Do cativeiro ao mar: escravos na Marinha de Guerra
Ao ler Bom-Crioulo, de Adolfo Caminha (1867-97), fiquei impressionado com o
realismo encontrado em cada uma de suas páginas. Nada demais para quem havia
sido oficial da Marinha de Guerra: de certa forma, várias das idéias que
possuía acerca do cotidiano nos navios da Armada estavam ali descritos, mas não
de forma seca e retalhada, como o eram as fontes que analisava todos os dias
nos arquivos. Contudo, uma questão intrincada nesse romance ' aliás, o mais
famoso de Caminha ' é o caminho seguido por negros nas últimas décadas da
escravidão.
Amaro é o personagem central do romance, "tão meigo que os próprios
oficiais começaram a tratá-lo por Bom-Crioulo" (Caminha 1991: 33). No
entanto, Amaro se alistara na Marinha sendo escravo fugido de uma
"fazenda", ou seja, ele era propriedade de um senhor e se alistara
sem a sua permissão. Eis a questão: Amaro, o negro escravo, envergara a farda
de grumete, e agora era um homem livre:
No mesmo dia foi para a fortaleza [...] o novo homem do mar sentiu
pela primeira vez toda a alma vibrar de uma maneira extraordinária,
como se lhe houvessem injetado no sangue de africano a frescura
deliciosa de um fluído misterioso. A liberdade entrava-lhe pelos
olhos, pelos ouvidos, pelas narinas, por todos os poros, enfim, como
a própria alma da luz, do som, do odor e de todas as cousas etéreas
(idem: 32).
Dessa inspirada passagem surgem algumas questões. Podemos acreditar na pena de
Adolfo Caminha e ter como certo que o alistamento nas Forças Armadas era um
caminho utilizado por escravos para alcançar a liberdade? Seria esse um caminho
ainda pouco observado pela historiografia preocupada em revelar os passos dos
escravos? Se era possível, como realizar o sonho da liberdade? Como deixar-se
arrastar, com determinação espartana e conhecimento de sua condição social,
pelas malhas finas do alistamento? Foram essas as questões que pulularam em
minha cabeça quando fechei a última página de Bom-Crioulo.
Além de analisar essa discussão, pretendo vinculá-la a outras questões
presentes na historiografia recente que aborda as reações do escravo à sua
condição. A fuga, a rebeldia, a formação de quilombos, os assassinatos e tantas
outras formas de reação estão sendo analisadas com maior meticulosidade por
esses historiadores, que encontram nas fontes outro sentido para essas reações.
Procuram alargar a compreensão desses atos, não os entendendo simplesmente como
um sistema de causa e conseqüência (ou seja, por serem maltratados e se
tornarem inadaptados ao sistema de trabalho, os escravos terminariam reagindo
às imposições da instituição escravocrata). Segundo Flávio Gomes, "a
historiografia sobre a escravidão pouco destaque tem dado às fugas" (1996:
76-7), problema para o qual pretendo dar minha contribuição. Para isso,
procurarei responder a uma parte das perguntas levantadas por esse autor,
principalmente estas: "as estratégias de sobrevivência dos fugitivos:
quais as principais estratégias para se manterem escondidos?" e
"Quais eram as possíveis direções?" (idem). Procurarei resgatar neste
trabalho a história dos escravos que fugiram e assentaram praça na Marinha de
Guerra, procurando o caminho da liberdade e a realização do que era melhor para
si.
Da fuga à praça
Em 22 de agosto de 1846, José Pereira Pinto, encarregado do quartel-general,
escreveu um ofício ao ministro da Marinha Antonio Francisco de Paula e Hollanda
Cavalcanti de Albuquerque, a fim de dar um basta a determinada situação.2 O
problema era, pode-se dizer, de rotina: Francisco José Rodrigues Sacarem
suplicava pela restituição do pardo de nome Severiano, que assentara praça na
fragata Constituição, "alegando ser seu escravo", mas até aquele
momento não recebera nada. O encarregado dizia
que tendo ouvido a este respeito o Auditor Geral da Marinha, ele é de
parecer[...] que a simples justificação dada pelo Suplicante não lhe
parece prova cabal e convincente para justificar o domínio e
propriedade de que o suplicante assevera ter sobre o dito pardo, e
que para que ela se torne mais forte e clara, é forçoso que ele
apresente a Certidão de Batismo do citado escravo, e o título pelo
qual o houve, e possui: opinião esta com a qual me não conformo, por
me parecer que tudo quanto tendesse a provar o domínio do Suplicante
sobre o pardo em questão deveria ter sido exigido no poder judicial,
do qual tem já o suplicante a justificação por sentença.
Realmente, Sebastião Machado Nunes, juiz municipal da 2a. Vara Cível, batera o
martelo a favor de Sacarem em 6 de agosto de 1846, mas o auditor da Marinha se
mantinha empertigado em sua função e se negava a restituir Severiano sem os
documentos de propriedade ' daí a interferência do encarregado junto ao
ministro, quando se completaram 16 dias desde que a justiça havia reconhecido a
propriedade de Sacarem. O auditor, enfim, era a pedra no caminho. Se Francisco
Sacarem tratava com displicência a documentação de sua propriedade, o problema
era dele, não do auditor. Não teria Severiano de volta, e ponto final.
Luiz Augusto May3 ' que representava Sacarem ' não se fez de rogado e enviou um
ofício ao ministro da Marinha. Ele com certeza já notara que o martelo do
auditor só poderia bater a seu favor se alguém acima da lei, e portanto acima
do auditor, pudesse intervir a seu favor. May devia saber muito bem como
alcançar o que desejava junto ao ministério da Marinha, pois, além de militar
reformado, era "oficial de gabinete" do ministro Henrique Cavalcanti
(Blake 1899: 364-5). Assim, no dia 28 de fevereiro, enviou um segundo ofício ao
ministro, explicando todo o andamento da questão e dando sobejas provas de sua
irritação com o auditor. Dizia haver seguido paulatinamente as ordens que o
ministro lhe dera em resposta ao primeiro ofício, informando ao quartel-general
sobre a petição de Sacarem e "ouvindo previamente a Auditoria da
Marinha", como "assim se fez." Todavia, esse caminho fora
infrutífero, pois o encarregado havia decidido pela devolução, e o responsável
pelo pêndulo da justiça militar exigia uma série de documentos, atitude que
para May não fazia o menor sentido. Segundo ele,
[...] como irrefragavelmente precisas, o Sr. Conselheiro [e
encarregado] José Pereira Pinto não se conforma com os princípios da
informação do Sr. Doutor Auditor; mas é simplesmente firmando que a
justificação do domínio do suplicante sobre seu escravo é da alçada
exclusiva do Poder Judiciário, perante o qual já foi justificada a
posse, como mostra a justificação apensa. Sou portanto
respeitosamente de opinião que em todos os casos de semelhante
natureza, se providenciasse unicamente que escravos na posição do
suplicado sejam unicamente entregues com a declaração do próprio
Dono, que o reclama, contrassinada esta por outro homem conhecido e
chão, sem alterar as fórmulas até aqui observadas.
Nem o encarregado nem o auditor tinham dúvidas acerca da condição de Severiano:
ele era escravo. Seu depoimento não foi tomado em nenhum momento, nem mesmo
quando o juiz municipal da 2a. Vara Cível Sebastião Machado Nunes, após ouvir
as testemunhas, bateu o martelo e deu ganho de causa a Francisco Sacarem. A
única dúvida era a quem ele pertencia: talvez o receio fosse entregar o escravo
a um vigarista. Severiano era uma propriedade que só havia sido reclamada por
Sacarem. Até aí tudo bem, o proprietário reclamava seu cativo, parte de seu
patrimônio e do de sua família. Mas, se isso era verdade, por que não
apresentava a certidão de batismo e o título de propriedade? Era essa a
exigência do auditor.
May queria se ver livre da burocracia exigida pelo auditor, que no entanto era
necessária para se ter certeza de que Severiano era escravo de Sacarem. É claro
que, mesmo com a apresentação da documentação, sem a confissão de Severiano a
certeza seria fugidia, inexata. Os daguerreótipos ou fotografias só seriam
utilizados para a identificação de pessoas muitas décadas depois. Nessa época,
valia o fio do bigode, as palavras do respeitável proprietário e das
testemunhas. Era isso que May teimava fazer valer junto ao auditor, uma vez que
já fora aceito pelo juiz municipal. Ele insistiu nesse ponto, afirmando que
quaisquer inovações já se poderiam seguir transtornos em prejuízo dos
Proprietários, proveito de Notários e seus Escrivães ou Comensais e
pouca ou nenhuma honra para os Srs. que exercem o Poder Judiciário.
Poder-se-ia encher um volume sobre esta matéria, que é uma das que
afligem sensivelmente os homens que vivem do trabalho e que têm mais
que fazer do que empregar seu tempo no estudo das miudezas forenses;
e ainda mais se porventura essas mesmas se acham nulas, ilegais ou
informes, como observa o Sr. Doutor Auditor, no presente caso.
O ataque de May foi fulminante. Ele procurou ridicularizar as exigências do
auditor, argumentando que ele dera mais valor aos serviços de donos e
funcionários de cartórios ' responsáveis pela confecção e pela legitimidade dos
documentos ' que à honrada decisão do Poder Judiciário, representada pelo juiz
municipal, permitindo encher a pança desses indivíduos com o prejuízo de tempo
e dinheiro dos senhores "que têm mais que fazer do que empregar seu tempo
no estudo das miudezas forenses". Ele tinha razão quanto ao tempo e o
dinheiro: a captura e a restituição de um escravo custavam caro, com pagamento
de prêmios aos policiais, anúncios em jornais da região ' que também ofereciam
recompensas ', honorários de advogados para acertar a papelada referente à
propriedade, traslado do escravo e talvez uma escolta (Gomes 1996: 67-75). No
caso da Marinha, era ainda necessário suplicar auxílio a amigos influentes,
como fizera May a fim de vencer a oposição cerrada do auditor. Sacarem
provavelmente tinha dinheiro suficiente para custear todo esse aparato para a
captura e a restituição de Severiano, algo que muitas vezes não era a realidade
dos senhores pobres, que possuíam apenas um ou dois escravos. A posição
inflexível do auditor e a pobreza de um senhor poderiam permitir que os
escravos fossem alistados e pouco se preocupassem com a possibilidade de serem
encontrados pelo senhor.
May e Sacarem, ao que tudo indica, não ficaram de braços cruzados. Foram direto
a José Lins Vieira Cansação Sinimbu, homem influente na política que exercera
vários postos na administração do Império: deputado provincial, vice-presidente
e presidente de Alagoas, deputado por Alagoas e participante ativo das rusgas
referentes à invasão de Montevidéu por Rosas (Costa 1937: cap. 3 e 4). Sinimbu
colocou na querela Christiano Benedicto Ottoni, lente catedrático, oficial da
Marinha e deputado por Minas Gerais ' irmão de Teófilo Ottoni, ex-regente do
Império (Blake 1893: 106-8).
Este afirmava que Sacarem não era o primeiro senhor a ter problemas com a
restituição de escravos que haviam assentado praça na Marinha (ou seja, outros
escravos fugidos haviam tentado a liberdade através do alistamento militar).
Dizia que, em um caso recente, o auditor também quisera a certidão de batismo,
"e agora exige a primeira e o título de propriedade, estando junta a
matrícula na Recebedoria". Ottoni desculpava os proprietários pela
dificuldade de se ter a certidão, já que "é muitas vezes difícil de
apresentar; pois muitos senhores ignoram completamente onde solicitá-las".
Até esse ponto, Ottoni foi didático e muito tranqüilo, procurando alinhavar os
dois lados da discórdia. Em seguida, porém, mostrou de onde veio: "Acresce
que por informação do Dr. Sinimbu, vim do conhecimento da justiça da
pertenção".
O problema poderia ser solucionado com facilidade, já que, após ouvir tantas
autoridades, o ministro da Marinha mandara, através de um despacho,
"restituir o escravo". Mas ele não o seria. Enquanto May e Sacarem
recorriam ao ministro, a Sinimbu e a Cristiano Ottoni, Severiano e outros
recrutados à força fugiam da ilha de Villegaignon, na qual estavam depositados!
Formou-se inclusive um Conselho de Guerra ' um tribunal militar ' para
reconhecer o responsável pela fuga, mas ninguém foi condenado. Enquanto
trabalhavam, Severiano e seus colegas evadiram-se a nado ou a remadas em um
escaler.
Essa não foi a primeira nem a última querela em torno de escravos descobertos
como marinheiros na Armada. Alguns casos semelhantes foram analisados por Jorge
Prata na primeira metade do século XIX (Sousa 1996: 70-2), o que revela a
reincidência dos escravos nesse caminho para a liberdade; reincidência que
punha em xeque o controle senhorial sobre o escravo. Afinal, a Marinha poderia
recebê-los e enviá-los a qualquer lugar do Brasil ou do mundo. Os alistados
geralmente eram enviados para o Corpo de Imperiais Marinheiros, a fim de
assentar praça. Dias depois, eram destacados para alguma unidade naval (navios,
quartéis etc.), ou seja, poderiam ser levados para o Amazonas, para o Mato
Grosso ou para qualquer outra parte da costa ' locais em que ficariam por meses
ou anos policiando os mares, protegendo o território nacional e retornando ao
porto no qual estavam destacados. Enquanto isso, o senhor e seus conhecidos
poderiam estar muito longe, sem saber do paradeiro do escravo fugido, que
pusera um quepe de marinheiro sobre os cabelos carapinhos.
Para deixar May descansar em paz, utilizo suas palavras para investir mais uma
vez no caso Severiano. Segundo ele, a atitude do auditor resulta em "[...]
uma conseqüência que, servindo de precedente, vem incomodar muito
essencialmente o sossego e o interesse de todas as famílias, por todo o
Império, que, vivendo de escravos, podem muito bem ver-se reduzidas a graves
inconvenientes e mesmo à miséria se passarem as doutrinas do Sr. Doutor em toda
a latitude, do sentido que ele dá as justificações, que ele estabelece".
Dizer que a decisão do auditor poderia levar as famílias "à miséria"
é ir longe demais ' um preciosismo que, bem colocado, poderia sensibilizar a
atenção do ministro para o caso. Ele procurou defender a propriedade de seu
cliente ' algo mais importante e crucial naquela sociedade escravista e baseada
no pacto liberal que a primazia pela liberdade de Severiano. Mas May tinha
razão ao dizer que exigências como as do auditor incomodavam
"essencialmente o sossego e o interesse" das famílias. Se os escravos
procurassem assentar praça e, quando fossem descobertos, senhores relaxados
como Sacarem tivessem de ter o trabalho de juntar papéis e contratar advogados,
o controle senhorial e o dinheiro empregado poderiam ir por água abaixo.
Por fim, May sabia que casos como o de Severiano não eram raros, e que outros
escravos deviam estar fardados. Não encontrei censos da Marinha que revelem a
cor dos marinheiros, mas apenas censos relativos ao movimento das guarnições ou
de quantos entraram e saíram do serviço militar. Contudo, no início da década
de 1850, os escravos da província do Rio de Janeiro e da Corte representavam
aproximadamente 41,5% da população (Soares 1988: 458, apud Chalhoub 1990: 187).
Havia muitos homens negros, e May sabia disso.
Quantos dos fardados que entravam e saíam tranqüilamente do quartel-general
onde May ia ter com o encarregado a respeito de Severiano não seriam escravos?
E se fossem, como restituí-los aos senhores sem passar pelo crivo da Auditoria
da Marinha? Para facilitar a restituição dessas propriedades, May sugeria
"que escravos na posição do suplicado sejam unicamente entregues com a
declaração do próprio Dono, que o reclama, contrassinada esta por outro homem
conhecido e chão". O caso, afinal, parecia de rotina, e quanto mais se
fizesse para acelerar a restituição, melhor.
Vimos até agora casos de marinheiros que procuravam a liberdade vestindo a
farda. Mas como Severiano e Amaro conseguiram entrar na Marinha? Infelizmente,
ainda não encontrei relatos detalhados das fugas. Detalhes são deliciosos de
ler: colocam-nos próximos de ruas, matas, casas e pessoas que já se foram há
muito. Temos, contudo, a capacidade de inferir pegadas, rastreá-las como um
felino em busca da caça. Algumas coisas que relatarei aqui terão um pouco de
inferência. Não se preocupem: sou escravo das fontes.
No dia 22 de janeiro de 1859, Francisco, escravo da senhora Joana Maria,
decidiu dar um basta à escravidão e procurou o caminho para a liberdade.4 Deve
ter sabido pela boca de alguém que a corveta Bahiana, da Marinha de Guerra,
estava sendo preparada para levantar âncora e seu comandante procurava homens
entre 18 e 35 anos para servir como praças.5 Francisco deve ter pensado: essa é
a saída. Correu em direção ao cais ' possivelmente com todo cuidado, para não
ser visto por nenhum conhecido ' e se apresentou ao comandante da Bahiana, a
corveta que lhe mostraria o mar e a liberdade. Assentou praça "de
grumete" no mesmo dia em que zarpou para a Europa. Aproximadamente dez
meses depois, em outubro de 1859, Francisco foi reconhecido. O chefe de polícia
entrou no caminho, pedindo ao encarregado do quartel-general da Marinha que o
detivesse "por suspeita de ser escravo".
A aventura de Francisco revela que o alistamento poderia servir como saída para
que cativos se livrassem da relação com seus senhores e ' inclusive e mais
importante ' definissem e alcançassem seus próprios projetos de vida. Contudo,
ela também mostra que essa liberdade não era assim tão segura. Francisco foi
reconhecido e recolhido à polícia com o aval do encarregado do quartel-general.
O chefe de polícia recebeu de João José de Mattos, que vivia com Joana Maria, a
"certidão da matrícula na Recebedoria do Município e conhecimento do
pagamento da taxa". No interrogatório, Francisco "confessou ser
escravo" de Joana Maria. Após conhecer a Europa e sentir o ar da
liberdade, Francisco teve de retornar ao lugar do qual havia fugido.
Como se vê, João José de Matos seguiu passo a passo o que o auditor exigira de
Sacarem 13 anos antes. Tendo em mãos a documentação que provava ser o
proprietário de Francisco, João de Matos não encontrou problemas para reaver o
escravo de sua companheira Joana Maria. Isso não significa que alguns senhores
não tenham tido querelas, até mesmo com o encarregado do quartel-general. Dois
meses após Francisco ter sido devolvido, o chefe de polícia Izidro Borges
Monteiro reclamava a obstrução causada, pasmem, não pelo auditor, mas pelo
encarregado do quartel-general:
Em resposta ao ofício que V. Exa. me dirigiu com data de ontem, em
que declara não poder ter lugar a entrega do escravo Luis, que no
Corpo de Imperiais Marinheiros se acha como praça com o nome de
Francisco José de Souza, sem que proceda reclamação do dono ao
Governo Imperial, oferece-se-me dizer a V. Exa. que me parece
conveniente que V. Exa. leve o caso ao conhecimento do Sr. Ministro a
fim de que delibere a respeito, certo de que entretanto passo a
oficiar ao Chefe de Polícia de Santa Catarina, comunicando-lhe o
ocorrido, para que a parte interrogada venha reclamar a entrega do
escravo.
6
Não consegui encontrar documentação que esclarecesse essa mudança na atitude do
encarregado e a decorrente irritação do chefe de polícia, como também não
consegui entender a razão pela qual o encarregado liberou Francisco e
posteriormente obstruiu a restituição de Luis. São várias as situações que
provavelmente terminariam em querelas com a Marinha por causa de escravos
fugidos que assentaram praça. Em dezembro de 1860, um ano após o problema com a
restituição de Luis, o ministro da Marinha ' através de uma circular, como era
o procedimento nos casos tocantes ao erário ' afirmou que:
Acontecendo não poucas vezes que entre os indivíduos, tanto
voluntários como recrutados, encontrem-se escravos de particulares, a
quem são depois entregues à vista dos documentos comprobatórios do
seu domínio; e suscitando-se a dúvida se os Cofres Públicos devem
reclamar as despesas que porventura tenham feito com indivíduos
naquelas condições, Sua Majestade[...] o Imperador houve por bem de
sua imperial resolução [...] sobre consulta do Conselho Supremo
Militar determinar que a reclamação de semelhantes despesas só não
tenha lugar quanto a escravos recrutados (Relatório 1860).
Note-se que os casos discutidos aqui são pequenas amostras do que Adolfo
Caminha revelou em seu romance e que já se tornara crônico, reconhecido
inclusive pelo imperador D. Pedro II. Começaram a ser criadas regras para saber
quem ficaria com o prejuízo dos gastos com o alistamento e o assentamento do
escravo na Marinha. Para constatar a eficiência dessa regra e inferir uma
resposta para a não-restituição de Luis, vejamos outro caso, ocorrido em
janeiro de 1859. O comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto conseguiu a
restituição de seu escravo, mas teve uma despesa extra, cobrada em decorrência
dos gastos do "Cofre Público" com o alistamento de Gabriel Antonio '
ou, melhor e mais corretamente, Jeremias:
Estando plenamente provado com os interrogatórios feitos, autos de
reconhecimento, matrícula da Capitania do Porto, ofícios do Chefe de
Polícia e Delegado de Santa Catarina, do Delegado de Santos, auto do
reconhecimento feito em Santos pelo vendedor, título de compra e meia
siza, que é escravo do Comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto, o
pardo Jeremias, que a bordo do Brigue Itaparica se achava com praça,
com o nome de Gabriel Antonio, e que V. Exa. remeteu à minha presença
com o seu ofício de 16 de setembro do ano findo, ordenei a entrega do
referido escravo ao mencionado Comendador, o que se deverá verificar
logo que este apresente nesta Secretaria conhecimento de ter
indenizado na Capitania do Porto o prêmio que o mesmo escravo recebeu
pelo seu engajamento como voluntário.
7
Dessa forma, acredito que nenhum auditor ou encarregado desconfiaria que
Jeremias era escravo e propriedade do comendador: do vendedor em Santos à
queixa do comendador em Santa Catarina, passando pelo desembarque no Rio de
Janeiro e o recebimento do prêmio pela Capitania do Porto, a trajetória de
Jeremias fôra resgatada pelo chefe de polícia da Corte Izidro Borges Monteiro,
com o auxílio de seus colegas de ofício e do suplicante. O problema que restava
ao comendador era restituir no mínimo 33$333:33 à Marinha, através da Capitânia
do Porto, referente ao prêmio embolsado por Jeremias no ato de seu dúbio
voluntarismo.
Todo voluntário tinha direito a um prêmio de 100$000:00, o qual não era pago ao
recrutado à força, que vestia a farda por imposição do governo e não por seu
desejo e boa vontade em contribuir para a defesa do território e da política
nacional. Pagava-se o prêmio ao voluntário em três partes: a primeira assim que
assentasse praça, a segunda um ano depois e a terceira quando terminasse o
serviço militar. Era o que determinava o Decreto n. 1.591 de 14 abril de 1855
(CLB 1856). Jeremias, além de conseguir uma farda que o diferenciava de outros
escravos, embolsara uma recompensadora soma em dinheiro. Além disso, teria um
salário, o "soldo", como era chamado na época. Lugar para dormir e a
alimentação não chegavam à de 3a. classe, mas existiam. Entre o voluntarismo
pelo amor pátrio e os prováveis petelecos ou surras que levava do comendador,
Jeremias escolheu o melhor caminho, e deve ter achado o tributo do serviço
militar deveras reconfortante. Talvez estivesse feliz, como outrora escreveu
Adolfo Caminha sobre Amaro. O comendador é que não deve ter ficado nada
satisfeito com o pagamento das custas da aventura saboreada por seu escravo
fujão.
Retornando ao caso de Luis e às regras impostas pela circular do ministro. Se o
escravo se apresentasse como homem livre e voluntário, receberia o prêmio. Ora,
se o senhor não "policiava" seus escravos e "permitia" que
fugissem e se apresentassem voluntariamente, o problema não era do governo, que
pagara o prêmio, mas do senhor. Se quisesse a restituição do escravo, teria de
agir como o comendador: pagar o prêmio e arcar com o prejuízo. Isso não
aconteceria no caso do escravo recrutado à força, pois o senhor não teria de
arcar com nenhum prejuízo, em primeiro lugar, porque se o escravo fosse
recrutado não teria outra escolha a não ser acompanhar a escolta até os postos
de alistamento e, em segundo, porque homens recrutados à força não recebiam
nenhum prêmio. Talvez o senhor de Luis não quisesse arcar com esse ônus, e daí
tenha nascido a resistência do encarregado em restituir o escravo.
A história de Jeremias também pode ser um exemplo de escravo que fugia como
reação ao tráfico interprovincial. Como vimos, ele havia sido vendido em Santos
e fôra parar em Santa Catarina. Após a lei Eusébio de Queirós e as punições
previstas em seus artigos, o comércio de escravos entre as províncias cresceu
assustadoramente, assim como o preço dos homens (Costa 1982: 33-5). Sidney
Chalhoub (1990: 158-9) encontrou vários casos de escravos que, no afã de se
verem livres da venda para outras províncias, cometiam até mesmo crimes
passíveis de prisão ' o que poderia livrá-los de serem vendidos. Vejamos outro
caso:
Tendo vindo no Transporte de Guerra Madeira, procedente dos portos do
Norte, o indivíduo Manoel Raymundo do Nascimento, que na Bahia
assentara praça voluntariamente como grumete, pareceu ao Oficial de
Visita de Polícia do Porto coincidirem os seus sinais com os do
escravo da Baronesa do Rio Vermelho de nome Hino, cuja captura foi-me
requisitada pelo chefe de polícia daquela província; e por isso
recomendou o mesmo oficial de visita que fosse ele tido sob
vigilância na fortaleza de Villegaignon a que se recolhera. Pede-me
agora a referida autoridade, a quem comuniquei o ocorrido, uma
fotografia de tal indivíduo para melhor ser reconhecido pelos
interessados; e neste sentido rogo à V. Exa. se digne providenciar
[...]8
Mais um voluntário. Tanto poderia ser livre quanto forro ou escravo, mas tinha
sinais bem parecidos com as do cativo que se evadira das mãos de sua senhora, a
baronesa do Rio Vermelho. Informo de antemão que não conheço o desenrolar dessa
história. Vivemos de retalhos do passado, e nem sempre temos a sorte de
encontrar as informações assim como as queremos. Também não sei quais as
intenções de Manoel, mas, se fosse escravo, talvez se possa inferir seus
motivos para esse ato voluntário. Sua atitude foi bastante parecida com a de
Jeremias: ambos fugiram de seus senhores e zarparam de suas províncias de
origem. O passo seguinte foi apresentarem-se voluntariamente na Marinha de
Guerra, Força Armada que tinha como praxe enviar todos os novos marinheiros ao
quartel-general da ilha de Willegaignon, na Corte. Logo, quando Jeremias e
Manoel se alistaram, eles sabiam que viriam para o Rio de Janeiro, bem distante
de seus senhores. As razões da fuga poderiam ser os maus-tratos recebidos, a
venda ou o aluguel para outra província ou outro senhor, ou até para
reencontrar parentes vendidos anteriormente, cujo paradeiro seria alguma região
do centro-sul. Como afirmou Flávio Gomes, "Mesmo que tentemos classificar,
a fuga era uma ação única e vivenciada diferentemente por cada escravo, levando
em consideração desde o meio em que vivia, área urbana ou rural, sua
naturalidade e sexo, até sua socialização no universo da escravidão, incluindo
aí a relação senhor'escravo" (Gomes 1996: 79-84).
No caso de Manoel Raymundo, a baronesa agiu rápido, informando à polícia e
questionando as juntas de alistamento para verificar se em alguma delas havia
um preto com os sinais de seu cativo. Para o policial do Rio de Janeiro, tudo
indicava que Manoel fosse Hino, e talvez a aventura do escravo tenha terminado
na ilha de Villegaignon, quando estava próximo de assentar praça. Se a baronesa
não tivesse agido rápido e o policial não tivesse suspeitado dele, o possível
escravo Hino poderia se transformar em Manoel pelo resto da vida.
Capturar escravos era um trabalho da polícia; isso fica claro na atitude dos
senhores de escravos. A baronesa recorreu à polícia para interromper a aventura
de Hino na hora certa, pois reconhecia as vantagens possuídas pela malha da
polícia em relação à captura. O comendador reclamou ao chefe de polícia de
Santa Catarina a fuga de seu escravo. Se ele desconfiava de Jeremias, praça da
Marinha de Guerra, ou se alguém o reconheceu e ajudou a polícia a investigar,
não sabemos. Mas os delegados e chefes de polícia tinham seus informantes,
trocavam ofícios avisando sobre o suspeito, a "bola da vez". Pode-se
ver essa troca de informações através do ofício de Izidro para o encarregado do
quartel-general, em 22 de dezembro de 1857:
Rogo à V. Exa. se sirva mandar verificar se existe a bordo de algum
navio de guerra o pardo Vicente, natural do Rio Grande, alfaiate, de
vinte e tantos anos de idade, cabelos carapinhos, olhos pequenos,
nariz grosso, e sobre ele uma espécie de berruga azulada, boca muito
grande, sem barba, e escravo de D. Amalia Guilhermina de Oliveira
Coutinho, de cujo poder evadiu-se no dia 28 do mês próximo pretérito,
e tem sido visto com trajes de marinheiro.
Vemos a malha de informações da polícia procurando capturar o escravo fugido,
que tinha sido visto em vários locais, até com "trajes de
marinheiro". A polícia agia a partir das informações do proprietário, que
descrevia os caracteres físicos, a idade, o nome, a cor e quaisquer outros
dados que facilitassem a captura do indivíduo. Isso com certeza auxiliava a
polícia e permitia que a mesma começasse as diligências. Contudo, há aí um
problema... Para a captura do escravo, havia a participação do senhor. Mas, e
para a captura de um recruta das Forças Armadas? Como discernir quem era ou não
escravo em cidades como Rio de Janeiro e Salvador, que possuíam grande
quantidade de homens negros? É nesse ponto nevrálgico que encontramos as
brechas oferecidas pelo alistamento e aproveitadas pelos escravos.
A sanha pelos prêmios pagos aos policiais e agentes de alistamento animava a
truculência dos alistadores, que muitas vezes capturavam escravos como
recrutas.9 Se o escravo não revelasse sua condição nem fosse reconhecido, o
agora recruta chegaria ao chefe de polícia, e daí por diante somente o escravo
poderia optar entre ser recrutado para a Armada ou retornar ao cativeiro. A
reclamação junto à polícia, como a feita pela baronesa do Rio Vermelho, teria
de ser urgentíssima. Claro que havia sinais importantes a serem vistos e
investigados. A cor da pele, obviamente, era o primeiro sinal. Nesses dias de
alistamento, ser branco devia ser um suplício para aqueles que eram pobres e
não possuíam ninguém para defendê-los. Não encontrei até agora sequer um caso
de homem branco rico ou protegido que fosse alistado nas Forças Armadas como
grumete. É possível que isso tenha acontecido, mas ainda não encontrei
registro.
Além da cor, havia a vestimenta, os trajes, que sem sombra de dúvida auxiliavam
na diferenciação entre uns e outros naquela sociedade. Não eram todos que
possuíam alguns réis disponíveis em suas economias para comprar calçados, mas
as relações nos lares era baseada no paternalismo dos senhores em relação a
seus criados, e a doação de roupas e sapatos era um dos significados dessa
relação (Graham 1992: 23-4). Havia também os Zungús ou Casas de Angu, espaços
em que libertos, livres e escravos encontravam alimentação, estadia, festa,
prática de rituais religiosos africanos e, é claro, solidariedade (Soares 1998:
15-7, 59-64). Nesses lugares, não devia ser difícil arrumar roupas para que
escravos pudessem agir como livres nas ruas da Corte. Além disso, havia os
pequenos e grandes ladrões, e sapatos e roupas podiam ser adquiridos assim. Os
policiais com certeza sabiam disso.
Embora esses sinais auxiliassem o agente do alistamento a identificar a pessoa
certa para as Forças Armadas, eles não eram mais gritantes que as marcas de
castigos correcionais em homens negros. Elas eram irrefutáveis atestados de que
ou o indivíduo passara pelas Forças Armadas ou era ou fora propriedade de
alguém. As marcas de castigo, a identidade do indivíduo marcada no corpo, davam
pistas, sinais da condição e da origem recente do negro. Em suma, deveriam ser
os primeiros sinais a ser investigados pelas autoridades responsáveis pelo
alistamento. Ou pelo menos seria de se esperar que se fossem...
Quando o chefe de polícia enviava um recruta capturado à Marinha, um ofício o
acompanhava, informando seu nome, suas características e a razão do envio.
Analisemos um ofício em especial: "Faço apresentar [...] o indivíduo que
diz chamar-se Manoel Joaquim, a fim de que se sirva mandar verificar se é
desertor da Armada, visto apresentar sinais de castigo nas costas".10 O
ofício não revela a cor de Manoel Joaquim. Contudo, para um homem ter sinais de
castigo nas costas, só se pode pensar em duas possibilidades: era ou havia sido
escravo ou tinha servido nas Forças Armadas. A chibata deixava marcas profundas
nos marinheiros castigados. A polícia devia retirar a camisa e arriar as calças
do indivíduo para ver se ele apresentava alguma marca de castigo,
principalmente nas costas e nas nádegas. Detectadas as marcas, prosseguia o
interrogatório, enquanto o indivíduo arrumava suas vestes e afivelava o cinto.
Se fosse negro, eram perguntadas a condição e o nome de um possível senhor,
além do local de moradia, ocupação etc. O escravo poderia dizer que era livre,
que estava desocupado, que morava em um cortiço ou nas ruas. O delegado ou
subdelegado encarregado do caso até poderia enviar algum policial à moradia
para atestar a veracidade das informações. No caso de Manoel, se o policial foi
mesmo averiguar as respostas do interrogatório isso de nada adiantou,
preferindo acreditar ser ele um desertor. Enviou-o ao chefe de polícia para
deliberar como fosse mais acertado.
Os passos posteriores de Manoel podem ser acompanhados pelo despacho do
quartel-general da Marinha. No ofício do chefe de polícia que acompanhou
Manoel, o despacho revela dados importantíssimos a partir dos quais se pode
encontrar as falhas no processo de alistamento; falhas que ajudavam o escravo
fugido, mesmo com marcas de castigo, a assentar praça na Armada. No Corpo de
Imperiais Marinheiros, outra bateria de perguntas: "Esse indivíduo não é
desertor desse Corpo, e declara que os sinais que apresenta nas costas são
devidos a castigos que recebeu quando escravo. Não obstante a declaração supra,
manda-o apresentar à junta de saúde para ser inspecionado"(grifo meu).
Pode ter valido nesse caso o dito pelo não dito, ou seja, a palavra de Manoel
contra a da malha do alistamento. Manoel era um alistado com marcas que
mereciam maior cuidado das autoridades. Essa foi a primeira falha. Se ele
estivesse mentindo, fazendo-se passar por livre, e desejasse alcançar a
liberdade, passara incólume pela polícia.
Chegou à Marinha. Novamente, deve ter desabotoado a camisa e arriado as calças.
O oficial responsável pela seleção e alistamento confrontou seu nome e sinais
ao de outros marinheiros desertados e nada encontrou. A pergunta era óbvia:
"você é escravo?" Ele "declara que os sinais" eram legados
do tempo em que era escravo. O possível dito pelo não dito. Foi enviado para a
inspeção de saúde. Aprovado, poderia singrar livremente pelos mares. Manoel era
negro, agora temos certeza disso. Para o branco marcado por chibata só haveria
uma desconfiança, a de que era ou tinha sido praça das Forças Armadas. Ora, o
que temos aqui é mais uma amostra das falhas da malha de alistamento militar,
provenientes do número insuficiente de voluntários que se apresentavam
anualmente às Forças Armadas (McBeth 1977: 74-5). Como vimos no ofício, Manoel
fora enviado por suspeita de deserção, não para ser alistado. Logo, ao
verificarem que não era um desertor, deveriam liberá-lo. Quando chegou à
Marinha, porém, os oficiais devem ter reparado que ele possuía a robustez
necessária para a vida marítima e poderia ser transformado em marinheiro. Ao
invés de soltá-lo ou enviá-lo novamente à polícia, como acontecia em alguns
casos, os oficiais da Marinha simplesmente enviaram um ofício ao chefe de
polícia informando que estavam tomando providências para alistar Manoel na
Armada Imperial.
Para se ter uma idéia dessa pressão, no Relatório do Ministro da Marinha (1888
"Annexos") nota-se que, de 1840 a 1888, foram recrutados à força
6.271 homens para o Corpo de Imperiais Marinheiros, e recebidos somente 460
voluntários. Essa diferença com certeza asseverava o dito por vários ministros
da Marinha ao longo do século XIX e início do XX, isto é, a falta de
voluntários levava ao imediatismo do recrutamento forçado (Nascimento 1997:
cap. 2). Entre as autoridades civis, os chefes de polícia eram o braço direito
do ministro da Justiça e dos presidentes de província para assuntos de
alistamento, e precisavam pôr seus delegados e subdelegados na rua para
alcançar a quantidade de alistados destinada à cada província. Nesse sentido,
todo homem pego pela malha como recruta, suspeito de deserção, vadio,
arruaceiro, gatuno, capoeira ou órfão poderia ser enviado para a Marinha ou
para o Exército. Se até um homem negro com sinais de castigo podia ser
capturado e enviado para as Forças Armadas, o que dizer daqueles sem marcas?
Remeto[...] Manoel Antonio de Oliveira, a fim de que [...] faça
sentar praça no Corpo de Artilharia de Marinha ou na Armada Nacional
como marinheiro; [?] isso que é quanto [sic] vadio e andar
continuamente em desordens, sem se ocupar em coisa alguma.
Envio a presença de V. Exa. o pardinho José de Souza Borges a fim de
ser empregado nas Companhias dos Imperiais Marinheiros, visto que sua
mãe não lhe dando educação alguma, consente que ele se ocupe em andar
pelas ruas na mais perfeita vadiagem, cometendo distúrbios, quando
está em idade de ser utilmente empregado para ter uma ocupação
honesta de que possa subsistir.
Mando apresentar
[...]
o moleque livre Martinho de Tal, solteiro, de 16 anos, capoeira, ex-sineiro da
igreja de Santa Anna, e que pretende passar por peruano quando até mal sabe uma
ou outra palavra de espanhol e aqui na Corte é muito conhecido, infelizmente,
sempre vadio.
11
Remeto a V. Exa. o pardo José Hilario para que me digne fazê-lo empregar na
Marinha a fim de ser moralizado.
12
Esses são alguns homens e menores ' três negros e um branco ' recrutados pela
polícia e que encontramos sem dificuldades. Existem milhares de ofícios do
Corpo Policial enviados para o encarregado do quartel-general da Marinha
revelando casos como esses, e isso somente no Rio de Janeiro, sem contar as
outras províncias brasileiras ao longo do século XIX. Walter Fraga Filho
encontrou vários casos de mendigos, moleques e vadios recrutados para o
Exército e a Armada na Bahia e, segundo ele, "para as autoridades do
interior e da capital uma alternativa à superlotação das cadeias e à presença
desse contingente sem ocupação nas ruas era o recrutamento forçado" (Fraga
Filho 1996: 95). Durante a guerra do Paraguai, o inspetor do Asilo de Mendigos
fez uma seleção entre os que eram mendigos e os que achava serem vadios, e
chegou à seguinte decisão: "Tanto tenho disso convicção que, no período
decorrido de 1866 a 1869, dos mendigos para aqui remetidos, remeti 208 homens à
Inspetoria do Arsenal de Marinha, para serem aproveitados no serviço da
esquadra no Paraguai [...]" (Relatório 1871).
Pode-se dizer que a polícia era uma passagem para o embarque nos navios da
Marinha de Guerra ou para uma estadia nos quartéis do Exército. Para a maioria
dos senhores, pais e autoridades, era sinônimo de castigo, um método de
"moralizar", corrigir aquele que era excêntrico às normas da ordem
política e econômica ditadas pelas autoridades públicas e que ao mesmo tempo
representavam ameaça à propriedade da elite. Se para a maioria a iminência do
castigo através do pagamento do tributo militar era desesperadora, para o negro
escravo poderia ser a solução de sua vida, o caminho da liberdade... Um negro
que poderia estar sofrendo terríveis castigos, na iminência de ser vendido,
tornar-se valor de partilha de bens, ser parte de pagamento de dívidas, ser
alugado a qualquer um, ou seja, algo que não desejava para si e que era
obrigado a seguir no interior da instituição escravocrata. Histórias como essas
podem ser encontradas aos borbotões no livro de Sidney Chalhoub (1990): negros
e negras aumentando a pressão junto a seus senhores, às vésperas de serem
vendidos para outros; escravos que tiveram sua alforria prometida ou
reconhecida em cartório e, em momentos de desavenças familiares, morte do
senhor e tantas outras possibilidades de querelas arrivistas, terminavam por
descobrir que a promessa se tornara pó; finalmente, alguns que haviam amealhado
o valor de sua alforria e não conseguiam convencer os senhores a aceitar a
negociação. A saída para muitos era a polícia.
As histórias de escravos ' e, ocasionalmente, libertos ' que pensavam poder
recorrer à polícia para conseguir alguma proteção, ou mesmo que parecem ter
cometido crimes com o objetivo de escapar a um destino indesejável, sucedem-se
com regularidade espantosa (Chalhoub 1990: 176). Deixar-se enclausurar ou
sentenciar-se à prisão antes de ser vendido para outro lugar ou outros
senhores, nada dispostos a ceder diante de sua vontade, era a questão que se
punha para o escravo. Nesse sentido, a polícia era o primeiro passo da
estratégia de muitos desejosos de ficar no Rio de Janeiro, cidade onde tudo
acontecia. Mas, e se o escravo pudesse cair nas malhas do alistamento por
pequenos delitos, promovendo desordens e arruaças, zanzando pelas ruas após o
"Toque do Aragão", proferindo impropérios ou envolvendo-se em brigas?
Será que assim poderia alcançar a farda de marinheiro? Claro que sim!
O que desejo argumentar é que, em um ato de desespero ou tentando mudar de vida
sem ter de consultar seu senhor, o escravo poderia se apresentar
voluntariamente a um navio de guerra que precisasse urgentemente de praças para
ir à Europa, como fez Francisco, ou se deixar levar pelo recrutamento forçado
identificando-se como livre e com novo nome, como fez Jeremias. Essa é a
interpretação que alguns pesquisadores têm aventado quando vão às fontes ' de
forma ainda muito acanhada, é verdade. Jorge Prata indicou oito casos concretos
e disse haver "muitos outros" na primeira metade do século XIX (Prata
1996: 71).
Thomas Holloway encontrou caso semelhante na Polícia Militar. Segundo ele, em
1853 João Estevão da Cruz solicitou à Polícia Militar a restituição de parte de
sua propriedade: o escravo Marcelino. O comandante da corporação relatou que o
homem em questão entrara voluntariamente no quartel-general para se alistar,
dizendo-se livre, nascido no Rio de Janeiro e alfaiate de profissão. Estava bem
vestido, era de compleição robusta e tinha boa aparência. Ademais, calçava
sapatos, sinal de condição de homem livre. Interrogado a pedido de João
Estevão, o novo soldado, que dissera chamar-se José Soares, insistiu que fôra
escravo, mas que se considerava livre "em princípio", uma vez que seu
proprietário morrera. Contudo, João Estevão anexou ao seu requerimento ampla
documentação comprobatória, e a Polícia Militar devolveu-lhe Marcelino
(Holloway 1997: 163).
O que temos até aqui é um dos caminhos encontrados por um número incalculável
de escravos para se tornarem livres através do alistamento militar. Negros que
conheciam o mundo dos brancos e livres e utilizavam esse conhecimento em causa
própria. Invadiam esse mundo sem serem percebidos ou reconhecidos como
escravos, jogando com os próprios signos dos comportamentos vigentes,
aproveitando cada falha, cada contradição, e criando a partir delas suas
próprias estratégias. Libertar-se do pesadelo de ser vendido ou alugado, dos
castigos excessivos ou mesmo mudar de vida era o sonho de muitos desses
escravos.
A liberdade pelo mar
As reações do cativo à condição escrava é um tema amplamente discutido pela
historiografia, e várias interpretações dessas reações podem ser encontradas em
suas obras.13 Não farei aqui uma exegese de todos essas discussões, por dois
motivos. Em primeiro lugar, o que me interessa é demonstrar que havia escravos
na Marinha de Guerra e que eles não eram ocorrências anômalas, mas homens que
tinham suas próprias razões e utilizavam as brechas da sociedade escravista
para alcançar a liberdade ou aquilo que entendiam por ela. Em segundo, quero
dialogar com uma historiografia recente, que encontra um sentido político no
movimento dos escravos fugidos.
As diferentes interpretações talvez sejam resultado da metodologia empregada
pelos autores. A primeira diferença entre essas perspectivas de análise são as
notas existentes em cada texto, as fontes utilizadas. A documentação processual
e toda a de polícia, pelo menos, permitem ao pesquisador encontrar declarações
feitas por escravos ' mesmo que através da pena de escrivães ' sobre suas
próprias vidas. Analisar essa documentação é um trabalho que exige
sensibilidade e cuidado, tendo em vista o fato de o depoente estar em um
tribunal, sob pressão.
Os posicionamentos teóricos utilizados também são cruciais para que se possa
escapar da visão de que os negros somente ou fugiam e se revoltavam contra a
escravidão, ou eram extremamente subservientes. O ângulo de visão do
investigador que recentemente procura analisar a documentação de baixo para
cima ' na perspectiva da chamada
history from bellow
14 ', parece ser mais instigante para os que pretendem reconstruir a história
da sociedade escravista através dos olhares dos negros. É assim que, hoje,
podemos saber que os escravos tinham uma ampla interpretação da sociedade
branca e escravista, divergente da de seus senhores (Slenes 1991-92); que, por
serem escravos, não comungavam os mesmos valores e costumes e, por isso, tantas
vezes se tornaram opositores radicais (Reis 1986). Tal perspectiva nos leva
ainda mais longe, permitindo perceber experiências escravas antes encobertas,
como o caso dos escravos das áreas urbanas que viviam por si, muitas vezes
moraram fora da casa do senhor, vendiam seus produtos pelas ruas, podiam
comprar sua liberdade e se viam como livres (Reis 1994; Chalhoub 1990). Mais e
mais informações acerca da vida escrava podem ser encontradas através de obras
recentes sobre o tema, revelando que o ângulo de visão se torna crucial para
descobrir as profundezas do que antes era só superfície.
Contudo, as pesquisas foram além, e permitiram começar a entender que havia
sentido político em protestos escravos. Um sentido ligado não a alguma
ideologia, geralmente assimilada pelas classes dominantes, mais envolvidas ou
próximas ao poder ' positivismo, liberalismo etc. (Carvalho 1990, cap. 1 e 6)
', mas, pelo contrário, às suas próprias experiências no universo escravocrata.
A ascensão social, o direito à escola e à liberdade de locomoção estavam
diretamente ligadas à proteção de alguém, ao trabalho árduo e à vitória contra
o preconceito (Azevedo 1987; Castro 1993). Essa realidade era mais concreta que
as ideologias que se diziam de progresso pelo bem da civilização, na qual os
negros, por sua condição de escravos ou pelo próprio racismo, estavam excluídos
do pensamento branco.
A ideologia dos escravos era mais real que os caminhos imaginados pelos
filósofos e economistas: havia sido criada na experiência do cativeiro, nas
ruas das cidades ou nas fazendas, na solidariedade entre escravos e em seus
embates com outros escravos ' crioulos versus africanos ' ou com os brancos
estrangeiros ou nacionais. Sua ideologia era conquistar a liberdade e ter ao
menos o mínimo necessário para a subsistência, sua e de sua família,
preservando muitas vezes partes de sua cultura religiosa e festiva no interior
de uma sociedade adversa a esses costumes e valores. Essa ideologia ajuda a
entender o sentido político da atitude dos escravos que se lançaram na
arriscada fuga para a Marinha de Guerra.
Pelo que tenho lido em alguns trabalhos recentes, e que têm me auxiliando a
entender essa inserção de escravos na Marinha e no Exército, o sentido é dado
pela participação desses homens em momentos de grandes mudanças da nação
brasileira; mudanças que geraram o enfraquecimento do Estado e do controle
senhorial, interferiram nas relações de trabalho escravo e alimentaram a
esperança do negro e da negra, ávidos por liberdade. Nos protestos e revoltas
da primeira metade do século XIX em várias províncias, a palavra
"liberdade" era lançada às ruas das principais cidades pela gente que
protestava. Qual o sentido dessa palavra para tantos escravos? Como a
interpretavam? Entrar naquela rusga poderia ser um passo para a liberdade? Um
tipo de beneplácito por ter se envolvido com tamanho heroísmo na causa dos que
protestavam? Todas essas perguntas me parecem oportunas para entender o escravo
nesses momentos em que o Estado estava enfraquecido: guerras civis e
estrangeiras, rachas políticos, enfrentamentos com a oposição, críticas ao
parlamento e ao Conselho de Estado. Situações adversas em que as discussões em
torno da instituição escravocrata estavam sempre presentes, seja pelo temor de
revolta e fuga de escravos, seja por seu aproveitamento nas milícias revoltosas
ou nas forças legalistas. Ilustrarei essa asserção com dois exemplos: a
Sabinada e a Guerra do Paraguai; dois momentos em que o Estado esteve
claudicante. No primeiro, pela ameaça separatista, no segundo, pela necessidade
de homens para a guerra.15
A libertação dos escravos baianos não fez parte das discussões iniciais e nem
estava prevista no projeto de uma nova nação idealizado pelos rebeldes de 1837
(Souza 1987: 155). Ao longo da guerra, contudo, a necessidade de reforços no
frontlevou os separatistas a repensarem suas posições. Para combater as forças
legalistas do império, os revoltosos lançaram mão de escravos para ocupar as
lacunas do exército separatista. Esse expediente, contudo, só poderia ser
utilizado se o senhor fosse indenizado e o escravo efetivamente entrasse na
guerra. Assim, os separatistas só repensaram suas posições no decorrer da
rusga, e mesmo assim, com todo cuidado e respeito ao direito de propriedade dos
senhores. Como afirmou Paulo Cesar Souza, "os decretos de alforria foram
antes providências do que atos" (1987: 147-8). Na província de imensa
população negra, os sabinos "foram incapazes de pensar além do horizonte
ideológico de uma sociedade escravista" (Souza 1987: 157).16
Contudo, esses mesmos decretos demonstravam o desespero dos separatistas em
busca de soldados, revelando sua inabilidade em uma questão tão delicada. Em um
dos decretos, os separatistas concederam alforria a "todos os escravos
nascidos no Brasil que tiverem corrido ou houverem de correr às armas"
(Souza 1987: 148), o que incitava o escravo descontente de sua condição a
correr para a junta alistadora em prol de sua liberdade. Existe aí um problema
ainda maior, e por isso entendo que o desespero gerou as falhas e a inabilidade
dos separatistas em assuntos de escravidão.
Embora se preocupassem com o direito de propriedade, permitiram que escravos
desobedecessem seus senhores e fugissem para a liberdade através da farda. Um
caso sério, pois isso enfraquecia e aviltava o controle senhorial em um momento
tão delicado quanto a guerra. Essa possibilidade, porém, não gerava somente o
sentimento de liberdade para os escravos que agora eram soldados. O exército
separatista era fruto de um governo rebelde, que desejava conquistar sua
independência. Assim, nada estaria seguro, nem mesmo a liberdade dada aos
escravos, se os separatistas não conseguissem a vitória sobre os legalistas. No
meu entender, os escravos sabiam disso, e assim teriam de defender com unhas e
dentes a causa separatista para terem assegurada sua liberdade. E ainda mais:
se os decretos já libertavam escravos para servirem como soldados, qual deve
ter sido a leitura dos milhares de escravos que viviam na Bahia, formada
basicamente por população negra?
Essa leitura era uma preocupação latente entre os líderes da Sabinada (Souza
1987: 146). Seus decretos retiravam dos africanos a possibilidade de serem
alforriados através do simples ingresso no exército separatista, em uma clara
expressão do temor pelos malês, que dois anos antes haviam patrocinado a
revolta que sacudira a Bahia e deixara a Corte em polvorosa (Reis 1986). Como
dar armas àqueles que muito recentemente haviam sido líderes de uma revolta?
Assim, era melhor e mais seguro alistar os crioulos ' escravos nascidos no
Brasil ', que tinham uma relação pouco amistosa com os africanos e
"tendiam a rebelar-se menos que os vindos da África" (Souza 1987:
148). Não se sabe a quantidade de crioulos que aderiram à causa separatista,
mas existem vários exemplos dessa correria às juntas alistadoras. Segundo Paulo
Cesar de Souza, "Ao adquirir a emancipação, na aliança com os Sabinos, os
crioulos comprometiam-se contra os africanos" (Souza 1987: 156). Esta
seria a estratégia dos líderes separatistas para acalmar em seus espíritos o
temor por uma nova revolta dos africanos: ter crioulos como soldados leais e
ardilosos nos campos de batalha e, ao mesmo tempo, contar com esses crioulos
diante de uma eventual revolta dos escravos africanos. Essa estratégia
procurava resolver o problema da escravidão, demonstrando que os separatistas
reconheciam as rixas entre os próprios escravos e procuravam tirar vantagens
dela:
[...] Finalmente: todos os brasileiros, e sobretudo os brancos, não
percebem suficientemente que é tempo de se fechar a porta aos debates
políticos, às discussões constitucionais? Se se continua a falar dos
direitos dos homens, de igualdade, terminar-se-á por pronunciar a
palavra fatal: liberdade, palavra terrível e que tem muito mais força
num país de escravos do que em qualquer outra parte [...] (Apud Mott
1972: 482).
Essa observação, feita por um francês anônimo a D. João VI logo após a
independência, revela a leitura de um contemporâneo em torno do perigo das
dissensões políticas expressas na guerra e nas discussões a nível
governamental. Ela denota a sensibilidade para um problema real em um país como
o Brasil e, podemos acrescentar, mais incisivamente em províncias como o Rio de
Janeiro e a Bahia, cuja população no período era eminentemente formada de
negros. Liberdade poderia ser uma "palavra fatal", principalmente
nesses momentos de grandes problemas nacionais. Os separatistas sabiam disso e
traçaram suas próprias estratégias de defesa, aplicando-as a lugares como a
Bahia, no qual a cisão entre crioulos e africanos era uma realidade. Havia na
Bahia a iminência de uma insurreição de escravos que os separatistas procuraram
esmaecer com o deslocamento de soldados para intensificar a vigilância. Uma
parte dos crioulos caminhou para o exército separatista a fim de conquistar a
guerra e garantir a liberdade. Criadas as condições, os escravos crioulos e
africanos fariam suas próprias leituras da guerra civil, e a partir daí
traçariam suas estratégias de liberdade, como foi o caso dos que se alistaram
no exército separatista.
No caso do Paraguai, trinta anos depois, centenas de escravos foram parar na
guerra.17 Nas discussões entre os conselheiros do Estado, havia o temor da
libertação dos escravos próprios para a guerra. O visconde de Itaboraí defendeu
a libertação com indenização, e reconheceu que, após a guerra, a questão servil
teria novo desfecho. Dizia ele que as pressões estrangeiras ' especialmente
inglesas ' seriam maiores, e que, internamente, a imprensa já discutia o
assunto. Com a guerra, continuava ele, a "agitação amainou", mas
posteriormente ela voltaria à tona e todas as discussões legislativas deveriam
ser tratadas "com muita cautela, e de modo que a emancipação seja muito
gradual e lentamente realizada".18 Na verdade, a saída emancipacionista
estava na cabeça de toda a elite política e de muitos intelectuais do período.
Afinal, como libertar todos os escravos de uma só vez, a mão-de-obra básica da
agricultura, que custara imensos investimentos de seus senhores e, que segundo
eles, não possuíam educação e civilidade? Essas eram as questões prementes
naquele momento.
O conselheiro Sousa Franco tinha a mesma visão do visconde, com uma ressalva:
"Não se trata de decretar a emancipação dos escravos do Império, questão
muito importante, cuja solução todos os dias se aproxima; trata-se somente de
engrossar as fileiras do Exército". Pressionado pelo liberalismo europeu e
pela abolição da escravidão na maior parte dos países do continente americano '
principalmente após as notícias da Guerra de Secessão ', D. Pedro II esforçou-
se muito, intervindo no parlamento, ouvindo e recebendo apoio de entusiastas
pela causa, em prol de uma saída para a escravidão no Brasil. Não sem encontrar
pedras pelo caminho: internamente, a abolição total da escravidão se tornava
difícil, em função da resistência dos fazendeiros, defensores da mão-de-obra
escrava em suas plantações, e do temor reinante de que uma massa de libertos
invadisse as grandes cidades, criando "desordens públicas" e
"guerras raciais" que, nas palavras de Nabuco de Araújo,
"precipitaria o Brasil em um abismo profundo e infinito" (Conrad
1975: 88-100). Frente à opção abolicionista, a saída emancipacionista pareceu a
mais acertada (Conrad 1975; Costa 1982; Chalhoub 1990; Machado 1994). Era isso
que reafirmavam tanto o visconde quanto Sousa Franco.
Vemos que as pressões internas e externas se tornavam maiores. Contudo,
discutindo a saída emancipacionista, o conselheiro Paranhos deixou passar algo
mais que o receio pelas pressões externas e da imprensa. Segundo ele, a
manumissão possuía alguns problemas, como "Excitar a população escrava, já
não pouco despertada nestes últimos tempos pela propaganda das idéias de
abolição mais ou menos próxima, o desejo, aliás bem natural, de sacudir o jugo
da escravidão. Há portanto nessa medida algum perigo de ordem pública, digno de
séria atenção, quando a Força de Linha acha-se quase toda empregada na guerra
externa".19
Temos então dois temores: o primeiro, de que esses escravos criassem
"desordens públicas", como acentuaram Nabuco de Araújo e Paranhos, e
o segundo, muito maior, de excitar a população escrava com a proposta de
manumissão através do alistamento militar para a guerra ' medos bem próximos
aos dos separatistas. Esse receio, esse medo, não era em vão. Havia na memória
desses conselheiros o legado das revoltas e boatos que circulavam nas fazendas,
pondo em pânico os brancos da Corte e de várias outras províncias. Na década de
1830, as notícias da revolta dos malês inauguraram um período de intensa
movimentação de escravos na província do Rio de Janeiro e na Corte (Gomes 1998:
65-98; Machado 1998: 99-108). Segundo Flávio dos Santos Gomes, durante todo o
restante da primeira metade do século XIX pairou sobre a cabeça da classe
dominante o medo de que as revoltas escravas "fossem fruto de um suposto
tribalismo de ascendência africana dos escravos, que planejavam matar todos os
brancos e pardos", o que revela uma extensa leitura da revolta dos negros
islâmicos ' os malês ' na Bahia e o temor de que as idéias do protesto
sedicioso desses africanos chegasse à Corte e se espalhasse por todas as
províncias ' medo que, por sinal, não estava assentado em boatos, mas em provas
reais encontradas entre escravos presos por revoltas (Gomes 1998: 84).
Na primeira metade do século XIX, o medo renitente entre os sabinos se
encontrava alojado no coração do Império, entre as principais autoridades
públicas, que amargavam lembranças de fatos ocorridos poucos anos antes. Os
separatistas baianos pensaram em um modo de retirar dos escravos africanos a
possibilidade de pegarem em armas contra os brancos, procurando sensibilizar os
crioulos para a causa rebelde. No caso da guerra do Paraguai, segundo Jorge
Prata de Sousa, "era clara a preferência por escravos nacionais ' do
total, representam 85%, enquanto os africanos participam com apenas 4%"
(Sousa 1996: 95), o que, para o autor, pode ser explicado pelo crescimento
demográfico dos crioulos e, no caso dos africanos, pelo envelhecimento e pelo
término do tráfico de escravos após a lei de 1850. Contudo, Sousa não se refere
à visão das autoridades, para a qual os africanos eram mais arredios que os
crioulos, além de as fontes não revelarem com segurança a região africana da
qual vieram. Por tudo isso, persistem minhas dúvidas de que essa visão das
autoridades não tenha se mantido na seleção dos escravos para a guerra.
O segundo medo se refere à leitura que os escravos fariam dessa emancipação, o
temor de "excitar a população escrava", como afirmou Paranhos.
Segundo Flávio dos Santos Gomes, na segunda metade do século XIX essas mesmas
autoridades passaram a acreditar que "o espírito de revoltas de escravos,
além do caráter messiânico [de novo os malês], tivesse origem nas falsas
idéias de liberdade' difundidas entre eles." Os que iam para a guerra
tinham direito à emancipação, mas, e se os escravos que não fossem recrutados
interpretassem que esse expediente estava reservado a todos? Liberdade era uma
"palavra terrível", muito "perigosa".
O parecer de boa parte dos conselheiros expressa o ato como "início do
fim" da instituição escravocrata. Segundo Torres Homem:
Que o Estado liberte parte dos escravos em nome da humanidade e
civilização, ou que faça no único interesse de obter soldados, isto é
indiferente; os efeitos morais são os mesmos sobre a massa geral da
escravatura não compreendida na alforria.Em ambos os casos origina
esperança, desperta aspirações e provoca sentimentos incompatíveis
com a segurança dos proprietários e com a ordem pública no regime
monstruoso da escravidão. As alforrias ultimamente dadas na Corte e
nas províncias como meio de fornecer substitutos aos cidadãos
designados para a campanha do Paraguai são fatos individuais e
isolados que não têm o mesmo alcance perigoso, e não produzem senão o
efeito de avultar o Exército introduzindo em suas fileiras entes
degradados pelo cativeiro de véspera, e destituídos dos sentimentos
que constituem a nobreza do coração do soldado
(grifo meu)
.20
A substituição era uma forma de alistamento que isentava o cidadão do tributo
militar, desde que ele pagasse um tributo de 600$000 ou oferecesse outro
indivíduo em seu lugar (Kraay 1998: 122). No caso das alforrias por
substituição, Torres Homem realmente tem razão em qualificá-lo como fatos
"individuais e isolados". A substituição passava pelo senhor, era um
desejo dele, em suma, um expediente que permitia ao Estado não interfer
diretamente na relação entre senhores e escravos; a resolução era tomada ali
mesmo na fazenda ou nas casas dos senhores que viviam nas regiões urbanas. Era
um expediente, enfim, não tão "perigoso" quanto a intervenção do
Estado, essa sim perigosa, mesmo que ele pagasse indenização.
Ora, o que se vê é uma preocupação latente entre os conselheiros e também de
boa parte das classes dominantes de que a interferência do Estado em tal
assunto pudesse gerar a esperança de que o escravo alcançasse a liberdade,
"palavra terrível", como disse o francês. Embora o decreto
autorizando o ingresso de libertos nas Forças Armadas por indenização não
permitisse o que o decreto da Sabinada permitia ' a correria de escravos às
juntas sem consentimento do senhor ', um sem-número de escravos burlava o
controle dos senhores e se apresentava voluntariamente, como homens livres, às
juntas alistadoras. Como vimos, vários escravos foram encontrados por seus
senhores quando já estavam fardados e prontos para a guerra. Esse era um dos
perigos do qual falava Torres Homem: animar as esperanças de liberdade com o
recrutamento de escravos através da interferência do Estado junto à relação
senhor'escravo. Os escravos que não haviam sido agraciados com a alforria pela
guerra corresponderam às palavras proféticas do conselheiro, alistando-se
voluntariamente na Marinha e no Exército ou se deixando levar pelos agentes de
recrutamento forçado sem revelar aos truculentos oficiais a condição escrava a
que estavam subjugados.
Pelo menos nos momentos de guerra civil ou externa, nas rivalidades partidárias
mais inflamadas ou em que leis sobre os escravos haviam de ser discutidas, a
relação senhor'escravo era afetada. Não importa se o controle senhorial e
policial se tornasse estéril e permitisse as fugas ou se as Forças Armadas
legalistas ou revoltosas lançassem mão do recrutamento forçado de escravos
através de decretos para a causa ' da independência do país, dos separatistas
da Sabinada, da guerra do Paraguai e de tantas outras ', o perigoso era sempre
a leitura que os escravos faziam desses movimentos, a partir da qual gestavam
suas próprias estratégias para alcançar a liberdade, e lutavam com unhas e
dentes por essas mesmas causas em prol do que de mais importante havia para
eles.
Para Flávio Gomes (1998: 81), que estudou vários protestos em forma de revolta
tanto no meio rural quanto no urbano, "tais momentos de crise, entre
outros, podem ser avaliados, por parte dos escravos de determinadas regiões,
como favoráveis ou não para a realização de insurreições". Nesses
protestos, grosso modo, o escravo preferia ser levado à polícia, enfrentar até
à morte as forças que o obrigavam a continuar com o mesmo senhor e nas mesmas
condições, ou fugir.
Como vimos, porém, no caso dos escravos em exércitos separatistas, na Marinha e
' é bem certo ' no Exército, havia ainda outra possibilidade para aquele que
fugira para assentar praça. Este não tinha nada garantido, não fora emancipado
para engrossar as fileiras das Forças Armadas. Mas o fato de lutar por uma
causa com afinco poderia representar a possibilidade de não mais retornar à
antiga condição. Isso é marcante no caso dos que retornaram do Paraguai, e fica
ainda mais claro nos despachos e ofícios que tramitaram pelo ministério da
Justiça logo após a guerra, relativos a dois escravos reclamados por seus
senhores.
O caso não me parece igual ao do pardo Manoel Pereira, que se mandou
pôr em liberdade. A respeito deste, o grande lapso de tempo decorrido
entre a verificação da praça e a reclamação da propriedade pode
deixar supor um tal ou qual abandono do senhor, aproveitável ao
escravo; mas o outro, de que agora se trata, esteve no gozo da
liberdade apenas alguns meses, que ele passou no hospital de uma
fortaleza, ficando portanto mais difícil ao interessado o
conhecimento do fato para poder fazer a reclamação, que ora
apresenta. Nas circunstâncias atuais do país em relação ao elemento
servil, compreende-se todos os males e perigos para a propriedade que
podem resultar do precedente de considerar-se suficiente o
assentamento de praça a um escravo para obrigar o senhor a intentar
em juízo uma ação regular e dispendiosa para reavê-lo. Nem tanto em
favor da liberdade!
21
Fleury era um conselheiro do ministro da Justiça e dava seu parecer sobre o
caso do "preto João" que, com o cognome João Antonio Ferreira, havia
sido recrutado no dia 9 de agosto de 1865 ' ano em que os conflitos
provenientes da guerra do Paraguai já eram realidade. A Caderneta do Livro de
Socorros da Marinha revela que João foi aprovado na inspeção de saúde e
assentou praça a 20 de agosto. Contudo, sua passagem pela Marinha foi breve,
pois geralmente era internado no hospital devido a uma doença não registrada em
sua Caderneta. Foi julgado incapaz para o serviço militar em 9 de fevereiro de
1866, aproximadamente seis meses após assentar praça como grumete. Viveu como
homem livre até ser reconhecido como escravo em abril de 1870. Esse fato foi
decisivo para que João retornasse à condição servil. No caso do outro, o pardo
Manoel Pereira, a situação era "favorável" a ele, pois deve ter
permanecido mais tempo como praça da Marinha ' João ficara somente seis meses
', além de participar da guerra.
Segundo Emilia Viotti da Costa (1982), muitos avisos do Ministério da Justiça '
do qual participava Fleury ' foram distribuídos às secretarias de polícia no
pós-guerra, informando como deviam agir em casos como os de Manoel e João. Em
um desses avisos, de 9 de fevereiro de 1870, o ministro dizia, segundo a
autora, "que um indivíduo que se achava há mais de três anos no gozo de
sua liberdade, e como livre servira na Armada, não só não deveria ser entregue
à sua senhora que o reclamava como escravo, como deveria ser posto em
liberdade" (Costa 1982: 43). Assim, podemos entender melhor a
diferenciação que Fleury criou para decidir o futuro dos escravos João e
Manoel, que fugiram e assentaram praça na Armada.
As histórias desses dois escravos servem para ilustrar as possibilidades
criadas com o colapso de uma guerra, em que o Estado interveio na propriedade
de um senhor devido à necessidade de sanar seu próprios problemas. Se não havia
homens dispostos a pegar em armas, o governo recorria ao recrutamento forçado
de homens livres, com o cuidado de não capturar o que não lhe pertencesse ' o
escravo, propriedade particular dos senhores. Em cidades como o Rio de Janeiro
e Salvador, diferir entre o forro, o livre e o cativo era matéria difícil, e
foi assim que Manoel e João descobriram o caminho para lutar por sua liberdade.
Com a emancipação por indenização, decretada ao longo da guerra, outras
perspectivas se abriram aos escravos vendidos às Forças Armadas.
Há leituras diferentes entre esses dois caminhos em prol da liberdade. Os
emancipados já assentavam praça como libertos, e quando voltassem da guerra
poderiam escolher seus próprios destinos. Para o fugido, contudo, essa garantia
não existia, ele poderia ir à guerra e ser reconhecido quando retornasse ao
país, e o senhor teria todo direito de reaver sua propriedade. Mas talvez eles
soubessem que, se aderissem realmente à causa da guerra e combatessem
heroicamente nos campos de batalha, teriam a possibilidade de se tornarem
livres das amarras da escravidão. (Como reescravizar um voluntário da pátria?).
Manoel Pereira possivelmente foi feliz em seus atos na campanha do Paraguai.22
Era esse o "perigo" visto por Fleury no caso das alforrias aos
escravos que lutaram no Paraguai e que continuavam a fugir e assentar praça nas
Forças Armadas. Através das leis emancipacionistas e das brechas que criava em
suas empresas para facilitar o assentamento de escravos, o Estado estava se
tornando um problema para os senhores. O senhor ficava meses ou anos sem ter
notícia do fugido, e quando o encontrava ainda tinha de mostrar documentação e
entrar na justiça para ter sua propriedade de volta ' sem a garantia de que
conseguiria resgatá-lo. Manoel Pereira que o diga. Para Fleury, deveria existir
algum dispositivo que obliterasse essa verdadeira veia aberta no alistamento de
homens para as Forças Armadas, a fim de garantir a propriedade do senhor e não
expor o Estado a uma situação sem saída: afinal, como, após recrutar um escravo
e abrir a brecha necessária para que ele mostrasse seu valor e seu heroísmo
pela causa da guerra, o Estado poderia entregá-lo ao senhor? Principalmente
quando, em 1870, os soldados paulatinamente retornavam da guerra e jornais como
A Reforma noticiavam que soldados e marinheiros estavam sendo reclamados como
escravos por seus senhores. Esse mesmo jornal dizia que João havia sido
"um voluntário da pátria condecorado com os louros da vitória" e
estava preso na Casa de Detenção por ser reclamado como escravo ' mas sabemos
que a Caderneta não lhe conferia tamanho crédito, pois nem do hospital saiu.24
A campanha pela manumissão já se iniciara na imprensa, errando algumas vezes e
acertando em outras. Os jornais tinham histórias de escravos fugidos que, após
a guerra, foram reclamados por seus senhores. Como afirmou Ricardo Salles para
o Exército,
A participação de escravos no exército[e, acrescento eu, na Marinha]
garantiu, pelo menos à parcela da população envolvida, algum tipo de
reconhecimento e mesmo um lugar de interlocução. Sua incorporação num
projeto de realização hegemônica da Coroa e da classe dominante
implicava necessariamente assimilar alguns de seus próprios
interesses a esse projeto. Assim é que a alforria do escravo
combatente tinha dois lados: encobrir o fato de a civilização
escravista fundar parte da sua glória nos campos de batalha num
segmento da população não reconhecido como portador de seus padrões
morais e culturais, e ao mesmo tempo incorporar e atender um
interesse imediato desses setores, a liberdade (Salles 1990: 74).
O retorno desses soldados e marinheiros ao Brasil ' escravos ou libertos, tanto
faz ' como vitoriosos e heróis com certeza teve grande participação nos
desígnios institucionais que haviam de ser votados em torno da escravidão: os
escravos ou libertos com farda deram provas sobejas de sua contribuição para o
fim da instituição. Foi uma pressão que em várias províncias se avolumou nas
décadas de 1870 e 1880, muito utilizada pela imprensa abolicionista da época.
Para se ter uma idéia, não obstante a pressão inglesa, logo após a guerra a
discussão em torno dos ingênuos retornou à baila parlamentar.
Conclusão
Sabemos agora que havia Amaros na Marinha de Guerra, e muito possivelmente no
Exército. Eles começaram a invadir a Marinha de Guerra no início do século XIX,
em momentos nos quais a manutenção da integridade do território brasileiro foi
conquistada com muito sangue, entre revoltas separatistas e o equilíbrio das
forças no parlamento. Ouviam os gritos de liberdade pelas ruas, sabiam das
discussões na Assembléia Legislativa relativas à condição dos escravos e viam a
crise. Esses eram os melhores momentos para a fuga e para a incorporação, seja
nas forças leais ao governo, seja nas separatistas. Nada, contudo, estava
seguro: o escravo fugido precisava conquistar a vitória na guerra, pois ela
seria também a sua. O exército que oferecesse a liberdade seria o escolhido, e
a partir disso o escravo o defenderia de todas as formas possíveis. Durante a
guerra do Paraguai, encontrei 25 casos de escravos reclamados por seus senhores
que já haviam assentado praça ou estavam próximos de o fazer. Mas quantos não
foram reclamados? Quantos senhores deixaram de procurar suas propriedades a
tempo de não perdê-las para sempre? Quantas centenas ou milhares de escravos
foram para a guerra nessas circunstâncias? Disso, nunca saberemos...
Além desses, havia aqueles escravos que sorrateiramente assentavam praça em
períodos entrecrises. Mesmo assim, os senhores poderiam enfrentar problemas
para os terem restituídos ao seu domínio. Sacarem teve de enfrentar um auditor
durão, que não permitia a restituição sem a documentação comprobatória. O
comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto e outros senhores tiveram de arcar com
os gastos pelo erário com o alistamento voluntário de seu escravo. Por vezes o
encarregado do quartel-general intervinha, dificultando ainda mais a
restituição. Como disse May, isso tornaria cada vez mais difícil a restituição
dos escravos às famílias que viviam através desse "instrumento de
trabalho".
Todos esses fatores me levaram a pensar que a invasão de escravos nas Forças
Armadas e públicas não era algo estanque, simples evidência sem maior
importância. O que revelei até aqui, na verdade, é uma pequena amostra do que
ocorreu ao longo da maior parte do século XIX. Somente um trabalho de peso, que
analise a documentação das principais províncias do país, poderá revelar essas
e outras questões relativas aos escravos fugidos, que encontraram na Marinha de
Guerra o melhor lugar para ocultar sua condição. A princípio, revelo que a
única quantificação possível dos escravos que fugiram e se alistaram é aquela
referente às reclamações dos senhores. Mas isso não importa tanto. O mais
instigante aqui é entender o alistamento não-somente como um castigo para os
homens livres, mas também uma das rotas seguidas por escravos para encobrir sua
fuga e garantir a liberdade.
Notas
1.
Este texto foi originalmente apresentado no XX Simpósio Nacional de História,
com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
2.
Arquivo Nacional (AN). Série Marinha, XM-1.167: Ofícios do Chefe de Polícia da
Corte (OCP) ao Encarregado do quartel-general da Marinha (EQGM), n. 15, 1846.
3.
Segundo Gladys Ribeiro (1998: cap. 2), Luis Augusto May era português de
nascimento. Em 1822, em meio às rusgas pela independência, teve importante
participação na imprensa através do jornal Malagueta, do qual era o único
redator, defendendo a união com Portugal, a Monarquia Constitucional
Representativa, e refletia sobre os acontecimentos "à luz de pensadores
como Montesquieu e Rousseau".
4.
AN. Série Marinha, IIIM-654: OCP ao EQGM de 29 de outubro de 1859.
5.
Esses eram os limites de idade para alistamento de novos marinheiros, segundo
consta no Decreto n. 1.591 de 14 de abril de 1855, artigo 12o.
6.
AN. Série Marinha, IIIM-654: OCP ao EQG, 31 de dezembro de 1859.
7. AN. Série Marinha, IIIM-654: OCP ao EQG, 31 de janeiro de 1859.
8.
AN. Série Marinha, IIIM-657: OCP ao EQG, 7 de março de 1876.
9.
Segundo o decreto n. 1.591 de 14 de abril de 1855, os prêmios variavam entre
2$000,00 e 5$000,00. Durante a guerra do Paraguai, segundo Jorge Prata de
Sousa, chegaram a 20$000,00 e 30$000,00. Cf. CLB (1855); e Sousa (1996: 68).
10.
AN. Série Marinha, IIIM-657: OCP ao EQG, 06 de setembro de 1873.
11.
AN. Série Marinha, IIIM-654: OCP ao EQG, respectivamente, 28 de outubro de
1844, 18 de abril de 1844 e 10 de outubro de 1861.
12.
AN. Série Marinha, IIIM-655: OCP ao EQG, 17 de dezembro de 1863.
13.
Uma boa discussão a esse respeito pode ser encontrada em Sidney Chalhoub
(1990: 35-43) e Graham (1979: cap. 1).
14.
Baseio-me aqui no trabalho de Edward P. Thompsom (1987: 13). Para um apanhado
geral dessa interpretação teórica, ver Sharpe (1992).
15.
O mesmo envolvimento de escravos nesses momentos em que o Estado passava por
crises pode ser visto em outros movimentos. Nas rusgas da independência, o
trabalho mais recente a abordar o assunto é o de Gladys Ribeiro (1997) e, no
caso da Cabanagem, Pinheiro (1999). Contudo, a possibilidade de encontrar o
envolvimento de escravos em outros movimentos é bastante plausível, mas somente
as encontraremos com novas pesquisas na maior parte dos estados brasileiros.
16.
Os revolucionários cubanos também enfrentaram o mesmo dilema. O receio de
abolir os escravos arraigou-se, e a saída pela emancipação gradual vingou
naquela ilha. Para maiores detalhes, ver Scott (1991: 63-76).
17.
Sobre as estatísticas de alforria de escravos enviados para a guerra, ver
Sousa (1996: 82-107) e Kraay (1998: 127-34).
18.
Anais do Conselho de Estado, 5 de novembro de 1866.
19.
Anais do Conselho de Estado, 5 de novembro de 1866.
20.
Ata do Conselho de Estado,5 de novembro de 1866.
21.
AN. Série Justiça, IJ-518: OCP ao Ministro da Justiça, 25 de abril de 1870.
22.
Jorge Prata de Sousa (1996: 71) narra um caso idêntico ao de Manoel, e a
Marinha pagou a indenização ao senhor para não perder o marinheiro, pois este
havia sido "condecorado por seus bravos feitos contra os rebeldes da
província de Pernambuco".
23.
A Reforma, 3 de abril de 1870.