A perda do mundo
I.
Nos meados do século XIX, quando ciência e tecnologia iniciaram seu
desenvolvimento exponencial, ainda era impossível imaginar as transformações
que elas provocariam no pensamento, na vida cotidiana e nas condições de nossa
sobrevivência. Inclusive que a distância entre elas se estreitasse de tal
maneira que já se fala em tecnociência, porquanto certos resultados
tecnológicos às vezes são tão surpreendentes que exigem novas teorias para
serem entendidos. Muitas vezes hoje ciências parecem ficções científicas,
diferentes, porém, dos romances de Júlio Verne, que são dos anos 60 e 70 do
Oitocentos. Nestes descrevem-se viagens que se tornam extraordinárias na medida
em que seus personagens passam a ter à disposição máquinas fabulosas, as quais,
contudo, a despeito de toda sofisticação, continuam sendo balões, submarinos
etc.; em resumo, objetos do cotidiano que teriam sido construídos com a ajuda
de procedimentos técnicos apenas mais sofisticados e potentes daqueles já
conhecidos. Refletiam, em suma, a fase da manufatura do desenvolvimento
tecnológico. Hoje, em contrapartida, não tem cabimento afirmar que a Demoiselle
de Santos Dumont seja um objeto da mesma espécie que uma nave espacial. Ainda
que ambos conservem o nome comum de nave, eles voam graças a princípios
radicalmente diversos, um é objeto mecânico engenhoso, outro é eletrônico,
cibernético, tendo suas partes articuladas por redes de informação.
Mas aquilo que parecia destinado a transformar unicamente pedaços do mundo
cotidiano mudou completamente nossa experiência de mundo. Alteraram-se as
relações que mantemos conosco, com os outros e com a natureza. Nesse plano o
desencantamento foi profundo. Se a psicanálise ainda recorre a procedimentos
simbólicos, hoje preferimos controlar nossos corpos e nossas mentes mediante
pílulas, exames sofisticadíssimos e aparelhos extraordinários. Tratamos
quimicamente nossas depressões, nossas angústias, nossas perdas, as ansiedades
da espera. Além do mais, tanto os lazeres individuais como os coletivos são
mediados por aparelhos sofisticados. A internet nos conecta com pessoas as mais
diversas, distribuídas nas mais longínquas partes do globo e coloca à nossa
disposição informações e conhecimentos de toda espécie. Por fim, se, de um
lado, a natureza opõe seus limites à devastadora exploração capitalista, de
outro, ela surge como fonte de tecnologias prontas, como mostra a importância
da biodiversidade para a descoberta de novas drogas.
Tudo isso nos exterioriza de maneira até então inimaginável. Não é o que já se
percebe quando observamos as mudanças provocadas pelo telefone celular nas
técnicas da fala e do corpo? Expressamos em público o que antes só dizíamos na
intimidade, gesticulamos sozinhos como se estivéssemos em frente de outros e a
nova geração se "torpedeia" usando uma linguagem cifrada que só ela entende. A
cada momento somos puxados para fora, participamos de redes e de correntes
cujos horizontes ignoramos. Estamos sempre juntos, mas quase sempre sozinhos.
Tudo isso revoluciona nossos modos de pensar. O Ocidente começou quando
aprendemos a dominar o discurso friccionando significações contra significações
de tal modo que o pensamento ganhasse precisão e universalidade capazes de
capturar os princípios das coisas. Feito esse percurso, era possível então
descer até às experiências das próprias coisas, agora armadas pelo pensamento
num mundo inteligível, natural e humano. De ambos os lados do processo de falar
e de pensar se situavam duas presenças, a presença das idéias, a visibilidade
máxima, e a presença empírica dos fatos articulando sensações e imagens. Mesmo
quando se considera o pensar como logos que se volta a si mesmo percorrendo as
paradas do espírito, ainda está presente o visível, o lugar onde o espírito se
mostra. Lembremo-nos da Fenomenologia do espírito de Hegel.
Não mais tratamos, entretanto, imagem e pensamento desse modo. Não precisamos
da imaginação para tornar presentes todos os lados de um cubo, pois um pequeno
aparelho estereográfico nos apresenta esse sólido conforme gira seus perfis.
Para nós o cubo pode deixar de ser aquela peça sobre a mesa para se tornar
objeto sistematicamente controlável segundo os diversos ângulos de sua
aparição. E quase sempre junto das coisas residem suas imagens. Pensar tende a
ser confundido com modelar, construir imagens do real, simbólicas; discursivas
ou simplesmente plásticas. Imagens simbólicas servindo de trampolim para
controlar o real enquanto ele se conforma às variáveis do modelo. É de notar,
num plano mais imediato, que as exposições tradicionalmente discursivas, como a
aula e a conferência, agora costumam se apoiar em gráficos e imagens; no mínimo
o orador acompanha suas palavras com suas próprias frases projetadas numa tela.
Nos tempos em que se escrevia à mão, cada palavra era desenhada por traços
regulados, produto de refinado controle dos dedos, enquanto hoje, diante da
tela do monitor, as letras e as palavras se formam por toques descontínuos e
decididos, que nada têm a ver com a coisa escrita, ou melhor, nem mais ela é
coisa, apenas traços numa tela luminosa. Nem mesmo Walter Benjamin, que
percebera como a nova técnica liberaria a escrita do traçado da mão, poderia
imaginar que ela poderia surgir como se fosse diretamente dos gestos.
II.
Até os meados do século passado o mundo ainda poderia ser totalizado numa rede
de imagens. No século XIX ele foi considerado, por Schopenhauer, como minha
representação, o fluxo de imagens me passando pelo espírito, a despeito de ele
mesmo ter a vontade como fundamento. No Tractatus, Wittgenstein leva ao limite
esse papel coordenador da imagem. Pensa a linguagem como imagem do mundo,
porquanto cada proposição com sentido desenharia uma Bild, uma figuração, de um
estado de coisa. Dessa perspectiva, o mundo vem a ser a totalidade dos fatos,
não das coisas; tudo aquilo que pode ser afigurado, ligando-se entre si em
conúbio com as imagens discursivas. Mais tarde ele mesmo comentou seu engano ao
supor que todos os enunciados poderiam ser redutíveis a uma única e simples
forma lógica, servindo de base para compor enunciados complexos graças a
conectivos sem sentido, meramente combinatórios de valores de verdade.
Reportando-se ao Tractatus, comenta:
O pensar, a linguagem, aparece-nos então como o correlato singular, a
imagem, do mundo. Os conceitos: proposição, linguagem, pensar, mundo
encontram-se numa série, um atrás do outro, um equivalente ao outro.
(Mas para que devemos usar agora essas palavras? Falta o jogo de
linguagem na qual são empregadas2.)
Descobre que as palavras, antes de se encadearem nessa seqüência, se encastoam
em esquemas práticos nos quais ganham suas respectivas densidades
significativas.
Ora, desintegrada a seqüência "proposição, linguagem, pensar, mundo", o dizer e
o pensar passam a ser considerados num contexto pragmático, como um jogo em que
os objetos denotados se individualizam para a linguagem no contexto de práticas
aprendidas. A ontologia, dirá Wittgenstein, está inscrita na linguagem, mas por
isso mesmo os objetos são dados em complexos. Linguagem num sentido muito
amplo, pois é possível então levar em conta jogos de linguagem não-verbais,
objetos que se articulam em signos mediante uma gramática definida. E, desse
ponto de vista, o que importa para o funcionamento da linguagem não é tanto o
mundo do qual ela fala, mas a imagem dele demarcando as travações práticas e
lingüísticas que permitem os atos de significar e se comunicar. Uma imagem de
mundo aparece então como pressuposto transcendental das condições de
significação e entendimento. No entanto, como não existe uma única linguagem,
um único continente das significações possíveis, esta imagem do mundo, na sua
pressuposição de condição de existência dos jogos de linguagem cotidianos e de
outros sistemas simbólicos, não pode se apresentar enquadrada em parâmetros
indeformáveis, porquanto ela se manifesta no emaranhado das práticas
lingüísticas cujos pressupostos podem ser tematizados em sistemas e vice-versa.
Trata-se de um transcendental que pode se converter em tema, assim como o tema
pode se converter em transcendental. Desse ponto de vista não se pode falar de
um terreno comum, de um mundo da vida como fonte das significações e dos
sistemas simbólicos, porquanto sistema e imagem de mundo se situam
estrategicamente conforme as necessidades e os projetos das práticas humanas
significativas. Ora, desse ponto de vista cabe perguntar se o desvairado avanço
da tecnociência contemporânea e a forma social do uso de seus produtos não
terminam trincando esse jogo da imagem do mundo, da linguagem e do próprio
mundo de que ela fala.
III.
Vale a pena então retomar as observações iniciais a respeito das mudanças em
curso do uso das imagens, por conseguinte de seus sentidos. Para isso o cinema
nos fornece exemplos privilegiados. No meio do fluxo de uma avalanche de
imagens articuladas em narrativas de consumo imediato, armadas para o
entretenimento massificado, articula-se a meu ver a arte mais significativa do
século XX, pois ela pensa tanto os problemas cotidianos como os enigmas da
existência humana no plano mais radical das melhores belas-artes. Graças a um
tratamento altamente sofisticado da imagem, propiciado por um desenvolvimento
tecnológico contínuo ao longo do século XX, capaz de associá-la à palavra e à
música, assim como de criar situações especialíssimas fora do enquadramento
determinado pelas ciências naturais, o cinema se transformou numa forma inédita
de pensar.
Notável é que desenvolve linhas paralelas de pensamento, que às vezes se cruzam
e se separam criando um fluxo de imagens, palavras e de sons que apresentam
situações como se fossem reais, mas sob um aspecto especialíssimo, porquanto
muitas vezes mostram acontecendo o que não pode acontecer. Reflete, além do
mais, sobre as condições desse narrar, inclusive sobre as peculiaridades do
material imagético utilizado. A literatura sempre explorou as duas dimensões do
dito e do dizer; em particular a poesia lírica experimentou consonâncias e
dissonâncias da imagem sonora capazes de evocar sentimentos delicados e
indefinidos. Mas nunca criou uma situação percebida e pensada como se fosse
real. E o teatro, por sua vez, sempre lidou com a diferença entre o palco e a
platéia, o fingido e o que está ali, mesmo quando personagens saem à procura de
um autor. Em contrapartida, a bidimensionalidade de uma tela brilhante que se
abre em janela dissolveu a platéia no escuro, jogando o espectador num ponto de
vista do qual tende a olhar o que aconteceria no mundo sem se olhar. Além do
mais, se tornou capaz de montar ao mesmo tempo diferentes linhas significativas
de imagens, correndo paralelas ou se cruzando ou se desfazendo: a visão
panorâmica e sem cortes do cenário onde a trama se desenvolverá, o percurso de
um carro, o encontro casual de duas pessoas, o barulho do veículo e o silêncio
delas sempre linhas construídas a partir de aspectos cuidadosamente
escolhidos , de sorte que apresenta significados cruzados como se as coisas,
os objetos, as situações e as pessoas estivessem nelas mesmas desafiando suas
identidades e diferenças. Torna assim presentes situações imaginadas que podem
se apresentar mais reais assim como mais falsas do que os acontecimentos do
cotidiano. As imagens se potencializam de modo muito mais realista do que
aquela potência criada pelo retrato cubista de uma natureza-morta, em que os
objetos apresentam perfis que nunca poderiam se dar juntos, acentuando, porém,
a diversidade das linhas discursivas.
Para tornar palpável sua teoria das idéias e a forma de educação que ela
requeria, Platão inventou o mito da caverna. Os seres humanos estariam
acorrentados de tal forma que só poderiam ver o fundo dessa caverna e as
imagens projetadas nele. Um longo trabalho dianoético, isto é, de pensamento
dialogal, permitiria que alguns dos mais tenazes e corajosos de seus habitantes
se voltassem para contemplar o fogo, a luz divina, que a iluminava. Cabia a
eles, então, precisamente porque esse trabalho havia sido realizado
dialogicamente, na dependência dos outros, retornar à antiga convivência para
ensinar o verdadeiro caminho da verdade. Esse caminho que vai da aparência ao
verdadeiramente real e retorna para o cotidiano aparente explode no cinema, na
medida em que o mais aparente se mostra ele mesmo o mais real ou o mais falso.
Se, de um lado, ele perde a paciência dos conceitos, de outro, explode nos
olhos pensamentos nem sempre verbais. Podemos acompanhar, por exemplo, todos os
meandros da vida de um personagem concomitantemente em suas várias dimensões e
com tal senso de realidade que a mimese desaparece como elemento constitutivo.
É como se estivéssemos debruçados sobre uma janela espiando a casa vizinha,
mais real do que a sala escura onde estamos. Em geral o cinema põe o mundo. Mas
pode ocorrer que o personagem principal perceba que sua vida se desenrolara num
cenário, como acontece nesses horríveis reality shows, ou no filme mediano de
Peter Weir, O show de Truman: toda a cidade onde a trama se desenvolve se
mostra, no final, enorme cenário onde o personagem viveu seu drama real e
fictício.
Esse fatiar da totalidade do real foi magnificamente explorado por um filme de
Woody Allen, A rosa púrpura do Cairo, que mostra um personagem fugindo do
retângulo da tela e passando a viver numa realidade representada como se esta
fosse o mundo real. Agora a imagem na tela apresenta uma tela da qual escapa
uma pessoa para viver a estranheza do mundo. Por certo toda grande arte engole
o apreciador, faz com que ele se esqueça de si mesmo no momento em que ele é
mais ele mesmo, porquanto explora com seus próprios meios os mistérios que o
artista deixou na coisa. O observador cresce na medida em que se entrega aos
traços de pensamento depositado no objeto-imagem, alimenta sua autonomia
deixando-se levar pelo tratamento da imagem oferecida pelo artista. O cinema,
em compensação, apresenta situações num mundo que engole o observador sendo
capaz de voltar a ser ele mesmo apenas no final do filme. Ainda quando não
alcança o nível das belas-artes, a sala escura apresenta um fluxo de imagens
como se fosse um mundo. E o grande cinema, seguindo uma tendência, comum na
arte moderna, de refletir sobre si mesma, fatia os mundos em planos nem sempre
coincidentes. Um bom exemplo disso é o filme Mundo, de Jia Zhangke, que narra a
aventura de artistas que trabalham num parque temático, instalado em Pequim,
chamado "mundo". Um aglomerado kitsch reproduzindo ilustres monumentos
espalhados pelo mundo serve de cenário para comentar o mundo fechado da atual
sociedade chinesa pregada num regime autoritário.
O que importa ressaltar nesses filmes? Imagens que se integram num mundo que,
por sua vez, se integra noutro e assim por diante. Mas não é por isso que
desenham um universo formado por círculos concêntricos, pelo contrário, um
personagem escapa de um mundo para habitar outro, ou vive num mundo falso que
não é mundo para o mundo exterior que, por sua vez, não se apresenta como
mundo. Estamos muito longe do universo em que se trava a guerra das estrelas
que, a despeito de suas múltiplas dimensões, ainda forma um todo capaz de ser
governado pelo poder central do Bem ou do Mal. Tudo se passa como se depois de
desmontar uma daquelas bonecas russas, cada uma contendo em si outra boneca
menor, nos víssemos incapazes de remontá-la, porque as bonecas incisas
cresceram e perderam as proporções devidas para serem embutidas umas nas
outras. Por toda parte vemos, pois, mundos cruzando mundos, assinalando como a
idéia de mundo se multiplica e se torna reflexiva, perdendo assim seu caráter
de todo global articulado.
IV.
Em que medida o cinema nos apresenta uma dificuldade com a qual temos de lidar
cotidianamente? Tudo parece indicar que estamos vivendo processos de
globalização do capital, do circuito das notícias, da produção artística e
assim por diante sem que neles possamos encontrar um lugar onde pudéssemos
habitar. Não estou me referindo a cidades inabitáveis como São Paulo ou Cidade
do México. Nelas a comunicação continua instantânea, o que acontece numa parte
da cidade reflete-se em todas as outras partes, mas o esforço é enorme para que
se possa conviver, ocupar juntos um espaço dominado reflexivamente, graças a
uma interação recíproca, muito custosa embora ainda possível. Refiro-me a uma
experiência mais radical. Parece-me que estamos diante do paradoxo de vivermos
num mundo globalizado, em que os acontecimentos podem ser apresentados em tempo
real, mas não logram se armar numa imagem de mundo que nos conduza a ele como
nossa morada.
V.
Mas, no final das contas, o que entendemos por "mundo"? À primeira vista essa
palavra denota tudo o que acontece. No que consiste, porém, essa totalização?
Aqui está a questão: o que "mundo" significa depende de como se costura esse
processo de totalização, vale dizer, de como essa palavra se conecta em
determinados jogos de linguagem que lhe confiram referência. Falamos
cotidianamente no mundo significando as coisas e os processos que ambientam os
seres humanos, ou ainda no mundo submarino ou o mundo do crime e assim por
diante, sempre querendo dizer um todo em que "coisas" acontecem segundo uma
linhagem.
Cada filosofia refina esse ponto de vista totalizante. Já lembramos que
Schopenhauer pôde falar no mundo como vontade e representação na medida em que
pressupunha o eu se identificando ao fluxo da representação e dos atos
voluntários. Wittgenstein pôde abrir o Tractatus afirmando que "O mundo é tudo
o que é o caso (was der Fall ist)" porque já pensava a proposição como
figuração, imagem (Bild), de um estado de coisa, de sorte que o fato, o que
acontece, já poderia ser entendido como caso da regra afigurante. E para
assegurar que esses casos formassem um todo, foi-lhe preciso indicar que a
linguagem afigurando o que acontece e o que não acontece no quadro de um espaço
lógico estava pressupondo um eu transcendental, uma perspectiva fora do mundo
que faz do mundo o meu mundo.
No entanto, foi a fenomenologia que trouxe para o vocabulário filosófico
contemporâneo o conceito de mundo como um problema de todos os dias. Insistindo
no caráter intencional da consciência, Husserl considerou possível pôr entre
parênteses tudo o que foi intencionado, o mundo, como se ele fosse apenas
apresentado como o outro lado dos atos conscientes. Mas essa epochê não o
impediu de insistir nos laços significativos valendo entre os conteúdos desses
atos. Minha mesa existe diante de mim, cheia de livros, canetas, papéis e
outros objetos, tendo a cadeira ao lado onde me sento, que é minha mas também
da mesa. Todas essas coisas reportando-se entre si pelos sentidos que adquirem
nesse contexto prático. E nele, nesse mundo da vida (Lebenswelt), encontrar-se-
iam as matrizes dos sistemas simbólicos. A geometria não retiraria dele as
bases de seus conceitos? No que consiste, porém, esse "retirar"?
Seriam possíveis intuições desse mundo independentemente da gramática da
linguagem que fala dele? A palavra "mundo" é equívoca, visto que seu sentido se
conforma segundo o modo pelo qual os acontecimentos são alinhavados num todo. E
tudo indica que esse travejamento é histórico, pelo menos ele tem sido pensado
de diversas maneiras. Obviamente dessa equivocidade não escapa o conceito de
mundo da vida (Lebenswelt), de sorte que, antes da descrição fenomenológica
deste terreno significante donde brotariam as significações, sobretudo aquelas
verbais, cabe analisar o contexto de seu sentido, vale dizer, os jogos de
linguagem em que a palavra "mundo" se encastoa. Mais do que uma análise
fenomenológica, impõe-se antes de tudo uma descrição de jogos de linguagem,
isto é, uma análise lógica. E esta análise só pode ser feita na base de
exemplos.
No entanto, posta a equivocidade da palavra "mundo", e com ela todas as imagens
a ela associadas, não é por isso que os vários sentidos estariam completamente
separados entre si, átomos isolados de linguagens discretas. Os seres humanos
continuam a falar na equivocidade, mas para falar eles precisam existir
praticamente. É desta prática presente, mas igualmente desta linguagem equívoca
que é necessário partir, já que os seres humanos sobrevivem falando, se
entendendo e se desentendendo. Ora, essa existência humana, seja qual for seu
significado, depende de várias atividades que a reponham, de condições de
existência que não estão diretamente ligadas às gramáticas dessas práticas. Uma
delas é um sistema produtivo responsável por sua existência biológica e social.
Não se tome esse sistema como transcendental, mas tão-só como uma condição de
existência entre outras, prática simbólica e interativa acompanhando outras
práticas.
VI.
Esse sistema é tecido por atos de trabalho. Como eles se enlaçam? Costuma-se
ligá-los por uma racionalidade particular, aquela que, dado um fim, cuida dos
meios para obtê-lo, em resumo, a racionalidade técnica. Mas como isolá-la da
interação dos seres humanos entre si? É possível trabalhar sozinho, mas desde
que o produto se insira num sistema produtivo, o ato de trabalho passa a ser
dependente de, no mínimo, relações de propriedade, que impedem que o produto
possa ser apropriado por qualquer um. Deixemos de lado o conceito globalizante
de razão, simplesmente porque cada filósofo o pensa à sua maneira, na
dependência, em particular, de como pensa as lógicas formais e os modos de
experiência. Quando se estudam relações sociais significativas e interativas é
preciso ter todo o cuidado para não subsumir determinados esquemas de conduta a
uma única forma de racionalidade que, como acontece muitas vezes, retira dele
peculiaridades características de seu modo de ser. Isso é freqüente no
pensamento contemporâneo, quando, por exemplo, movimentos sociais são
concebidos como luta por direitos que, uma vez alcançados e
institucionalizados, passariam a ser aplicados como o selo deixa sua marca na
cera, o ferro em brasa, uma assinatura no couro do boi. Ou ainda quando o
estudioso de políticas públicas desenha um plano que só poderia ser aplicado
por um órgão estatal como se este fosse representante da ordem racional das
coisas, em suma, como se já não fosse político. Tudo se passaria como se atos
de seguir uma regra fossem conduzidos por imagens dessa regra, desse critério,
como se eles próprios não pudessem criar visgos e barreiras ao seu bom
processamento do que pretendem fazer. Os procedimentos de racionalizar,
contudo, estariam sempre imunes às fintas dos ardis das razões?
O conceito marxista de modo de produção nos conduz a um universo em que o
seguir a regra não cria no real a imagem dela. Vale a pena, então retomá-lo,
cuidando, porém, para não cair no abuso dos economistas e sociólogos dos anos
1960, que o transformaram num passe-partout enquadrando qualquer modo de
coletivização dos atos de trabalho. Além disso, estou convencido de que
qualquer sociedade necessita manter determinado metabolismo com a natureza,
sendo que este há de obedecer a formas particulares de coletivização dos atos
produtivos. Importa desde já lembrar que esses atos se coordenam num processo
reflexionante de produção, distribuição, troca e consumo, que se repõe dando
corpo a uma certa intenção prática historicamente determinada. É assim que atos
de trabalho se articularam, por exemplo, para produzir e reproduzir uma riqueza
social responsável por assegurar e prefigurar cidades-Estados politicamente
autônomas, as póleis, embora mergulhadas num fluxo comercial, como aconteceu no
Mediterrâneo durante a Antiguidade clássica. Mas o exemplo que mais interessa é
nosso, o modo de produção capitalista, em que todos os fatores do processo
produtivo se configuram como mercadoria, sendo que o valor agregado da
mercadoria inicial vem a ser reposto e aumentado, isto é, como capital.
O que tem a ver a existência do modo de produção capitalista com a experiência
do mundo? Nada, se continuarmos a pensá-lo como matriz de outros sistemas
práticos significantes, infra-estrutura ancorando superestruturas, desenho
inscrito na terra servindo de imagem inicial para os jogos de espelho de outras
práticas sociais e culturais. Durante anos o marxismo pensou as superestruturas
sendo fundadas nas relações sociais de produção mobilizando forças produtivas
correspondentes. Já lembramos que igualmente a fenomenologia fez do mundo da
vida o terreno de onde as práticas coletivas retiravam seus sistemas
simbólicos. Parece-me, contudo, que o desenvolvimento contemporâneo da
filosofia da lógica, a partir das descobertas dos anos 1930 e das reflexões do
segundo Wittgenstein, termina pondo em xeque a própria idéia de fundamento. É
natural que se escrevêssemos unicamente com pincéis nossa geometria pudesse ser
diferente. Mas entre essa prática da escrita e os conceitos armados num sistema
graças a conexões necessárias internas se abre uma cesura, uma invenção,
impedindo que o desenho da prática determine a figura dos conceitos. Essa
prática é condição de existência de outros sistemas simbólicos, mas suas regras
não fazem parte do travejamento simbólico deles. É como um tabuleiro de xadrez
que pode ser feito de materiais e tamanhos diferentes, mas que não pode deixar
de combinar quadrados numa determinada proporção. Desse ponto de vista, haveria
algum rebatimento entre o funcionamento atual do sistema capitalista e essa
experiência de falta do mundo que nos persegue no cotidiano?
Marx nos lembra que o modo de produção capitalista se mantém graças a duas
histórias. A primeira mostra o desenvolvimento das categorias conforme elas
próprias vão se repondo. Essa história categorial se inicia com a troca de
mercadorias (M=M) e se expande até o capital se apresentar sob três formas
básicas: o capital gerando lucro, a propriedade privada da terra gerando renda
e o trabalho gerando salário. Os juros são os lucros sob a forma mais alienada.
A segunda história é aquela que descreve como essas estruturações se instalam
em cada região da terra obedecendo a condições peculiares. Assim o crescimento
do capitalismo na Inglaterra dependeu de um forte processo de acumulação
primitiva, isto é, absorção de trabalho morto e vivo instalado fora do sistema,
que passa a assumir então a forma de valor-trabalho. No plano da primeira
história a mercadoria começa se transformando em dinheiro, mas termina se
repondo como mercadoria; por sua vez o capital começa como dinheiro se
transformando em mercadorias e retorna como dinheiro aumentado e assim por
diante. Na história categorial, as formas categorias são repostas, enquanto na
história do vir-a-ser o que foi necessário para a instalação regional do modo
de produção não vai ser reposto pelo movimento das formas nem se repetirá em
outras ocasiões. Observemos que a história das formas categoriais constitui um
sistema simbólico, uma práxis orientada pelo movimento de símbolos. Não é isso
que Wittgenstein, nas Investigações filosóficas, chama de jogo de linguagem?
Além do mais, no parágrafo 50 dessa obra, ele não diferencia o modo do meio de
apresentação (Weise und Mittel der Darstellung)? O primeiro diz respeito às
regras de um jogo de linguagem, o segundo às condições naturais necessárias ao
exercício desse jogo. As regras, por exemplo, que definem os movimentos
legítimos do bispo e que fazem parte da gramática desse jogo, não se confundem
com condições naturais e sociais assegurando que as peças sejam manipuladas. E
não há erro mais comum e mais prolífero do que tomar propriedades dos meios de
apresentação como se fossem momentos das regras, da gramática do jogo. Os jogos
de linguagem como as categorias da economia burguesa são Gedankenformen e como
tais estabelecem regras de condutas que para serem seguidas necessitam obedecer
a certos condicionamentos inseridos no mundo. Mas não é por isso que o
travejamento do mundo lhes seja anterior.
Teorias científicas podem ser consideradas como jogos de linguagem,
investigadas como se formam os signos com as quais elas lidam e como se
reportam a realidades que elas mesmas conformam, desde que se levem em conta as
experiências por elas controladas. Não é assim, entretanto, que o cientista
normalmente lida com elas. Simplesmente toma seus conceitos básicos ligados
entre si por relações específicas, geralmente recorrendo a técnicas
matemáticas, à procura de um modelo capaz de mostrar como o real está
funcionando e quais são as previsões possíveis a partir do sistema simbólico. É
possível, como diria Wittgenstein, analisar esse sistema e o que se diz dele, a
sua prosa, daquele ponto de vista que privilegia o nascimento de seus
significados, mas não é por isso que se estaria fazendo ciência. Fazer ciência
não é descrever os jogos de linguagem nos quais ela consiste. Dado um modelo
científico e técnico, é possível dizer que isto acontece por esta ou aquela
razão, mas não tem sentido dizer que isto tem razão independentemente do quadro
científico a partir do qual a pergunta pode ser feita e respondida. Dados os
axiomas da aritmética seguem-se os teoremas demonstráveis a partir deles, mas
sabemos ser possível construir uma expressão aritmética que não pode ser
demonstrada nem como verdadeira nem como falsa no sistema já montado. Há
enunciados da teoria da relatividade que não são compatíveis com enunciados da
física quântica. Em biologia a noção de mutação implica uma reorganização do
código genético inexplicável a partir dele. Estes são alguns exemplos que tomo
simplesmente para indicar: primeiro, que as noções de necessidade e a de
demonstração variam de sentido conforme a teoria científica em que estão sendo
usadas; segundo, que a idéia de razão funciona dentro de determinados limites,
vale dizer, a razão é dita de várias maneiras. Com isso estamos nos livrando de
racionalidades totalizantes tais como a famosa Zweckrationalitåt (racionalidade
em função de fins dados), ou a razão substantiva e assim por diante. E se ainda
for possível pensar o desenvolvimento da ciência e da tecnologia como processo
de racionalização do mundo, desde logo é necessário investigar de que ótica
isto está valendo. Entender a razão como faculdade da alma depende do que se
entende pela unidade do eu transcendental; considerá-la como se estivesse
escrevendo atos em busca do bom entendimento não lida com a diferença entre
meios e modos de apresentação, o que esconde uma concepção ainda formalista da
linguagem. Do ponto de vista dos jogos de linguagem, esses dois caminhos
carecem de sentido.
VII.
Levando em conta essas diferenças voltemos a Marx. Ele pretende tanto escrever
a ciência do capital como desenvolver a crítica do objeto estudado,
estabelecendo uma determinação recíproca entre as duas tarefas. Nesse ponto o
título de seu livro é explícito: "O capital: crítica da economia política".
Crítica orientada pelo materialismo dialético que, em momentos aparece como
método, outros como ontologia ainda ligada aos procedimentos hegelianos e assim
por diante. Mas, por ironia da sorte, o primeiro volume d'O capital vem à luz
em 1867, quatro anos depois Stanley Jevons publica Theory of political economy,
abrindo o caminho para a teoria marginalista, que toma como ponto de partida o
valor de uso até então sistematicamente descartado pelas teorias econômicas. Em
1890 Alfred Marshall publica Principles of economics consolidando o novo
paradigma. A nova teoria, graças ao refinamento de suas técnicas matemáticas,
se mostra cada vez mais eficaz no tratamento de seus modelos descritivos dos
mercados e assim termina reduzindo a teoria do valor-trabalho a um momento da
história do pensamento econômico. Ainda enquanto se mantinham as tentativas de
construir uma economia socialista foi possível pensar os fenômenos econômicos a
partir de duas perspectivas: do mainstream neoclássico e do ponto de vista
"dialético" seguindo os passos do marxismo. Depois da passagem do socialismo
para o capitalismo tornou-se difícil manter essa dualidade. Em conseqüência
disso o marxismo desapareceu do foco do pensamento atual, sobrevivendo apenas
em algumas ilhas isoladas. Estaria, porém, inteiramente morto? Não há hoje, no
planeta, uma economia que não se exerça segundo as leis do mercado. Mas poucos
ainda acreditam que ele se auto-regule. Que tipo de lei institucionalizada será
capaz de regulá-lo, de emprestar-lhe uma racionalidade que não se subordine à
racionalidade do capital? No final das contas, o extraordinário crescimento da
China atual se faz sob a égide de um socialismo de mercado e a questão do
controle dos mercados se tornou extremamente atual. Daí a importância de uma
pergunta prévia: o que quer dizer mercado? Um modelo de seu funcionamento seria
capaz de responder a essa questão? Não reduziria ele seus objetos a "coisas", a
"variáveis" num campo de objetos individualizados, não o colocaria num plano de
objetidade peculiar às ciências, que nem sempre vem a ser capaz de responder a
questões de sentido? É possível entender os jogos de linguagem em que essa
palavra "mercado" faça sentido? Desse ponto de vista, creio que as análises de
Marx muito podem contribuir para melhor entendimento dessas indagações.
VIII.
Antes, porém, é preciso entender os meandros e o alcance de sua crítica. Vale a
pena salientar que Marx e seus contemporâneos entendiam por ciência algo muito
distante do que hoje entendemos por ela. Convém lembrar que nos meados do
século XIX o progresso das ciências disparou graças ao aumento espetacular dos
recursos teóricos, a um aumento exponencial do número de pesquisadores e dos
capitais a elas destinados. Em particular Marx aprovou a revolução nas ciências
naturais e sociais provocada por Darwin, que alterou profundamente o modo pelo
qual nos situamos frente a frente com a natureza. Sofreu essa influência e,
muitas vezes, adere a seu historicismo. Aliás, já na Ideologia alemã apontara a
história como paradigma das ciências em geral, embora mais tarde recupere a
tese hegeliana das duas historicidades.
No primeiro capítulo d' O capital Marx reproduz basicamente a teoria do valor-
trabalho, tal como tinha sido elaborada por Ricardo, mas enlaçada num movimento
conceitual inspirado na dialética hegeliana. Nada mais longe, por conseguinte,
do que se costuma entender por ciência ontem e hoje. Qual sua principal crítica
a Ricardo? Este "não investiga de modo algum o valor segundo sua forma a
forma determinada que o trabalho assume como substância do valor , mas apenas
as magnitudes-valores, as quantidades desse trabalho [...]"3. Mais do que
relações funcionais entre valores e quantidade de horas de trabalho, como aliás
fazem os cientistas em geral, importa a Marx a forma-valor enquanto trabalho
abstrato socialmente necessário posto como substância desse valor. O que
entende por essa forma e essa substância? Lembremos que na Fenomenologia do
espírito Hegel frisa que a substância deve ser tratada como sujeito. O valor
não é apenas trabalho, mas ainda pedaço da natureza trabalhada por um processo
coletivo, que encontra sua medida num tempo socialmente necessário para
produzir objetos como mercadorias. Como esse pedaço de natureza vem a ser valor
dotado daquela reflexão que caracteriza o sujeito?
Entre os trobriandeses, objetos são trocáveis somente em determinadas faixas,
por exemplo, uma cesta de inhame pode ser trocada por outra de peixe. Desse
modo, uma cesta vale outra, mas é impossível trocar uma canoa por peixe ou por
inhame, somente por uma mulher. Os objetos não se reduzem a uma mesma medida de
valor. Não é o que acontece no mercado em que todos os produtos que ali estão
são trocáveis entre si. Essa trocabilidade universal abstrai dos produtos todas
as características de sua produção, eles são medidos exclusivamente pelo
trabalho morto que incorporaram como se fosse indiferente o trabalhador lidar
com este ou aquele objeto. Não se trata, pois, do trabalho vivo na sua
variedade, mas daquele trabalho que a sociedade como um todo realizaria para
obter os produtos de que necessita. Mas são os indivíduos que agem. Como a
diversidade dos atos vivos de trabalho passa a ser medida pelo tempo abstrato e
socialmente necessário de trabalho morto inscrito nos produtos? Como se dá
efetivamente essa mensuração?
Cada produto enquanto valor de uso é reportado a qualquer outro produto no
mercado enquanto expressão de seus valores de troca. O comum a todos esses
valores de troca é a substância valor que se exprime no dinheiro. Cada produto
possui então um valor, que neste nível é o seu preço. Mas o valor de troca é
apenas representado, o dinheiro como equivalente geral é apenas medida a ser
aplicada. Isto se torna claro no modo de produção capitalista, quando todos os
fatores de produção comparecem com seus preços. O valor, portanto, é regra a
ser seguida pelo entrosamento dos atos individuais de trabalho, os quais
unicamente confirmam a medida pressuposta por cada um ao chegar ao fim do
processo, quando o consumo coletivo comprova o quantum de trabalho social
necessário para cumprir a demanda agregada. Note-se que os atos produtivos se
tornam coletivos conforme suas regras (Gedankenformen diz Marx) sejam de fato
exercidas. Mas o que aparece como fato é o produto expresso por seu valor, por
seu preço.
A economia neoclássica parte desse fato, não indaga pelo sentido dos atos
produtivos; mais ainda, o valor marginal não se reporta à coisa como produto,
mas apenas como objeto de consumo. Em geral uma regra científica diz respeito à
maneira pela qual vemos e prevemos como certas regularidades naturais
acontecem. N' O capital essa relação entre fato e regra (conceito) é muito mais
complexa. Parte do fato de que há uma riqueza capitalista apresentando-se como
imensa coleção de mercadorias, sendo então a mercadoria individual sua forma
elementar. Como se estrutura a forma-mercadoria, qual é seu sentido? A partir
de suas duas determinações, valor de uso e valor de troca. Sendo em princípio
os valores de troca compatíveis entre si, eles apresentam algo em comum que vem
a ser a regra que os medem.
Posso trocar um cacho de bananas por x laranjas segundo a utilidade marginal,
mas, se preciso consumir laranjas para continuar produzindo bananas para o
mercado, a troca de bananas por laranjas deve levar em consideração aquilo que
as torna comensuráveis, a regra-valor como sua condição de existência. Esses
objetos como produtos comensuráveis resultam de um trabalho abstrato medido
então pelo tempo socialmente necessário para obtê-los. Ao chegar ao mercado
cada produtor trata seu produto como sendo comensurável a todos os outros em
virtude de todos terem valor, a substância comum. Essa comensurabilidade é
pressuposto da ação, mas sua medida somente se configura quando a ação já tiver
sido executada, pois somente assim o tempo gasto se mostrará socialmente
necessário. A substância tão-só se configura quando a demanda efetiva vem
comprová-la. Como totalidade começa sendo, pois, uma ilusão necessária ao
cumprimento da regra. O efetivado, o posto, vem a ser pressuposto e tudo se
passa como se a regra platonicamente produzisse seus casos. A forma-mercadoria
rebate as características sociais dos trabalhos como se fossem características
dos próprios produtos dos trabalhos, como propriedades naturais dessas coisas:
a
igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual
objetidade de valor dos produtos de trabalho, a medida de dispêndio
da força de trabalho do homem, por meio de sua duração, assume a
forma da grandeza de valor dos produtos de trabalho, finalmente as
relações entre os produtores, em que aquelas características sociais
de seus trabalhos são ativadas, assume a forma de uma relação social
entre os produtos do trabalho4.
Cabe prestar atenção a esse qüiproquó. Primeiro, ao se igualarem os valores das
mercadorias A, B..., todas as diferenças dos respectivos trabalhos efetivos
foram anuladas, mas de tal maneira que todas elas valem do mesmo modo,
apresentam quantidades diversas da mesma substância valor. Segundo, o dispêndio
de força de cada ato, medido por sua duração, apresenta-se igualado e rarefeito
na relação entre as grandezas dos valores. Terceiro, a relação efetiva dos
produtores se apresenta como relação entre produtos dos respectivos trabalhos.
Note-se que o travejamento concreto das relações sociais se apresenta então
como o movimento de formas categoriais, de sorte que a identidade dos agentes
passa a ser determinada segundo o modo pelo qual eles realizam a forma
correspondente. Assim sendo, o movimento das formas hegelianas apresenta tão-só
a casca dos processos efetivos que, todavia, somente são efetivos enquanto se
anularem nessa casca. A forma-valor é substância na medida em que se apresenta
como relação de coisas nos três níveis em que comparece. A reificação permite
que relações sociais da produção mercantil sejam tratadas como coisas, por
conseguinte do ponto de vista científico.
Compreende-se o primeiro aspecto da crítica de Marx: ao mostrar como as
propriedades definidoras, essenciais, da coisa-mercadoria se imbricam entre si
no jogo da diferença e da identidade, termina mostrando que essas propriedades
têm sua existência condicionada por certas relações sociais de produção que se
exercem sob sua medida. Os atos produtivos para o mercado se apresentam como se
fossem relações entre coisas. Se a ciência não for crítica, ela pode se tornar
extremamente eficaz, mas não apreende o sentido das ações humanas envolvidas.
Pode explicar o funcionamento da economia de vários pontos de vista, inclusive
montando modelos de suas crises, mas não mostra o sentido dessas relações, não
expõe sua gramática e o significado de suas rupturas. Note-se que cada passagem
de uma forma reificada a outra abre a cesura para a crise, a interrupção do
processo. É o que já provoca o entesourador que, em vez de cumprir a função
mediadora do dinheiro no processo de troca, retém seu curso, conserva em suas
mãos uma parte do equivalente geral de todas trocas, causando assim um
solavanco no movimento total das mercadorias. E bloqueado o curso da troca por
uma crise matriz, não se abre o espaço para a pergunta pelo sentido dessa
troca? O que ela quer dizer? Dessa pergunta pode resultar uma melhor
compreensão da dificuldade, o que permite introduzir novas regras para evitar o
percalço. Esse tipo de entesourador desaparece, por exemplo, se a moeda
periodicamente perde o valor. Note-se que esse tipo de crise, cujo perfil
acabamos de traçar, ainda não diz nada sobre a economia capitalista real,
porquanto apenas respeita à reposição do modo de produção simples de
mercadorias, que só pode existir em momentos fugazes do processo econômico.
Observe-se que a crítica não começa do ponto de vista da dominação, da
exploração de uma parte por outra, pois esta não existe no modo de produção
simples das mercadorias. Cada mercadoria se dá valendo tanto. Um abacaxi vale
R$ 5,00, uma caixa de morangos R$ 1,00 e assim por diante. O que há de comum
entre produtos tão diferentes? No início a pergunta indaga pelo que é, mas este
ser se resolve num processo sui generis de medida, cujo parâmetro inicial
depende de uma totalização ilusória. No mercado os agentes atuam como se fossem
atores mascarados agindo para fazer valer o papel inscrito em suas máscaras. A
crítica desvenda essa reificação, permite melhor entendimento do esquema
operatório no qual a troca mercantil se resolve e abre espaço para um controle
mais fino do procedimento que o faz ser e o faz explodir em crises. De um lado,
a análise da coisa-ação passa pela análise do sentido, de outro, a ciência
encontra um espaço que explica como os agentes interagem entre si e o
significado de seus percalços. A crítica nasce quando o processo de reposição e
reflexão emperra ou, para lembrar uma imagem de Wittgenstein, quando essa
linguagem não-verbal do mercado e da produção entra em férias.
Ao desvendar a gramática da troca mercantil Marx descobre o sentido das medidas
dos valores; por conseguinte, o sentido desses valores, e nele localiza uma
inversão sui generis, segundo a qual o medir se torna medido graça a uma
totalização idealizada, representada, embora a todo momento essa estabilidade
esteja sendo posta em xeque. Ser livre é controlar a medida de seus atos.
Quando se forma uma medida automática, cada agente perde sua liberdade enquanto
produtor capaz de levar ao mercado seus produtos. No entanto, ao mesmo tempo,
ele se apresenta como proprietário, possuindo direitos sobre o que produz, por
conseguinte sendo definido como sujeito jurídico. O agente perde o controle
completo de seu ato individual, mas se vê reconhecido como proprietário,
sujeito de direitos. Se houver conflitos, no que respeita à medida ou à
propriedade dos produtos é impossível que isto não aconteça num mercado
efetivo , os agentes se prepararam para aceitar um juiz imposto de fora ou
eleito por eles mesmos. De fato, não há situação de mercado em que não
compareça um juiz. A fissura na relação reificada tanto abre um espaço de
dominação como um espaço de liberdade.
Uma relação de troca de mercadorias, já considerando o equivalente geral
intermediário, está sob a forma M-D-M-D... Quando se transforma em D-M-D... é
toda a intencionalidade do jogo simbólico que se altera. Deixemos de lado os
requisitos históricos para que isso aconteça. No plano categorial, gramatical,
o capitalista só corre o risco de transformar seu dinheiro em mercadorias se
estas consistirem em fatores de produção cujo produto final valha mais do que o
dinheiro acumulado inicialmente, isto é, o capital. Daí a pergunta: se todos os
fatores de produção estão determinados sob a forma do valor, medidos por
conseguinte pelo trabalho morto que incorporaram, de onde vem esse aumento de
capital, noutras palavras, de onde vem o lucro? No plano categorial, e
exclusivamente nele, provém da diferença entre o valor da força de trabalho e o
valor do produto que ela cria. O lucro nasce da transformação da força de
trabalho, avaliada pelo valor do trabalho morto nela inscrita, em trabalho vivo
criador de novos produtos. Nesse plano, insisto, a forma-lucro advém do mais-
valor produzido sob o controle do capital. Mas, no nível das condições de
existência desse desdobramento formal, a grandeza do mais-valor depende
igualmente da boa vontade ou da resistência do trabalhador.
Vale a pena dar um passo adiante. Numa jornada de trabalho de 12 horas,
suponhamos que o trabalhador trabalhe 10 horas para repor o valor de todos os
fatores de produção, inclusive o valor de sua força de trabalho. Este é chamado
trabalho necessário. As outras duas horas correspondem ao mais-trabalho. Ao
capitalista interessa aumentar a produtividade do trabalho de tal modo que a
mesma quantidade de produto seja produzida, suponhamos em 9 horas, o que
aumenta o tempo de mais-trabalho para 3 horas. Isto só pode ser obtido graças
ao aumento da produtividade do trabalho, fazendo crescer exponencialmente o
valor de seu capital, em princípio diminuindo o valor da força de trabalho. Não
é assim que se explica o extraordinário avanço das ciências e das tecnologias
durante e depois da Revolução Industrial?
Todo esse processo, entretanto, já que ocorre sob a égide da substância-valor,
pressupõe que, embora cada capitalista esteja tudo fazendo para aumentar a
produtividade do trabalho por ele empregado, não haja barreiras estruturais que
impeçam seus concorrentes de ter acesso às novas tecnologias. Caso contrário, a
constituição do valor, daquele comum a qualquer valor de troca, ficaria
comprometida. Ora, esse livre trânsito das novas tecnologias fica bloqueado com
o monopólio da invenção científica e tecnológica por parte daqueles produtores
que se associam com a tecnociência. É evidente que desde logo o capitalista
cuida a todo custo para que seu concorrente não tenha acesso àquela tecnologia
que lhe está aumentando o mais-trabalho extraído do trabalhador. Mas, depois de
um certo tempo, não há como evitar que isso aconteça, pois os segredos são
confessados e tecnologias semelhantes são inventadas. A não ser que alguns
capitalistas passem a ter, ainda que em rodízio, o monopólio da invenção
científica e tecnológica. Passam a ter acesso a novas teorias e novos
procedimentos antes que seus concorrentes consigam chegar perto de seu nível de
eficiência. Não há dúvida de que isso também é temporário. Sempre é possível
que um grupo de inventores geniais lance no mercado um produto incomparável e,
enquanto outros não lograrem fazer algo semelhante, chegam a acumular impérios.
Mas do ponto de vista categorial, do sentido das formas do modo de produção
capitalista, importa que um proprietário qualquer desse monopólio da invenção
tenha sempre à disposição novas tecnologias e novos produtos antes que seus
concorrentes de fim de linha possam obter tecnologias e produtos equivalentes.
O produtor que chega ao mercado está em princípio comparando seu produto como
valor de troca a todos os produtos que ali estão, mas na hora da troca efetiva
essa comparação não pode ser feita, pois a nova tecnologia não possui medida
comum com os outros produtos. Por certo o trabalhador de qualquer ramo opera
sob o metro das horas de trabalho, mas para que estas se tornem medidas de
valor é preciso que tais horas sejam socialmente necessárias, o que somente se
efetiva depois do consumo se mostrar socialmente necessário. Noutras palavras,
fica bloqueada a constituição da substância-valor, daquele comum totalizante
que percorre todos os valores de troca representados. O mercado se cliva então
em várias faixas, o que desde logo coloca a questão: como ele se integra nessas
novas condições?
É de notar que com isso o sistema capitalista, entendido como um jogo
movimentando partes do mundo natural e social, está sempre alterando suas
regras, formando um jogo muito parecido com o anterior sem ser todavia idêntico
a ele. Marx pressupunha, seguindo uma tradição hegeliana, que essa acumulação
de mudanças, de crises, resultasse numa crise tão profunda que o sistema
inteiro haveria de ser alterado numa eclosão revolucionária: um novo modo de
produção surgiria livre das servidões da divisão social do trabalho,
emancipando então a humanidade das antigas formas de opressão. Isto no final do
século XIX. Depois disso o capitalismo tem passado por crises profundas,
particularmente a autonomia do capital financeiro tem descolado o jogo dos
juros da economia real até que o curso dos papéis desabe e seus preços procurem
alguma faixa de valor real. Mas a crise revolucionária desapareceu do
horizonte, em particular porque as classes mais pobres passaram a consumir a
despeito das enormes desigualdades entre países ricos e países pobres. Assim
como os capitais não se integram num capital social total, igualmente os
setores operários não se integram num trabalhador total. E quando se tentou
articular um sistema produtivo fora das incertezas dos mercados, racionalmente
orquestrado por um comitê central, nada funcionou no longo prazo. Não está no
nosso horizonte atual criar um sistema econômico efetivo dispensando os
mecanismos de mercado, com suas invenções e suas crises. Daí a importância da
pergunta pelo seu significado, mais densa do que a simples articulação de seu
modelo, pois somente assim suas crises terão seus sentidos revelados. Não há
dúvida de que existem na teoria econômica vários modelos de crises, mas somente
depois de saber o que cada tipo de crise quer dizer é que podemos nos propor a
implementar soluções capazes de aumentar o controle de ações humanas que
irremediavelmente passam pelos caminhos da alienação, da perda da intenção
original que as desencadeiam. E como essas soluções irremediavelmente reclamam
controles vindo de fora do mercado, será possível poder avaliar até que ponto
são mais ou menos democráticas.
Em qualquer sociedade os trabalhadores ativos produzem mais do que consomem,
pois no mínimo há crianças e velhos para sustentar. No modo de produção
capitalista, em princípio, esse mais-produto se dá sob a forma de mais-valor.
Mas o que as crianças e velhos recebem são valores que foram transformados em
preços: o preço da alimentação, da educação, da saúde e assim por diante. E
nesse plano não há forma de traduzir esses preços em valor, movimento
categorial capaz de desenhar as instituições intermediárias. A distribuição do
mais-valor se faz então por uma luta em que os atores invocam seus direitos e
exercem seus poderes. Isso se generaliza quando as ciências se tornam forças
produtivas, quando o monopólio da invenção tecnológica bloqueia a expansão das
novas tecnologias. Estas não mais se espraiam como manchas de óleo, mas são
conquistadas conforme os atores ocupam posições estratégicas no mercado, nos
laboratórios de pesquisa, no Estado. Agora, no plano categorial mais simples,
não mais o capital, mas os capitais se repõem mediante lutas envolvendo
capitalistas entre si, capitalistas e trabalhadores e trabalhadores entre si.
Lutas que podem chegar ao limite, à exclusão do outro do sistema capitalista,
vale dizer, luta política no sentido hobbesiano da palavra, confronto de
aliados e adversários.
IX.
O que procurei mostrar? Que a história categorial do modo de produção
capitalista, sua racionalidade, à medida que se especifica, dissolve suas
categorias, impedindo que elas sejam aplicadas como regras científicas. Mas se
demonstrar sua verdade se torna impossível, não é por isso que perdem seu
sentido. Continuam a exibir condições de significabilidade de certas ações
coletivas que se podem mostrar efetivas ou não. Não vejo como a teoria do
valor-trabalho tenha alguma utilidade para o cientista a não ser que ele seja
igualmente crítico, procure entender o sentido das ações que se efetivam no
metabolismo que os seres humanos mantêm entre si tendo como mediadores os
produtos de seus trabalhos.
Separada das ciências, no que se resolve essa crítica? Se ela tem como núcleo o
problema da reificação, não é por isso que me vejo obrigado a seguir os passos
de Georg Lukács e contra ela erguer a bandeira da consciência de classe. Mas
alguma coisa me sobrou do projeto de uma ontologia do social se a ontologia
estiver escrita na gramática. Prefiro mostrar que a fibrilação das categorias
da lógica do capital, tal como foi analisada por Marx, nos conduz a uma
política cujo exercício irá mapear as classes em luta. Ao situar o valor dessas
categorias no plano dos sentidos, não posso imaginar que a crítica se resolva
numa teoria alternativa à teoria tradicional. Falharam as tentativas de uma
economia marxista, assim como serão inúteis, creio eu, todos os esforços
pretendendo mostrar a validade empírica da teoria do valor- trabalho. Já que
ela estabelece os princípios da gramática do capital, situa-se no mesmo nível
daquela da gramática da língua portuguesa, francesa ou inglesa. Falamos segundo
suas leis, assim como os mercados regulam à sua maneira os atos de trabalho,
isto é, o metabolismo que os seres humanos mantêm entre si e com a natureza.
Suas leis simplesmente permitem que as pessoas se entendam e se mostrem nesse
entendimento, mas apenas nesse nível. No caso do capital, o entendimento e o
desentendimento se mostram na configuração de amigos e adversários na luta pela
produção e distribuição da riqueza, antes das nações, agora do planeta.
X.
À medida que a crítica marxiana se descaracterizou como ciência, a crítica do
capital foi sendo substituída por uma crítica da modernidade. Nesta linha de
pensar, Max Weber tem sido a influência dominante. Seria porque sua sociologia
já é hermenêutica? Seja como for, aos poucos a crítica do capital se conformou
como crítica das relações sociais do ponto de vista de suas racionalidades. Não
no nível em que elas se exercem, mas projetadas nos eixos da racionalidade em
vista dos fins dados e da racionalidade substantiva, capaz de pensar a si
mesma. O velho fantasma da faculdade da razão reaparece sob as formas mais
diversas, precisamente quando a crise do formalismo lógico coloca em xeque a
própria idéia de uma razão unitária. Para tanto, alguns retiram do trabalho seu
caráter interativo, como se o ato de trabalho pudesse se exercer em sociedade
sem que regras de propriedade assegurassem ao produtor que seu produto não
fosse devorado por outrem. No entanto, o mais surpreendente é que a crítica da
razão instrumental, em vez de se ater aos pontos em que esta razão patina,
passa a ser projetada tendo no horizonte uma sociedade sem classes, sem
fissuras intrínsecas, como se a idéia reguladora do reino dos fins pudesse
encarnar-se na terra. Marx pensou que isso seria possível porque tomou um ponto
existente na história, a classe operária que, sofrendo a irrazão e violência do
capital, se emanciparia criando uma nova racionalidade e exercendo uma
violência emancipatória. Sem esse ponto de apoio no nível dos fatos, a idéia de
emancipação se torna reguladora, dependente de um conceito unitário de razão e
incapaz de reconhecer a violência de certos processos políticos. Pensar os
conflitos do mundo contemporâneo do ponto de vista da emancipação exala o
perfume do misticismo leigo. No fundo, no lugar da idéia marxiana de que a
política, graças à revolução, seria substituída pela administração racional das
coisas, coloca-se uma política do bom entendimento na paz do Senhor. Mas se no
nível dos processos capitalistas globalizados se evidencia a violência de
perversas estratégias de conquista de mercados, inclusive do mercado de
trabalho, que razão e forças políticas serão capazes de contê-las? Não é aqui
que o salto há de ser dado?
XI.
Volto a meus antigos demônios. Vivemos numa sociedade de consumo. Em que medida
numa sociedade de consumo capitalista? Examinemos brevemente apenas alguns
pontos dessa questão. O fetichismo se configura nos primeiros passos do
desdobramento da forma-mercadoria. Num ponto em que o desdobramento das formas-
categorias do capital já estão muito desenvolvidas vamos encontrá-lo sob as
três formas em que se apresenta o mais-valor: lucro, renda e salário. Cada um
se dá como o produto natural do capital, da propriedade da terra, do trabalho.
Mas é nos juros que encontramos, no seu extremo, a forma-fetiche da mercadoria.
As ações e os sujeitos surgem como moléculas dotadas de movimento browniano,
erráticas mas compondo a regularidade das catástrofes. Os indivíduos mantêm a
propriedade de seus títulos, mas ela é apenas formal, porquanto o valor desses
títulos depende de movimentos cujas causas se escondem nos meandros dos
processos produtivos e distributivos. "É a produção privada", escreve Marx,
"sem o controle da propriedade privada"5.
Essa reviravolta, essa reflexão formal se enriquece e se diversifica no
consumo. Cada modo de produção conforma seu próprio consumo e abre os espaços
de controle e descontroles dos impulsos, carências e previsões que o movem.
Antes de tudo, porém, nos interessa esse consumo que se converte na condição de
subsistência da economia como um todo, que os agentes necessitam realizar para
que a economia global tenha sucesso, conserve o sistema na sua marcha
indispensável em busca do crescimento. Crescimento crescente não se traduz,
contudo, em consumo erraticamente crescente, mas em demanda que não deve
ultrapassar as condições da oferta de produtos para que não se desencadeiem
reações inflacionárias. Por certo a atividade econômica como um todo desemboca
no consumo, mas cada modo tem sua forma. O consumo capitalista precisa estar
sob relativo controle dos bancos centrais e de organismos internacionais de
crédito e de negociação do comércio. Consumo, além do mais, que desenha formas
de vida e que está levando aos limites a exploração dos recursos naturais e
humanos. Se o capital tão-só existe crescendo, entrando em crise, destruindo
forças produtivas e renascendo, o nível e as formas de consumo são o seu
termômetro, por conseguinte imbricando demanda efetiva, competição capitalista
e as políticas públicas.
Toda essa luta e essa engenharia afetam a essência do objeto de consumo e do
consumidor. O primeiro corre o risco de ter suspensa sua natureza de coisa.
Esta se apresenta para nós nos seus múltiplos perfis, um depois do outro, num
enriquecimento contínuo que não tem fim; liga-se a fatos, estes fatos se juntam
ou se dissolvem desenhando um mundo. Mas cada vez mais cresce à nossa volta
objetos de consumo descartáveis. Ainda no século XIX as pessoas se cercavam de
poucos objetos de consumo: os alimentos duravam pouco a não ser aqueles de
luxo. Hoje em dia estamos cercados de objetos transitórios ou descartáveis. Até
mesmo as capitais mais modernas estão cercadas de habitações provisórias, o
conforto demanda miríades de objetos que hoje estão ali e amanhã desaparecem.
A coisa está ali, mas outra pode vir a substituí-la, seja a mesma maçã sempre
disponível no mercado, seja a nectarina que cumpre função semelhante. Sua
presença está associada a seu valor, por conseguinte a outra de igual valor.
Mas não de igual marca ou de prestígio. Mesmo quando os valores são
semelhantes, a grife traz ao consumo uma diferença, uma forma mais forte de
socialização. Por certo o modo de comer já indica competição de classe, mas a
marca de uma roupa, cada vez mais estampada no seu exterior, distingue e
justifica elevação de preço e prestígio elevado.
Assim sendo a coisa se torna descartável no meio da abundância, ou coisas são
postas à margem à medida que suas marcas se tornam dessuetas. A tudo isso se
soma a obsolescência programada dos instrumentos. Este meu computador logo
precisará ser trocado porque não mais me servirá para receber e enviar e-mails,
navegar na internet e assim por diante. É uma coisa que está diante de mim, mas
tem futuro determinado. Mas ele não morre como um ser vivo, que esgota os
arranjos de seus órgãos, vai ser encostado porque deixa de se encaixar na
segunda natureza de um sistema produtivo que só persiste se crescer.
Por isso tende a se apresentar como uma imagem. Não aquela imagem que vejo na
tela e que vem a ser a realidade de meu texto, mas a presença de um monitor que
já não é de plasma, que ocupa um espaço desproporcional às suas funções, que
contrasta com a televisão de última geração espreitando ao lado. Não estou
pensando a imagem no sentido dos empiristas, que a resolvem na presença
amortecida da coisa percebida, mas num sentido quase fenomenológico, algo posto
por uma intencionalidade particular, por certo não da consciência, mas de
nossas ações coletivas.
Vivemos rodeados de coisas cuja coisidade é bloqueada pela trama das relações
sociais do consumo capitalista. De modo semelhante, vivemos cercados de
sujeitos cuja subjetividade está posta entre parênteses, porque devem funcionar
antes de tudo segundo seus papéis: de amigo, vizinho, colega de trabalho,
concorrente do emprego e assim por diante a não ser quando com este ou aquele
mergulhamos nos meandros da intimidade. É como se vivêssemos num palco grego,
cada um de nós cumprindo ações determinadas por nossas máscaras, mas que são de
cera e se derretem ao calor do sol. Nesse derretimento cada um tenta alguns
minutos de originalidade, uma nova relação com o outro, que se perde na medida
em que o outro também derrete. Não é por isso, creio eu, que vivemos numa
sociedade do espetáculo, como quer Guy Debord. Porquanto o espetáculo encena um
sentido, mesmo quando quer mostrar a falta de sentido, à espera daquele Godot
que nunca aparece. Ao contrário, cada vez mais se impõe a falta de sentido da
vida cotidiana, o desfazimento dos horizontes, a precariedade do cotidiano. E a
fuga no consumo, no transitório de uma novidade. Que certeza pode trazer,
então, o mundo da vida? Como as estruturas perduráveis do entendimento podem se
estabilizar nessa transitoriedade do consumindo-se?
Notável é que as imagens constituem um mundo bloqueado. Em 1940, Jean-Paul
Sartre, reformando um texto anterior sobre a imaginação, escreve L'imaginaire,
psychologie phénoménologique, aprofundando a nova concepção de imagem
desenvolvida por Husserl. Não considera a imagem apenas como presença
enfraquecida da coisa, pois ela demanda um ato especial de consciência. Esse
ato, porém, não é tético, não coloca a coisa como existente, tem sua realidade
posta entre parênteses. Não temos consciência da imagem, mas do objeto na
imagem, independentemente de sua existência. Sob esse aspecto o mundo
imaginário e o mundo real são constituídos pelos mesmos objetos, mas varia o
modo pelo qual estão agrupados e são interpretados.
Para poder imaginar, não basta que a consciência possa ultrapassar o
real constituindo-o como mundo. Mas essa ultrapassagem não pode
operar-se de qualquer maneira, e a liberdade da consciência não pode
ser confundida com o arbitrário. Pois uma imagem não é um mundo-
negado,puramente e simplesmente, é sempre o mundo negado de um certo
ponto de vista,precisamente aquele que permite pôr a ausência ou a
inexistência de tal objeto que será apresentado
"em imagem". A posição arbitrária do real como mundo não fará ao
mesmo tempo aparecer o centauro como objeto real. Para que o centauro
apareça como irreal é necessário precisamente que o mundo seja
apreendido como mundo-onde-o-centauro-não-é, e isso somente pode se
produzir se diferentes motivações levaram a consciência a apreender o
mundo como sendo precisamente tal que o centauro nele não tenha
lugar6.
O caráter intermediário da imagem entre a percepção e o conceito permite que se
atribua a ela papel relevante na costura do mundo, seja da perspectiva mais
idealista, como a de Fichte, seja daqueles que se insurgem contra a filosofia
da representação para realçar o silêncio e a multiplicidade diferencial do
sensível, como Gilles Deleuze. Para combater a concepção kantiana da coisa em
si, Fichte atribuirá à imaginação transcendental uma função constitutiva ainda
maior do que aquela postulada por Kant: não é apenas responsável pelo esquema
que empresta às categorias seu lado real, mas se confunde com a intuição
intelectual. Se para Kant as categorias, formas de pensamento, necessitam do
trabalho da imaginação para conformar o real, para Fichte as categorias e os
objetos nascem no terreno da imaginação transcendental.
Notável é que dois séculos depois a imaginação assumirá o mesmo papel fundante
com os filósofos pós-fenomenólogos de Paris. Logo no início de Différence et
répétition Deleuze afirma sua posição mediana: "Nem particularidades empíricas,
nem universal abstrato: Cogito para um eu dissolvido. Cremos num mundo onde as
individualizações são impessoais; e as singularidades, pré-individuais: o
esplendor do 'a gente' [on]"7. Mas isso significa o silêncio do sensível,
procurar exterioridades que se excedem, transformando assim o real num mil
folhas coloridas. Se o pensar carrega uma imagem é importante procurar o
pensamento sem imagem, capaz de ressaltar no real unidades do tipo do rizoma,
dessas raízes que, em vez de possuírem uma forma arborescente, se ligam em
tubérculos, em direções indefinidas. A raiz do gengibre é um bom exemplo. Cabe
notar, entretanto, que dessas raízes nascem caules, pontos que se
individualizam sem um princípio definido. O sensível se reduz então a uma
multiplicidade sem unidades formadas, conformando-se em dobras, pregas, sem
formar um sistema, sem atravessar o caos criador, dispondo apenas de estruturas
extremamente dúcteis. E o mundo é pensado então como fluxo emanando de um
transcendental composto de singularidades pré-individuais. Os subjéteis
(superjets) e os objéteis (objetiles) se distinguem apenas aparentemente uns
dos outros.
Essas breves lembranças de Fichte e de Deleuze nos servem apenas para sugerir
que tanto uma filosofia da consciência que se ergue à reflexão do eu não-eu
quanto uma filosofia da diferença e da repetição concebem a imagem sem que nela
se detectem seus traços constitutivos. Num traçado vejo uma pessoa, mas também
vejo essa figura como um traçado. Diferença aliás da qual tomo consciência
examinando a gramática, os jogos de linguagem nos quais "ver" adquire sentido.
Na imagem o ver e o ver como estão intimamente ligados de tal modo que ora vejo
o traçado, ora vejo o objeto, isto é o rosto referido. Mas essa mudança, que se
torna paradigmática nas figuras ambíguas como aquela do pato/lebre, implica que
se o rosto vem a ser uma presença ausente, então o traçado se torna ausente. Em
contrapartida, se o traçado se torna presente, o rosto se esconde. É de notar
que no primeiro caso a presença é do modo de apresentação do jogo de linguagem
e a ausência de seu meio; no segundo caso, a presença é do meio enquanto a
ausência é do modo. Ignorando essa dualidade do signo, por conseguinte da
imagem sempre que ela vem a ser significante, a filosofia da consciência ou a
da diferença traçam o mesmo caminho linear do sujeito ao objeto e vice-versa.
Assim perdem as duas diferentes formas de inserção no mundo. Os modos de
apresentação apresentam estados de coisa possíveis de um mundo. Os meios de
apresentação já estão no mundo e suas figuras precisam estar desenhadas por uma
imagem do mundo, pois só assim asseguram suas identidades. Mundo apresentado
pela representação, imagem do mundo pressuposta para que este primeiro mundo
tenha sentido.
Tentando me livrar das arapucas armadas pela filosofia da consciência, estou
procurando descobrir práticas sociais que suspendam a posição do mundo, que
fazem com que ele nos apareça indiferente, passagem que não leva a lugar
nenhum. De certo modo, o consumo capitalista consome o mundo, de tal modo que
nele não mais encontramos nosso lugar. Na lógica do capital não cabe a idéia de
mundo, ela não indica como os acontecimentos se totalizam. Pelo contrário,
estamos tentando mostrar que a lógica do consumo capitalista não repõe o
produto como coisa e, assim, o retira do mundo. No entanto, por trás dessa
suspensão, se coloca uma imagem de mundo pressuposta: a maioria dos objetos são
substituíveis e passíveis de reposição.
Horkheimer, em Teoria tradicional e teoria crítica, afirma que, ao reconhecerem
o modo da economia vigente e o todo nele baseado como produto do trabalho
humano assim como a humanidade se organiza na época atual , os sujeitos do
pensamento crítico se identificam com esse todo e o compreendem como vontade e
razão, como seu mundo. No entanto, ao descobrirem que a sociedade se compara
com processos naturais extra-humanos, mecanismos opressivos que escapam de uma
vontade unitária autoconsciente, eles descobrem que esse mundo não é o deles
mas do capital8. Em vez do mundo como vontade e representação, diria esse
autor, o mundo totalizado pelo trabalho e pelo capital. Mas essa explicação
supõe, primeiro, que o capital, se desenvolvendo, venha a encontrar uma
totalidade superior, mesmo que Horkheimer não aceite o conceito marxiano de
capital social total. Ora, essa totalização mediante a coletivização dos atos
de trabalho me parece impossível depois da transformação da tecnociência em
força produtiva. Em vez de um único mercado de trabalho, existem vários deles.
Segundo, que se a práxis põe o mundo, ela encontra no trabalho sua forma
elementar. Mas, pergunto, que trabalho, sob que modo de produção, sob que forma
de interação produtiva? Quero ser claro, para mim a práxis põe o mundo assim
como pode suspender sua mundanidade. Não é isso que acontece com o consumo
capitalista? Ele assume uma posição não-tética, contraditória, joga os produtos
para o mundo das imagens, que finalmente não é mundo.
Para finalizar, uma última observação. Esse mundo do não-lugar, da imagem, é
terreno propício para o camaleão da política, que como sempre se move antes de
tudo no mundo das aparências. Não é a partir das demandas de consumo que as
políticas contemporâneas se organizam? Mas também perdendo o sentido do mundo,
de certo modo suspendendo a alteridade que sempre a nutre, fazendo de conta que
ela pode funcionar sem um controle, esperamos democrático, dos funcionamentos
dos mercados. A liberdade que os mercados demandam como pressuposto se traduz
na necessidade de seu controle para que eles mesmos voltem a funcionar criando
algum sentido para o sistema produtivo como um todo. Mas este só terá sentido
se os consumidores forem justamente aquinhoados. Se a questão da justiça já se
coloca no nível da troca das mercadorias, também nesse nível primordial, no
qual se dão os primeiros passos da reificação, já se coloca a questão da
liberdade. No jogo de linguagem em que o capital tem sentido, justiça e
liberdade são faces da mesma moeda.
[1] A primeira versão deste ensaio serviu de base para uma conferência, em maio
de 2008, para a APEC (Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros da
Catalunha).
[2] Wittgenstein, Ludwig. Philosophische Untersuchungen, 96. Schriften 1.
Frankfurt: Suhrkamp, 1996 (Bibliothek SuhrKamp).
[3] Marx, K. Theorien über den Mehrwert. Berlim: Dietz Verlag, 1962, t. 2, p.
163.
[4] Idem. Das Kapital, I, 77. Berlim: Dietz Verlag, 1964 [ O
capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, vol. 2, t. 1,
p. 71 (Os Economistas), trad. modificada] .
[5] Ibidem, K.III, 25, p. 454; IV, p. 33.
[6] Sartre, Jean-Paul. L'imaginaire, psychologie phénoménologique de
l'imagination. Paris: Gallimard, 1948, p. 234.
[7] Deleuze, G. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968, pp. 3-4.
[8] Ver Horkheimer, Max. "Teoria tradicional e teoria crítica". In: Benjamin,
Horkheimer, Adorno e Habermas. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural,
1980 [1937], p. 138 (Os Pensadores).