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BrBRHUHu0101-33002011000100003

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National varietyBr
Year2011
SourceScielo

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Imagens do poder: arquiteturas do espetáculo integrado na olimpíada de Pequim

Nos anos recentes, a noção de espetáculo - amplamente compreendido como um modo de distração paliativo e uma tecnologia teatral que camufla, justifica e legitima o poder1 - tornou-se ubíqua nos estudos críticos como codinome para a geração de poder. Ainda que alguns autores tenham deplorado abusos no emprego do termo como uma metáfora-mestra para todas as formas de manipulação, alienação e controle social opressivo e como uma crítica taquigráfica aos males sociais e morais da sociedade contemporânea2, creio que continua sendo um potente instrumento conceitual para analisar estruturas de poder e para revelar como elas cooptam a paisagem material a fim de construir, consolidar e reproduzir sua hegemonia.

Neste artigo, reexamino a noção de espetáculo para investigar como essa técnica de gestão pode perpassar diferentes culturas políticas. Ao aplicar esse conceito ao caso da China pós-socialista, busco demonstrar a coexistência de Estado e mercado na forma do espetáculo como uma maneira de regular a sociedade. Mais especificamente, utilizo a teoria do espetáculo como uma lente para interpretar a proliferação de megaprojetos arquitetônicos na paisagem contemporânea, particularmente no caso da Pequim olímpica.

Ao longo da última década, Pequim embarcou numa das maiores campanhas de construção que o mundo viu, substituindo no decorrer de uns poucos anos grandes porções de bairros centenários por uma série de ícones arquitetônicos espetaculares. A imagem neo-olímpica de Pequim corporifica a recente reconfiguração do Estado chinês, marcada pela integração do poder político e econômico e pela ascendente soberania dos atores econômicos. Apoiando-se numa revisão do papel histórico do espetáculo na construção, na consolidação e na reprodução do poder, este artigo examina algumas das questões em pauta na atual espetacularização do ambiente construído, investigando como a nova imagem de Pequim opera e foi recebida localmente. Essa investigação me permite expandir a teoria do espetáculo ao propor que o espetáculo, especialmente no contexto dos megaeventos globais, também pode ter um aspecto produtivo ao pressionar seus produtores a se abrirem ao público e ao suscitar diversas formas de resistência, contestação e mudança.

FORMAS HISTÓRICAS DO ESPETÁCULO Ao longo da história, o espetáculo serviu como arma crucial na luta pela manutenção do poder, cumprindo um papel significativo na constituição de impérios e Estados-nação. Os detentores de poder, tanto político como religioso, se valeram de eventos espetaculares para legitimar seu domínio, apropriando-se do entretenimento, da arte e da festividade para distrair, apaziguar e controlar as massas. Desde o proverbial panem et circenses da Roma imperial até os comícios de Nuremberg da Alemanha nazista, a montagem de espetáculos para mobilização das massas serviu aos interesses da elite governante e ajudou a assegurar sua tomada do poder.

Uma das principais funções do espetáculo é maximizar a visibilidade do Estado na paisagem. Na qualidade de uma entidade imaginária, intangível, o Estado depende de corporificações físicas e marcos materiais permanentes para tornar sua existência manifesta3. Como a mais visível expressão dos valores culturais e cívicos e como o elemento central na construção do espaço urbano, a arquitetura desempenha um papel fundamental ao reforçar a abrangente presença do Estado na vida cotidiana. Os espaços monumentais e a arquitetura espetacular atuam como mecanismos comunicativos a serviço de ideologias do Estado e moldam a experiência humana por meio da manipulação de objetos e símbolos. Mais do que mero palco e pano de fundo para rituais e protocolos rebuscados e outras coreografias do Estado, a arquitetura espetacular vem a ser um componente da máquina do poder, espelhando, complementando e enaltecendo outras formas do espetáculo.

Em todas as épocas, tanto líderes de regimes autocráticos como governos democraticamente eleitos usaram a paisagem urbana como instrumento de política de Estado e como meio de seduzir seus seguidores e intimidar seus opositores.

Na China imperial, novos governantes dinásticos reconstruíam suas capitais para efetivamente apagar os traços de seus predecessores, lançando mão de espaços simbolicamente carregados e arquitetura codificada para representar o início de um novo mandato celestial. De modo similar, o urbanismo monumental serviu de propaganda para regimes autocráticos desde Napoleão III até Stalin e Mao, que se apoiaram em profusas exibições de teatralidade e excessos para enlevar e engajar emocionalmente seus seguidores e para legitimar suas posições como a força dominante na sociedade. Em anos mais recentes, governantes capitalistas de um lado ao outro do espectro político, de François Mitterrand a Tony Blair e Hu Jintao, redescobriram o poder da arquitetura espetacular, não para imortalizar sua liderança, mas também para garantir uma posição na economia mundial.

O espetáculo também foi explorado em apoio ao poder econômico, especialmente a partir da ascensão do espetáculo da mercadoria. Walter Benjamin mostra como as exposições universais de meados do século XIX, que atraíam peregrinos para o fetiche da mercadoria, ajudaram a fazer da própria mercadoria um espetáculo e a transformar cidadãos em espectadores e consumidores4. A fantasmagoria do espetáculo da mercadoria se tornou um estratagema mediante o qual o capitalismo podia assegurar sua própria sobrevivência, utilizando o consumo conspícuo e as falsas promessas da publicidade, as vitrines e a abundância de mercadorias para despolitizar as massas e atribuir-lhes um papel passivo nos assuntos públicos.

Desse modo, uma das principais funções do espetáculo da mercadoria consistiu em distrair a atenção popular do debate público, com o intuito de intensificar o controle social, gerar consenso e promover o consumo.

Mais recentemente, a espetacularização da paisagem urbana vem sendo adotada por cidades em busca de novos meios de impulsionar o crescimento econômico, na medida em que elas ingressam na competição global por visitantes e por capital.

O espetáculo passou a ser considerado essencial para a sobrevivência das cidades do século XXI, haja vista que agentes de planejamento e marketing urbano se valem de imagens arquitetônicas espetaculares, do patrimônio histórico local e de iconografias urbanas sedutoras como elementos-chave de geração de capital simbólico, contribuindo assim para a comercialização e a divulgação publicitária de suas cidades5.

O espetáculo é tão essencial para a nova economia urbana que um dos meios mais eficazes para intensificar a imagem mundial de uma cidade é sediar eventos globais, tais como mostras, conferências e grandes competições esportivas internacionais. Ser palco de eventos espetaculares de alta categoria não aumenta a visibilidade global ao promover a imagem da cidade como um lugar vital e dinâmico, mas também contribui para legitimar transformações em grande escala, permitindo aos governos locais alterar prioridades na agenda urbana sem o escrutínio público a que normalmente estão sujeitos6.

Em sua luta pela sobrevivência econômica, as cidades vêm explorando o emblemático poder da arquitetura de transformar sua imagem mundial. Motivadas por aquilo que passou a ser conhecido como "efeito Bilbao"7, cidades do mundo inteiro embarcaram em uma competição por proeminência global construindo edifícios que fossem os mais altos, os mais ousados e com tecnologia mais avançada. A arquitetura espetacular é agora valorizada por seu poder propagandístico, sua capacidade de atribuir uma marca ao panorama urbano, e é considerada vital para aumentar o prestígio e a desejabilidade do lugar. Como símbolos de valor negociáveis, edifícios com assinaturas renomadas se tornaram instrumentos essenciais de marketing urbano8.

Nesse processo, a arquitetura vem sendo transformada em provedora de marcas visuais e de ambientações de conveniência e em emblema icônico projetado na imaginação popular para ajudar a "visualizar" uma cidade e situá-la no mapa cognitivo do mundo. Para Neil Leach9, a fetichização da imagem na cultura arquitetônica aprisionou o discurso da arquitetura na lógica da estetização, isto é, do deslocamento do político pelo estético. Segundo ele, a proliferação de imagens arquitetônicas espetaculares na paisagem induz a uma forma de anestesia, cujo efeito narcotizante reduz a consciência social e política10.

Walter Benjamin advertiu que esse privilégio da imagem não era inocente.

Sublinhando a relação entre estética e política, ele mostrou como a estética pode fantasiar uma plataforma política indigesta e torná-la um espetáculo inebriante11. Transformar a arquitetura num espetáculo do poder e num suporte para a ideologia do consumo representa portanto um poderoso expediente de logro, que mascara e perverte a realidade com o intuito de apaziguar, fascinar e mistificar12.

A TEORIZAÇÃO DO ESPETÁCULO O poder de mistificação, pacificação e despolitização do espetáculo passou a ser explorado nos anos 1960. Ao notar a crescente importância do espetáculo numa sociedade cada vez mais dominada por imagens midiáticas e marcada pelo triunfo das pseudorrealidades, eles reavaliaram o valor do espetáculo no âmbito de uma crítica da alienação e da manipulação do mundo capitalista ocidental contemporâneo. Daniel Boorstin13, seguido por Jean Baudrillard14, sublinhou o papel dos fenômenos visuais e dos códigos simbólicos nessa transformação, descrevendo visibilidade, invisibilidade e imagens como as modalidades dominantes do poder e da alienação contemporâneos. Para Baudrillard, num mundo de signos puros, desconectados de seus referentes, é por meio da sedução - uma celebração da superfície - que a imagem pode envolver espectadores, desestimulando qualquer busca de sentido e impedindo qualquer nível de indagação mais profundo15.

Mas foi Guy Debord quem caracterizou a sociedade capitalista tardia como a "sociedade do espetáculo" e quem melhor expôs o espetáculo como uma manipulação dos processos de criação de sentido para servir à produção de poder político e econômico16. Debord deplorava a obsessão de sua sociedade pelo mundo superficial da imagem mercantilizada, que ele acusava de remover a realidade.

Para ele, porém, o poder do espetáculo vai além da simples dominação das imagens e da saturação midiática; o espetáculo é uma visão de mundo que foi efetivamente materializada como uma realidade objetiva17.

Segundo Debord, a especialização do poder está na raiz do espetáculo. Em seus Comentários de 1988 ele delineia três categorias de espetáculo de acordo com a forma de poder específica que este corporifica18. O espetáculo concentrado é aquele do poder político bruto. É o espetáculo produzido pelo poder centralmente planejado, favorecendo uma ideologia condensada em torno de uma personalidade tirânica ou de um regime totalitário, a exemplo daqueles encontrados em ditaduras dos anos 1930. O espetáculo difuso, um gênero particularmente americano, é aquele do poder econômico. É associado ao capitalismo avançado e à abundância de mercadorias, assemelhando-se à fantasmagoria da mercadoria descrita por Walter Benjamin. Enquanto o espetáculo concentrado opera principalmente por meio da violência, o espetáculo difuso em geral se pauta pela sedução. Conforme Debord, a partir do final dos anos 1960 o capitalismo global ensejou uma combinação lógica dessas duas formas de espetáculo numa , servindo simultaneamente ao poder político e ao poder econômico: o espetáculo integrado, que representa a sociedade do consumismo espetacular que se impôs globalmente.

O espetáculo do capitalismo tardio corporifica portanto uma nova forma de poder, especializada como nunca. Anteriormente um meio para que o poder do Estado e da Igreja mantivesse as massas sob controle, o espetáculo passa a representar o modo pelo qual o capital corporativo engana e inebria as pessoas com a ilusão da cultura da mercadoria.

Mais recentemente, alguns teóricos da política se basearam no conceito de espetáculo integrado de Debord para desenvolver uma nova teoria do Estado. O filósofo Giorgio Agamben afirma que a sociedade do espetáculo é o estágio final da evolução da forma Estado, representando a condição extrema da integração do Estado e da economia. Para Agamben, essa sociedade assimila a última metamorfose da mercadoria, na qual o valor de troca eclipsou completamente o valor de uso. Ele situa a ascensão desse Estado espetacular no desenvolvimento do capitalismo tardio, em que o Estado e a economia se entremearam a tal ponto que a lógica do desenvolvimento capitalista passou a determinar o Estado. Essa derradeira forma do Estado se evidencia a partir do momento em que o capitalismo assume o controle do Estado para se tornar absolutamente soberano.

O CONTEXTO URBANO DA CHINA E A ASCENSÃO DO ESPETÁCULO INTEGRADO A transformação na configuração do Estado e do poder está se tornando manifesta na paisagem urbana contemporânea da cidade de Pequim. Depois que a cidade foi selecionada, em 2001, para sediar os Jogos Olímpicos de 2008, passou por uma radical revolução urbana que procurou remodelar sua imagem como metrópole moderna, utilizando para tanto a arquitetura espetacular.

Essa mudança ocorreu em meio à histórica transição da China de uma economia planejada para uma economia de mercado, sob a liderança autocrática do Partido Comunista chinês. Desde o início da década de 1990, as políticas de Estado da China foram caracterizadas pela desregulação e por uma corrida para integrar o país ao mercado mundial. A sociedade chinesa assumiu uma configuração singular de sociedade de mercado, que levou ao simultâneo enfraquecimento da capacidade do Estado e de seu intensivo envolvimento nas atividades do mercado. Para o analista político Wang Hui, a política e a economia se entrelaçaram de tal modo que aqueles que controlam o capital interno da China são agora os mesmos que controlam o poder político19. A apropriação de ativos por funcionários governamentais e suas famílias transformou agentes estatais em homens de negócios independentes e prósperos, determinados a proteger sua riqueza recém- adquirida. Segundo Wang Hui, líderes partidários em todas as esferas da sociedade se tornaram indissociáveis dos novos capitalistas da China, de maneira que as elites políticas e econômicas agora se encontram completamente imbricadas.

A formação de um sistema de mercado sob os auspícios do Estado, com uso da autoridade estatal para promover a radical expansão do mercado, levou àquilo que Wang Hui designa como "a mercadização do poder e a delegação de poder ao mercado" [the marketing of power and the empowering of the market]20. Com a troca de poder por dinheiro, propriedades públicas foram colocadas nas mãos de grupos de interesse, que usam seu poder monopólico para captar recursos de mercado e obter lucros substanciais. A forma como essa minoria expropria propriedades públicas, livre e legitimamente, levou críticos como David Harvey a rebatizar o "socialismo com características chinesas" como "privatização com características chinesas"21.

A transformação urbana de Pequim também foi promovida no contexto de um modelo de gestão urbana pós-socialista caracterizado por uma crescente competição intermunicipal, que as cidades chinesas buscavam se reposicionar nos cenários nacional e internacional para atrair investidores estrangeiros e capitais móveis22. Ainda que os governos locais agora desfrutem de maior flexibilidade financeira e de maior autonomia e controle sobre o uso do espaço - graças às reformas econômicas da China, que concederam mais poder político- econômico às localidades -, essa nova conjuntura urbana ainda é restringida pelo legado do socialismo de Estado23. Visto que os titulares de cargos públicos locais ainda são nomeados, em vez de serem eleitos, e avaliados para promoção com base na lealdade política, no desempenho econômico e nas realizações no exercício do cargo, eles tendem a favorecer projetos com alta visibilidade, em detrimento de iniciativas sociais menos tangíveis, para ostentar suas realizações e sustentar seu avanço na carreira político- administrativa24. Assim, as novas estratégias urbanas se concentraram nos grandes projetos como um meio de promover o desenvolvimento econômico e projetar uma imagem dinâmica das cidades.

Com esse intuito, os governos locais se valeram do poder da arquitetura como uma fonte de capital simbólico para ajudar suas cidades a obter uma vantagem semiótica sobre destinações rivais. As autoridades municipais convidaram os arquitetos mais famosos do mundo para conferir uma marca à paisagem urbana e dotar suas cidades de símbolos visuais impressionantes. Membros da elite internacional da arquitetura encontraram os patrões perfeitos nos dirigentes chineses cônscios da imagem, para quem a fachada, o prestígio e o capital simbólico são facilmente convertidos em poder político.

Os governos locais também tiveram de contar com o setor privado para ajudar a financiar esses projetos. Empreendedores privados com estreitas ligações com os governantes lucram com as transformações urbanas em razão da valorização de propriedades, e com frequência veem tais investimentos como oportunidade para rentismo e especulação. Esses projetos tendem portanto a priorizar os benefícios econômicos de investidores privados e a visibilidade política de seus patrocinadores públicos, em prejuízo da melhoria das condições urbanas.

Dessa maneira, o desenvolvimento urbano na China contemporânea frequentemente tem menos a ver com funcionalidade, racionalidade econômica e crescimento do que com poder, imagem e prestígio25.

A ARQUITETURA DO PODER Os Jogos Olímpicos de 2008 deram um grande ímpeto para a intensificação do processo de modernização de Pequim, iniciado nas décadas anteriores. As autoridades municipais rapidamente adotaram o novo modelo de gestão urbana, recorrendo à arquitetura de vanguarda para atualizar e remodelar a antiga capital socialista da China na forma de uma próspera metrópole mundial. Essa cirurgia plástica não visou melhorar o desempenho econômico da cidade na competição intermunicipal pela atração de turistas e investidores estrangeiros, como também buscou restaurar a imagem internacional da China e legitimar o poder de sua elite governante.

Uma parte essencial dessa estratégia urbanística de produção de imagem se apoiou na construção de uma série de ícones arquitetônicos altamente emblemáticos, que pudessem criar uma representação visual vigorosa e duradoura e impregnassem a imaginação coletiva global como algo audacioso, heroico e moderno. Poucos anos antes dos Jogos, Pequim encomendou mais de uma dúzia de projetos com assinaturas renomadas, em que a magnitude, a concepção e a etiqueta de preço eram tanto superlativas como espetaculares. No rol dos projetos construídos com vista ao encerramento do prazo olímpico figuravam, entre outros, o Teatro Nacional, de Paul Andreu, a torre do complexo da China Central Television (CCTV), de Rem Koolhaas, o Estádio Nacional, de Herzog e De Meuron, o terminal do Aeroporto, de Norman Forster, e o Centro Aquático Nacional, do escritório australiano PTW26.

A farra da construção olímpica em Pequim relembra arroubos de construção intensiva patrocinados pelo Estado que transformaram a paisagem da cidade ao longo do século XX, na esteira de grandes mudanças de ideologia. No fim dos anos 1950, por exemplo, Mao encomendou uma série de monumentos à maneira soviética para marcar o surgimento de uma nova nação socialista e legitimar o comando do Partido Comunista chinês. No fim dos anos 1980, o prefeito Chen Xitong buscou reafirmar as características tipicamente chinesas da capital e ao mesmo tempo representar a abertura da China para o mundo impondo padrões urbanísticos neotradicionais a vistosas edificações pós-modernas, ridicularizadas por usar "chapéus chineses"27. Contudo, esse último ciclo de construção ostensiva iniciado pelo presidente Jiang Zemin visando a Olimpíada foi de fato em escala sem precedentes. Ressaltou o espetacular ressurgimento da China como uma superpotência mundial e o desejo do país de afirmar sua posição legítima na nova economia global.

Como expressão material do poder ascendente de uma coalizão de dirigentes políticos com seus aliados capitalistas, esse recente exercício de construção de imagem representa, sob vários aspectos, a corporificação do espetáculo integrado de Debord. A nova imagem da cidade atesta as mudanças em curso na estrutura de poder dominante, composta por um Estado unipartidário cada vez mais entremeado com uma classe capitalista ascendente, e busca maximizar tanto os lucros privados como o controle social. Embora os governos locais tenham se beneficiado com a descentralização do poder político-administrativo, o status especial de Pequim como capital nacional implica que a visão geral da cidade promovida pelos megaprojetos olímpicos permanece sob a supervisão direta do governo central, que é seu principal contratante, e desse modo reflete suas aspirações.

Antes de tudo, os projetos olímpicos de Pequim fazem parte da teatralidade do poder usada pelo regime para reafirmar sua legitimidade como liderança única da China. Assim, eles compartilham muitas das características tradicionalmente encontradas na arquitetura do poder. Um dos princípios mais prevalecentes por trás dos monumentos do poder é a sua visibilidade, essencial para o seu reconhecimento. Para que uma edificação seja notada e ateste a grandeza de seu patrocinador, deve ser chamativa e causar uma forte impressão estética, usando tamanho, forma e aparência externa para imprimir uma imagem imponente e memorável na consciência coletiva. O volume - ou aquilo que Tafuri designa como "a metafísica da quantidade"28 - também é importante na construção arquitetônica do poder, que os governantes promovem campanhas de construção maciça para demonstrar sua energia e sua força.

O número de projetos relacionados à Olimpíada de Pequim é impressionante e sem precedentes, sublinhando a importância do evento como uma vitrine da capacidade do Estado chinês. Com seus inúmeros recordes arquitetônicos, os colossais megaprojetos de Pequim não deixam nenhuma dúvida sobre a ambição e a audácia de seus patrocinadores. Seu monumentalismo reflete o dinamismo, a autoridade e a força de vontade do governo, bem como atesta seu desejo de ser levado a sério no cenário mundial. Também assinala enfaticamente a constante presença do Estado na paisagem urbana, reforçando no dia a dia a vigilância e a habilidade do poder estatal.

O monumentalismo encontrado no urbanismo olímpico, especialmente na localização dos projetos e no prolongamento do eixo imperial até o Parque Olímpico, reforça ainda o elo entre a transformação de Pequim e o desejo do Estado de legitimação. Os projetos olímpicos estão em sua maior parte assentados em vastas praças abertas, desconectados de seu entorno, o que amplifica sua escala e sua dramaticidade. O alongamento do eixo imperial, como o espaço simbólico e privilegiado do poder imperial, reflete um anseio da liderança política de se posicionar na linhagem das dinastias do passado, que remodelavam a capital à sua própria imagem. O fato de esse novo eixo ter sido projetado por Albert Speer, filho e homônimo do arquiteto de Hitler, aumenta o poder simbólico desse gesto espetacular no sentido de ressaltar Pequim como o centro do poder político chinês.

Paradoxalmente, a imagem desses projetos espetaculares, que conta com formas ousadas e inovação acanhada, também indica um rompimento radical com a história e afirma o compromisso da liderança com a modernidade. Ao não fazer nenhuma concessão ao passado ou à ideologia socialista, essa nova arquitetura se contrapõe à velha imagem da China como uma nação pobre, terceiro-mundista, autocentrada e retrógrada. Ao recrutar o trabalho de celebridades da arquitetura internacional e de expoentes da vanguarda arquitetônica global, as elites chinesas também fazem uma declaração veemente sobre suas disposições e aspirações cosmopolitas, o que lhes faculta se distanciar de seus predecessores mais conservadores. Esse gesto vigoroso lhes certa quantia de capital simbólico, testemunhando sua abertura, seu discernimento e sua sofisticação.

Além disso, a iconografia ostentosa dos projetos olímpicos de Pequim corrobora o poder da capital na nova sociedade chinesa e declara sem pejo que, de fato, enriquecer é glorioso. Com sua etiqueta de preço exorbitante, sua aparência suntuosa e seus contornos reluzentes, eles simbolizam a impetuosa busca de riqueza e o apetite por luxo da China, sugerindo que a frugalidade não é mais um valor professado. Dessa forma, a arquitetura espetacular de Pequim não contribui para consolidar o poder político do Estado, mas também legitima o papel ascendente do capital na reconfiguração da paisagem urbana.

Os projetos olímpicos foram em sua maior parte construídos por meio de parcerias público-privadas, que fizeram dos atores do setor privado os principais beneficiários dos investimentos públicos na Olimpíada. A rápida e amplamente não regulada transformação de Pequim possibilitou a investidores privados remodelar a paisagem urbana a serviço de seus próprios interesses econômicos. Vários equipamentos urbanos também foram privatizados após os Jogos, uma vez que empreendedores responsáveis por supervisionar sua construção se tornaram seus administradores, operadores e efetivos proprietários por um período previsto em contrato. Ao alocar capital em determinados setores da cidade, a reestruturação olímpica contribuiu para concentrar ativos econômicos nas mãos de umas poucas elites econômicas com ligações estreitas com o Partido.

Também intensificou a proeminência desses novos atores econômicos na economia simbólica da cidade, assim como lhes conferiu maior influência no processo de tomada de decisões.

A RECEPÇÃO LOCAL AO ESPETÁCULO OLÍMPICO Além de confirmar a supremacia política do Estado e legitimar o crescente poder de atores econômicos, o espetáculo arquitetônico de Pequim cumpriu um importante papel de despolitização, contribuindo para distrair a atenção pública das mazelas da reurbanização intensiva. A despeito de um alarmante registro acerca de despejos à força, exploração de trabalho e violações de direitos29, os megaprojetos olímpicos de Pequim geraram uma oposição surpreendentemente pouco manifesta e pouco organizada - sobretudo em face da onda de iniciativas civis para combater a reurbanização em toda a China -, com raros casos de mobilização coletiva contra a sua implantação30.

A relativa exiguidade de oposição pública pode ser explicada, ao menos em parte, pela conjuntura patriótica da Olimpíada, apresentada na propaganda oficial como um evento de relevância histórica para a China, uma ocasião única para obter retribuição por cem anos de humilhação, semicolonização e injustiças sob o domínio de potências ocidentais. Um desempenho olímpico bem-sucedido não somente possibilitaria à China reafirmar sua legítima posição na ordem geopolítica global, mas também mudaria as percepções históricas sobre os chineses como "os doentes do Leste Asiático", obliterando o caráter tímido das aparições iniciais da China na cena esportiva internacional31. Essa construção ideológica do evento como algo fundamental para a construção da identidade nacional garantiu um apoio maciço aos Jogos, enquadrando toda forma de crítica manifesta e de oposição organizada como antipatriótica.

O poder desmobilizador do espetáculo também contribuiu para a ausência de debate e crítica popular acerca dos projetos olímpicos. Ao recrutar celebridades arquitetônicas canonizadas para realizar seus vaidosos projetos, os dirigentes chineses e seus aliados lograram conferir uma fachada aceitável à reurbanização especulativa e convencer a população das virtudes e dos benefícios de tais investimentos destinados à imagem. Fantasiada com o garbo requintado da "astroarquitetura" [starchitecture] contemporânea, a reurbanização especulativa foi despolitizada e legitimada em virtude do poder da arte. A imagem espetacular desses projetos ajudou a desviar a atenção das externalidades dissimuladas que eles geraram, na forma de exclusão social, de malversação de recursos públicos e de uma enorme dívida governamental. Desse modo, a arquitetura espetacular contribuiu para intermediar percepções da reurbanização olímpica ao eclipsar as condições sob as quais os projetos foram implantados.

O espetáculo também ajudou a desvirtuar qualquer discussão profunda dos impactos socioculturais e econômicos da reurbanização ao deslocar o foco das atenções para questões arquitetônicas. As reações mais veementes à remodelação espetacular de Pequim partiram do interior da comunidade arquitetônica local e suscitaram acalorados debates públicos, especialmente com relação à seleção de arquitetos estrangeiros para projetar a Pequim do século XXI. Muitos arquitetos locais se sentiram injustiçados pela preferência de seu governo por arquitetos mundialmente renomados e ressentiram-se de ter de competir com profissionais estrangeiros em seu próprio país. Eles acusaram os arquitetos estrangeiros de oportunismo, de tirar vantagem da situação privilegiada de seu país e de usar a China como um campo experimental para testar novas técnicas e concretizar suas próprias ambições artísticas. Eles denunciaram a ambição imperialista de seus competidores globais. Entre eles, Wu Chen, filho do reputado arquiteto e intelectual Wu Liangyong, acusou arquitetos estrangeiros de tomar parte em uma nova forma de colonialismo cultural, ao impor seus próprios valores, e de aviltar a cultura chinesa, ao contribuir com a homogeneização da paisagem urbana da China32.

Ironicamente, foi um dos autores do mais famoso projeto olímpico que manifestou as críticas mais incisivas à espetacularização da paisagem de Pequim. O artista chinês Ai Weiwei, um colaborador próximo no projeto do Estádio Olímpico, veio a se tornar um dos seus mais virulentos detratores, denunciando na mídia internacional a apropriação política da Olimpíada por dirigentes políticos demagógicos. Um ano antes dos Jogos de 2008, Weiwei decidiu se afastar do projeto ao perceber que tinha entrado numa barganha faustiana e se acumpliciado com o regime autocrático da China. Ele criticou outros artistas e arquitetos olímpicos por permitir que seus talentos fossem usados em benefício da propaganda política e do poder econômico33.

De modo geral, porém, o enquadramento da crítica em torno das diretrizes e da estética da produção arquitetônica acabou por monopolizar o debate público, desviando-o de questões sociais, culturais, políticas e econômicas mais profundas a respeito da reurbanização olímpica de Pequim. Problemas de desalojamento de comunidades, destituição social, exploração de mão de obra, destruição de patrimônio, promoção de desigualdade socioespacial e malversação de recursos públicos foram efetivamente eclipsados nas discussões públicas pelo poder do espetáculo.

REVERTENDO O OLHAR, RESISTINDO AO ESPETÁCULO Entretanto, é evidente que os pequineses estavam longe de ser uma massa indiferenciada de indivíduos passivos e iludidos, internalizando sentido hegemônico acriticamente. Muitos membros da sociedade ficaram alertas à reurbanização olímpica ao monitorar os grandes projetos e inspecionar os gastos olímpicos. Ao longo do processo de construção, acadêmicos, intelectuais, preservacionistas, arquitetos locais e outras figuras públicas proeminentes expressaram suas preocupações, assinando petições ao governo central para contestar projetos arquitetônicos, opor-se à demolição de marcos tradicionais da paisagem urbana ou exigir revisões orçamentárias34. Muito embora essas ações jamais tenham logrado impedir a construção de projetos, resultaram em importantes reavaliações de gastos e em consideráveis modificações de projetos.

Essas e outras evidências sugerem que os Jogos Olímpicos, como um megaevento global exaustivamente acompanhado pela mídia, podem ter contribuído efetivamente para restringir o poder do espetáculo ao ensejar uma reversão do olhar para os produtores do espetáculo35. Organizadores de megaeventos como as Olimpíadas são submetidos a um exame intenso não apenas por parte de organizações supranacionais, como o Comitê Olímpico Internacional, mas também da mídia estrangeira e de analistas locais e internacionais. Em Pequim, a constante e minuciosa avaliação das ações das autoridades locais pressionou-as a "se abrir", a agir de modo mais transparente e a fazer uma maior prestação de contas aos cidadãos. Isso fez com que o espetáculo ganhasse uma dimensão "produtiva" e se tornasse um fator de mudança social, cultural e política.

Para Susan Brownell, a Olimpíada de Pequim teria contribuído para uma evolução do processo político, que pressionou a China a se adequar a normas internacionais relativas ao Estado de direito, à preservação ambiental e aos direitos humanos36. Outros consideram que o nacionalismo suscitado pelos Jogos Olímpicos ajudou a forjar o engajamento cívico, levando a uma maior consciência dos direitos de cidadania, na medida em que os chineses se tornaram mais cônscios de seu direito de ter acesso a informações, de questionar as autoridades e de ser protegidos de retaliações37. Para eles, esse crescente engajamento cívico pode estimular o crescimento da sociedade civil e opor uma efetiva contenção ao autoritarismo do Estado.

Embora ainda seja cedo para averiguar essas hipóteses, é evidente, sob vários aspectos, que as autoridades estatais internalizaram o olhar reverso do espetáculo para frear algumas de suas ambições, pois temiam que qualquer uso de violência ou abuso de poder associado aos Jogos pudesse atrair uma atenção negativa da mídia e comprometer seus dispendiosos esforços de construção de imagem. Preocupadas com a vigilante presença da imprensa internacional e sua ânsia de expor quaisquer falhas na organização do evento, estreitamente controlada, as autoridades locais se determinaram a suavizar a reputação da China e a atingir um delicado equilíbrio entre seu desejo de sediar os Jogos Olímpicos harmoniosamente e seu receio de apresentar ao mundo a imagem de um Estado policial.

Percebe-se ainda o lado produtivo do espetáculo em algumas das reações por ele provocadas, que também podem suscitar mudanças positivas. Na China, diversas pessoas conceberam estratégias para resistir ao espetáculo e transcendê-lo, reinterpretando símbolos que codificavam sentidos específicos na paisagem urbana. Muitos arquitetos locais, por exemplo, cultivaram uma recatada resistência à sociedade do espetáculo ao adotar uma abordagem arquitetônica mais crítica, que resgata uma dimensão ética38. Uma nova geração de arquitetos chineses, formada por profissionais jovens e cosmopolitas, desenvolveu uma visão arquitetônica alternativa que evolui por fora da economia simbólica global e não tem nenhum compromisso com o poder nem se pauta por vaidades. Ao enfocar projetos em pequena escala, específicos ao lugar e localmente embasados, esses profissionais estão criando uma nova identidade para a arquitetura chinesa, uma linguagem arquitetônica autenticamente contemporânea, que retém um grau de continuidade com o tecido urbano existente sem cair nas armadilhas da nostalgia e do localismo. Usando humor, tecnologia moderna e materiais com ressonância histórica, eles também restituem uma escala humana ao gigantismo da China metropolitana. Sua perspectiva crítica e autóctone possibilitou-lhes desenvolver uma resposta sensível, inovadora e com especificidade histórica à atual situação de sua nação. Alguns deles, a exemplo de Pei Zhu, recusam-se a colaborar com a espetacularização do ambiente urbano e a destruição da paisagem histórica, propondo o reuso criativo de arquiteturas do pós-guerra em contraposição a extravagâncias insustentáveis39. Nesse sentido, o espetáculo olímpico de Pequim pode ter contribuído para o avanço da arquitetura chinesa contemporânea.

A Pequim pré-olímpica também foi marcada por estratégias menos visíveis para escapar à dominação e usurpar sentido, as quais também atestam o papel produtivo do espetáculo. Um frequente recurso de contestação, de sinalizar insatisfação com a reurbanização olímpica, foi o uso de apelidos jocosos para ridicularizar os novos monumentos do poder, como veremos adiante. Essa prática da renomeação não raramente implicou um détournement40 da interpretação oficial proposta por arquitetos e dirigentes políticos, com a produção de um discurso alternativo ou um contradiscurso.

Assim como ocorre com toda arquitetura pública e todo monumento do poder, os projetos olímpicos de Pequim foram fantasiados com artifícios retóricos numa rebuscada construção narrativa muito antes de se tornarem públicos e abertos à interpretação popular. Esse discurso, no mais das vezes interesseiro e refletindo o estrito ponto de vista dos autores e patrões dos projetos, buscava codificar determinado sentido acerca do objeto arquitetônico a fim de ditar sua interpretação. Apoiando-se em mitos, alegorias e metáforas visuais para transfigurar a imagem e criar associações positivas, essa interpretação era reiterada na mídia e nutria a percepção popular na esperança de que o público em geral a aceitasse como consensual e fiel41.

Contudo, nem todas as pessoas internalizaram esse discurso hegemônico ou foram mistificadas por ele. Assim como todos os discursos, o sentido simbólico da arquitetura é altamente volátil, instável e efêmero. Jamais completo ou definitivo, ele é constantemente questionado e transfigurado por contrainterpretações. Narrativas divergentes e discursos paralelos em geral se desenvolvem à medida que oponentes, usando suas próprias metáforas populares e linguagem mimética, questionam a interpretação oficial. O sentido é então alterado, retrabalhado e subvertido em atos populares de resistência ou reapropriação estratégica.

Em Pequim, a maioria dos autores dos projetos olímpicos - ou ao menos seus assessores chineses no caso dos arquitetos estrangeiros - sabia muito bem da propensão dos chineses para fazer analogias na apreciação de obras arquitetônicas. Os arquitetos estrangeiros frequentemente apresentavam seus projetos mediante um discurso exótico que se baseava no simbolismo asiático e na cultura chinesa. Com o uso de metáforas visuais apropriadas de um imaginário familiar, não ameaçador, eles souberam criar um subtexto evocativo para apresentar seus projetos sob um aspecto positivo e em termos que achavam culturalmente atraentes para um público chinês. Norman Foster, por exemplo, afirmou que seu aeroporto assumia a forma de um dragão, um imponente símbolo chinês de sorte, poder e riqueza, e ao mesmo tempo assemelhava-se ao caractere chinês para "portão de entrada" (men). O arquiteto francês Paul Andreu, por sua vez, descreveu seu Teatro Nacional (agora conhecido como Centro Nacional de Artes Cênicas [NCPA - National Centre for the Performing Arts]) como uma pérola disposta num estojo de joias quadrado, fazendo um jogo com representações cosmológicas do céu com formato redondo e da terra com formato quadrado. No entanto, essa tática dissimuladora de fantasiar projetos estrangeiros não convencionais como tributos à cultura chinesa pode ser enganosa, dando margem a associações tanto positivas como negativas. O público rapidamente extraviou essas imagens cuidadosamente cunhadas, substituindo-as por suas próprias representações visuais para desmascarar justificativas governamentais e ridicularizar argumentações dos arquitetos.

Bem antes da construção de alguns dos projetos mais grandiosos, seus críticos cunharam para eles apelidos carregados de ambiguidade e duplo sentido, que rapidamente foram assimilados pela população em geral. Essa práticas de dar novos nomes aos projetos muitas vezes usurpavam a interpretação oficial proposta pelos designers e por líderes políticos.

Um dos principais alvos desses ataques verbais foi o controverso projeto para a China Central Television, a principal máquina de propaganda do Partido. O colossal edifício de 700 milhões de dólares teve uma recepção popular mordaz, suscitada por sua semelhança prosaica, degradante até, com um banquinho, um homem de joelhos ou um par de calças. A usual referência ao edifício como weifang - o prédio perigoso ou torto - expressa a desconfiança geral sobre sua integridade estrutural e critica a demagogia do Estado ao escolher um projeto tão exótico. O uso desse epíteto em particular é também um perspicaz comentário sobre os numerosos despejos requeridos pelo projeto, que o termo weifang é comumente empregado para designar casas destinadas a demolição, rotulando-as como precárias e impróprias para habitação.

O Centro Nacional de Artes Cênicas, outro edifício relacionado à Olimpíada, também sofreu escárnio público42. O projeto foi fortemente criticado por seu custo exorbitante e por seu design futurista, inadequado para a sua localização próxima à Praça Tiananmen. As metáforas poéticas usadas para descrever sua cúpula de titânio, tais como "gota d'água" e "pérola", foram retrabalhadas na forma de apelidos populares ferinos e por vezes vulgares, conferindo-lhes um quê de ridículo e absurdo. Estendendo-se desde a leve zombaria, com denominações como "a bolha", "o disco voador" ou "a caixinha de comprimidos", até variações mais pejorativas em torno da noção de ovo e evocações menos equívocas no sentido de "tumba" ou "urna funerária", essas renomeações sarcásticas contêm um comentário político mais profundo. Mais do que uma simples referência ao formato do Centro Nacional, suas representações como "tumba" revelam uma crítica mordaz ao presidente Jiang Zemin, que financiou esse vaidoso projeto situado a uma curta distância do mausoléu de Mao para imortalizar seu reinado e assegurar sua promoção ao panteão chinês dos líderes políticos veneráveis.

Esses atos de resistência verbais não são ações coordenadas, mas são tramados furtivamente e se espalham como incêndio florestal por meio de boca a boca ou da internet. Eles ganham destaque mediante a sua reiteração coletiva, especialmente quando a mídia os repercute, confirmando-se assim a sugestão de Debord de que às vezes o espetáculo deve ser combatido por meios espetaculares.

A qualidade prosaica dessas estratégias de resistência criativas e seu caráter aparentemente apolítico possibilitam a transmissão de uma mensagem subversiva em segurança, sob a proteção do anonimato e sem o medo da repressão. Muito embora o impacto desses atos de détournement, no sentido de solapar a representação oficial e subverter a hegemonia do espetáculo, seja limitado, eles cumprem um importante papel produtivo, mesmo que simbólico. Ao propiciar que as pessoas expressem suas frustrações e critiquem por procuração o regime que promoveu tal transfiguração, eles potencialmente as aproximam um pouco mais da oposição organizada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Guy Debord e outros teóricos críticos advertiram sobre a capacidade do espetáculo de obscurecer a natureza e o efeito do poder e das espoliações do capitalismo, observando que o espetáculo tem a ver tanto com visibilidade quanto com encobrimento43. Sob vários aspectos, a reconstrução olímpica de Pequim atuou como uma cortina de fumaça para esconder as mazelas da vertiginosa mercadização da China, acompanhada de especulação fundiária desenfreada, corrupção, crescentes desigualdades e polarização socioespacial. Ela obscureceu o fato de que boa parte da nova riqueza adveio diretamente à custa dos pobres, na medida em que com frequência os governos locais despejaram moradores e venderam os terrenos para projetos de desenvolvimento privados.

A arquitetura cumpriu um papel essencial na espetacularização do ambiente urbano de Pequim, tanto na qualidade de corporificação do poder como na de um mecanismo para encobrir a expansão e os interesses predatórios da autocracia integrada da China. A "astroarquitetura" contemporânea foi instrumentalizada pelo espetáculo de várias formas, tornando-se subserviente às metas da economia transicional da China. O grandioso espetáculo oferecido pela imagem olímpica da nova Pequim logrou desviar a atenção das crescentes contradições na sociedade chinesa. Ao projetar a realidade construída de uma sociedade economicamente bem-sucedida e em bom funcionamento, a arquitetura espetacular encobriu as crescentes desigualdades sociais que caracterizam a sociedade chinesa contemporânea. A distração oferecida por essa arquitetura da imagem desviou a atenção das reais motivações da reurbanização especulativa e ajudou a naturalizar as condições de exploração e exclusão que contribuíram para produzir essa nova paisagem.

Com a transformação do Estado e a crescente soberania dos detentores de poder econômico, as arquiteturas e os espaços do espetáculo se tornam mecanismos essenciais para encobrir essa mudança no equilíbrio do poder. De modo similar, o urbanismo sedutor que está transformando as cidades chinesas atua como uma cortina de fumaça para encobrir o fantástico crescimento do poder corporativo autocrático. Ele ajuda a legitimar os poderosos interesses dos empreendedores imobiliários e contribui para a reprodução da ordem estabelecida, enquanto a perpetuação da dominação permanece oculta. A reurbanização olímpica de Pequim terá assim contribuído para o crescente poder do capital, atribuindo aos empreendedores privados um papel cada vez maior nos negócios públicos e ao mesmo tempo enfraquecendo a autonomia do Estado para governar.

No entanto, este artigo sugere que o espetáculo também teve um papel produtivo em Pequim, pressionando os produtores do espetáculo a fazer uma maior prestação de contas e abrindo espaço para diversas formas de resistência, contestação e mudança. Ao suscitar essa reversão do olhar para seus produtores, o espetáculo plantou as sementes de uma importante mudança social, cultural e política, que pode ter repercussões concretas a longo prazo. Assim, este artigo tanto corrobora a permanente relevância da noção de espetáculo como um instrumento analítico para conceitualizar e desconstruir estruturas de poder em diferentes culturas políticas, como também sugere que é preciso empreender investigações mais aprofundadas para expandir a teoria do espetáculo, explorando seu aspecto produtivo e verificando como ele pode contribuir para transfigurar, usurpar ou retrabalhar estruturas de poder.

ANNE-MARIE BROUDEHOUX é professora da Escola de Design da Universidade de Quebec em Montreal, Canadá.

[*] Artigo publicado originalmente em Journal of Architectural Education, vol.

63, 2, 2010, pp. 52-62.

[1] Essa definição é baseada na interpretação de David M. Boje em Theatres of capitalism. San Francisco: Hampton Press, 2002.

[2] John MacAloon acertadamente critica abusos do conceito de espetáculo, que segundo ele passou a representar uma série de termos críticos, tais como comercialização, alienação, hegemonia, cultura de massa, simulacros, comoditização, midiatização e globalização, por vezes até passando por um tropo abrangente para o declínio da esfera pública. Cf. MacAloon, John. "The theory of spectacle: reviewing olympic ethnography". In: Tomlinson, Alan e Young, Christopher (orgs.). National identity and global sports events: culture politics and spectacle in the Olympics and the Football World Cup. Nova York: State University of New York Press, 2006, pp. 15-39.

[3] Para Setha Low, a formação de espaços espetaculares é essencial para a legitimação performativa do Estado. Ela se refere a esses espaços como "espaço corporificado", o local onde a experiência e a consciência humanas assumem forma material e espacial. Cf. Low, Setha M. "Anthropological theories of body, space, and culture". Space and Culture, vol. 6, 1, 2003, pp. 9-18.

[4] Benjamin, Walter. Illuminations: essays and reflections. Nova York: Schocken, 1968, pp. 165-67.

[5] Cf. Judd, Dennis. The infrastructure of play: building the tourist city.

Nova York: M.E. Sharpe, 2003; Ashworth, G. J. e Voogd, H. Selling the city: marketing approaches in public sector urban planning. Londres: Belhaven Press, 1990.

[6] Cf. Chalkey, Brian e Essex, Stephen. "Urban development through hosting international events: a history of the Olympic Games". Planning Perspectives, vol. 14, 4, 1999, pp. 369-94; Hiller, Harry H. "Mega- events, urban boosterism and growth strategies: an analysis of the objectives and legitimations of the Cape Town 2004 Olympic bid". International Journal of Urban and Regional Research, vol. 24, 2, 2000, pp. 439-58; Whitson, David e Macintosh, Donald. "The global circus: international sport, tourism and the marketing of cities". Journal of Sport and Social Issues, vol.

20, 3, 1996, pp. 278-95.

[7] Em referência à renascença urbana por que passou a cidade espanhola após a construção, concluída em 1997, de um museu de arte espetacular projetado pelo arquiteto Frank O. Gehry.

[8] Cf. Crilley, Darrel. "Architecture as advertising: constructing the image of redevelopment". In: Kearns, Gerry e Philo, Chris (orgs.). Selling places: the city as cultural capital, past and present. Oxford: Pergamon Press, 1993; Miles, Steve e Miles, Malcolm. Consuming cities. Nova York: Palgrave Macmillan, 2004; Evans, Graeme. "Hard-branding the cultural city: from Prado to Prada". International Journal of Urban and Regional Research, vol. 27, 2, 2003, pp. 417-40.

[9] Leach, Neil. The Anaesthetics of Architecture. Cambridge: MIT Press, 1999.

[10] Nas palavras de Leach, a estética da arquitetura ameaça tornar-se a "anestética" da arquitetura.

[11] Benjamin, Walter. "The work of art in the age of mechanical reproduction".

In: Illuminations, op. cit., pp. 217-52.

[12] Cf. Julier, Guy. "Urban designscapes and the production of aesthetic consent". Urban Studies, vol. 42, 5-6, 2005, pp. 869-87.

[13] Boorstin, Daniel J. The Image: A Guide to Pseudo-events in America. Nova York: Atheneum, 1961.

[14] Baudrillard, Jean. Le système des objets. Paris: Denoël/Gonthier, 1968; idem. La Société de consommation. Paris: Gallimard, 1970.

[15] Baudrillard, Jean. Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981.

[16] Debord, Guy. La société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992 [1967] .

[17] Cf. idem, ibidem, cap. 1, tese 5.

[18] Idem. Commentaires sur la société du spectacle. Paris: Gallimard, 1992 [1988].

[19] Hui, Wang. China's new order: society, politics, and economy in transition. Org. Theodore Huters. Cambridge: Harvard University Press, 2003.

[20] Idem, ibidem, p. 91.

[21] Harvey, David. A brief history of Neoliberalism. Oxford University Press, 2005, p. 122.

[22] Cf. Wu, Fulong. "Place promotion in Shanghai, PRC". Cities, vol. 17, 5, 2000, pp. 349-61; Xu, Jiang e Yeh, Anthony G. O. "City repositionning and competitiveness building in regional development: new development strategies in Guangzhou, China". International Journal of Urban and Regional Research, vol. 29, 2, 2005, pp. 283-308.

[23] Cf. Hui, op. cit.

[24] Ma, Laurence J. C. e Wu, Fulong. Restructuring the Chinese city. Londres: Routledge, 2005.

[25] Cf. Cartier, Carolyn. "Transnational urbanism in the reform-era Chinese city: landscapes from Shenzhen". Urban Studies, vol. 39, 2002, pp. 1.513-32.

[26] Para uma descrição detalhada dos projetos, ver Broudehoux, Anne-Marie.

"Spectacular Beijing: the conspicuous construction of an olympic metropolis".

Journal of Urban Affairs, vol. 29, 4, 2007, pp. 383-99; ver também Ren, Xuefei. "Architecture and nation building in the age of globalization: construction of the National Stadium of Beijing 2008 Olympic Games". Journal of Urban Affairs, vol. 30, 2, 2008, pp. 175-90.

[27] Cf. Broudehoux, Anne-Marie. "Learning from Chinatown: the search for a modern architectural identity, 1911-1998". In: Alsayyad, Nezar (org.). Hybrid urbanism: on the identity discourse and the built environment. Westport, Londres: Praeger, 2001, pp. 156-80; Hung, Wu. Remaking Beijing: Tiananmen Square and the creation of a political space. Londres: Reaktion, 2006.

[28] Tafuri, Manfredo. Architecture and utopia: design and capitalist development. Cambridge: MIT Press, 1979.

[29] Ver Broudehoux, "Spectacular Beijing...", op. cit.

[30] Para uma descrição detalhada das formas de resistência à reurbanização olímpica de Pequim, ver Broudehoux, Anne-Marie. "Seeds of dissent: the politics of resistance to Beijing's Olympic redevelopment". In: Butcher, Melissa e Velayutham, Selvaraj (orgs.). Dissent and cultural resistance in Asian cities.

Londres: Routledge, 2009, pp. 14-32.

[31] A primeira delegação chinesa a participar dos Jogos Olímpicos, na edição de 1932, não conseguiu levar sequer uma medalha para casa, e foi somente em 1960, em Roma, que um atleta chinês ganhou uma medalha olímpica. Ver Brownell, Susan. Beijing's Games: what the Olympics mean to China. Lanham, Maryland: Rowman & Littlefield, 2008.

[32] Cf. Ren, Xuefei. "La ville chinoise et ses 'grands projets' urbains: l'architecture internationale en question". La Vie des Idées, 12, 2006, pp.

77-83.

[33] Cf. Watts, Jonathan. "Olympic artist attacks China's pomp and propaganda".

The Guardian, 09/08/2007, p. 5; Weiwei, Ai. "The Olympics are a propaganda show" entrevista a Andreas Lorenz. Der Spiegel, 29/01/2008, p. 11.

[34] Ver Broudehoux, Anne-Marie. "Delirious Beijing: euphoria and despair in the Olympic metropolis". In: Davis, Mike e Monk, Daniel (orgs.). Evil paradizes: dreamworlds of neoliberalism. Nova York: New Press, 2007.

35] Abidin Kusno chamou-me a atenção para essa dimensão do espetáculo.

[36] Brownell, op. cit.

[37] Esse entendimento foi externado, por exemplo, por Zhu Xueqin, professor da Universidade de Xangai; cf. Meng, Sue. "An Olympic force for change".

Washington Post, 20/04/2008, p. B-7. Ver também Cervellera, Bernardo. "Chinese dissident: criticism of Beijing's repression is the true sign of the Olympic spirit". Asia News, 07/04/2008.

[38] Entre eles, estão os arquitetos Yung Ho Chang, Pei Zhu, Wang Hui, Liu Jiankun, Zhang Yonghe, Wang Shu e Qinyun Ma.

[39] Cf. Ren, Xuefei. "Architecture and China's urban revolution". City, vol.

12, 2, 2008, pp. 217-25.

[40] Na noção de Debord, détournement é um ato ou processo de desvio ou deflexão do espetáculo.

[41] Nessa abordagem beneficiei-me de Ghirardo, Diane. "Introduction". In: Out of site: a social criticism of architecture. Seattle: Bay Press, 1991, pp. 9- 16.

[42] Para mais detalhes sobre essa controvérsia, ver Broudehoux, Anne-Marie.

The making and selling of post-Mao Beijing, Londres/Nova York: Routledge, 2004, pp. 229-34.

[43] Para o etnógrafo olímpico John MacAloon (op. cit.), o espetáculo simultaneamente diz respeito a vista, visão e supervisão.


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