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BrBRHUHu0101-33002009000300010

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National varietyBr
Year2009
SourceScielo

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Consistência de Corola

Corola, de Claudia Roquette-Pinto, se abre com o seguinte texto sem título: o DIA inteiro perseguindo uma idéia: vagalumes tontos contra a teia das especulações, e nenhuma floração, nem ao menos um botão incipiente no recorte da janela empresta foco ao hipotético jardim.

Longe daqui, de mim (mais para dentro) desço no poço de silêncio que em gerúndio vara madrugadas ora branco (como lábios de espanto) ora negro (como cego, como medo atado à garganta) segura apenas por um fio, frágil e físsil, ínfimo ao infinito, mínimo onde o superlativo esbarra e é tudo de que disponho até dispensar o sonho de um chão provável até que meus pés se cravem no rosto desta última flor.1 Os versos iniciais deste poema declaram que nada a ser contemplado e representado. Nem flores, nem natureza, apenas conjeturas imagéticas em negativo, apesar de Corolaser um livro que retoma elementos tradicionais do lirismo e cultiva a exuberância de um jardim cheio de flores, folhagens, bichinhos e zumbidos. Mesmo que tenha a aparência eventual de um locus amoenus, esse jardim se anuncia desde as primeiras linhas por meio de "formas improváveis", isto é, formas negativas menos reconhecíveis, que não oferecem maior expectativa de germinar ou florir2. Embora o primeiro verso seja uma afirmação prosaica e rotineira, o que vem a seguir são complicações imaginárias do que é afirmado, interceptadas pelo ritmo quebrado e suspensivo dos versos. E no mesmo fluxo em que a paisagem se desrealiza, o sujeito declara a nulidade do próprio foco de observação num lusco-fusco progressivo. O recorte da janela, que seria um enquadramento referencial, surge esvaziado de sua função de abertura para o mundo, ou de limiar entre interior e exterior.

Contudo, sua existência é indicativa de que um observador, mesmo que precário, uma fala carente de algo maior, que se situa além, e uma situação emocional limitada (confinada?) que impede a plenitude da visão do "hipotético jardim". O verso de abertura resumiria uma tentativa de esforço intelectual, ou de exposição conceitual, sob cujo impulso o poema se encadeia.

Houve um demorado período de elucubrações ao longo das horas do dia em que a concentração física e mental não alcança uma formulação conceitual ou argumentativa satisfatória. O poema, pode-se dizer, seria o fruto decepcionante dessa concentração, ameaçada por termos negativos (nenhuma floração, nem ao menos um botão, incipiente, hipotético jardim). Isso é o que particulariza esse exercício de introspecção um tanto forçado, ou sofrido, que, mesmo assim, vem à tona por meio de processos figurativos eminentemente visuais, acentuados por um tratamento imagético tão intenso e excitado quanto os procedimentos de dissolução referencial e indeterminação sintática e semântica-dilemas sensório- perceptivos reforçados a cada linha. É uma constatação de impasse mental demonstrada porém por meio de uma figuração de movimento, tensão interior e provação sensorial. Como em muitos poemas do livro, as circunstâncias de limitação física, que acentuam a imobilização do sujeito, seja por apatia ou torpor, aflição ou paralisia, contrastam com a vertigem visual incontrolável em que ele se engolfa.

Apesar de suas ambigüidades frasais, o poema enuncia um impulso narrativo completo, quase diríamos linear, que pede paráfrase. Após o primeiro ponto, desencadeia-se um segundo movimento que explora outro ângulo de visão, agora centrado no desamparo de um euque, para replicar à dificuldade de expressão, age se dirigindo a outro lugar. Espaço e auto-reflexão são figurados como um sorvedouro em que o desejo de distância de si mesmo, ou de sua própria contemplação, se indetermina objetiva e vertiginosamente (aumenta/encolhe), uma vez que o longe é o próximo e o fora está dentro: Longe daqui, de mim (mais para dentro) desço no poço de silêncio [...] Assumido o fracasso da longa jornada de perseguição a uma idéia (poema? identidade? imagem?), chega-se a um lugar difícil de imaginar, sintaticamente fabricado, designado aliás por uma metáfora comum ("poço de silêncio"), o qual vai sendo demarcado por dêiticos que materializama indeterminação de um espaço onírico e noturno: o desejo de outro lugar se materializa na quietude de um poço como se estivéssemos no curso embrionário de uma narrativa. Esse movimento recebe um tratamento sintático tortuoso e simultaneísta, inclusive pela progressiva sobrecarga da materialidade sonora e acentual que toma a seqüência sincopada das linhas. Se o desejo de deslocar o foco para longe do lugar em que se está-ou "de mim"-, o impasse narrado nasce da figuração criada por meio de uma dubiedade sintática da mesma família da anfibolia: o movimento para mais longe no espaço e no tempo aprofunda a entrada paradoxal em si mesma (é uma mulher que fala) e no oco deste lugar3. O contexto verbal torna-se vivo e dramático, figurando então a fragilidade e a agonia de quem experimenta situações de limite, inclusive os da linguagem, pois o recolhimento no silêncio do poço é o que deflagra imagística e pitorescamente a descida. O silêncio vira o conduto de uma queda. A ambigüidade sintática-que daqui por diante será onipresente em Corola-serve para manter distância irônica e dramatizar as forças paradoxais que atuam sobre o impulso de auto-representação, revelando na descida relações perversas do sujeito consigo mesmo e seu radical desamparo.

A indeterminação da descrição é fabricada por meio de muitos elementos que se precipitam no segundo movimento, interceptando o relato da queda (ou mergulho em si mesma). Claudia Roquette-Pinto inventou um tipo diferente de colagem por meio da transcrição em itá-lico, como é o caso dos símiles parentéticos que reiteram o significado escondido de "branco" e "negro" com ironia e expressões fixas banais (lábio de espanto, cego, medo atado à garganta) à maneira de legendas de histórias em quadrinhos ou clichês para situações de violência ou tortura. A partir de Corolaela praticou esse tipo de colagem de materiais arbitrários ou enxertos tirados de outros textos, partes de frases ou expressões, destacados pelo itálico, com a intenção de comentar (ou minar) a univocidade do fluxo lírico do poema pela intromissão de outras vozes. Salvo engano, esse termo de comparação intempestivo ou gratuito funciona como uma paródia de intertexto, sobrepondo à linha do poema uma segunda superfície (uma camada textual estranha, de outro lugar e outro tempo) que deixa exposta a artificialidade da montagem. Ao fim de Margem de manobra, livro em que essa técnica se expandiu, ela acrescentou uma lista das citações dos itálicos, identificando as fontes de onde as extraiu, sem trazer porém esclarecimento algum, exceto bibliográfico. Tal procedimento pode suscitar muitas indagações sobre o sentido dessas rubricas externas, contrabandeadas ao acaso de leituras na forma de comentários em off, ou sinais de reações diretas e indevidas àquilo que acabou de ser escrito que, assim, perde a imediatez.

Isto significaria mais um atestado da impotência do eu lírico ou, ao contrário, uma prova do abuso das referências intertextuais na poesia contemporânea? De qualquer modo, tais intromissões desconfiam do virtuosismo poético e da espetacularização de imagens proliferantes, da qual a poesia de sua geração tem sido useira e vezeira e a que a própria Claudia não escapou. O uso anômalo das associações analógicas (ou da metáfora em particular) também aparece na transformação levemente grotesca de figuras gramaticais em imagem, como "[...] silêncio que em gerúndio vara madrugadas", ou o "superlativo" que amplifica a insignificância do "tudo" com que conta o sujeito do poema-pois o "e é tudo de que disponho", de tão insignificante, anula qualquer escala de tamanho.

Acrescente-se a essa função imagética atribuída a categorias gramaticais uma intenção (desajeitadamente humorística?) de duplicar a referência à escrita e à linguagem. Outro recurso de indeterminação é a exacerbação sonora-talvez o mais importante. Ela pode ocorrer na justeza uníssona da rima "jardim"/"de mim" que enlaça os dois movimentos do poema e sonoriza a intersecção dos espaços exterior e interior no intuito de desestabilizar a circunscrição clara do dentro e do fora, do longe e do perto; ou pode explodir numa sucessão de ressonâncias sonoras, um explícito reforço de tonicidade, como nos versos "segura apenas por um fio, frágil e físsil, /ínfimo ao infinito, /mínimo [...]". Não custa lembrar que o rigor de construção sonorista não se apóia no desenho sonoro das linhas (ou versos) à maneira da figuratividade da poesia concreta, ou seja, não em Corolaintenção icônica ou isomórfica - as paronomásias não fazem uma mímica sonora a partir do significante, pois sua materialidade exorbita, sem imitar na superfície a essência do significado. Por vários momentos, tal sobreexcitação dos elementos materiais da linguagem pauta o campo semântico do poema e interfere até no andamento narrativo dos versos, deixando a coerência verbal em aberto, ao acaso da escrita, exposta ao descontrole da expressão e ao não-fechamento do todo, sem qualquer apreço pela exibição geométrica ou funcional da construção4.

Na vertigem da descida, neste segundo movimento, a mulher-que-fala ainda parece enredada na teia de especulações e, por isso, talvez se veja como uma aranha presa a um fio fraco, pouco seguro, sob ameaça de rompimento5. É, no entanto, com esse fio que pretende concluir o trajeto vertical. O alvo da descida é dúbio: "até dispensar o sonho de um chão provável" significa a hipótese de se chegar ao chão que se espera, e é quase certo, comprovando os indícios que se tinha, ou então, desistir de vez do desejo ou da possibilidade de tocar o fundo. Todavia boas indicações de que seus pés tocam violentamente o fundo, ou melhor, batem numa superfície: a surpresa é que no choque se atinge a única florescência do jardim. Uma flor que é dita a última porque é a que restou, mas que tem rosto como uma pessoa (como as rosas de e. e. cummings tinham mãos no céu que ele imaginou para a sua mãe). Mais do que tocar, seus pés penetram, perfuram como pregos essa superfície, tão delicada como se de flor. O verso "no rosto desta última flor. " pode também ser tratado como linha de chegada em que o sujeito da descida fala de dentro destaúltima flor, em fusão com ela, num encontro brutal e amoroso.

Como se , quase todos os elementos do itinerário são incertos, de uma irrealidade propriamente fantasmagórica, acentuada pela obscura ambigüidade das construções verbais e pela descrição apoiada no enredamento sonoro e sintático.

Claudia carrega no jogo de dissoluções do que é objetivo e do que é subjetivo, do que é concreto e do que é abstração, do que é conceitual e do que é sensorial, deixando nítida uma anedota ou pequeno relato6. Ocorre que as referências mais explícitas logo se transformam em imagens, ou então, como em "poço de silêncio", é a imagem que, ao contrário, oferece maior definição ou (se for possível) concretude, talvez por um movimento fóbico ou paranóico da escrita insegura e carente. As referências do poema não são efetivas ou continuamente firmes-a sintaxe as torna equívocas, interferindo igualmente no sentido da frase e no teor da imagem. Pode-se dizer mesmo que a sua descrição a cada fim de verso desencadeia uma onda de metamorfoses mínimas que asseguram o ritmo da vertigem. Após o fracasso do primeiro movimento, o sujeito empreende "mais para dentro" um mergulho em si mesmo, numa espécie de reação a seu próprio fracasso. A "última flor", trunfo dessa procura, é figurada por um ato de violência-a voz que fala penetra este outro ser e é penetrada por ele, quando seu corpo desaba sobre a flor. A imagem mais íntima recolhida da introspecção é uma figuração de violência no centro de um encontro (ou seria para a poeta o poema que afinal escreveu?). O que concluir de tantas equivocidades verbais e imagéticas desta chegada abrupta que tanto pode ser o relato de uma salvação quanto de uma destruição? Páginas adiante, estamos à beira de outra "última flor", a qual não nasce de uma situação de queda mas de uma leitura7: Imóvel, vertiginosa, de fora a dentro me inclino (os clarões se aproximam) rede em riste sobre o rosto daquela flor -a única que existe.8 Embora a passagem pertença a um poema de atmosfera lírica convencional, os sentimentos de uma tarde passada na natureza se encaminham para a vertigem do encontro de outra flor, desta feita sem o périplo da procura. O poema retifica a cadeia imagética de "o dia inteiro perseguindo..." e a retoma no cenário ("paisagem, organizada e fria") mais definido de um sítio (ou grande jardim), sob a conjunção cósmica de um céu "entre a chuva e a indiferença" e o sol ("pai do meu desconforto") encoberto. A flor aparentemente concreta - e única - está também como aparição de uma imagem anterior, tirada de outro lugar. Que pode ser referência a "o dia inteiro perseguindo..." tanto quanto à flor amarela em que pousou a borboleta de um poema de Wordsworth, citada poucas linhas acima: "flagro o que aflora/(borboleta de Wordsworth, /mas bem mais que meia hora).

"9. No primeiro caso estava-se numa relação de íntima proximidade com o "rosto destaúltima flor", alcançada pela auto-procura em queda do sujeito; no segundo, "sobre o rosto daquelaflor/ a única que existe. ", a distância dêitica índica que se está mencionando uma flor diurna e livresca - "that yellow flower".

Esta, sobre a qual a figura se inclina, entre clarões (relâmpagos? focos de luz? raios de sol?) surge na sua magnífica unicidade à maneira de uma iluminação, sem espelhar todavia o sujeito que a contempla.

Voltando a "o dia inteiro...": sua "última flor" serve de arrimo para sustar a queda de quem por um triz vai ao fundo do poço, ao mesmo tempo que é objeto de um gesto de agressão, isto é, ela, flor, é esmagada. A fantasia de queda, feita de encadeamentos e metamorfoses, de qualquer modo finda com o encontro de algo concreto: o referente de que se fala, objeto da procura vertical. Fica evidente a sugestão de que o sujeito se como flor, talvez numa paródia da representação da mulher como ser inefável e delicado, de beleza efêmera, mas também é um episódio de autopunição do corpo que se sacrifica e sacrifica o outro10. Este tem rosto como algo humano e cravos como o Crucificado, o que propõe alguma reciprocidade de compaixão e afeto, como se afinal alguém reagisse à voz em queda. O que não se sabe é se é uma chegada a si mesma (com ressonâncias talvez místicas ou psicopatológicas) ou a descoberta objetiva do outro, como ponto de convergência da queda - fora do controle da voz que fala.

Mas a flor é por sua vez um semblante da natureza que espelha aquele que fala e lhe devolve, no choque violento, a própria imagem - a "última flor" é uma auto- referência e metáfora do poema que, numa escrita sem garantias, insiste na busca de uma expressão possível11.

Numa passagem justamente famosa pela exatidão literária e beleza da síntese, Gilda de Mello e Souza relaciona certa miopia da visão feminina à posição social da mulher, corrente até certa altura do século XX: "Não será difícil apontar na literatura feminina a vocação da minúcia, o apego ao detalhe sensível na transcrição do real, características que, segundo Simone de Beauvoir, derivam da posição social da mulher. Ligada aos objetos e deles dependendo, presa ao tempo, em cujo ritmo se sabe fisiologicamente inscrita, a mulher desenvolve um temperamento concreto e terreno, movendo-se como coisa num universo de coisas, como fração de tempo num universo temporal. A sua é uma vida refletida, sem valores, sem iniciativa, sem acontecimentos de relevo, e os episódios insignificantes que a compõem, de certo modo ganham sentido no passado, quando a memória, selecionando o que o presente agrupou sem escolha, fixa dois ou três momentos que se destacam em primeiro plano. Assim, o universo feminino é um universo de lembrança ou de espera, tudo vivendo, não de um sentido imanente mas de um valor atribuído. E como não lhe permitem a paisagem que se desdobra para da janela aberta, a mulher procura sentido no espaço confinado em que a vida se encerra:o quarto com os objetos, o jardim com as flores, o passeio curto que se até o rio ou a cerca. A visão que constrói é por isso uma visão de míope, e no terreno que o olhar baixo abrange, as coisas muito próximas adquirem uma luminosa nitidez de contornos"12. A autora refere- se ao confinamento da experiência social feminina em outros tempos, porque no nosso, como sabemos, a mulher conquistou maior autonomia em relação à autoridade masculina e, livre do confinamento, pôde se realizar dentro das possibilidades (limitadas) oferecidas pelo mercado de trabalho. De toda maneira, a autora de O tupi e o alaúdeestá descrevendo as deformações de um mundinho compensatório gerado pela segregação e pela subalternidade, onde a mulher ainda assim pode se dedicar a seus sentimentos e a seus interesses. São condicionamentos de largo al-cance que, talvez modificados, sobreviveram às conquistas sociais do assalariamento e aos movimentos de emancipação e defesa dos seus direitos. A miopia feminina seria uma construção histórico-cultural que permite à mulher defender sua própria experiência e afirmar as peculiaridades das limitações sofridas na reclusão. A visão míope se transporia para a linguagem artística e literária e acabaria mesmo plasmando sua capacidade de organizar esteticamente o testemunho nascido de poucos e próximos elementos em espaços caseiros e fechados, sem a desenvoltura do conhecimento masculino da vida exterior. Na descrição de Gilda de Mello e Souza é precisamente na estreiteza da visão feminina, correlata ao mundo de relações diretas e pessoais do patriarcalismo e do casamento burguês, que se esboça uma resposta da mulher à consciência reificada no tempo e no espaço, ainda que ela se movimente "como coisa no universo das coisas". A miopia se alça a veículo de expressão e extravasamento para essa consciência, sem deixar de ser uma efetiva e coagida possibilidade de liberdade existencial (defendida aqui talvez na contracorrente das teses de Simone de Beauvoir em O segundo sexo, que privilegiava a libertação revolucionária).

Aplicar a miopia do olhar feminino à vida contemporânea como uma técnica artística, ainda por cima desestabilizada pela textualidade auto-referida, tem muitas implicações, e inegável ousadia: o jardim de Corolafaz essa transposição. Temos de entender a especificidade da posição de uma poeta como Claudia Roquette-Pinto, que, escrevendo depois do feminismo, num momento de falência do impulso utópico e descrença crônica nas possibilidades de superação do sistema produtivo em que vivemos, incorpora a miopia do olhar para examinar a estreiteza e a opacidade da vida contemporânea-que não são as mesmas a que se referia Gilda de Mello e Souza, marcadas hoje pela generalização da forma- mercadoria com empobrecimento da experiência, abstração do trabalho e formas cada vez mais fictícias de sociabilidade. Se a visão míope retoma a experiência histórica da vida feminina, atualizada e modificada pela indeterminação da escrita, torna-se por sua vez um instrumento para analisar os vários tipos de confinamento contemporâneo, inclusive os que envolvem situações de insegurança e medo. Curiosamente, a imaginação ligada à experiência de ser coisa entre coisas, com suas implicações de manipulação, violência, sujeição, tendo sido matéria privilegiada para a subjetividade feminina, pode também se alçar a imaginação de todos-homens e mulheres que enfrentam a vida na sociedade administrada, colonizada pela mercadoria e pela mídia. Mais do que marca de gênero, a diminuição do campo de visão corresponderia ao estreitamento contemporâneo da experiência, que tende a privilegiar o apego aos detalhes próximos (contornos nítidos de coisas miúdas sem plano de conjunto), o mergulho no presente como uma plenitude sem escape ou a sensação inelutável de repetição sem mudança. A alienação perceptiva é uma experiência prática à qual os poetas presentemente se agarram para falar de seus próprios sentimentos, de suas vidas, internalizando uma visualidade em que o objeto visto sobrepuja a visão do sujeito, cuja potência de revelação diminui e sai rebaixada. Se não for uma ilação exorbitante, a poesia brasileira contemporânea sofre toda ela, direta ou indiretamente, da mesma visualidade míope. Mas como tirarmos proveito do excurso de Gilda de Mello e Souza para descrever as novas formas de confinamento, limitação da vida, grandeza alucinante do que está perto, ou a espera de um acontecimento, em Corola? Voltar ao jardim, a um espaço ornamental de quietude, referido ao âmbito da mais convencional feminilidade lírica, pode à primeira vista denotar, da parte de autora descomprometida com qualquer tradicionalismo ou sentimentalismo, um impulso paródico ou mesmo escárnio. A volta em Corolaa esse tópico se não chega a tanto não demonstra todavia complacência com uma sensibilidade delicada e sensual, entretecendo intimismos a pretexto de uma erotização expansiva.

Ademais, o cenário intencionalmente kitschdo jardim e dessas reminiscências líricas, cheio de implicações grotescas e algo perversas, registra as insatisfações da autora com a tradicional mitologia da poesia feminina e também com as críticas do feminismo a essa mitologia de símbolos atemporais. Em seus poemas se desconhece, por exemplo, o tom confessional veemente da mulher liberada e a imaginação heróica, tão característica da fase militante do feminismo, da mulher como sujeito ativo e manipulador que investe contra a linguagem do opressor. Claudia Roquette-Pinto, ao contrário, guarda vários estereótipos da feminilidade, incluída a "corola" do título, tais como uma demasia de referências a flores, aos espinhos do sofrimento e da dor, ao perfume das rosas, à camurça das pétalas, aos tons vermelhos da rosa e do vestido, ou ao quarto de veludo. São traços ainda daquela visualidade míope que, segundo Gilda de Mello e Souza, faz vibrar os detalhes miúdos das situações vividas e transcreve a experiência concreta dos objetos e do tempo num registro exageradamente sensível, mas sem que nada disso se converta, neste caso, em trunfo de uma identidade conquistada (ou de uma subjetividade gloriosa). Tanto que passagens em Corola em que se expõe o interior de uma casa burguesa, com seu padrão suntuário de classe, oprimindo e asfixiando o cotidiano "desta flor desperdiçada", dia a dia despetalada, como por exemplo em "dali e seu relógio que escorria". É " - por onde escapar?" a pergunta que o poema formula, para se desdobrar em outras reações e cadeias associativas que mais acentuam o fechamento do horizonte do que anunciam uma mínima possibilidade de saída (C71). Ou então, inúmeras tentativas de meditação sobre o universo feminino ou doméstico (um pouco à maneira de Sylvia Plath), com referências explícitas a situações corriqueiras, aos pertences do lar (prataria, bordados, persianas, tapete, alfinetes, caixas, impressora), a espaços internos da casa (com destaque para o "quarto de veludo" com o "espelho mudo"-definido como o espaço em que a poesia não penetra) e à rotina da vida em família (é o "aquário de amabilidade" do poema pouco mencionado?), às vezes misturando afeto, asfixia e sarcasmo13. Não faltam elementos realistas e prosaicos sobre uma vida no interior de uma casa, com presença intermitente de família, filhos, um casal, problemas, doença, sonhos, cujas referências no entanto se dissolvem no fluxo intercorrente de uma escrita destrutiva. Nenhuma referência porém tem força suficiente para constituir um imaginário psicológico ou romanesco - aliás são razoavelmente banais, muitas delas permanecendo no paradigma da insatisfação feminina (burguesa?), da incompreensão amorosa, do cansaço das gestualidades rituais como "buquê de promessas", "choro no travesseiro" ou "delícia da derrota".

A mulher-que-fala - a figura mais presente nos poemas -, que aparece como um simulacro de voz lírica, é ainda menos configurada. Nunca a voz implica supremacia do eu e de seu depoimento biográfico ou confessional; jamais oferece os álibis do que é vivido e as ilusões da presença, embora possamos sugerir o quanto seu exercício de meditação se alimenta do jogo com espaço e tempo e da confusão entre referências e figuras de linguagem. Dela, sabemos que vive em permanente situação de não-liberdade, vulnerável ao que , toca e escuta, inclusive a seus próprios pensamentos e desejos, empurrada por medos e ansiedades a processos constantes de descida, afundamento e fracasso. Vive num instante sem força, entre apatia e mudez, num estado cuja síntese possível bem poderia ser:"Vertigem ciclotímica de anular-se" ("o princípio da poesia", C 53). Mesmo identificável como mulher no jardim e no desamparo de pensamentos e palavras, esta voz não permite uma projeção subjetiva consistente, a despeito de possuir, é inegável, virtualidade lírica. O conteúdo dessa voz é emoção associada a situações que desafiam seu núcleo interior, com a característica que possui de se deixar levar pela imaginação, esboçar o processo do pensamento e enunciá-lo em meio a hesitações. É um foco responsável pelas passagens de sofrimento e angústia em que continuamente se enreda, modulando o imaginário de suas provações em meio à vertigem e à dissolução-mas sem nenhum poder efetivo, porque está permanentemente em estado de alienação perceptiva. Parece tão incerta das condições em que é emitida, em situações que não domina, que podemos caracterizá-la como um método de busca; a emoção que se testa não é liberatória nem exultante, tampouco sua ostentação chega a ser um triunfo pessoal. Corolaacompanha o oscilograma dessa voz em muitas situações existenciais ou fantasias verbais de quem quer se expressar, deseja contato, sofre de ansiedade referencial, mas teme sobretudo a iminência da própria desaparição. Talvez coubesse à perfeição para defini-la o verso de um poema bastante incompreensível: "Refém do instante em que escrevo, " ("sob o fermento do sol, as coisas", C26). Pois no espaço interno os dias são iguais e repetidos - gestos ou ações que mal se esboçam fazem eco à atmosfera pesada e insatisfatória que cerca o sujeito residualmente lírico. Outras vezes, o curso dos dias se confunde com uma relação amorosa que fracassa, tal qual as idéias que não vêm e a insatisfação com a escrita, levando na derrocada o conjunto completo de símbolos da poeta: Afrouxam-se os meus braços e a rapina do coração se afrouxa frente à boca imensamente muda na tarde igual a todas as outras.

Igual. Sem um mínimo enlace entre rosa e rumo no rio onde rolam as coisas fáceis.14 A despeito da impregnação de elementos tradicionais ou estereotipados da lírica, em seus cenários propiciadores, e no recesso de um interior, parece-nos no entanto que em Corolaestamos diante de uma estratégia deliberada e verbalmente artificial de lirismo simulado.

Especifiquemos os termos dessa simulação que ocorre no espaço de um jardim referencialmente indeterminado - verdadeiro campo de provas de um sujeito à procura de expressão, a qual é vezes sem conta desacreditada e traída. O sujeito, em toda a sua precariedade, que habita esses poemas, insiste em se expressar, mas a sua contemplação foge, sempre às vésperas de um abismo interior ou exterior, que em geral corresponde ao corte do verso. Rondando o jardim, um quadro mais amplo que não se conhece bem, e os poemas de Corolasão um tanto lacunares nessa matéria. Fora do alcance do sujeito existe um limiar qualquer para o exterior, cujos ruídos lhe chegam e cujo movimento imagina, seja de dentro da casa seja no jardim ("sirenes cantam fora"). Como na lírica tradicional, a natureza está sempre a se imiscuir, embora possa ser tanto reverenciada (com um hino como "ÁRVORE de fogo, chama negra", C29), quanto comparecer como ameaça torturante, mesmo que a sua aparência seja a de uma flora e fauna de cartooncom cigarras, grilos, sapos-laboriosos e ensurdecedores. A cena, a paisagem ("um deserto de cintilações espontâneas"15) ou o hipotético jardim têm uma existência incerta ou mutável: a natureza ainda pode ser o concreto na iminência de tantas instabilidades ou aflições do sujeito, podendo até se insurgir como símbolo ou arquétipo neste tempo de completa falência referencial. Do seu lado originam-se impressões visuais e sonoras fortíssimas em sua instantaneidade, imagens em cadeia, conceitualizações interrompidas, descrições fulminantes - a natureza é geratriz permanente de dilemas sensório-perceptivos, que são os principais acontecimentos desse livro. Assim, os poemas explodem, nervosos, em reações de espanto, medo, mal-estar, que invadem a cena inteira do jardim - extrapolando o campo visual, limitado, de quem o descreve. A miopia maximiza o que está esvaziado de potência digamos reveladora, ao mesmo tempo que se submete ao choque de processos físicos, emocionais e intelectuais sem controle. Os sentidos perderam sua autonomia porque aqui as qualidades sensoriais dos eventos e das relações entre as coisas submetem e ferem a visão, desafiando o pensamento e a palavra. Num poemeto bastante lírico, a visão de um copo-de- leite do canteiro destrói e consome a paisagem inteira, pois o ar atemoriza com sua garra e a luz está no encalço de tudo o que está vivo e perece16. O foco de quem olha não domina ao certo o que é visto:as raras referências, a despeito de possuírem concretude imagética ou metafórica, dissolvem-se num processo de desestabilizações progressivas, de que a indeterminação sintática e a imprecisão anfibólica são o motor17. Salvo engano, é o que rouba a possibilidade desse sujeito, sempre referido por suas fraquezas, impedimentos e derrotas, se constituir plenamente. A figuração do jardim está sempre assombrada pela consciência negativa de um empreendimento falhado ("umjardimquefoiperdido", "rosasquedesistiram", "pétalasde nula pertinência", "pólen do nada", "botão de fracasso"). A despeito da simulação de lirismo, tudo é negação e nulidade:o sujeito sequer vem à tona, o pensamento é branco ou perigoso, a mente é superfície nula, o olho é cego, surdo e mudo, as flores estúpidas, as coisas despovoadas, as idéias ruins e desmoronam.

Pois Corolaé uma suíte de quedas, uma cenografia ininterrupta de desmoronamentos que ocorrem dentro e fora do eu, em que até as palavras estão "caindo entre camélias no jardim que foi perdido"18. São movimentos cansativos e repetitivos que instauram um sensualismo sadomasoquista, cujas alusões à sexualidade reprimida se mesclam à indiferença, monotonia e passividade, podendo desencadear estados de crispação, soluços "em branco" e gritos contidos. Num poema mais antigo de Saxífraga, Claudia Roquette-Pinto antecipava desajeitadamente elementos dessa poética da queda que seriam desdobrados por Corola - a diferença está em que ela ainda precisava explicitar que a queda cenográfica era um momento de autoconsciência poética (cabralina?): - cuida apenas de não abolir a queda - o que resta esta queda construída a isto diga: poema19 Ao apresentar o programa da queda nesse poema, "ao leitor, em visita", a construção arrevesada convoca o leitor a pensar em vertical e experimentar o efeito da poesia como surfe, assalto, sono, amor físico ou colapso (cardápio de opções acessíveis a um poeta contemporâneo), os quais, em toda a gama de implicações, precisam comparecer no dispositivo da coisa escrita. Se fosse possível esboçar uma genealogia da forma-queda na poesia de Claudia Roquette- Pinto, teríamos de sugerir que ela é uma verdadeira fixação sua desde Os dias gagos, em que a fisicalidade do corpo que cai valia como imagem e não como elemento estruturante:"e caímos no silêncio feito um tombo"20. Passa a queda a ser imitada pelo raso isomorfismo das tmeses, que sobejam em Saxífraga, movimentando o corte do verso, impulsionando uma sintaxe ansiosa, escorregadia, sempre aquém do sentido que pretende formular, a despeito da obviedade do impulso ideográfico21. Contudo, pouco a pouco, a queda lhe serve para transcrever a trajetória do olhar em direção a seu objeto - a ação de olhar não atinge o alvo porque, antes, falha, e tomba. Logo esse movimento também imita o gesto de quem se olha no espelho e quer se fundir com a própria imagem, que nunca alcança. O próprio ato de contemplar indica queda, inclusive diante de uma tela excessivamente próxima, cujos detalhes atraem e forçam o mergulho: "quando foi que eu saí daquele rosto/e do olhar redondo: olho-poço/em que me debruço (tombo) agora?"22. A queda torna-se ilustração do ato de pensar sobretudo pela violência da descida, ou flutuação, em desafio à gravidade e ao corpo, assim como o foco de atenção do desejo se torna outro conduto de queda, que transpõe com rapidez o jogo amoroso em dilemas sensório-perceptivos. De um homem, por exemplo, se diz que é uma "noite vertical"23 o que pode anunciar a vertigem erótica de um cair. Claudia transformará o dispositivo da queda num campo de batalha de olhares, desejos, intenções, excitações, decepções, recalques, que se condensam em formas estáveis, quase paradas, no entanto repentinamente levadas à vertigem. Corolafoi o livro em que ela realizou com maestria destrutiva essa construção-em-queda (que prossegue na primeira seção, "Margem de manobra", do livro de igual título, publicado em seguida)24. Cair também condensa a energia e a aceleração de uma relação com o espaço que se torna tempo, ressaltando o vazio, a passividade de uma vida manipulada, a pressão de acontecimentos que estão além da janela e sobre os quais não se tem controle nem domínio. Portanto esta é, no nosso modo de ver, uma figura da alienação contemporânea que funde temporalidades da experiência interior e exterior, concreto e abstrato, fisicalidade e conceito, sensorialidade e pensamento, paralisia e movimento, destruição e salvação.

Por que o refúgio no jardim, como uma estação de isolamento? Ou a temporada no lugar ameno serve antes para desencadear todo tipo de fantasia de autodestruição ou sensações de desamparo? O jardim não está fora do mundo, e nele, seja pela imaginação, seja pelas palavras, correm-se todos os riscos25.

Corola, como vimos, recalca a experiência urbana, que quase não aparece nas suas páginas, embora ela seja constitutiva do ensimesmamento simulado cujo voltar-se para dentro é uma paródia de subjetivismo, tantos são os constrangimentos externos que motivaram a solidão. Mas é em isolamento que a aceleração psíquica adquire a envergadura assustadora e imagética que conhecemos, o que assegura de certa maneira sua universalização. As operações verbais ressaltam a absoluta normalidade da vida protegida, em estado de guerra interior mesmo fora do espaço conturbado da cidade. Os dilemas sensório- perceptivos asseguram a fantasmagoria do mundo por meio de um particular regime de representação que revela a aceleração da pressão das coisas sobre o sujeito, cuja passividade aumenta diante da espetacularização de pequenos detalhes e ocorrências imperceptíveis. A voz-que-fala em Corolasugere mesmo que a penitência neste espaço fechado faz proliferarem o medo e o desespero. Por exemplo, a certa altura, concebendo-se como uma Ariadne no labirinto amoroso (mas que desconhece quem segura na outra ponta o seu fio), ela diz: Dos pés na grama me ergue um calafrio, e tudo é muro, palavra que não acende neste anelo em que me enredo.26 Sensações físicas de pés nus na grama ainda são possíveis na clausura, embora o que é natural esteja tingido pelo arrepio do medo que é o que lhe vida e existência, associando-se por isso à palavra que falha e à confusão do próprio desejo (ou da própria respiração) que se enovela. O mundo representado constitui um autêntico dilema sensório-perceptivo, como aqui o sensualismo físico (pés na grama) se confunde com sentimentos mais precisos (tudo é muro) para atestar pela fantasmagoria visual que autoconsciência e insuficiência desta autoconsciência ("palavra que não acende/neste anelo em que me enredo. ") estão juntas na pulsação de uma respiração curta (ou de um desejo que se apaga). A fantasia verbal da escrita, que lhe movimento e visualidade, aparentemente liberatória e evasiva, acaba enredando seus dados elocutórios e referenciais, como no caso dessa sensação de emparedamento que, ao erguer uma barreira metafórica ("e tudo é muro, "), empareda também como muro concreto, assim por diante. Em suma, os acontecimentos são escópicos, feitos de surpresa e nonsense, em ritmos abruptos quase sempre sem explicação e intermitentes, o que não permite ao sujeito uma consciência estável do que lhe ocorre.

Mesmo assim, em sua labilidade sensorial e perceptual, esses dilemas valem por um simulacro de concretude: são a única realidade palpável no jardim, tal qual a "última flor". Por isso, o corpo que, por assim dizer, é a bússola impreterível nessa instabilidade geral e sintática, parece adquirir concretude quando vivencia a perda da própria referência, ou então, enquanto está sofrendo ameaça violenta de desaparecer por morte, vida ou pelo encontro com outro corpo (três alternativas lançadas na agonia de outro dilema sensório- perceptivo em "suspenso na rede do sono na tarde indecisa"). A miséria psíquica da vida reduzida à passividade e à inércia é formulada com beleza nesses versos que expõem a técnica figurativa, ou a disciplina mimética, da visualidade de Corola: o corpo em seu torpor não acredita sequer na hipótese de um corpo.27 A voz filia-se a um corpo, mas a corporeidade - até ela - é uma conjetura imaginária do próprio corpo ou uma possibilidade escópica em que ele, destituído de liberdade e autonomia como em regime prisional, não confia nas suas sensações: até ele, o corpo, é um dilema. Torpor é tudo o que, cansado, o corpo colhe como agente e vítima dessas aventuras no "poço de silêncio", cujos contatos para conhecer fazem sofrer, sem saber o que sofre, mas sempre impelido a sofrer mais para chegar a ser. Conhecer é sempre uma provação que ameaça pelos sentidos o sujeito, impondo a grandeza do que é percebido, ou sentido, como algo (ou queda) que fere e magoa, mas que pode desatar o pensamento e a palavra, embora também possa anular o sujeito. O poema é portanto em maior ou menor intensidade uma paráfrase do trauma dessa completa vulnerabilidade, dramatizada pela narrativa dos dilemas sensório-perceptivos. É por isso que o corpo em repouso, numa passagem da vigília para o sono - nesse poema que é o segundo do livro -, tem a sua existência ferreteada pela anulação. Talvez não seja correto designar esse processo como desrealização, pois a violência dos sentidos, o processo intelectual e narrativo implicado, tudo isso colabora para que o corpo não seja de todo abolido e subsista como referência ansiosamente buscada - rarefeita e incerta. Afinal, os dilemas sensório- perceptivos impõem um regime de representação em que as referências continuam valendo, inclusive possuindo capacidade de criar nexos narrativos, a despeito da trama de rarefação e incerteza. No caso do dilema do corpo, ou do corpo como dilema visual, a imagem hipotética que o anula está por sua vez afirmando ainda que ele é ponderável como fonte (ou origem) de sensações e a sua oscilação referencial provavelmente é devida a pavor, cansaço, espoliação, degradação ou autocompreensão do que se passa com a própria impotência. Se é ele, corpo, que "não acredita/sequer", é evidente que sua desrealização referencial não foi completa, e a corporeidade que lhe resta desencadeia um processo inverso de autoconsciência, que combate por sua vez a própria irrealidade. Tal como o corpo, a flor ou a queda são fantasias referenciais obsessivas que testam limiares de suportabilidade em situações de violência, entorpecimento, asfixia, perda dos sentidos, somatizados em imagens de reações corpóreas. Assim, o corpo quebra o feitiço da virtualidade dessas sucessivas figuras sonoras e imagéticas que parecem nunca tocar nada de real ou concreto; na imaginação de Corolao corpo subsiste, tem concreção, em meio aos espasmos desta textualidade em abismo, pois a abstração crescente a que ele está submetido o maltrata e é fonte de sofrimento. Ao contrário da metapoesia praticada de uns anos para , que explora o espetáculo da perda de referência e se compraz com seus efeitos esteticistas, a ansiedade referencial em Coroladramatiza, sob o signo de insatisfação e dor, a angústia psicológica e física da perda das relações com o mundo, em lugar de simplesmente se regozijar com o fato de que o aparelho da representação está abalado. Aqui a perda referencial ocorre num quadro inomeado de regressão e violência, de miséria psíquica, a partir da experiência de um corpo que não quer morrer, cujos dilemas sensório-perceptivos possuem teor de realidade para além da indeterminação textual com que, de imediato, se expõem ao leitor. Claudia Roquette-Pinto estuda o custo dessa perda e descreve, do ângulo de um sujeito sob ameaça, a aceleração da ansiedade referencial como intensificação da consciência e/ou perda desta.

Vejamos dois poemas que são criptogramas ou adivinhas que exploram situações de terror e a intimidade recorrente com elas: DENTRO do pescoço o poço, vazio, caindo intempestivamente até que o fio da expiração se estique o ar arrebente o dique do que insiste em ser oco, ainda um pouco mais, reluta frente à onda absoluta de agulhas de luz que infesta como insetos a uma fruta, o peito - como o fogo a uma floresta.28 NÃO a garganta - o grito, cortado canta.

Mais do que a boca, a voz, rouca, amordaça.

O corpo, presença que se perdeu como uma roupa rasga.

Nudez fechando pétala por pétala forrada do espinho que não conhece como seu.29 A fantasmagoria da queda, que dilacera o corpo (sem espetáculo de abjeção), implica mudança de respiração, a qual indicia destruição e canto (ou seja, o próprio poema). Os dilemas sensório-perceptivos nos dois casos mostram como, resguardados pelo recesso do jardim, a dor, o pânico e os impulsos de autodestruição se instauram à guisa de uma tortura metódica e rotineira. É nesse quadro de miséria psíquica, de vida recolhida num espaço social estreito, à distância da cidade, com exclusão do outro, que se desencadeiam sensações de insegurança, pânico e queda, em imagens sucessivas e auto-anuladoras, que conhecemos de sobra. A guerra interior alastra-se, levando consigo, na vertical, os símbolos criados e destruídos com estridência ao longo do livro.

Em "DENTRO do pescoço" algo desaba interiormente sob o frêmito de um vagalhão de luz que fere, comparável à queimada de uma floresta ou à infestação de uma fruta por insetos (os elementos da natureza, cuja aparente objetividade anunciaria alguma generalização, são porém metafóricos termos de comparação); o corpo que cai é todavia um corpo vazio, impulsionado por sua inexistência. Do interior ao oco, do ar ao ser, da expiração à onda de luz - a respiração empurra de dentro para fora, assim como a pressão do luzeiro exterior invade com estardalhaço o peito. Num período único mas recortado e quebradiço, o poema é justamente a luta entre ar e luz, até que esta vença, com sua infestação de varejeira (êxtase? morte? iluminação?), a fragilidade de um ser vazio e sem fôlego - temeroso diante de tudo. A aparente figuração da morte prolonga a verticalidade de algo que se desmancha e parece corresponder ritualmente à vida vazia que somatiza um grande medo, ou que engole em seco o terror experimentado. Não especificação do que sufoca a voz, o corpo e a escrita, mas um cair inexorável acompanhado pelo pulso ofegante. Os cortes de fim de verso e as interrupções sintáticas acentuam a incerteza dessa pulsação que, em parte, é de morte, em parte, de vida que recomeça30. A voz-que-fala vem de um corpo que não quer morrer e tenta se recompor, reencontrando a si mesmo e um fiapo qualquer de expressão e ar. Este ritmo, contrariamente ao encadeamento sintático que obriga o sentido a se bifurcar ou a se desfazer a cada retomada, representa aqui um impulso primário de ansiedade referencial - vai ao encontro da terra e da natureza, embora o que tenha feição concreta, como insetos, frutas, fogo e floresta, esteja metaforicamente à véspera de infestação ou apodrecimento.

Em "NÃO a garganta" o motivo da flor retorna, agora como a descoberta de uma flor íntima que disfarça ou amortece a tortura do próprio espinho. Corpo e flor parecem inextricáveis: a flor assume a função de invólucro do corpo, como se para protegê-lo e acolchoar a queda, mas seu fundo é falso e fustiga a ferida com o espinho oculto - real e metafórico. Embora nessa partitura de imagens tudo seja escorregadio e tenha um quê de nonsense: o grito está cortado, não a garganta que o solta; a voz amordaça a boca; o corpo rasga como uma roupa velha; a nudez o cobre e protege; pétalas são subterfúgio do espinho. Na equação desse poema quase mudo, a proteção da flor é a dor, a exposição da nudez oclui, o mais protegido e íntimo é desconhecido. A nudez pode conotar morte, anunciada por grito e voz que nem sequer são emitidos, porque o corpo "se perdeu", dando em pedaços tudo a ver numa espécie de mímica ou gesticulacão gráfica, que é o texto que lemos31. A figura da flor surge convertida numa espécie de amuleto quecontém o grito, forrado de espinho, resguardado por pétalas, com a consciência de que o grito canta e a fala amordaça (esta hierarquia de impedimentos mereceria interpretação). Partes do corpo estão mutiladas e desmembradas, enquanto o canto, que poderia anunciar alívio para tal sofrimento, constata que o corpo está reduzido à condição vegetalde ignorância do próprio espinho. Fragmentos se reúnem nesse amuleto poético: uma corola que, fechada por dentro, defende e protege, incorporando os malefícios se for junto ao corpo. Aqui a corola é sinal de fechamento e exposição da própria dor, imagem proibida e objeto de defesa, num estado de regressão em que o próprio corpo, ao mesmo tempo que a reproduz continuamente, confia que ele, ele, é o que, mesmo mutilado, pode proteger. Tais elementos paradoxais estão deslocados de sua função prosaica e corriqueira, mas, ainda assim, é claro o significado de dor, medo e sofrimento, para aventar o desejo de salvação na destruição. Poderíamos acrescentar que na repetição compulsiva de um acting- outnão sabemos se quem fala é vítima ou solidário com a vítima, se o simulacro de voz enuncia perdas próprias ou-também é possível-se o sentimento pela perda do outro encobre o próprio trauma. O grito associado ao canto (e ao poema) reintroduz a presença da metapoesia em meio às traumáticas "formas improváveis" desse jardim32. Constatamos, e não foram poucas as vezes, que Corolaestá tão lotado de referências metalingüísticas quanto de elementos da natureza, porém tal auto-reflexividade é impotente para esclarecer ou especificar a rotina carcerária dos sentimentos e da imaginação da voz-que-fala. A metapoesia não oferece mais qualquer suplemento crítico ao poeta e ao poema, que a funde à sua figuração de tortura. Nesse livro, a peculiaridade da metalinguagem é seu estatuto eminentemente narrativo: quase sempre as referências ao poema, à escrita ou à linguagem contam estórias, estão incorporadas à trama de sufocação e queda. Os dois textos são reiterações de imagens de um sofrimento intérmino, de um presente de insatisfação, ou são exercícios de imaginação ritualizada da própria morte, envoltas por culpa, compaixão, sadomasoquismo e autopunição - tudo isso dentro da mesma trajetória vertical de revelação e êxtase.

Corolaencena o fracasso dessa vida rotineiramente protegida, emaranhada nos círculos devastadores de autotortura, compulsão ao pânico e respiração difícil e curta, que especificam o sentimento de vulnerabilidade total numa sociedade acuada - que pode ser a nossa. Cabe-nos observar que, em sentido inverso à ilusão segregacionista da classe dominante brasileira, desde os anos de 1980 isolada em condomínios fechados e em enclaves fortificados, com policiamento privado, equipamento de segurança e vigilância, grades e muros - todos os tipos de muros e grades - para se proteger da cidade e do caos das ruas e, sobretudo, para manter afastados pobres e desvalidos, o sujeito de Corolase descobre na clausura de seu jardim cada vez mais vulnerável e desprotegido, à mercê de si e de seus medos, entregue a fantasias contínuas de autodestruição e desmoronamento.

Curiosamente, neste universo sem pontos de apoio e referentes claros, em meio ao desamparo total, é reservado eventualmente à poesia como conceito um teor de positividade que parece idealizar sua potência de iluminação, capaz de tirar o poeta do cotidiano enclausurado, do rasteiro dos dias, como nesses versos dedicados "à poesia": Sem a sua luz, o que me resta? Palmilhar às cegas um quarto de veludo onde o espelho, mudo, assiste à fuga do que reflete.33 A voz-que-fala neste poema não está recalcando as condições concretas de seu canto - em que a poesia não entra. Supõe-se que a reflexão se faz na ausência dela, permitindo porém que a poesia seja apostrofada ainda uma vez como uma figura ou uma pessoa (tratada por "você"). Na vida sempoesia, as rosas desistiram, as hortênsias são maiores e mais vivas que homens, tudo escorre até no mais plano, o que brota nasce amedrontado e mudo (todas imagens do mesmo poema). a auto-reflexividade do lirismo simulado não lança qualquer discurso sobre a poesia ou sobre a beleza, ao contrário, atribui ao poema, como uma personagem da casa ou do jardim, a função de restabelecer contato e transitividade para impedir a morte ou uma vida de aflições. Em qualquer das posições que a voz ocupe no seu relato (na descida, na subida, no plano ou às cegas), fala-se de dentro de uma situação de impotência e desamparo com parcos recursos de expressão. O artifício narrativo que recoloca a poesia numa situação dramática (ou melodramática), tão básica quanto esta, manifesta desconfiança dos procedimentos metapoéticos que costumam assinalar a moderna crise da representação, pois agora a explicitação do próprio fazer poético não qualifica a radicalidade construtiva de um texto, ou o teor de pensamento nele contido. Nalgum cubículo hermético, conhecemos o enjôo e a insatisfação de uma voz-que-fala a partir do privilégio social de sua classe, protegida num quarto de veludo burguês, ou então, como no poema anterior, protegida pela própria couraça de pétalas que a maltrata sem parar. Claudia Roquette-Pinto não confia nas exibições de lucidez e auto-referência dos processos de construção, nem cultiva a obra artisticamente pura ou perfeita:de que lhe adianta a suficiência (masculina?) de um texto feito de pura autoconsciência? Por isso, o programa de rigor construtivo inaugurado na poesia brasileira por João Cabral perde a efetividade e não tem lição ética a dar num momento em que é premente denunciar a regressão em curso e sua violência sobre o corpo, o eu e o poema.

Digamos que no sistema nervoso de Corolao metapoema não passa deum capítulo entre outros de um conjunto de impotências vivas e compulsivas, mas que pode merecer uma figuração dramática ou uma narrativa. Ainda assim, não fugindo à regra da tradição moderna, a apóstrofe compensa a ausência de um interlocutor poético pela invocação explícita (mas neste caso não menos enigmática) da própria poesia e da escrita como única ou última salvação. Todavia o poema que cumpre essa vocação mais que terapêutica, afirmativa, tal qual a flor em sua mutabilidade e contradição, está, também ele, fadado ao fracasso e à destruição: ESCRITA, é sempre você quem me resgata do limiar do iminente nada que borbulha em camadas de pensamentos perigosos e palavras, cepas resistentes à droga da vida.34 A escrita produz uma floração teimosa de palavras e "pensamentos perigosos" que salva, a despeito de ser o borbulhar de um nada avassalador. Essa outra floração ("cepas resistentes à droga da vida") tem traços humanos em seu dom de amparar, é resistente e forte porque conseguiu sobreviver à vida e nem a deixou tocá-la. Mas estas cepas vivem porque aboliram a vida ou têm um princípio ativo que protege contra a vida e seu entorpecer? Aliás, esta poderia ser tomada como uma definição dúbia do que é a escrita e a poesia em Corola. A escrita (ou o poema) que salva da nulidade da experiência portanto é ela também um fator de aniquilamento. Destruição que, nos versos seguintes, se descobre sem transição no seio de uma família (?), numa festa do dia das mães; que a mãe reverenciada quase não respira com seu escultural "sorriso do enforcado", como um boneco de desfile. Um mesmo impulso de sofrimento percorre os planos do poema e do cotidiano, que, apesar de desencontrados, reforçam o sentimento de que é preciso distância desse jardim e dessa casa. Daí advém a invocação afirmativa da escrita naquelas linhas iniciais, cuja ironia demonstra a inutilidade da autoconsciência poética em separado do melodrama dessa internação, onde o que conta é o estudo do medo e da cota interior de sofrimento. Relidos no seu intrincamento anfibólico, esses versos que apresentam o poema como resgate e salvação também o apresentam paradoxalmente como uma criação feita de nada, feita de pensamentos perigosos, tendente à autodestruição, tais quais essas cepas que tiram de seu sobreviver um antídoto contra a vida. Noutro lugar, uma cor fraquinha (o azul neófito) joga-se em si mesma (ou dentro do peito de quem a contempla), cabendo às palavras, em cujas bordas ela se prende, "tentando não morrer", conterem a queda35.

Adiante, talvez de modo conclusivo, a poesia é definida como "o hiato de titubeio", enquanto a vozque-fala, identificada como náufraga, admite, entre ânsia e esperança, que escreve por natural compulsão, mesmo sabendo a semente de anulação contida no seu ato: Até isso que formulo Se esboroa e se anula agora que o enuncio.36 O fracasso anunciado obliquamente na abertura do livro, após reiterados desmentidos e afirmações, consuma-se por assim dizer nos dois poemas finais, "O TORNEADO hábil das palavras" e "o NÁUFRAGO", que assumem com elevação a derrota e a desistência, como se o percurso de Corolafosse uma viagem que não deu certo, ilustrando a vocação da poesia para a perda e a auto-imagem do poeta como um náufrago a contemplar sua luta contra tudo que é fugidio. Os poemas todos são fruto do engano e o próprio ato da enunciação é destruidor, restando ao poeta-náufrago esperar, entre consolado e heróico, a própria extinção37.

IUMNA MARIA SIMON é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Sobre a poesia de Cláudia Roquette-Pinto publicou "Situação de Sítio" em Novos Estudos Cebrap, 82, nov. 2008.

VINICIUS DANTAS é poeta, ensaísta e tradutor.

[1] Roquette-Pinto, Claudia. Corola. São Paulo: Ateliê, 2000, p. 17. A partir daqui a indicação dos poemas deste livro será feita por Cseguido do respectivo número da página.

[2] As "formas improváveis" pertencem a "Campo de Flores" (um dos poemas mais apreciados de Claro enigma) e comparecem como epígrafe a Corola: "Onde não jardim, as flores nascem de um/secreto investimento em formas improváveis". No secreto lirismo drummondiano a promessa de jardim é enunciada numa gradação de negativas, de conflitos e lutas, que afirmam inequivocamente a completude de um processo de conhecimento por via amorosa: "Deus me deu um amor no tempo de madureza, /quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme. ". Em tom grave de balanço, o tema da criação estéril domina a reflexão de Drummond sobre o amor tardio, mas também não deixa de ser uma figuração do presente em que a esterilidade do amor parece ser da mesma matéria do desencanto e do tédio com os acontecimentos, tal como assumiu em Claro enigma. A floração de "formas improváveis" compõe o sucedâneo de natureza externa e interna em que se refugia o poeta. Mesmo improváveis suas referências são claras-psicológica e historicamente-dentro de uma representação inteiriça de uma consciência negativa. Vale lembrar que Claudia Roquete-Pinto não se apropria desses temas ou técnicas para glosá-los, uma vez que está ciente do quanto a poderosa subjetividade drummondiana é inviável nas circunstâncias atuais.

Corolatestemunha a inviabilidade de um sujeito capaz de delinear os terrenos do eu e do outro, da intimidade e da sociedade e ainda dizer classicamente a hora histórica de seu desmoronamento, ou fracasso. Nesse caso, ou noutros de diálogos diretos ou indiretos, a autora de Corolatem noção de que a sua própria consciência crítica é específica, limitada a seus materiais, a seus processos de composição, o que lhe diminui a envergadura, sem comprometer a qualidade de sua poesia.

[3] Tradicionalmente a anfibolia é a construção dúbia ou obscura, tida nos antigos tratados de retórica e gramáticas como um defeito de elocução ou estilo. Anfibólico é o duplo sentido de uma proposição que produz ambigüidade ou erro por imprecisão contextual, sintática ou frasal, ou então, falta de pontuação, como por exemplo em "devorando o tigre o leão" em que não se sabe quem devora ou quem é devorado; ou, no exemplo citado por Aristóteles da resposta do oráculo aos que quiseram saber se Creso venceria Ciro: "Atravessado o Hális, Creso será causa da ruína de um grande império", na qual se vaticina a queda do próprio Creso e não sua vitória. Este duplo sentido anfibólico pode ser involuntário ou intencional, mas apresenta sempre uma imperfeição denotativa. No primeiro caso, o defeito de expressão impede que a inteligibilidade seja imediata ou recuperável; no segundo, a ambigüidade produz efeitos de hesitação, suspensão de sentido ou chiste. Portanto, os embaraços da anfibolia quebram a univocidade e podem ser funcionais, como por exemplo na prática forense, na oratória ou na linguagem dos adivinhos, ou alcançar dignidade artística de uma técnica como na poesia do Barroco. Acreditamos que, por incidir no plano da denotação, a anfibolia diferencia-se da ambigüidade moderna que se apóia principalmente na conotação para produzir mistério poético. Em Corola, Claudia Roquette-Pinto explora a equivocidade do sentido em cada verso ou no todo do enunciado, podendo encadear o conjunto frasal pelo equívoco que provoca tensão ou incerteza, cuja palpabilidade material trava o fluxo da leitura. A recorrência desse procedimento se curiosamente num livro como Corola, em que sua poesia adquiriu maior impulso narrativo e clareza enunciativa, atenuando o sensorialismo aguçado das obras anteriores, muito marcadas pelo abuso do jogo de formas. Aqui, as construções anfibólicas, além de um certo nonsense, exigem decisão interpretativa, o que assinala o custo psíquico das situações descritas, a falta de garantias da enunciação, a impotência opressiva, a opacidade das determinações e o arbítrio dramático da situação discursiva neste jardim. Por isso, a anfibolia não se dissocia em Corolade situações de excitação, pressão mental e violência. Muitos dos seus efeitos são devidos ao corte do verso, à sonoridade e à bifurcação denotativa, que explodem a segurança de uma estrutura verbal única, empregando a surpresa da linha seguinte como elemento desestabilizador do verso anterior.

[4] Claudia Roquette-Pinto acredita mais no rigor do dizer do que no rigor da construção, ou nos seus termos, "sem o feroz feitiço/do exato [...]", o que coincide de alguma maneira com uma "estética anti-artefato", se tomarmos emprestada a expressão de um crítico norte-americano para contexto bem diverso.

É por isso que Corolanão ostenta a lógica construtiva, ou seus processos formais, como troféus, como atestado de inteligência artística ou artesanal do artífice. Antes pressupõe alguma margem de arbitrariedade, ou irracionalidade, nos encadeamentos sonoro-semânticos, demonstrando talvez insatisfação com a exposição dos processos construtivos. O rigor do seu dizer no entanto aparece na sonoridade estridente, na sintaxe difícil e bloqueadora, na surpresa e mesmo no absurdo vocabular (que chegava nos livros anteriores a resvalar pelo preciosismo). Para ela, a fluência lírica não deve escoar, mesmo sendo os poemas engrenados por encadeamentos que impõem obstáculos à formulação dos pensamentos. Não assume, portanto, uma formulação mais conceitual ou ensaística, à maneira de John Ashbery ou Jorrie Graham; ao contrário, seus poemas projetam uma figuração sensorial sempre lacônica, enunciada por truncamentos, ambivalências e silêncios que interpelam recorrentemente o leitor sobre o sentido (incerto) de sua procura-exigindo esforço de leitura e logo pedindo trabalho de interpretação. Nas passagens em que o sensorialismo se explicita pela alta concentração de efeitos sonoros, o gosto da ressonânciadesandaemsemânticaum tanto sibilina, à beira de trocadilhescos jogos de palavras em que o som leva vantagem sobre o sentido-ver por exemplo, "o que não fala" e "não no sono" (C, respectivamente pp. 33 e 37).

[5] Noutro poema esse fio que se estica é o próprio fio da respiração-ver "dentro do pescoço", C49.

[6] Vários desses procedimentos de condensação tempo-espacial, incerteza sintático-descritiva, fusão de linguagem figurada em linguagem denotativa, e vice-versa, que reaparecem dentro do contexto bem preciso de um episódio de violência urbana, em "Sítio" (Margem de manobra.Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005), foram estudados por Iumna Maria Simon em "Situação de 'Sítio'". Novos Estudos Cebrap, São Paulo, 82, nov. 2008, pp. 151-65.

[7] Corolapode ser lido como um poema longo, feito de 48 fragmentos que interagem, se comentam e se dispõem numa constelação de ressonâncias e retomadas. Cada texto vale, não obstante, como um espasmo, preso ao próprio fluxo e ali encerrado, composto de dois ou três períodos de intercalações, paradas ou síncopes, que se subdividem em muitas linhas de reações, percepções ou imagens que prismaticamente lhe desenham o sentido. Os dois ou três períodos que formam o todo relacionam-se às vezes por espelhamento, às vezes por contradição, complementando o período inicial noutro plano; nalguns casos as transições com mudança de fôlego de um período para outro são demasiado obscuras e negligenciam o todo (ver, por exemplo, C45 e C87). O espaço em branco não tem importância estrutural, pois o que se privilegia é o fluxo- e também a frase como fluxo passível de ser interrompido e mutila-do. Os poemas de Corolanão possuem divisão estrófica; a única exceção é "sob o fermento do sol, as coisas" (C25);inclusive "o torneado hábil das palavras" (C109), que é um soneto freqüentemente regular (forma bastante utilizada pela autora em Os dias gagos, de 1992, para realçar a polaridade de convencionalismo e descontrole), não apresenta estrofação. O mesmo tratamento formal e imagético também vaza de uma página a outra, à maneira de variações, sem que fique clara a continuidade ou articulação entre cada momento. A presença do jardim (ou de arranjos florais) ocupa mais ou menos metade do livro, e a figura da queda, uma quarta parte, seja tratada diretamente, seja em imagens associadas e subsidiárias. Na ordenação do livro, manchas de assuntos que se sobrepõem aos citados como o mundo da casa, amor/sexo, violência, ou, menos marcantes: sono, dias iguais, escuro. A mais espalhada é a mancha dos poemas metalingüísticos - textos que direta ou indiretamente se voltam para a palavra, a escrita, a página e dramatizam os componentes textuais. Contamos ao todo cerca de dezoito poemas, sendo metade de metapoemas ostensivos, outra metade mais discreta; de acordo com o critério, esse conjunto pode ser maior, se incluirmos por exemplo as metáforas musicais como elementos de auto-referência.

Todavia existe ainda um bloco (que se concentra no terço final) de poemas soltos que lidam com o espaço externo ao jardim (lembranças, doenças, férias), cujas conexões com o núcleo central não são claras, embora a voz-que-fala, figurantes e situações de opressão o sejam. Corolacomo um todo parece incompleto e solto, embora seu obsessivo e subliminar encadeamento paire como horizonte que virtualmente pode organizar a leitura. Esta é a sua diferença em relação, por exemplo, a livros com uma estruturação serial e combinatória mais firme como A educação pela pedra.

[8] "NADA", C23.

[9] "To a Butterfly" é o poema de Wordsworth: "I've watched you now a full half-hour, /Self-poised upon that yellow flower". Curiosamente nesses anos a poesia brasileira assistiu a uma revoada de borboletas wordsworthianas. Quem lançou a moda foi Carlito Azevedo em As banhistas(1993) com "O monograma turqui", em que a referência à borboleta fazia parte de uma trama de acaso objetivo, explicativa de seu modo de conceber a intertextualidade e também de ironizar a poesia da experiência (romântica ou não) que busca num fato definido no espaço e no tempo um fundamento anterior à linguagem. A anedota era a seguinte:o poeta (acolitado de uma musa) via o monograma turqui de uma borboleta presa a uma persiana; tempos depois, praticamente esquecido o fato, num livro de Wordsworth aberto por acaso, outra borboleta surgia, com o mesmo monograma, em toda sua desafiadora e desejada imobilidade. O poema relata de que modo um episódio da "vida besta" nascia, imprimindo na memória e no texto uma significação duradoura, com sua inesquecível aura esteticista. O acontecimento genuíno-conclui-é quase imperceptível, dá-se numa escala ínfima do tempo, mas por isso desencadeia uma revolução, a qual vem a ocorrer se não tiver causa direta ou processo substancial, revolucionando, justamente por desconhecer a causalidade, uma vida inteira (como o bater de asas de uma borboleta na China, segundo a teoria do caos, provoca maremotos noutro continente). Carlito estava também sugerindo uma noção de intertextualidade fundada na sociabilidade entre poetas que recriam o mesmo mito e retomam as imagens do poeta seu vizinho: a expressividade da emoção refeita pelo sujeito da contemplação lírica do Romantismo cede lugar ao desejo de imobilizar-se (tal qual uma obra de arte?) como uma borboleta para sempre pousada no tempo. Versos de "To a Butterfly", usados na epígrafe de As banhistas, reafirmam esse propósito. É bem provável que o poema de Claudia Roquette-Pinto esteja dialogando com tal referência e fazendo concessão ao correio intertextual daqueles dias.

[10] A labilidade da imagem "flor" pode ser atestada por "Mira": ela é objeto explícito da violência da escrita, é a caneta de quem escreve que explode a cabeça (humana) da flor, à maneira da criança alvejada em "Sítio" (ver os dois poemas em Margem de manobra, pp. 13 e 11 respectivamente). Na ordem deste livro, "Mira" lhe segue, espelhando-o em registro metalingüístico: o poema precisa ser destruído, a flor, arruinada, o que intensifica a vulnerabilidade do sujeito no núcleo de suas imagens associadas.

[11] Ver "últimas flores" em Zona de sombra(2ª edição. Rio de Janeiro: 7Letras, 2000, p. 53), para a evolução dessa imagem. Ainda tratada como imagem pictural, a impressão de queda, ou vertigem, se refere basicamente à contemplação de uma pintura de rosas, animada pelos contrastes de formas e cores. O olhar de quem a admira, indeciso entre figura e fundo, deve acabar ferido pela matéria admirada-a sugestão deste significado pode valer para a violência de "o dia inteiro perseguindo...".

[12] Mello e Souza, Gilda de. "O vertiginoso relance". In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 79. O texto trata de um romance de Clarice Lispector e foi originalmente publicado em 1963.

[13] Até agora a crítica não se deteve nas afinidades da poesia de Claudia Roquette-Pinto com a de Sylvia Plath, graças à qual, podemos sugerir, ela disciplinou sua expressão - o que, por exemplo, é visível num poema muito bom como "ESCRITA, ", C77. À parte o alto grau de sarcasmo e agressividade plathianos, Claudia emprega a mesma visão fora de escala (miopia?) de uma percepção intensa, capaz de deformar os objetos e a cena e aumentar fisicamente os sentimentos. Sylvia Plath desenvolveu uma casa de espelhos deformantes para situações banais e cotidianas - uma figuração cruel da coisificação feminina nos seus afazeres e afetos que comenta sua experiência imediata e biográfica com uma expressividade que pode raiar pelo patológico. Para ressaltar esse grotesco também se apropria idiossincrasicamente dos mitos clássicos para comentar episódios de sua vida - o que não é freqüente na poeta brasileira.

Compare-se por exemplo "na maternidade" (de Os dias gagos, p. 35) com os poemas da norte-americana que descrevemavivência hospitalare o parto, para ressaltar o quanto Claudia Roquette-Pinto se diferencia pelo confessionalismo discretíssimo, expressividade pouco agressiva e baixa enfatização do grotesco familiar. Ainda assim, em ambas, as imagens e prosopopéias transformam os sentimentos em seres (ou coisas) animados, dando-lhes uma realidade nervosa, e algo hipertrófica, em que os processos interiores competem por assim dizer com a figuração desgovernada da natureza e do mundo. As duas usam com alguma ironia as fórmulas românticas de êxtase, embora a norte-americana as explore com contundência em contexto psicológico definido. A artificialidade da sintaxe tem na autora de Corolaum papel mais acentuado, dispensando talvez por isso a dramatização às vezes alegórica de personagens e vozes com que Plath configura o dramatismo explícito de seus poemas. Claudia lhe dedicou um artigo, "Completamente Plath", no tablóide Verveque criou nos anos de 1980, onde também traduziu o poema "Os manequins de Munique" (Rio de Janeiro, 14, ago. 1988).

[14] "QUE LUZ azul é esta que reclina", C95.

[15] "AMOR-EMARANHADO, labirinto", C27.

[16] "A ORLA branca", C91.

[17] Apesar da intensidade figurativa de Corola, pode-se dizer que esta não é uma poesia propriamente metafórica, uma vez que se apóia sobretudo no intrincamento sintático, quase sem operar por transposição ou substituição de sentido, mas por deslizamentos, usando e descartando figuras, ou imagens, para inventar um dizer em que a própria poeta não confia, como vimos em "o dia inteiro perseguindo...". Digamos que as metáforas comparecem como parte de uma procura encaminhada sintaticamente por meio de dilemas sensório- perceptivos, capazes de expor, criar nexos e narrar, não se entregando ao poder, próprio à metáfora, de dar a ver e inventar um mundo novo e à parte.

Claudia Roquette-Pinto não acredita na transfiguração poética, preferindo que a linguagem e a figuração - a realidade própria do poema - fiquem expostas tanto como materialidade do texto quanto fonte de angústia e insatisfação.

[18] "SE CADA hora tivesse", C81.

[19] "ao leitor, em visita". Saxífraga.Rio de Janeiro: Salamandra, 1993, p. 27.

[20] Roquette-Pinto. Os dias gagos. Rio de Janeiro: s. e. , 1992, p. 41.

[21] Ver em Saxífraga, entre outros, ""bananas, cacho", "modo poético", "pêndulo" e "presença", respectivamente pp. 18, 8, 21, 29. E, de modo mais autoconsciente, que tematiza a própria vertigem como escrita, "space-writing", p. 26.

[22] "snap-shot (claude monet)", Saxífraga, p. 20.

[23] "ele", Saxífraga, p. 33.

[24] Curiosamente, emZona de sombraa queda aparece bem menos. Este é um livro de expressão turbulenta, cheio de zonas de perdição sensorialista. Muitos poemas são verdadeiros testes de intensidade perceptual, o que talvez assinale que a autora estava interessada no testemunho dos sentidos e do corpo em perigo, ou sob ameaça. Estava, noutras palavras, experimentando modos de relatar processos de destruição da percepção numa textualidade exacerbada e intensa.

[25] Aqui e ali o imaginário de autodestruição (queda inclusa) pode insinuar a possibilidade de uma violência ontológica: a violência constitui o ser e permeia as relações amorosas, a linguagem e os fluxos vitais, vida é violência.

Nossa leitura prefere ao contrário interpretar a violência a partir da experiência histórica e social que não formou psicologia e sensibilidade contemporâneas (sobretudo na atualidade das grandes cidades), como consistência ao conjunto das especulações imagéticas do livro.

[26] "AMOR-EMARANHADO, labirinto", C27.

[27] "SUSPENSO na rede do sono na tarde indecisa", C19.

[28] C49.

[29] C59.

[30] Sem intenção de aproximar autoras tão diversas, embora focadas na violência e no amor, lembramos que Sarah Kane numa entrevista declara que a autodestruição é um momento em que se pode recuperar a lucidez e a consciência numa sociedade que trabalha para obstá-las e, então, conta o caso de uma mulher que tentou inúmeras vezes o suicídio: "A loucura tem que ver, para mim, com este fosso que existe, e tem uma oportunidade para recuperar aquilo a que chamamos razão quando se volta a estar ligado a si próprio, espiritualmente, fisicamente, emocionalmente. [...] É assim, de um outro ponto de vista, que eu entendo aquelas pessoas que arrancam a própria pele. Conheci pouco tempo uma mulher que tinha tomado inúmeras overdoses e que se tinha tentado suicidar de todas as maneiras imagináveis. Tem uma enorme cicatriz aqui [aponta para o pescoço], cicatrizes aqui [os pulsos], mas, por absurdo que pareça, ela está mais perto de si própria do que a maior parte das pessoas que eu conheço.

Acredito que, no momento em que ela corta os pulsos ou toma a overdose, se encontra muito ligada a si própria e quer continuar a viver. E por isso vai para o hospital. A sua vida é uma seqüência infindável de tentativas de suicídio que ela aborta." ("Cingir-se à verdade. Conversa de Nils Tabert com Sarah Kane".Artistas Unidos Revista, Lisboa, 5, out. 2001, p. 58). Embora não se inscreva no universo da depressão e da loucura medicalizada, a angústia da queda e a internação no jardim de Corola lidam igualmente, sem traço de naturalismo, com o custo interior desse tipo de lucidez e sobrevivência.

[31] Não é fácil a intelecção da imagem dessa corola aparentemente exposta, delicadamente escondida ou encoberta por um elemento que a maltrata, a machuca, mas lhe permanece estranho, excluído da natureza que a constitui, embora reapareça noutras passagens o mesmo processo: "Menos no reduto/onde o luto resiste, /essa flor que dói, /não pára de se abrir. ", C89.

[32] Adiante em Corolaescutamos outro grito cortado ("e rasga a tarde esticada com um grito", C97), que de um tronco em contato com o "canto" de uma serra abatendo um eucalipto. Traços humanos e natureza vegetal fundem-se à intensidade do sofrimento como na imagem da flor.

[33] "POR QUE VOCÊ; me abandona", C31.

[34] "ESCRITA, ", C77.

[35] "O AZUL neófito próximo ao violeta", C51.

[36] "o NÁUFRAGO", C111.

[37] Talvez coubesse discutir se esses dois poemas colocados estrategicamente como fecho de Corolanão simplificam em demasia a complexidade formal dos movimentos dominantes no livro, reduzindo-os aos termos tradicionais da negatividade de uma poética mallarmeana do naufrágio e da pureza. De qualquer maneira, o problema existe, pois o fecho da trajetória tem uma monumentalização exemplar, alheia às instabilidades do lirismo simulado. Noutras palavras, Claudia Roquette-Pinto recorre nestes dois textos ao heroísmo da forma sem reportar a metapoesia às fantasias de autodestruição e ao estudo do medo.


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