O insulto racial: as ofensas verbais registradas em queixas de discriminação
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esde que a lei 7.716 de 1989 definiu o crime racial no Brasil, um dado passou a
chamar a atenção tanto dos ativistas e advogados negros quanto dos
pesquisadores: a maioria das queixas de discriminação poderia ser enquadrada
nos crimes de injúria ou infâmia2. A importância numérica dos casos de insulto
racial foi tão grande que em 1997, por pressão dos ativistas, os legisladores
modificaram o Código Penal Brasileiro (Lei n. 9459) para que a injúria racial
fosse punida com o mesmo rigor dos crimes raciais.
Em outro texto, interpretei a ofensa verbal que acompanha a maioria dos atos de
discriminação como a única evidência disponível para o queixoso de que a
discriminação sofrida por ele é realmente de cunho racial, e não apenas de
classe, como é muito comum no Brasil (Guimarães 1998). Neste artigo, pretendo
investigar o insulto racial em si mesmo, como forma de construção de uma
identidade social estigmatizada. Para tanto, volto a me valer das queixas
registradas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo, ainda que essa fonte
tem a desvantagem de ser um registro feito por um terceiro (o plantonista) a
partir do relato de apenas uma das partes, a vítima. Em contrapartida, traz a
vantagem de apresentar estereótipos socialmente aceitos tanto pelas vítimas
quanto pelos policiais. Tomei para a análise apenas as queixas registradas
entre maio de 1997 e abril de 1998.
Em 74 das noventa queixas prestadas na delegacia durante esse período ' ou
seja, em 82% dos casos ' as vítimas fizeram registrar também os insultos
verbais recebidos, o que é natural, visto que 76% das queixas registradas foram
de ataques à honra pessoal. No entanto, os insultos aparecem na maioria das
queixas relativas à discriminação nas esferas do trabalho, da vizinhança e do
consumo (cf. tabela_1), o que reforça minha convicção de que as injúrias são
usadas de forma bastante licenciosa na sociedade brasileira. Apenas no âmbito
das relações de consumo de bens e serviços o número de queixas sem registro de
insulto é significativo (dez em 21 casos); nos demais âmbitos da vida social,
as queixas com insulto são sempre maiores que 80%.
O que são insultos raciais?
Charles Flynn define o insulto como um ato, observação ou gesto que expressa
uma opinião bastante negativa de uma pessoa ou grupo. Tratarei aqui apenas das
ofensas verbais. Flynn também se propõe a examinar a natureza das suposições
comuns e óbvias concernentes à realidade social, partilhadas por membros de
sistemas socioculturais específicos, e demonstrar como os insultos, em uma
grande variedade de culturas, consiste principalmente em violações de normas
muito significantes, mas substancialmente implícitas (Flynn 1977: 3, 6). Mais
que uma opinião negativa, portanto, o insulto implica o rompimento de uma norma
social. Para Edmund Leach, ele significa a violação de um tabu, ou seja,
consiste na expressão de nomes, atos ou gestos socialmente interditos que
geralmente se referem aos muito próximos ou muito longínquos de si, sejam
pessoas, animais ou fatos corpóreos (Leach 1983).
A função ou a intenção do insulto podem variar, mas estão sempre ligadas a uma
relação de poder. Flynn lista algumas dessas funções: a) legitimação e
reprodução de uma ordem moral; b) legitimação de uma hierarquia entre grupos
sociais; c) legitimação de uma hierarquia no interior de um grupo; e d)
socialização de indivíduos em um grupo. Essas duas últimas correspondem melhor
ao que, na literatura especializada, costuma se chamar de insultos rituais,
ou seja, contendas verbais em que insultos são trocados de modo regulado, pondo
em evidência o domínio verbal e o controle emocional dos participantes3. No
caso de insultos raciais não-rituais, estamos lidando fundamentalmente com
tentativas de legitimar uma hierarquia social baseada na idéia de raça4.
No estudo da formação de grupos socialmente execrados, Elias & Scotson
(1994) propõem um ordenamento no modo como os grupos dominantes estigmatizam os
dominados. Segundo eles, isso ocorre quando tais grupos detêm o efetivo poder
de fazer crer, a si mesmos e aos próprios execrados, que tais estigmas são (ou
podem ser) verdadeiros. O primeiro modo de estigmatizar é a pobreza, e para
utilizá-la o grupo dominante precisa monopolizar as melhores posições sociais
em termos de poder, prestígio social e vantagens materiais, já que apenas nessa
situação a pobreza pode ser vista como decorrência da inferioridade natural dos
excluídos. O segundo modo é atribuir como características definidoras do outro
grupo a anomia (a desorganização social e familiar) e a delinqüência (o não
cumprimento das leis). O terceiro, atribuir ao outro grupo hábitos deficientes
de limpeza e higiene. O quarto e último é tratar e ver os dominados como
animais, quase animais ou não inteiramente pertencentes à ordem social.
Os insultos também são evocação de estigmas sociais e pessoais, que Erving
Goffman (1963) classificou em três tipos: 1) anomalias corporais (deformidades
físicas); 2) defeitos de caráter individual (fraqueza de vontade, paixões
inaturais, crenças rígidas, desonestidade etc.) inferidos a partir de doença
mental, encarceramento, alcoolismo, vício, homossexualidade, desemprego,
tentativas de suicídio ou comportamento político; e 3) estigmas tribais (raça,
nação, religião, e mesmo classe).
Os termos injuriosos encontrados
Os insultos raciais seguem essa lógica. Como instrumentos de humilhação, sua
eficácia reside justamente em demarcar o afastamento do insultador em relação
ao insultado, remetendo-o ao terreno da pobreza, da anomia social, da sujeira e
da animalidade.
No entanto, como a posição social e racial dos insultados já está estabelecida
historicamente através de um longo processo anterior de humilhação e
subordinação, o próprio termo que os designa como grupo racial (preto ou
negro) já é em si mesmo um termo pejorativo, podendo ser usado
sinteticamente, sem estar acompanhado de adjetivos ou qualificativos. Assim,
negro ou preto passam a ser uma síntese verbal ou cromática para toda uma
constelação de estigmas referentes a uma formação racial identitária. Mais que
o termo, a própria cor adquire função simbólica, estigmatizante, como bem o
demonstram os sinônimos listados em dicionários de língua vernácula: sujo,
encardido, lúgubre, funesto, maldito, sinistro, nefando e perverso, entre
outros. O estigma pode estar tão bem assentado que é possível a um negro, por
exemplo, sentir-se ofendido por uma referência tão sutil quanto também, olha a
cor do indivíduo....
A estigmatização, todavia, requer um aprendizado que passa necessariamente pelo
processo de ensinar aos subalternos o significado da marca de cor. Assim,
para humilhar o filho menor de uma vizinha, uma senhora refere-se à sua cor no
diminutivo e designa seu corpo com cores estranhas: Pode me deixar passar,
seu negrinho de olho roxo?. Ou, em outro exemplo, agora envolvendo dois
adultos, o administrador de uma empresa diz por telefone à gerente de outra
empresa que se prontificou a atendê-lo em lugar do chefe: Não falo com preto.
Prefiro esperar. Tal forma sintética visa criar uma barreira social
intransponível entre o agressor e a vítima, muito confortável para o primeiro,
uma vez que ele precisa apenas pronunciar o nome do grupo, designação sintética
da injúria. Às vezes, a palavra nem mesmo precisa ser pronunciada, bastando
reivindicar a segregação: Você não deveria estar aqui. Qualquer um poderia
estar aqui, menos você.
Nos dados analisados, a forma sintética é minoritária, ocorrendo apenas em dez
dos 78 insultos registrados (13%). Na maioria desses casos, a proximidade
social entre as partes exigiu que o ritual de afastamento fosse repetido
através de insultos qualificados, que procuraram associar a cor do agredido à
outra dimensão do estigma.
Tais insultos, obviamente, requerem uma reiteração dos termos ofensivos
sintéticos pelo qual o grupo é reconhecido, fazendo com que em 78 das ofensas
registradas a palavra negro e seus derivados (feminino, diminutivo e
corruptelas) fosse citada 55 vezes, e preto, 33. Eis um exemplo de reiteração
quase histérica que tem por finalidade associar o nome grupal a qualidades
desprezíveis: Preto safado, sangue de preto, negro sem-vergonha, preto
vagabundo, você não presta porque tem sangue de preto.
Quando se trata de insulto propriamente racial, a animalidade é atribuída
principalmente através de termos como macaco e urubu, usados
indistintamente para ambos os sexos. No primeiro caso, além de selvagem o
animal é considerado pela zoologia o mais próximo do ser humano, devendo
portanto, seguindo as idéias de Leach, ser objeto de distanciamento ritual
muito rigoroso; no segundo, trata-se de um abutre que tem por hábito devorar
cadáveres de outros animais, inclusive humanos.
Quando se trata de mulheres negras, o insulto racial é às vezes acompanhado do
insulto sexual, que iguala mulheres a animais para atribuir-lhes devassidão
moral, usando termos como vaca, galinha ou cadela5. Outros animais, como
barata, são usados para ofender sexualmente e atribuir sujeira (Filhas de
uma barata preta, vagabunda)6. A condição de quase humanidade pode ser
referida também por qualidades intelectuais negativas como burro, imbecil e
idiota. O termo índio também foi registrado, utilizado para referir-se à
condição de sociabilidade incompleta, selvagem.
A anomia social é referida de três maneiras. Primeiro, através de termos ou
qualidades ligadas à delinqüência: ladrão, folgado, safado, sem-
vergonha, aproveitador, pilantra, maconheiro e traficante; segundo,
através de termos que se referem à moral sexual: vagabunda, bastardo,
filho-da-puta7, prostituta, gigolô, sapatão, homossexual e maria-
homem; terceiro, por estigmatização religiosa, através de termos como
macumba e macumbeira.
O estigma da sujeira é reforçado por termos como fedida, merda, podre,
fedorenta, porqueira, nojento e suja. A pobreza e a condição social
inferior são referidas por palavras como favelada, maloqueira,
desclassificado e analfabeto. De fato, os estigmas de inferioridade social
preferidos são o local e o tipo de moradia e o grau de instrução formal. Outra
estratégia lingüística freqüente é o uso de diminutivos como negrinho ou
negrinha para referir-se aos insultados, além da referência direta à classe
(Não falo com gente de sua classe) ou à situação de escravidão (Lugar de
negro é na senzala), expressões utilizadas para referir-se a uma forma de
natureza ou de ordem social estagnada (a laia, a casta, o escravo). Alguns dos
termos empregados, como besta e metida, evocam tentativas de inversão da
hierarquia social considerada natural, pois são usados para afirmar que tais
pessoas querem usurpar uma posição que não é sua. Finalmente, vale a pena
mencionar a ocorrência de referências a doenças ou defeitos físicos do
insultado (tais como queimada ou cancerosa) e a determinações naturais ou
teológicas (como maldito, desgraça e raça).
Como estratégia de distanciamento social, os insultos propriamente raciais que
encontrei nos registros policiais podem ser agrupados em sete tipos:
1. simples nominação do Outro, de modo a lembrar a distância social ou
justificar uma interdição de contato;
2. animalização do Outro ou implicação de incivilidade;
3. acusação de anomia em termos de
3.1. conduta delinqüente ou ilegal;
3.2. imoralidade sexual;
3.4. irreligiosidade ou perversão religiosa;
4. invocação da pobreza ou da condição social inferior do Outro, através de
4.1. termos referentes a tal condição;
4.2. referência a uma origem subordinada;
4.3. uso de diminutivos;
4.4. acusação de impostura (assunção de posição social indevida);
5. acusação de sujeira;
6. invocação de uma natureza pervertida ou de uma maldição divina; e
7. invocação de defeitos físicos ou mentais.
Tomados de per si, anotei 56 termos injuriosos, distribuídos pelas sete
categorias elaboradas acima (cf. tabela 2). Os termos sintéticos mais
utilizados são negro/negra, preferido pelas mulheres, e preto/preta,
preferido pelos homens. O insulto animal mais empregado é macaco. Os termos
de anomia que se referem à moral sexual são os mais numerosos e geralmente
assacados contra as mulheres (vítimas ou mães das vítimas): vagabunda é o
insulto preferido pelas mulheres, e filho-da-puta, pelos homens. Entre
aqueles que se referem à legalidade ou ao caráter, safado é o insulto
preferido, geralmente dirigido contra homens. As mulheres têm também o
privilégio de serem acusadas de macumbeiras. Entre as injúrias que se referem
à condição social, a preferida é lembrar a condição de ex-escravo, através da
referência ao lugar que se crê apropriado às vítimas: a senzala. Esse é
geralmente um insulto de branco contra negro, de superior social para inferior.
Termos com favelado ou maloqueiro são atualizações dos locais de moradia
apropriados a negros, mas desferidos por pessoas da mesma condição social da
vítima. Os termos que remetem à sujeira também não são concentrados: fedido,
merda e sujo têm a maior freqüência. Nas demais categorias, chama a atenção
apenas o insulto que se refere diretamente à raça do indivíduo insultado,
evocando uma índole pervertida.
O quadro_1 sintetiza a classificação dos insultos encontrados. Note-se que o
recurso à metáfora animal abrange praticamente toda a taxonomia, seguindo a
estreita relação entre categoria animal e abuso verbal prescrita por Leach. Os
insultos sexuais são referidos por animais domésticos (cadela); de criação, mas
ligados à alimentação da casa (galinha e vaca); ou próximos indesejáveis, como
a barata ' esse uso corresponde de modo geral à lógica das interdições de
contato sexual entre os muito próximos. Os insultos relativos à hierarquia e às
deficiências físicas e mentais estão referidos a animais de trabalho (burro,
besta), bichos domesticados mas não muito próximos, que jamais comemos. Apenas
os insultos raciais são referidos por animais distantes (macacos, urubus),
selvagens ou que devem ser mantidos distantes da vida social.
As situações de insulto
A situação que propicia a agressão verbal pode ensinar muito sobre o
significado sociológico do insulto racial. Quando o insulto é desferido? Quais
as posições do agressor e da vítima na relação social? Que tipo de insulto é
desferido, dependendo da situação e das características da vítima?
Uma afirmação do senso comum no Brasil é a de que o insulto racial ocorre
apenas em situações de conflito, ou seja, de ruptura de uma ordem formal de
convivência social. Essa afirmação nada mais é que a conseqüência do
pressuposto da ordem igualitária, de respeito aos direitos individuais,
resguardada por normas de polidez e formalidade. Ainda que aceito idealmente,
esse pressuposto pode não ser verdadeiro na prática social. Além disso, o
insulto racial pode tanto ocorrer durante o conflito quanto, ao contrário,
ocasionar o conflito. Pode ser uma arma de última instância, mas também um
primeiro trunfo a ser sacado. Portanto, o que motiva o insulto racial e a ordem
em que ele aparece no conflito são elementos decisivos para esta análise.
Hasenbalg aponta que
Com relação aos padrões de sociabilidade inter-racial, é notório que
a classe baixa branca carrega um folclore de concepções
estereotipadas do negro. Contudo, tais estereótipos são com
freqüência verbalizados em contextos amistosos, e as situações
raramente evoluem para o conflito interpessoal e para a violência, a
menos que a intenção ofensiva esteja claramente presente (Hasenbalg
1979: 252).
Ora, assim como nas situações de insulto ritual, os termos injuriosos podem ser
empregados em um sentido oposto ao seu significado corrente. Isso acontece
quando são usados entre pessoas muito próximas, amigas, para simbolizar
justamente a ausência de formalidade entre elas, ou seja, o grau de intimidade
e confiança mútuas. Seu emprego é notado principalmente entre membros de grupos
estigmatizados: os epítetos mais insultuosos, normalmente dirigidos a tais
grupos por seus detratores, são empregados com enorme ironia, desprovidos de
significado subjetivamente ofensivo, uma vez que todos sabem fazer parte da
comunidade estigmatizada referida pelo epíteto. Do mesmo modo, o uso de
epítetos injuriosos ocorre freqüentemente em situações definidas ambiguamente
pelo agressor, situando-se entre a intimidade da brincadeira (a proximidade
expressa no insulto ritual) e o distanciamento expresso pelo conteúdo semântico
das palavras ofensivas. Nesses casos, apesar de não ser amigo do insultado, o
insultante se põe nesse terreno ao usar o termo injurioso de modo que possa ser
interpretado como um convite à brincadeira, cabendo ao insultado a
responsabilidade de definir a situação: se aceita o outro como um igual e trata
o incidente como o início de uma troca de insultos rituais, ou se aproveita a
ocasião para coalescer a distância entre ambos. Quando ocorre entre membros de
grupos raciais diferentes (brancos e pretos), mas da classe social (pobres), a
situação mostra apenas a ambigüidade das pertenças de classe e de raça.
Como era de se esperar, essas situações de ambigüidade ou de expressão de
intimidade não aparecem nas queixas prestadas em delegacias. De acordo com os
dados de que disponho, o insulto racial aparece nas situações agora descritas.
Primeiro, quando, por algum motivo, a relação entre as pessoas envolvidas está
tensa e bastante desgastada, seja na convivência vicinal ou familiar, seja na
ordem contratual ou qualquer outra. A partir de determinado momento, uma das
partes resolve utilizar o insulto como modo de humilhar sistematicamente seu
desafeto. A queixa transcrita ilustra tal situação:
Informa a vítima que divide o mesmo quintal com sua cunhada, a
indiciada, sendo que, por desentendimentos antigos, a mesma
freqüentemente é ofendida verbalmente, bem como seus filhos, sendo
chamados de macacos, vagabunda, negrinho bastardo, negra
fedida, favelada etc. Que o fato ocorre freqüentemente, não
havendo condições de diálogo pacificamente.
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Segundo, quando durante uma disputa comum qualquer, esgotados os meios de
convencimento e o uso de ameaças plausíveis, diante da recusa ou falta de
assentimento da vítima, a injúria é usada para encerrar a disputa através da
humilhação. Nesse caso, o insulto sinaliza a passagem da disputa para o
conflito. A queixa abaixo se enquadra nessa situação. Note-se que a expressão
insultuosa (nega besta) procura caracterizar a atitude de resistência como
provocada pela petulância e pela arrogância de alguém que usurpa uma posição
social (de igualdade com o agressor) que não lhe seria devida (por causa da
cor).
Comparece a vítima, informando que, na data e local dos fatos, soube
por seu advogado que a 1a. indiciada disse a ele que ela deveria
pagar uma dívida que tinha assumido com a imobiliária, na qualidade
de fiadora de um imóvel, proferindo as seguintes palavras: aquela
nega besta está bem grandinha pra assumir as coisas que assina,
aquela esclerosada. E a vítima, na mesma data, recebeu uma ligação
do advogado da imobiliária (2o. indiciado), cobrando tal débito que,
segundo a vítima, foi fiadora de um imóvel involuntariamente, ou
seja, citada como fiadora sem seu conhecimento, e como disse ao
referido advogado que nada devia à imobiliária, este ofendeu-
a dizendo: por causa de uma merreca, você e seu advogado vão se
foder, sua nega besta.
Terceiro, quando uma falha involuntária da vítima provoca o ódio do agressor. É
como se houvesse, por parte deste, uma predisposição racista, uma animosidade
gratuita ou motivada por eventos anteriores que, diante do menor fato,
manifesta-se como insulto:
Informa a vítima que na data de ontem colocou seu veículo na vaga
privativa de vendedores da empresa em que trabalha, com a intenção de
tirá-lo assim que começassem a chegar os vendedores, sendo que
ninguém o avisou e acabou esquecendo. Assim foi procurado pelo
gerente, que estupidamente o repreendeu. Que imediatamente procurou
tirar o carro da vaga e surpreendeu o referido gerente falando para a
primeira testemunha: ' Preto é uma merda, por isso que eu não gosto
dessa raça. Ao tomar satisfações sobre o que dizia, o mesmo não
repetiu tais frases, alegando que se a vítima não tivesse gostado que
partisse para cima.
Quarto, quando não há nenhum conflito e o insulto é apenas o meio extremado de
demarcar a separação racial entre agressor e vítima. Trata-se da reivindicação
de uma segregação social:
Informa a vítima que o indiciado, o qual prestava serviços de
convênio de assistência médica à empresa em que a vítima trabalha, e
por esse motivo freqüentemente precisava entrar em contato pessoal ou
telefônico, na data de hoje ligou para falar com o gerente comercial
e a testemunha retro disse que ele não se encontrava mas, se
quisesse, poderia falar com a vítima. O indiciado pelo telefone
respondeu: não falo com preto. Prefiro esperar. A vítima então
tomou conhecimento do fato e ficou sabendo que isso era freqüente.
Esclarece ainda que nas oportunidades anteriores que falou com o
indiciado, ele sempre foi extremamente mal-educado. A vítima sente-se
discriminada e ofendida em sua honra e imagem pessoal.
Quinto, quando o agressor se vê na posição de ser corrigido ou repreendido por
ter cometido uma falha e, para reverter tal posição, agride verbalmente a
vítima. Estão sujeitos a essa situação de risco os negros que, no cumprimento
dos deveres do cargo, vêem-se obrigados a fazer cumprir as normas:
Informam as vítimas que na data e local dos fatos, onde são
seguranças, após procurarem o averiguado, que é morador do
Condomínio, e adverti-lo que poderia ser multado caso não retirasse o
seu veículo, que estava ocupando a vaga de outro proprietário, este
passou a ofender-lhes dizendo: quem são vocês, são uns porqueiras,
uns pretos folgados, desclassificados e, ato contínuo, foi entrando
em sua residência dizendo: vou cortar vocês no carango agora, ao
que foi impedido por familiares, que não o deixaram entrar no quarto
para pegar alguma arma, segundo informam as vítimas.
Em todos esses casos, à exceção do primeiro, é nítido o sentimento hierárquico
de superioridade do agressor, ferido pelo comportamento igualitário do ofendido
seja em uma disputa ou em um incidente que o assusta ou desagrada, seja no dia-
a-dia do relacionamento social. Mais que uma arma de conflito, o insulto é uma
forma ritual de ensinar a subordinação através da humilhação. No cotidiano, é
provável que os insultos raciais sejam mais comuns nas situações de conflito,
ou mesmo em última instância de ofensa, como muitos acreditam. Pelos dados que
analisei, contudo, parece certo acreditar que tais insultos não são
especialmente mais ofensivos que outros porventura proferidos durante o
conflito, quando são invocados não apenas a raça, mas também o sexo, as
preferências sexuais, a origem regional, familiar e de classe, os defeitos
físicos, os defeitos morais etc.
Do mesmo modo, poucos insultos (16) ocorreram durante campanhas sistemáticas de
humilhação pública como forma de retaliação a alguma ofensa real ou imaginada.
Os demais foram decorrentes de situações singulares e fortuitas. Algumas
estatísticas podem ajudar a esclarecer esse ponto. Das 74 queixas em que foram
registradas injúrias, 29 (39%) se referem a insultos proferidos no ambiente de
trabalho por clientes, colegas, superiores ou subordinados; 18 insultos (24%)
foram proferidos por vizinhos; 12 (16%) foram sofridos por negros na condição
de consumidores, inquilinos ou usuários; os demais insultos ocorreram em
situação familiar (6), na rua (2), no trânsito (4), ou em decorrência de
realização de negócios (3). Ou seja, as queixas de insulto ocorrem com mais
freqüência em âmbitos em que as relações sociais são mais intensas e também
mais formalizadas e nas quais, portanto, o insulto é mais contundente.
Das 90 queixas prestadas, 4 referiam-se a minorias étnicas (dois nordestinos,
um peruano e uma judia) e, nestas, registraram-se injúrias proferidas em
situação de consumo, trabalho ou negócio. No caso dos nordestinos, as injúrias
aludiam a seu deslocamento geográfico, isto é, ao fato de serem de outro lugar:
Esses nordestinos desgraçados, vem pra cá querer mandar; sua vaca [...] ou
você tem complexo de inferioridade por ter nascido naquela terrinha de
Arapiraca [...] porque você nasceu na puta que pariu. No caso do peruano, foi
também sua condição de estrangeiro a ser injuriada, juntamente com sua
aparência física: É por isso que eu não gosto de fazer contratos com esses
índios nojentos e ainda mais sendo estrangeiro, tem que morar no mato do seu
país. No caso da judia, a injúria foi genérica: Sua judia fracassada [ ]
nenhum judeu presta.
Examinemos mais de perto os insultos propriamente raciais contra negros.
Insultados e insultantes
Dois fatos chamam a atenção quando observamos as estatísticas. Primeiro, é
maior o número de mulheres que se queixam de discriminação, e também e
proporcionalmente, maior o número de mulheres com queixas de insultos, ou seja,
os insultos às mulheres são mais que proporcionais à razão entre homens e
mulheres queixosos. Os insultos são principalmente desferidos por mulheres
contra mulheres (36,8%) e por homens contra homens (29,9%), ainda que nos
insultos entre sexos sejam os homens que ofendam duas vezes mais as mulheres
(23,0%) que o inverso (10,3%). Isso, contudo, não explica a quantidade de
insultos à conduta moral ou sexual das vítimas, pois são as mulheres, e não os
homens, que abusam de referências desabonadoras à moral sexual das vítimas. De
fato, 39% das injúrias proferidas por mulheres contra mulheres e 40% das
dirigidas por elas contra homens referiam-se à moral sexual, enquanto entre os
homens apenas 12% assacaram contra a honra sexual das mulheres negras e nenhum
ofendeu a moral sexual de outro homem, preferindo fazê-lo, em 21% dos casos, em
relação à mãe dos mesmos (cf. tabela_3).
Considerando não os casos registrados, mas a freqüência dos termos injuriosos
proferidos, chega-se à mesma conclusão. A mulher é muito mais insultada que o
homem. No caso de injúrias entre pessoas do mesmo sexo, as mais numerosas (108
em 172), os insultos envolvendo mulheres são quase o dobro daqueles envolvendo
homens (38 em 40). Já nos casos de injúrias intersexuais (54 em 172), os homens
ofendem 57% mais as mulheres do são ofendidos por elas. Em suma, a maioria dos
insultantes é mulher (58%), mas em compensação as mulheres são também as mais
insultadas (64%), visto que 45% dos insultos contra mulheres são dirigidos por
outras mulheres e que os homens as insultam mais que são insultados por elas
(cf. tabela 2).
O segundo fato que merece atenção é a grande quantidade de averiguados, ou
seja, de insultadores, de cor ignorada ou não anotada. Como seria de esperar,
93% das vítimas se declararam ou foram declaradas negras; no entanto, apenas
57% dos insultantes foram considerados brancos, sendo que 38% deles não tiveram
a cor registrada pelo plantonista ou declarada pela vítima. Desconhecimento,
dado sem importância ou silêncio revelador? A presença do insulto mostra que
dificilmente a cor do acusado não teria sido notada. Por se tratar de um
boletim de ocorrência sobre crime de racismo, peça que fundamenta qualquer ação
judicial, também parece difícil crer que a cor do acusado tenha sido esquecida
sem propósito. Portanto, o mais provável é que 38% dos acusados também não
fossem brancos (cf. tabela_4).
É possível também que o gênero ' predominantemente masculino ' e a cor ' na
maioria branca ' dos indiciados e as características de gênero e cor das
vítimas ganhem importância para a compreensão sociológica apenas no âmbito das
relações sociais em que ocorreu o insulto. Voltemo-nos, portanto, para cada
situação em separado.
Os insultos proferidos em situação de trabalho
A maioria dos insultos proferidos em locais de trabalho provém de clientes ou
usuários de serviços prestados por trabalhadores negros (56%), ocorrendo quando
tais empregados cumprem normas ou regras que desagradam ou ferem o sentido de
hierarquia dos clientes. Nesse caso, longe de emergir do conflito, o insulto o
instala. Não se fazem necessárias palavras ou atitudes bruscas por parte dos
negros: é a própria atitude ordinária de cobrança, negação, repreensão ou
frieza que é sentida como ofensa pelos brancos. Eis um exemplo:
Comparece a vítima informando que na data e local dos fatos, onde
prestava serviços autônomos como garçom, ao servir o averiguado que é
sócio do Clube, após este pedir-lhe algumas refeições que constavam
no cardápio, mas que não tinham disponíveis para serem servidas,
somado ao fato de ter pedido para que a conta fosse separada, e por
norma do Clube o averiguado fora informado que não poderia ter esse
pedido aceito, passou a ofender a vítima com as seguintes ofensas:
Graças a Deus que você não é meu empregado, macaco, se fosse estaria
na senzala. A vítima sentiu-se ofendida em sua honra e imagem
pessoal.
Já se pode ver aqui que o insulto tem a função de ensinar à vitima seu lugar
esperado, ou seja, a subserviência. Para tanto, são sempre mencionados o
deslocamento social ou o lugar que as vítimas deveriam ocupar: a senzala,
desclassificados, essa macaca aí pensa que é o quê?, negra metida.
A inconformidade com a igualdade social dos negros transparece também nas
ofensas proferidas por superiores: Isso é um desperdício de talento. Essa
deveria estar lavando roupas. Isso aí é para nos servir; É negro, por isso
fez errado! Faz as coisas erradas e quer chegar cheio de razão! Esses
vigilantes nem estudo têm.... Ofensas que resvalam para outros âmbitos
(honestidade, diligência ou outros aspectos morais) quando direitos
trabalhistas são reivindicados ou estão em jogo. Às vezes, os insultados se
queixam de que o insulto precede um período de perseguição. Também os
inferiores hierárquicos invocam o deslocamento social das vítimas (Não
cumprirei ordens daquele negro analfabeto).
Dependendo do grau de segurança do ofensor quanto à sua própria posição social,
os insultos podem apenas sugerir a animalização ou coisificação dos negros
(quando o reconhecimento social do ofensor é visível), mantendo-se no terreno
da desqualificação social, ou podem progredir para uma completa negação da
humanidade do ofendido, situação mais comum quando a distância social entre
ofendidos e ofensores é mínima.
Também no caso de clientes e usuários, há, às vezes, a transferência para os
inferiores, ou seja, para os empregados, da raiva que deveria ser dirigida
contra o governo ou a organização que os negros momentaneamente representam:
Comparece a vítima nesta Delegacia informando que na data e local dos
fatos, onde trabalha como porteiro, logo após entregar o carnê do
IPTU para averiguada, foi ofendido pela mesma que disse: Eu quebro a
sua cara, seu nego safado, ladrão sem-vergonha, entre outras ofensas
que foram presenciadas pelas testemunhas retro qualificadas. A vítima
sentiu-se ofendida em sua honra e imagem pessoal.
Os clientes ou usuários insultantes são em sua maioria homens. Mas os homens
ofendem mais os homens e as mulheres ofendem mais as mulheres. Para o
insultante, portanto, além do fato de não suportar o que considera arrogância
ou desrespeito do servidor, o sexo da vítima tem alguma importância. Por que
será? Talvez porque a relação entre os sexos imponha mais formalidade e
envolva, ao mesmo tempo, uma abordagem mais simpática. Mas é interessante que
os homens negros insultados por clientes freqüentemente não declarem a cor dos
insultantes (quatro em cinco casos), enquanto as mulheres ofendidas esqueçam
menos da cor de quem as ofendeu (três em sete). Acaso? O fato é que a não-
declaração da cor dos insultantes é mais freqüente em queixas contra clientes e
usuários ou contra superiores hierárquicos que contra colegas ou subordinados,
e mais freqüente nos homens que nas mulheres.
Os insultos dos vizinhos
O local de moradia é o segundo âmbito social de maior registro policial de
insultos raciais. Por tratar-se de um ambiente doméstico, no qual a presença
feminina é maior, os registros são em sua maioria de mulheres brancas ofendendo
mulheres negras (13 em 19 casos). Quando ocorrem nesse âmbito, as ofensas são
respaldadas geralmente por uma história mais longa de desavenças, o que, aliado
à proximidade física entre os beligerantes, enseja disputas mais carregadas de
emoção, que extravasam em virulência verbal. A moral sexual, a humanidade, a
higiene, os defeitos físicos e a inconveniência da vizinhança das vítimas são
os alvos do ataque verbal. Eis alguns exemplos:
' Suas negrinhas filhas-da-puta, negas fedorentas, suas vacas, galinhas.
' Estou cheia dessa raça; por que vocês não se mudam? Essa raça não presta!
' Sua macaca, eu odeio negro, eu vou pôr você na cadeia, sua negra!
' Suas negrinhas vagabundas, vocês são negras maloqueiras e não prestam.
' Além de negra, ainda é queimada; na escola que eu dou aula é cheio de
negrinhos macaquinhos e eu reprovo mesmo, pois nego tem é que catar papel!
' Márcia sapatão, maldita, vagabunda, negra invejosa, que tinha inveja da mesma
por ser branca de olhos claros [...].
' Sua negra maloqueira, você tem que mudar do prédio.
' Essa negra do 4o. andar, eu não agüento esse cheiro! Eu vomito.
' Maconheiros, pretos sujos, vagabundos, traficantes, que odeia essa
raça, que odeia pretos e nordestinos.
O que dizer das disputas que geram tais insultos? São disputas entre síndico e
condôminos a respeito da honestidade do gerenciamento do condomínio, em torno
de brigas e brincadeiras de crianças, filhos das vítimas, a respeito do uso do
passeio das casas ou da garagem e, muitas vezes, ódio sem causa aparente, puro
desejo de segregação, vontade de evitar a presença de negros no prédio.
Os insultos a consumidores
As queixas de discriminação no âmbito de relações de consumo de bens e serviços
são aquelas que menos registram insultos recebidos ' apenas 12 entre 22. Esse
dado já revela que a relação de consumo é mais formal que as demais (de
trabalho, vizinhança ou as relações não sistemáticas, como as que se
desenvolvem na rua ou no trânsito), desenrolando-se normalmente sob etiqueta
bastante cuidadosa, que visa promover a imagem pública da empresa prestadora de
serviços. O contato social, nesse caso, é não apenas secundário, para usar a
terminologia clássica da sociologia, mas também padronizado. Como, então, mais
de 50% das queixas ainda evocam insultos raciais?
Observando-se caso a caso, tem-se o seguinte: três dos insultos ocorreram na
relação entre senhorio e inquilino, dois em estabelecimentos bancários,
envolvendo clientes e seguranças, e outros cinco em transporte coletivo
(motorista e usuário), lanchonete, hospital público, oficina e loja comercial.
Três fatos são dignos de nota: primeiro, os insultos mais fortes partem de
pessoas do mesmo nível social da vítima e provavelmente da mesma cor, uma vez
que geralmente a cor não é registrada; segundo, quando partem de pessoas de
nível social mais elevado ou dos donos do estabelecimento, os insultos são
sintéticos (preto, negro) ou simplesmente aludem à cor da vítima (Também,
olha a cor do indivíduo...); terceiro, os estabelecimentos pequenos apresentam
maior número de casos com insulto que os grandes, provavelmente porque neles a
relação com o consumidor é sujeita a menor formalização e disciplinamento.
O insulto no trânsito e em outros âmbitos
Do mesmo modo que a discriminação entre vizinhos, a discriminação no trânsito,
nos pequenos negócios ou na rua geralmente é insultuosa, e pelas mesmas razões:
a grande tensão emocional a que estão sujeitos os agressores. Trata-se de
insultos pesados, sempre carregados de alusões desabonadoras à moral sexual das
vítimas ou de suas famílias, desferidos quase sempre por pessoa do mesmo sexo.
Obviamente, o insulto proferido por familiares tem a mesma virulência, com a
agravante de, nesses casos, o sexo oposto não ter tratamento mais discreto.
Conclusões
Os negros no Brasil se queixam principalmente do insulto racial proferido no
âmbito do trabalho, da vizinhança e do consumo de bens e serviços. Fazem-no
beneficiando-se da Lei 7.716, modificada pela 9.945, que transformou a injúria
racial em crime. Para estudar o insulto racial nesta comunicação, utilizei os
registros de queixas na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo entre maio de
1997 e 1998.
Em minha interpretação, a função do insulto racial é institucionalizar um
inferior racial. Isso significa que o insulto deve ser capaz de,
simbolicamente, a) fazer o insultado retornar a um lugar inferior já
historicamente constituído, e b) re-instituir esse lugar.
A atribuição de inferioridade consiste na aposição de uma marca sintética, como
a cor, e qualidades e propriedades negativas (em termos de constituição física,
moralidade, organização social, hábitos de higiene e humanidade) a um certo
grupo de pessoas consideradas negras ou pretas.
Pelo que pude constatar, no Brasil esse inferior racial é constituído pelos
seguintes estigmas: 1) pretensa essência escrava; 2) desonestidade e
delinqüência; 3) moradia precária; 4) devassidão moral; 5) irreligiosidade; 6)
falta de higiene; 7) incivilidade, má-educação ou analfabetismo. Esses estigmas
são reiteradamente associados à cor negra ou preta que tais pessoas apresentam,
transformando-a em símbolo sintético de estigma. É interessante notar que, além
da cor, nenhuma característica física ' cabelos, lábios ou nariz, por exemplo '
foi invocada nos insultos registrados, ainda que saibamos serem comuns em
canções e ditos populares.
As situações de insulto, ou seja, aquelas em que a posição de inferioridade do
negro precisa ser reforçada por rituais de humilhação pública, ocorrem
principalmente no trabalho e nos negócios, nos quais o cliente ou usuário se
sente ameaçado pela autoridade de que o negro está investido, ou em situações
em que os brancos se sentem incomodados pela conduta igualitária do negro. No
Brasil, existem mesmo expressões, como tomar liberdade ou meter-se à besta,
para alguém que se crê superior se referir à conduta indevida de outrem, que
se crê socialmente igual a ele.
Ainda segundo meus registros, não foi possível confirmar a idéia presente no
senso comum de que no Brasil o insulto racial ocorre como último recurso de
ataque em uma disputa interpessoal que se deteriora. Na maioria das queixas que
analisei, o insulto foi o fato que instalou o conflito, e não uma decorrência
dele.
Todavia, por conta do número restrito de casos, essas conclusões não podem ser
consideradas definitivas, mas sim servir de guia para a investigação do insulto
racial através de novas fontes e outros métodos de observação.
Notas
1.
Comunicação ao congresso da American Anthropological Association, realizado em
Chicago em novembro de 1999. Agradeço a Afrânio Garcia, Jocélio Teles dos
Santos e Nadya Araújo Guimarães a leitura cuidadosa de versões preliminares
desse texto e suas valiosas sugestões.
2.
Ao contrário do norte-americano, o código penal brasileiro reconhece o crime
contra a honra. Sua mera existência já indica a presença de relações sociais
hierarquizadas, pautadas por um código de honra pessoal e estamental (e não
apenas ética).
3.
Tais jogos são muito comuns entre jovens negros americanos. Ver Dolard (1939)
e Labov (1972).
4.
Blacks, for example, are subjected to direct or indirect insults aimed at
reconfirming the cultural definition of their innate' inferiority and, perhaps
most significantly, of seeking to continually remind them of and hence
internalize within them, a sense of the low social esteem in which they are
held (Flynn 1977: 55).
5
.
A sexualidade humana é geralmente referida a animais. A recorrência à
animalização está sempre ligada à atribuição de estigma ou à formação de
carisma (reivindicação de qualidades excepcionais). Sobre a relação entre sexo
e animais, diz Leach: It is thus a plausible hypothesis that the way in which
animals are categorized with regard to edibility will have some correspondence
to the way in which human beings are categorized with regard to sex relations
(1983: 212).
6.
Barata, nesse contexto, tem mais de um sentido, referindo-se simultaneamente
à sujeira e à genitália feminina.
7.
É interessante notar que nas culturas latinas seja a relação de rebaixamento
social (filho-da-puta), e não um animal doméstico e íntimo (son-of-a-bitch) ou
o incesto materno (motherfucker) que expresse a maior vergonha masculina com
respeito à sua mãe e, portanto, o insulto sexual mais forte. A esse a respeito,
ver Preston & Stanley (1987).
8.
Essa e as demais citações foram transcritas tal como constam nos boletins de
ocorrência policial, prescindindo de anotações como sic ou qualquer outra
forma de edição.