Trajetos de uma forma literária
Meu assunto na tarde de hoje é uma forma literária que lida com a história,
entendida como uma concatenação de acontecimentos públicos no passado. Na
imensa multiplicidade do universo da prosa de ficção, fervilhante de tantos
gêneros diferentes, o romance histórico foi, quase que por definição, o mais
consistentemente político. Não é surpresa que ele tivesse originado aquela que
provavelmente ainda é a mais conhecida de todas as obras da teoria literária
marxista, O romance histórico de Lukács, escrita no seu exílio russo nos anos
1930. Qualquer reflexão sobre a estranha trajetória dessa forma deve partir de
Lukács, não importa quanto se afaste dele em seguida. Como é sabido, a teoria
de Lukács é construída em torno da obra de Sir Walter Scott. Quais são suas
principais assertivas? Em sua forma clássica, o romance histórico é uma épica
que descreve a transformação da vida popular através de um conjunto de tipos
humanos característicos, cujas vidas são remodeladas pelo vagalhão das forças
sociais. Figuras históricas famosas aparecem entre os personagens, mas seu
papel na fábula será oblíquo ou marginal. A narrativa será centrada em
personagens de estatura mediana, de pouca distinção, cuja função é oferecer um
foco individual à colisão dramática dos extremos entre os quais se situam ou,
mais freqüentemente, oscilam. Assim, os romances de Scott encenam uma trágica
disputa entre formas declinantes e ascendentes da vida social, em uma visão do
passado que respeita os perdedores mas sustenta a necessidade histórica dos
vencedores. O romance histórico clássico, inaugurado por Waverley, é uma
afirmação do progresso humano, nos e através dos conflitos que dividem a
sociedade e os indivíduos dentro dela.
Segue-se da concepção de Lukács que o romance histórico não é um gênero ou
subgênero específico ou delimitado do romance tout court. Antes, ele é
simplesmente um abre-alas ou precursor do grande romance realista do século
XIX. Uma geração depois, Balzac por exemplo adaptou as técnicas e a visão
de mundo de Scott ao presente, em vez de voltar-se ao passado, tratando a
França da Restauração ou da Monarquia de Julho basicamente do mesmo modo pelo
qual Scott representara a Escócia de meados do século XVIII ou a Inglaterra do
século XII. Por sua vez, o grande sucessor de Balzac foi a figura imensa de
Tolstói, cujo Guerra e paz representa a um só tempo o auge tanto do romance
histórico como do romance realista no século XIX. Em sociedades mais avançadas
que a Rússia, por outro lado, o desenvolvimento do capitalismo nessa época
lançara a classe trabalhadora revolucionária contra uma burguesia que não mais
acreditava trazer o futuro consigo e que estava decidida a esmagar qualquer
sinal de alternativa a seu domínio. Nessa situação muito diversa mas após
1848 muito mais típica , as conexões do passado com o presente foram cortadas
na ficção européia e o romance histórico foi gradualmente se tornando um gênero
morto, de antiquário, especializando-se em representações mais ou menos
decadentes de um passado remoto, sem conexão viva com a existência
contemporânea, ou funcionando como rejeição dela e evasão. Esse o caso,
arquetipicamente, da fantasia sobre a Cartago antiga construída por Flaubert em
Salambô.
Em uma leitura recente, Fredric Jameson tentou ser fiel à visão global de
Lukács, embora oferecendo uma periodização diferente dentro dela. Ele sugere
que, melhor do que ver Scott como o fundador do romance histórico realista em
sua forma clássica, deveríamos considerá-lo praticante de um drama com
figurinos de época (costume drama), cuja forma narrativa encena a oposição
binária entre o Bem e o Mal. Essa antítese ética ingênua é a marca distintiva
do melodrama, e não é acidental sugere Jameson que suas expressões
artísticas mais características tenham sido operísticas, mais que romanescas. A
verdade de Scott deve ser encontrada em Verdi ou Donizetti, que emprestaram
amplamente dele, muito mais que de Manzoni, sem falar em Balzac.
Se quisermos um exemplar mais verdadeiro das prescrições de Lukács, argumenta
Jameson, precisamos nos voltar para Guerra e paz de Tolstói, um romance
histórico cujo triunfo é transcender as oposições entre herói e vilão do
melodrama de época, graças a seus retratos notáveis de um Napoleão hiperativo e
no entanto fútil, frágil símbolo da França, e de um Kútuzov aparentemente
apático e no entanto supremamente sagaz, representante autêntico dos ritmos
lentos do povo russo, sem esquecer as massas de camponeses compondo a sua
esmagadora maioria. Mas não é só isso. Em Guerra e paz encontramos um realismo
tão avançado na sua figuração da psique e da sexualidade que parecemos estar em
presença de um modernismo avant la lettre. No entanto, há um paradoxo aqui,
ressalta Jameson, dado que o modernismo propriamente dito parece, devido a seu
compromisso com o primado da percepção imediata, ser constitutivamente incapaz
de gerar o retrospecto totalizador que define o verdadeiro romance histórico.
Essa é uma brilhante reformulação de Lukács. É difícil resistir à proposta de
ver em Scott um libretista de ópera. Com certeza o binário ético do Bem e do
Mal impõe uma lógica de melodrama a muito da sua obra. Mas poderia ser dito que
Jameson se esquivou da conclusão de seu próprio argumento. Pois seguramente o
fato é que Tolstói longe de transcender essa estrutura melodramática a
reproduz com mais extravagância ainda na narrativa pública de Guerra e paz, em
que a oposição entre Napoleão e Kútuzov leva o binário da vileza e da virtude,
o odioso versus o heróico, a extremos caricaturais a que Scott raramente se
aventurou. O retrato de Napoleão feito por Tolstói, admite Jameson, é talvez um
pouco banal, apequenando indevidamente o imperador. Por isso mesmo, sugere o
crítico, Tolstói pode ser isentado de demonizá-lo. A resposta a isso, no
entanto, se encontra na famosa desconstrução do conceito de Mal no Saint Genet
de Sartre. Nessa obra, Sartre mostra que a noção pura do Mal fica presa sempre
na mesma aporia que ele chama de tourniquet, ou carretilha. Se a suprema
iniqüidade requer ousadia e inteligência nefandas na execução de grandes
crimes, ela toma emprestado ao Bem e deixa de ser absolutamente má; se ao
contrário ela é simplesmente uma violência embotada, desprovida de qualquer
dimensão refletida, sem falar em dimensão heróica, ela se transforma em uma
patologia irresponsável, cuja insignificância moral banalidade, como a
chamaria Hannah Arendt é incapaz de representar o verdadeiro Mal. O
apequenamento de Napoleão por Tolstói é simplesmente a variante secundária
dessa antinomia da vileza, em si mesma não melhor que a primeira.
A figura de Kútuzov nos mostra a recíproca. Jameson sugere que ele não é um
herói convencional, mas um "actante" vazio cuja função é simplesmente
representar as massas camponesas da Rússia. O que pesa contra esse ponto de
vista, creio, é não só o detalhe efusivo e sentimental em que Tolstói é pródigo
com o general proprietário de servos muito mais uma projeção da ideologia
pessoal do autor que algo a ver com o campesinato russo , mas a extensão em
que ele manipula o registro histórico ao concebê-lo como um ícone patriótico.
Quando preparava Guerra e paz, Tolstói estudou cuidadosamente a matéria
histórica do período e, embora estivesse bem ciente das realidades da figura
que apresentava, falsificou deliberadamente as evidências no que elas eram
inconvenientes a seus propósitos propagandísticos. Algo que Scott de modo geral
relutava em fazer. Em Guerra e paz estamos mais próximos em espírito da máxima
de Alexandre Dumas: "On peut violer l'histoire à condition de lui faire des
beaux enfants" ["Pode-se violentar a história, desde que seja para lhe fazer
filhos bonitos"].
Resta ver se o retrato de Kútuzov por Tolstói pode ser qualificado como uma
bela prole ou seja, como uma obra de arte convincente. A resposta é
certamente negativa. A evidência está inscrita amplamente no próprio romance,
cujas tiradas filosóficas incoerentes sobre a natureza da história lamentadas
por virtualmente todos os leitores funcionam como um reforço compulsivo para
a fragilidade da oleogravura que está em seu centro. Ou, antes, em um dos
centros da narrativa, no cenário político em que estão em jogo os destinos da
Rússia. Os destinos pessoais de seus personagens fictícios são uma outra
história. Mas para apreender o sentido no qual Guerra e paz é um romance
histórico, que interliga acontecimentos públicos e vidas privadas à maneira
clássica, é preciso reinseri-lo na série da qual é parte. A questão é tocada,
mas logo contornada, pelas explanações de Lukács a respeito dessa forma. O
romance histórico se excetuarmos seu grande precursor, Michael Kohlhaasde
Kleist é um produto do nacionalismo romântico. Isso vale tanto para Tolstói
quanto para Scott, Cooper, Manzoni, Galdós, Jokái, Sienkiewicz e muitos outros.
A matriz original desse nacionalismo, como é bem sabido, foi a reação européia
à expansão napoleônica. Embora tivesse raízes populares, sobretudo no Tirol, na
Espanha e na Alemanha, a reação foi também impulsionada pela necessidade que
tinham os diferentes "anciens régimes" do continente europeu de mobilizar o
entusiasmo local em defesa da Coroa e da Cruz. No conjunto, a sua tônica sempre
foi algum tipo de resposta contra-revolucionária à Revolução Francesa. Mas cada
uma das situações nacionais originou a sua forma própria e distinta de
imaginação e retrospecto. Scott escrevia no único bastião da velha ordem que
escapou ileso às Guerras Napoleônicas, sem uma única pegada francesa em solo
britânico. O foco de sua narrativa de construção nacional é portanto bastante
diferente de suas seqüelas continentais e corresponde à dualidade da composição
do próprio reino britânico.
Por um lado, há a história heróica da emergência da identidade nacional
inglesa, tal como inicialmente tomou forma na luta dos saxões democratas contra
os normandos aristocráticos na antiga Idade Média Ivanhoé e depois se
aprofundou e desenvolveu no início dos períodos Tudor e Stuart da era moderna.
Aqui o romantismo medievalista correu à rédea solta, em ficcionalizações
carregadas de contrastes melodramáticos e estereótipos moralizantes do tipo que
acertadamente a crítica de Jameson aponta. Em termos europeus, esse foi
provavelmente o aspecto mais influente da obra de Scott. Por outro lado, Scott
foi também o cronista da trajetória peculiar de sua Escócia natal, uma
sociedade bastante distinta no interior dessa história maior. Aqui funcionava
uma visão completamente diferente, formada não tanto pela Schwårmerei
[entusiasmo] romântica do que pelo Iluminismo escocês, cujas teorias do
desenvolvimento histórico entendido como uma sucessão universal de etapas,
passando pelas formas caçadora-coletora, pastoril, agrícola e comercial de
sociedade, Scott absorveu de Ferguson e Dugald Steuart, recriando-as no seu
mapa conflitos entre as Highlands e as Lowlands, clãs e capital, em Waverley e
suas continuações. Foi essa capacidade de Scott de representar o choque trágico
entre tempos historicamente distintos e entre suas formas sociais
características o que Bloch chamaria depois de Ungleichzeitigkeit
[assincronia] que despertou a admiração especial de Lukács, e eleva essa
parte da ficção de Scott acima dos moralismos do melodrama de época.
No caso de Tolstói, um senso muito semelhante da colisão trágica de mundos não
sincrônicos encontra-se nas narrativas sobre a penetração czarista no Cáucaso,
sobretudo no seu último trabalho, Khadji Murát, a obra-prima da sua ficção
histórica. Aqui ele nos apresenta com tensão impassível e lacônica, já próxima
de Babel ou Hemingway, o contraste entre os mundos do imperialismo russo,
girando em espiral de acampamentos militares na fronteira a quartéis-generais
em Tiflis, até chegar ao próprio imperador em São Petersburgo, e do outro
lado a resistência clânica e religiosa de tchetchenos e avaros, com suas
próprias divisões internas cada lado perfeitamente apresentado, com uma
economia de meios magnífica, em uma narrativa tão moderna quanto a carnificina
da Tchetchênia de hoje. Em Guerra e paz, por contraste, há uma ausência quase
completa de qualquer drama desse tipo, já que falta ao conflito ostensivo um
adversário imaginado a fundo. Tolstói, com efeito, não faz nenhuma tentativa
séria de representar o invasor francês, antes procurando apagá-lo por meio de
expedientes de apequenamento que vão de uma caricatura simplista de Napoleão
até asseverações prolixas de que a própria expedição da Grande Armée não
passava de um empreendimento sem sentido. O resultado de uma visão tão
unilateral leva o romance inevitavelmente para a vizinhança do panfleto
chauvinista, em que o inimigo permanece completamente abstrato, longe da
figuração concreta de duas forças históricas em luta. É em parte por essa razão
que Guerra e paz, embora seja indubitavelmente a despeito das negativas do
próprio Tolstói um romance histórico, ambientado em um período anterior à
vida do autor, raramente é considerado como tal hoje em dia.
Mas há ainda outra razão para isso. Pondo de lado a falta de substância na
representação dos franceses, mesmo a sociedade russa que o romance descreve não
produz o senso da passagem do tempo histórico ou seja, de qualquer contraste
desconcertante entre a época de Alexandre I, na qual se passa, e a de Alexandre
II, na qual foi escrito. No máximo, o uso do francês entre aristocratas age
como significante genérico de diferença. Quanto ao mais, estamos em uma espécie
de presente contínuo, uma Rússia mais ou menos eterna, na qual os personagens
principais atuam mais como se fossem contemporâneos do autor. Basta olhar para
Ana Karenina para ver a que ponto estamos no mesmo universo. Guerra e paz
oferece portanto o fato curioso de um romance histórico com um senso da
história muito fraco, não porque Tolstói fosse incapaz dele Khadji Murát
mostra o contrário , mas porque nesse momento ele estava programaticamente
comprometido com a apresentação de grandes conflitos históricos como coisa
desprovida de sentido, segundo a filosofia de fabricação caseira tão largamente
exposta no próprio livro.
É claro que Guerra e paz não é só isso. O que eleva o romance acima do nível de
uma versão idiossincrática do nacionalismo romântico digamos, deliberadamente
desinformada são não só os extraordinários dons de observação de Tolstói, bem
como o senso de construção panorâmica, mas a análise psicológica que ele
aprendeu de Rousseau e, sobretudo, de Stendhal, cujo papel em seu
desenvolvimento como escritor poderia ser comparado ao de Ferguson e Steuart
para Scott, como um antídoto ilustrado capaz de controlar e redimir o melodrama
da salvação nacional. A grandeza de Guerra e paz reside aqui não nas images
d'Épinal [figuras popularescas e convencionais] de Kútuzov e Napoleão, mas na
faceta de Tolstói mais próxima a Laclos e Stendhal, implacavelmente
racionalista na dissecação de motivações e sentimentos. Não há obviamente uma
linha divisória clara entre os dois registros de sua escrita. Muito do que é
convencionalmente "romântico", no sentido medíocre da palavra, pode ser
encontrado em suas caracterizações individuais, sem prejuízo do brilho de
tantas delas. Natasha, por exemplo, tem muitos dos traços de uma heroína de
estampa de caixa de chocolates, cuja função fantasiosa em seu tempo e desde
então como veículo cativante do charme russo continua suscitando toda sorte
de kitsch, como a celebração comercial da cultura nacional feita por Orlando
Figes em Natasha's Dance; o progresso contrariado de Pierre em direção a seus
braços é a mais fraca, porque mais moralmente previsível, realização do
Bildungsroman que também está presente no livro. Mas tais impurezas são apenas
um lembrete da heterogeneidade maior e mais constitutiva, não tanto dessa obra
como tal, mas do gênero do romance histórico ao qual ainda se pode dizer que
pertence.
Se o romance histórico começa como um exercício de construção nacional no
rescaldo da reação romântica à Revolução Francesa e à expansão napoleônica, os
resultados variam segundo cada contexto. O curioso vazio do espaço político em
Guerra e paz decorria também, naturalmente, do fato de que o Império Russo era
uma grande potência já constituída, que a vitória de 1812 simplesmente
conservou como antes. O abandono por parte de Tolstói de sua intenção inicial
de escrever um romance sobre os Dezembristas, cuja tentativa de mudar o país
foi instantaneamente esmagada, diz muito sobre o romance que ele de fato
escreveu. Na Alemanha, Fontane iniciou um romance histórico exatamente sobre a
mesma campanha de 1812-13, Vor dem Sturm [Antes da tempestade], um ano após
Tostói ter publicado o seu. Mas os Reformadores Prussianos, aprendendo as
lições da derrota de Napoleão em Jena, modernizaram o aparelho estatal. A
contrapartida de Fontane a Tolstói inverte, desse modo, o esquema. Seu herói
aristocrático incita voluntários à moda francesa a lutar contra os franceses na
sua retirada da Rússia, para [afinal] descobrir que, em uma ironia dialética,
os hábitos da disciplina prussiana ainda faziam sua milícia por demais rígida
para prevalecer contra os mesmos franceses.
Na Espanha, os Episódios nacionales de Galdós também começam com a luta contra
Napoleão, mas derivam para a revolução liberal entrelaçada com ela, em um
arranjo ou combinação histórico que não estava disponível para Tolstói. Na
Itália setentrional, onde o domínio francês sempre foi muito mais estimado que
detestado, não houve reação nacional contra o Primeiro Império, e por isso
Manzoni teve de situar Os noivos muito mais longe no tempo, no período da
dominação espanhola sobre Milão no século XVII, evitando o antiquarianismo
excessivo, ao mesmo tempo em que oferecia uma parábola da vida popular que
instigava o sentimento patriótico sob a Santa Aliança. A lógica desse padrão
internacional pode ser vista a contrario no caso da França, onde por razões
óbvias nenhuma narrativa histórica comparável poderia ser construída. Em
sentido estrito, o equivalente mais próximo notado por Lukács seria o drama
regional dos Chouans de Balzac, uma réplica da Vendéia aos highlanders de
Scott. Mas a obra central da ficção histórica romântica na França foi, é claro,
Notre Dame de Paris de Hugo, cuja fantasmagoria medieval, acrescida de
sentimentalismo errático e motivos detetivescos, a situam completamente fora do
romance histórico clássico tal como o definia Lukács. No entanto, essa
excentricidade pressagia a multiplicação mais prolífica do gênero.
Na geração seguinte, a França se tornou o exportador líder do drama em figurino
de época, com a carreira extraordinária de Alexandre Dumas, embora a Inglaterra
não tenha ficado muito atrás com Harrison Ainsworth e G.P. R. James. Foi nesse
ponto que o romance histórico começou a adquirir sua ambigüidade moderna. A
maior parte dos gêneros literários inclui uma variedade de registros e, como
sempre enfatizaram os formalistas russos, a sua vitalidade dependeu tipicamente
de interações entre o alto e o baixo, formas elitistas e populares, seja em um
circuito fechado dentro de um mesmo gênero, seja através de conexões diagonais
entre gêneros. Ao mesmo tempo, o pólo dominante de um gênero será de ordinário
razoavelmente delineado a poesia simbolista, digamos, na ponta elitista do
espectro, thrillers na ponta popular. A peculiaridade do romance histórico,
entretanto, foi evitar qualquer estratificação estável entre alto e baixo. Sua
evolução mostra antes um continuum oscilante de registros, incluindo para
usar por um momento termos anacrônicos não apenas high-browelow-brow mas
também significativamente âmbitos middle-brow de elaboração. É a amplitude
desse continuum que com razão o põe à parte diante de outras formas narrativas.
A razão disso parece estar na natureza da sua matéria. Para Lukács, em termos
formais, o romance histórico era essencialmente épico, uma representação
abrangente da "totalidade dos objetos", em palavras hegelianas, por oposição à
"totalidade do movimento" mais concentrada própria do drama. Mas se essa
descrição é plausível para as origens da forma, ela não dá conta da sua
difusão. Aqui, não era uma aspiração à totalidade épica que asseguraria a
enorme popularidade das ficções sobre o passado, mas antes o repertório pré-
fabricado de cenas, ou as histórias de aventuras exóticas, que a história,
ainda esmagadoramente escrita do ponto de vista de batalhas, conspirações,
intrigas, traições, seduções, infâmias, feitos heróicos e sacrifícios
imorredouros, oferece à imaginação tudo aquilo que não era a vida cotidiana
prosaica do século XIX. Aqui estava o caminho, por assim dizer, de Jeanie Deans
até Milady. O romance histórico que conquistou o público leitor europeu na
segunda metade do século XIX certamente não ofendia o sentimento patriótico,
mas não tinha mais a vocação da construção nacional. Os três mosqueteiros e
suas inumeráveis imitações eram literatura de entretenimento.
Correndo em paralelo, persistiam formas "elevadas" do gênero. Agora, no
entanto, o desenvolvimento típico para autores de primeiro time era outro:
tentavam a mão no romance histórico, compondo nessa linha uma ou duas obras, em
um corpus de resto dedicado a representações realistas da vida
contemporânea.Barnaby Rudge e Tales of Two Cities, Henry Esmond, Romola e
Salambô ilustram esse padrão. Um pouco mais abaixo, mas ainda acima do nível de
Dumas ou Ainsworth, figuram escritores como Stevenson e Bulwer-Lytton. O fato
central a compreender, contudo e a evidência disso está graficamente exposta
no Atlas do romance europeu de Franco Moretti , é que o romance histórico como
gênero predominou maciçamente sobre todas as demais formas narrativas até a era
eduardiana. Ele combinou um enorme sucesso de mercado com um contínuo prestígio
estético. Na derradeira temporada da Belle Époque, Anatole France publicavaLes
Dieux Ont Soif, Ford Maddox Ford seu Fifth Queen e até Conrad concluía a sua
carreira com um par de ficções históricas, situadas mais uma vez na época
napoleônica.
Vinte anos depois, a cena tinha mudado por completo. Por volta do período
entreguerras, o romance histórico tinha se tornado déclassé, caindo
vertiginosamente na estima literária, a ponto de não figurar nas fileiras da
ficção séria. A sua posição na hierarquia dos gêneros sofrera dois sérios
golpes. O primeiro foram os massacres da Primeira Guerra Mundial, que
despojaram de glamour as batalhas e a alta política, desacreditando tanto
inimigos malignos como heróis abnegados. Encenada por ambos os lados como uma
gigantesca disputa histórica entre o Bem e o Mal, a Guerra de 1914 deixou os
sobreviventes com uma terrível ressaca em matéria de melodrama. Do ângulo das
trincheiras, as fanfarronadas de capa e espada de Weyman ou Sabatini pareciam
risíveis. Além disso houve o efeito crítico do modernismo então ascendente,
para o qual Jameson corretamente nos chama a atenção. O primado artístico da
percepção imediata é incompatível com o retrospecto totalizante, tornando
impossível uma variante modernista para o tipo de romance histórico teorizado
por Lukács. A isso pode-se acrescentar a hostilidade aos efeitos corruptores da
facilidade estética a tudo o que estivesse imediata ou facilmente à mão que
derrubava as versões populares e middle-brow do romance histórico ainda mais
completamente.
Portanto, se olharmos para o cenário do entreguerras na Europa, o romance
histórico se tornou uma forma recessiva em virtualmente todos os níveis.
Enquanto nos Estados Unidos, escudado do choque da Primeira Guerra Mundial,
Faulkner pôde produzir Absalão, Absalão, uma variante gótica que não recuava
diante de nenhuma licença melodramática. Em patamar menos ambicioso, o nível
mediano florescia como nunca, permitindo que uma figura como Thornton Wilder
gozasse de uma reputação que teria parecido estranha na Europa. De modo mais
espetacular, E o vento levou uma narrativa sobre a Guerra Civil e a
Reconstrução, com leve semelhança com a ficção romântica de construção nacional
do século precedente se tornou o romance histórico de maior sucesso de todos
os tempos. Significativamente, o que a Europa produziu nessa moda de consumo
médio foi principalmente Eu, Claudius de Robert Graves, a evasão mental de um
veterano da Primeira Guerra Mundial para a Antiguidade, posteriormente alimento
barato para um seriado de televisão. Em nível mais elevado, reflexos similares
geraram um bloco de romances históricos por exilados alemães Heinrich Mann,
Döblin, Broch, Brecht que buscavam alegorias do fascismo no passado, em Júlio
César, Augusto ou na Liga Católica, em um [com] deliberado espírito
modernizador, inteiramente em desacordo com a concepção clássica do romance
histórico.
Se esse foi um enclave de poucas conseqüências, duas obras do período
entreguerras aparecem por contraste como sinalizadores do futuro. É certo que a
primeira, talvez a única que desafia a assertiva de Jameson segundo a qual um
romance histórico modernista seria impossível, não busca aquele "senso
interpretativo dos fatos que é próprio de um historiador", cuja ausência,
argumenta Jameson, exclui do gênero o Wallerstein de Döblin. Esse jeu d'esprit
foi Orlando, cujas metamorfoses cronológicas e sexuais, quebrando qualquer
norma realista, ocupam no desenvolvimento do romance histórico um nicho
comparável, pelo isolamento antecipatório, a Michael Kohlhaas nos inícios de
sua forma clássica. Woolf era uma modernista por excelência. Mas a prova de que
uma tradição realista mais antiga não se tinha extinguido e era ainda capaz de
uma reafirmação notável foi dada por Radetzkymarsch [A marcha de Radetzky] de
Joseph Roth, que saiu em 1932. Esse grande romance responde a todos os
critérios de Luckács exceto a um, que ele claramente contraria. Luckács
acreditava que o verdadeiro romance histórico era sustentado pelo senso do
progresso, tal como acontecia em Scott. Uma vez que esse senso desapareceu após
1848, iniciou-se o declínio em direção a um passadismo viciado. Radetzkymarsch
demonstra o contrário. Pois o épico de Roth traça o declínio do império
multinacional dos Habsburgo e da sua classe dominante com uma clareza e arte
incomparáveis, se não superiores, a qualquer predecessor progressista do século
XIX. Um profundo pessimismo histórico não foi empecilho para uma representação
magistral da totalidade dos objetos. Die Kapuzinergruft [A tumba do imperador],
a continuação do livro, simplesmente inverte aquela perspectiva: o Estado-
nação, que tinha sido o horizonte ideal do romance histórico clássico, figura
como o ponto final de um colapso social e moral a apequenada e dividida
Áustria da Depressão e da Heimwehr [Guarda Nacional] da época em que esses
trabalhos foram compostos.
A façanha de Roth foi pouco notada em seu tempo. A Segunda Guerra Mundial,
quando sobreveio, reforçou os efeitos da Primeira. Nos níveis inferiores do
gênero, o fluxo da ficção histórica reduziu-se, mas mesmo na Europa nunca
chegou a se interromper, crescendo novamente à medida que os mercados da
literatura de massas se expandiam com o boom do pós-guerra na Inglaterra, por
exemplo, sagas veneráveis de valentes patriotas combatendo contra Napoleão
jorraram e continuam a jorrar das prensas, de C. S. Forester, passando por
Dennis Wheatly, até Patrick O'Brien. Ao longo do tempo, toda essa produção
gerou um universo prolífico que pode ser vislumbrado em guias gerais tais como
Qual romance histórico devo ler a seguir?, com suas descrições-cápsula de mais
de 6 mil títulos e rankings dos períodos históricos mais populares, cenários
geográficos prediletos e, last but not least, "personagens históricos top"
Henrique VIII e Jesus Cristo sempre empatados em quarto lugar.
Mas quanto maior e mais indistinto esse estrato se torna, mais baixava a estima
reservada ao romance histórico como forma respeitável. Em 1951 foi algo como um
choque quando Marguerite Yourcenar venceu o Goncourt com Memórias de Adriano,
tão completamente fora de moda, parecia qualquer tipo de ficção histórica
mesmo uma anomalia estranha como esta na verdadeira república das letras.
Existia ainda quem escrevesse esse tipo de coisa? O profundo descrédito em que
o gênero havia caído ficou claro na recepção inicial daquele que em retrospecto
permanece como o maior romance histórico do século XX, O leopardo de Lampedusa.
Inicialmente rejeitado para publicação, assim que saiu o livro foi saudado com
bastante incerteza pelos críticos italianos. Como podia uma obra tão fora de
moda ser produzida no mundo contemporâneo? Ela devia ser levada a sério como
literatura?
De fato, o que Lampedusa fez foi conduzir o mesmo tema de Roth o destino de
certa aristocracia absolutista em via de morrer em meio à ascensão do
nacionalismo romântico a conclusões ainda mais amplas, em um veredicto de
impiedoso desapego quanto ao processo de construção nacional da Itália, com os
devidos ajustes da velha ordem na Sicília, somados ao destino dos indivíduos
nas encruzilhadas correspondentes, tudo sob a perspectiva da eternidade. Aqui,
o entrelaçamento de registros históricos e existenciais, que tanto para Lukács
como para Jameson definem essa forma, encontra no contraponto entre a
sobrevivência fútil de uma classe e a extinção cósmica de um indivíduo que a
traz dentro de si expressão suprema. Longe de ser uma volta a modelos
vitorianos, o brusco prolongamento do final do romance, saltando vinte anos
adiante até a desintegração final do cachorrão empalhado do príncipe, distingue
O leopardo como uma obra-prima moderna.
Surpreendentemente, nos mesmos anos em que Lampedusa compunha em Palermo o seu
retrato do Risorgimento, não muito longe dali, no mesmo Mediterrâneo, um
romance histórico estava caminhando em direção contrária. A Trilogia do Cairo,
de Naguib Mahfouz, descrevendo o Egito semicolonial de 1918 até a ascensão do
Wafd em meados dos 1940 através da história de uma família burguesa, foi
escrita sob Farouk, e só viu a luz do dia depois que a monarquia tinha sido
deposta, no Sturm und Drang da nacionalização do canal de Suez e da invasão
anglo-franco-israelense do Egito. Mahfouz tinha começado como um escritor de
simples dramas de época, ao estilo egípcio ou seja, romances fantasiosos que
se passavam no tempo dos faraós. Com a Trilogia do Cairo ele se tornou um
escritor de romances históricos tal como Lukács os havia concebido: figuras
históricas reais entretecidas com personagens de ficção, heróis de estatura
mediana, o senso da vida popular, e last but not least uma poderosa
narrativa subterrânea do progresso, no entanto hesitante ou ambígua, em direção
à emancipação nacional, mesmo que nesse caso se tratasse tecnicamente de um
Zeitroman coincidindo com o seu próprio tempo. Aqui foi mais a língua que o
preconceito o fator que isolou a sua obra, desconhecida para o mundo de fala
não-árabe até sua tradução para o francês alguns anos depois.
Uma semibelga reclusa, um siciliano morto, um egípcio obscuro. Umas poucas
jóias antigas sobre um imenso monte de lixo, essa era a situação do romance
histórico cerca de trinta anos após a Segunda Guerra. Foi quando a cena mudou
abruptamente, em uma das mais impressionantes transformações na história da
literatura. Hoje, o romance histórico se difundiu como nunca nos âmbitos
superiores da ficção, mais mesmo que no auge de seu período clássico nos
inícios do século XIX. Essa ressurreição foi também, é claro, uma mutação. As
novas formas anunciam a chegada do pós-modernismo. Discuti-las com a devida
amplitude requereria outra ocasião. Como é sabido, a virada pós-moderna
atravessou virtualmente todas as artes, com efeitos locais diferentes em cada
uma delas. Mas se considerarmos sua morfologia no terreno da literatura, parece
haver pouca dúvida de que a mudança singular mais notável operada na ficção foi
a sua reorganização geral em torno do passado. À vista da definição famosa do
pós-modernismo cunhada pelo próprio Jameson , como o regime estético de "uma
época que tinha se esquecido de como pensar historicamente", a ressurreição do
romance histórico poderia, em um primeiro momento, parecer paradoxal. Mas é
claro que esse segundo advento traz a sua diferença. Agora, virtualmente todas
as regras do cânone clássico, tais como explicitadas por Lukács, são
desprezadas e invertidas. Entre outros traços, o romance histórico reinventado
para pós-modernos pode misturar livremente os tempos, combinando ou
entretecendo passado e presente; exibir o autor dentro da própria narrativa;
adotar figuras históricas ilustres como personagens centrais, e não apenas
secundárias; propor situações contrafactuais; disseminar anacronismos;
multiplicar finais alternativos; traficar com apocalipses. É claro que no vasto
espectro dos romances históricos incluindo alguns Zeitromane nem todas as
obras produzidas por escritores reconhecidos nos últimos trinta anos exibem
esses traços. Mas o núcleo do revival, no que tem de típico, ostentou alguns ou
mesmo a maior parte deles, enquanto à sua volta formas mais tradicionais também
proliferaram.
Como entender a etiologia dessas formas? Em uma passagem esplêndida, Jameson
especula sobre a função de suas "exageradas invenções de um passado (e de um
futuro) fabuloso ou irreal", que "sacodem o nosso extinto senso da história,
perturbam a inanidade de nossa historicidade temporal e tentam convulsivamente
reanimar o adormecido senso existencial do tempo com o potente remédio da
mentira e das fábulas impossíveis, com o eletrochoque de repetidas doses do
irreal e do inacreditável". Essa é uma sugestão poderosa. Mas ela levanta a
questão de seu pronome possessivo. Quem é o "nós" dessa perda de temporalidade,
daquela extinção do senso da história que é a nossa? As formas pós-modernas do
romance histórico são efetivamente universais hoje em dia?
Certamente, se fizermos um lista de chamada de todos os romancistas
contemporâneos que de um modo ou outro contribuíram para a nova explosão de
passados inventados, ela iria se estender por todo o mundo, da América do Norte
à Europa, Rússia, Ásia, Japão, Caribe e América Latina. Nesse sentido, tais
formas se tornaram tão globais quanto o próprio pós-modernismo. Mas se
quisermos rastrear o surgimento da mutação que as produziu, e arriscar para
além de um inventário uma taxionomia, provavelmente teremos de considerar a
organização espacial desse universo. Deixem-me finalizar com umas poucas e
breves observações a respeito desse ponto.
Primeiramente, precisamos nos lembrar de que nenhum período estético é
homogêneo. A predominância de formas pós-modernas nos últimos trinta anos não
deslocou, nem poderia, todas as outras. No extremo oposto da Ásia, sobreviveu
algo parecido com a imaginação clássica do romance histórico, produzindo na
Indonésia e na Arábia dois ciclos notáveis de ficção nacionalista que podem ser
considerados, a seu modo, primos de Mahfouz: oBuru Quartet de Pramoedya,
composto entre 1975 e 1985, e o quinteto de Munif, Cities of Salt, já muito
mais livre em seu tratamento do tempo e da probabilidade, escrito nos anos
1980. Ambos começam na virada do século XX e são escritos respectivamente a
partir da experiência do imperialismo holandês e americano. Mas são obras
excêntricas no universo das recriações pós-modernas do passado. Para seguir
estas últimas, precisamos cruzar os oceanos.
Em termos de origem, há pouca dúvida sobre onde começou a ficção metahistórica.
Ela nasceu no Caribe com El reino de este mundo, de Alejo Carpentier, que
apareceu em 1949, seguido por O século das luzes, de 1962. Cenários: Haiti,
Cuba, Guiana Francesa. Cinco anos depois surgiu Cem anos de solidão, de García
Márquez. Ao longo dos trinta anos que se sucederam, a ficção histórica da
América Latina se tornou uma torrente, com vários tributários além de
Carpentier e García Márquez Roa Bastos, Carlos Fuentes, João Ubaldo Ribeiro,
Fernando del Paso, Mario Vargas Llosa e muitos mais. Aqui, sem dúvida, estava o
diapasão para a difusão mundial dessas formas, que foram inventadas na
periferia como o próprio conceito de pós-moderno. E não que as fontes do
centro estivessem inteiramente ausentes: Carpentier se havia encharcado de
surrealismo francês; Orlando, traduzido por Borges, deixou García Márquez
febril. Mas foi claramente a própria experiência da América Latina que deu
origem a essas imaginações de seu passado. Resta saber em que consistiu essa
experiência.
Uma resposta-padrão diria que, se deixarmos de lado precursores individuais, a
decolagem dessas formas data dos anos 1970. O que elas traduzem,
essencialmente, é a experiência da derrota a história do que deu errado no
continente, a despeito do heroísmo, lirismo e colorido: o descarte das
democracias, o esmagamento das guerrilhas, a expansão das ditaduras militares,
os desaparecimentos e torturas que marcaram o período. Daí a centralidade de
romances sobre ditadores nesse conjunto de escritos. As formas distorcidas e
fantásticas de um passado alternativo, de acordo com essa leitura, seriam
originadas a partir das esperanças frustradas do presente, bem como de muitas
reflexões, advertências ou consolações. É difícil negar a força desse
diagnóstico. Mas deveríamos lembrar que os temas das duas obras seminais de
Carpentier, escritas bem antes dos anos soturnos da carnificina e da repressão
no continente, foram a Revolução Haitiana e o impacto da Revolução Francesa no
Caribe. Esses romances, textos fundadores do realismo fantástico, não minimizam
os desapontamentos e traições de cada caso que aliás ocupam a maior parte de
suas narrativas , mas a sua tendência é completamente afirmativa. O primeiro
surgiu no ano em que triunfou a Revolução Chinesa; o segundo, logo após o
episódio da Baía dos Porcos. Sua relação com as formas consolidadas de ficção
que elas geraram coloca um problema interessante. Poderia Saramago, um escritor
de romances históricos cuja carreira tardia foi acesa pela Revolução dos
Cravos, ser considerado um descendente colateral dessa origem que agora parece
estagnada?
Nos Estados Unidos, por contraste, se considerarmos o espectro de romances
históricos de um tipo ou outro produzidos no mesmo período, o cerne da
experiência que deu origem ao galho americano do fenômeno seriam a raça
Styron, Morrison, Doctorow, Walker e o império Vidal, Pynchon, DeLillo,
Mailer, Sontag. Aqui o paradigma distintivo foi a sociedade entendida como uma
grande conspiração: não o ditador ostensivo, mas a rede secreta, vista como a
ossatura escondida do poder: The Crying of Lot 49, Harlot's Ghost, O arco-íris
da gravidade, Underworld uma literatura da paranóia oferecendo seu próprio
tipo de realismo fantástico noir. Na Europa, por outro lado, foram o Terceiro
Reich e o Holocausto, e não a CIA, que polarizaram a imaginação histórica:
Grass, Tournier, Sebald. Já a Inglaterra, relativamente intocada pela Segunda
Guerra, gerou principalmente obras de corte vitoriano Golding, Fowles,
Farrel, Ackroyd, Byatt, sendo Carey uma extensão australiana ou reversões à
Primeira Guerra Mundial, muito mais traumática, como na trilogia de Barker.
Ditaduras militares, assassinatos raciais, vigilância onipresente, guerra
tecnológica e genocídio programado. O persistente pano de fundo da ficção
histórica do período pós-moderno está nos antípodas de suas formas clássicas.
Não a emergência da nação, mas as devastações do império; não o progresso como
emancipação, mas a catástrofe iminente ou consumada. Em termos joycianos, a
história como um pesadelo do qual ainda não conseguimos despertar. Mas se não
olharmos apenas as fontes e os temas dessa literatura, mas também as suas
formas, Jameson sugere que deveríamos reverter o julgamento. O revival pós-
moderno, ao jogar a verossimilhança ao vento, fabricando períodos e
verossimilhanças intoleráveis, deveria ser visto antes como uma tentativa
desesperada de nos acordar para a história, em um tempo em que morreu qualquer
senso real dela.
E no entanto, pergunta Jameson, essas circunstâncias não fazem que a conexão
lukacsiana entre grandes acontecimentos sociais e o destino existencial dos
indivíduos permaneça caracteristicamente inalcançável? Benjamin, que detestava
a idéia de progresso nutrida pelo historicismo do século XIX a perspectiva
que está por trás da maior parte do romance histórico clássico , não se teria
surpreendido, nem sentiria desapontamento. Ele usava outra imagem ainda do
despertar. O anjo da história está se distanciando de algo em que fixa a vista.
"Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que
acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele
gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos"2. Parte do
impulso do romance histórico contemporâneo pode também estar aqui.
TRADUÇÃO DO INGLÊS: MILTON OHATA
[1] Conferência elaborada como resposta à intervenção de Fredric Jameson,
publicada neste número de Novos Estudos. A versão original, em inglês,
permanece inédita.
[2] "Sobre o conceito da história", tradução de Sérgio Paulo Rouanet, em Walter
Benjamin, Obras escolhidas, I, (Brasiliense, 3ª edição), p. 226.