Tomás de Aquino vincula-se fortemente a definição de natureza de Aristóteles
como princípio do movimento e do repouso per se, não por acidente ("Phys." II,
1, 192b21-23). Tal princípio per se é forma, quando dito ativo, e matéria,
quando dito passivo. A natureza, entendida como matéria, designa todas as
possibilidades dos corpos de receberem determinações. Ademais, natureza como
forma é princípio ativo de toda determinação da matéria ("In I De caelo", lect.
16, 13; "In III De caelo", lect. 7, p. 5-9). Há que se notar, entretanto, que a
forma não é motor primeiro e por si dos corpos, uma vez que ela deve ser
gerada, ou seja, vir a ser. Como afirma Weisheipl, "Quando a natureza, em
sentido passivo, 'era movida' na geração de uma nova substância, era movida por
outro: omine quod movetur ab alio movetur" (1965, p. 40). Desse modo, todo
movimento de geração, uma das mudanças da categoria da substância, parece
depender em alguma medida de um princípio externo. Porém, uma vez gerada, a
substância move-se segundo sua forma e matéria, não necessitando de princípio
externo algum.
8Há, na verdade, duas mudanças, uma denominada geração e outra denominada
corrupção, e não se deve compreendêlas como denominações dos contrários de uma
mesma mudança, uma vez que não há contrários na categoria da substância. Tanto
o movimento que diz respeito à forma acidental quanto a mudança da substância
ocorrem em algo que permanece imóvel. Para que ocorra o movimento da forma
acidental, o sujeito permanece imóvel; para a mudança na categoria da
substância, o que permanece imutável é matéria ("In III Phys." lect. 1).
9Como notou Elders (1975, 46-47), os términos do movimento são pensados tendo
em vista um móvel que não possui a forma que irá adquirir. Nessa medida, o
início do movimento caracteriza-se como uma privação da forma ("In I Phys."
lect. 13).
10Interessa-me o contexto da correspondência com Elisabeth, na qual Descartes
apresenta sua teoria das noções primitivas: "Primeiramente, eu considero que há
em nós certas noções primitivas que são como que originais, sobre o padrão das
quais nós formamos todos os nossos outros conhecimentos. E não há nada mais
forte do que tais noções. Assim, depois das mais gerais, do ser, do nome, da
duração, etc., que convém a tudo que nós podemos conhecer, nós temos, para os
corpos em particular, a noção de extensão, da qual se seguem aquelas da figura
e do movimento; e exclusivamente para a alma nós temos aquela do pensamento, da
qual se compreende as percepções do entendimento e as inclinações da vontade"
(Descartes para Elisabeth, 21 de maio de 1643; AT, III, 665, grifo meu).
11"Portanto, diz que aquilo que ocorre por violência é antinatural. (Pois o
violento é aquilo cujo princípio é extrínseco, e a violência não contribui com
nada. O princípio natural, entretanto, é interno)" ("In V Phys." lect. 10, n.
4).
12Clarke argumenta que não se pode ignorar a influência do platonismo, quando
Tomás altera a teoria do ato e da potência para incluir uma concepção de
participação dos corpos corruptíveis e mutáveis nas essências imutáveis e
incorruptíveis (Clarke,_1952, 190-193). Contra a concepção de Clarke de que há
adesão ao neoplatonismo, vide Cantens_(2000).
13Tomás segue, em grande medida, o sistema de esferas concêntricas em movimento
proposto por Aristóteles (Dicks,_1970, pp. 200-201). Este é o caso da
referência que Tomás faz à "Metafísica" XII em seu comentário ("In II De
caelo", lect. 17 e 19). Não entro em detalhes sobre o movimento dos céus, como,
por exemplo, a distinção entre os corpos celestes e seus motores. Devo
ressaltar, entretanto, que para Tomás o problema dos motores celestes não é
teológico, mas parte da ciência especulativa; mais especificamente, da
astronomia física (Weisheipl,_1961, p. 299).
14Não há contrário no movimento circular que ocorre em uma mesma
circunferência, porém em direção oposta. Isto porque, no caso do movimento na
categoria do lugar, os contrários são os términos do movimento, sendo um a
privação da determinação do outro. Um móvel que complete toda a circunferência
alcançará, ao final do movimento, o mesmo lugar do início, e não um término
final e contrário ao término inicial ("In II De caelo", lect. 13).
15Os corpos celestes não podem ser tratados como os corpos naturais que, como
vimos, possuem um princípio interno de movimento, a saber, a forma quanto ao
que é ativo e a matéria quanto ao que é passivo. A razão para não poderem ter
um princípio formal de movimento é o fato de não se moverem para uma
determinação, a partir da ausência dessa determinação, uma vez que tal
movimento seria finito, com dois términos, um início e um fim. A solução, para
evitar a admissão de términos para o movimento celeste, é considerar que os
corpos supralunares são pura passividade, movidos por outro e não por um
princípio intrínseco ("In II De caelo", lect 18, 1). Pouco importa o que seja
esse outro.