Problemas no paraíso: a democracia racial brasileira frente à imigração afro-
americana (1921)
Os últimos anos da década de 1910, nos Estados Unidos, foram marcados por um
significativo acirramento nas tensões raciais. Uma escalada de confrontos
raciais iniciou-se em East St. Louis, Illinois, em 1917, alastrando-se por
diversas regiões do país e chegando ao ápice no violento confronto de Chicago,
que durou cinco dias em julho de 1919 (Franklin, 1980; Grossman, 1997). Após as
leis segregacionistas e os sangrentos linchamentos que se arrastavam desde o
século anterior, esse ensaio de guerra racial talvez tenha sido o elemento que
faltava para que grupos de afro-americanos intensificassem a busca por outros
países onde pudessem receber um tratamento mais digno. Como o Brasil ostentava,
desde o século XIX, uma imagem internacional de "paraíso racial" (Azevedo,
1996; Hellwig, 1988, 1992), não surpreende que em 1921 o Brazilian-American
Colonization Syndicate tenha manifestado seu desejo de adquirir terras no
interior do Mato Grosso, visando colonizá-las com afro-americanos. Quando a
notícia chegou aos ouvidos dos habitantes do "paraíso" as reações foram
instantâneas, e imediatamente os deputados Andrade Bezerra e Cincinato Braga
apresentaram à Câmara dos Deputados um projeto impedindo "a importação de
indivíduos de raças negras". O projeto não se transformou em lei, mas isso não
impediu o governo brasileiro de utilizar diversas artimanhas para negar vistos
de entrada a afro-americanos, provocando com isso diversos protestos nos
Estados Unidos.
A mobilização do Estado brasileiro para impedir a entrada de afro-americanos no
Brasil ao longo dos anos 1920 é uma história que já foi contada de forma
competente em diversas ocasiões, de modo que remeto o leitor interessado aos
trabalhos disponíveis sobre o tema (Lesser, 1994b; Meade & Pirio, 1988;
Seigel, 2001:cap. 5). Não se trata, aqui, tampouco, de estudar a política
brasileira do período, tema igualmente estudado por diversos autores (Ramos,
1996; Lesser, 2001). Este artigo tem por objeto o debate que se desenrolou a
partir do momento em que as intenções do Brazilian-American Colonization
Syndicate tornaram-se públicas. Afinal, trata-se de uma ocasião bastante
singular para acompanhar os contornos dos diversos pontos de vista acerca da
questão da identidade nacional naquele período, já que se vivia, então, um
momento bastante particular no pensamento social brasileiro. O desejo de
branquear a nação através de uma entrada maciça de imigrantes europeus, ligado
às teorias racistas do século XIX, ainda estava na ordem do dia, e seus
reflexos ainda seriam bastante visíveis no período getulista, com sua explícita
tentativa de controlar a entrada no Brasil de indivíduos provenientes dos
continentes asiático e africano.1
Contudo, estava-se a pouco mais de uma década do lançamento do clássico de
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala, obra que definiria os contornos do
orgulho nacional associado à ausência de preconceito racial e à idéia de que
"somos todos mestiços, se não no sangue, pelo menos na alma". Mais que isso,
parece claro que a obra definitiva de Freyre se consagrou tanto pelo que tinha
de novo, quanto por ecoar todo um debate sobre a ausência de racismo no Brasil
que floresceu ao longo do período posterior à Primeira Guerra Mundial.
Obviamente, a formulação dada por Gilberto Freyre à questão da singularidade
brasileira em termos de ausência de preconceito racial não se encaixava
necessariamente bem com diversas visões mais conservadoras ou progressistas,
mas é inegável que de certa forma sua obra acabou por se tornar uma espécie de
ponto de convergência de boa parte da discussão sobre raça e nacionalidade no
período anterior.2
O dilema entre o desejo de branquear a nação e o de preservar a visão do Brasil
como território livre de preconceitos raciais não era a única problemática
envolvida com a imigração dos afro-americanos. Havia um elemento complicador a
alterar os possíveis significados da questão: o fato de que o debate sobre a
imigração afro-americana se dava em uma arena transnacional. Como uma pesquisa
recente demonstrou de forma bastante convincente (Seigel, 2001), parece claro
que todo o desenrolar da questão racial brasileira se deu visando um contexto
transnacional, em que a suposta boa convivência entre raças diferentes seria um
elemento a colocar o Brasil em posição favorável no concerto das nações. Neste
caso particular, tal aspecto se acentua, já que não se tratava de africanos ou
afro-brasileiros, e sim de afro-americanos, de modo que seria de se esperar que
houvesse repercussões do problema em território norte-americano. Assim, os
atores da nossa trama desempenharam seus papéis não apenas pensando apenas no
país em que viviam, mas por certo também estavam atentos às repercussões de
seus atos em uma arena transnacional.
Assim, é certo que os brasileiros desejavam manter intacta sua imagem de
"paraíso racial", mas isso tornava-se obviamente conflitante com os desejos
expressos por muitos de barrar a entrada destes imigrantes em potencial.
Estudando tais discursos, pretende-se lançar luz sobre a formação da idéia do
Brasil como espaço privilegiado da democracia racial, e os diversos matizes que
esta idéia mais geral assumiu, desde as formulações mais claramente adeptas do
branqueamento, até visões mais próximas de uma ideologia igualitária. No
período tematizado, a idéia de democracia racial estava em pleno processo de
construção, e a questão da imigração era, sem dúvida, um tema que revelava os
meandros da negociação em curso sobre os sentidos daquela idéia.
I. Os indesejáveis
Antes de entrar no assunto deste artigo, é preciso notar que o tema de
imigração estava na ordem no dia no ano de 1921. Naquele momento, o grande
perigo parecia vir dos países europeus: afinal, após terem sido alvos de
grandes esperanças da elite nacional em fins do século XIX, os imigrantes
europeus progressivamente perderiam sua aura de portadores de progresso e
civilização. A ascensão social de algumas famílias de imigrantes e, sobretudo,
as contestações à supremacia das elites tradicionais acabaram por desiludir a
classe dominante em relação à imigração européia, processo que chegaria ao auge
em fins da década de 1910.3 Meses antes da chegada da notícia dos planos de
imigração afro-americana, havia sido aprovada a chamada "lei dos indesejáveis",
proibindo a entrada de prostitutas, deficientes físicos e mentais e idosos,
além de especificar as condições em que ativistas políticos poderiam ser
expulsos.4 As greves da década anterior haviam criado as condições para a
aprovação da lei, aplaudida por jornalistas, que parabenizavam o governo por
fazer o possível para impedir a entrada de europeus "parasitários, que aqui
desejam viver sem trabalhar", bem como dos "profissionais da desordem política"
("Lei e Imigração", Correio da Manhã, 22.2.21). Naturalmente, havia quem se
preocupasse em defender a continuidade de imigração, afirmando que a maior
parte dos que haviam entrado era de trabalhadores ("A Liga Nacionalista de São
Paulo contra o Jacobinismo", O Imparcial, 3.7.21), mas pode-se notar nas
páginas da imprensa da época a existência de um clima de certo modo
desfavorável aos imigrantes.
Tal situação ajuda a contextualizar as violentas reações contra os planos do
Brazilian-American Colonization Syndicate, já que, uma vez que a própria
imigração européia era bastante questionada, o que esperar da possibilidade de
imigração de descendentes de africanos? No primeiro artigo sobre o assunto que
pude localizar na imprensa carioca pode-se já ter uma idéia das barreiras que
os afro-americanos viriam a encontrar. O artigo ironiza aqueles que se opunham
à imigração européia, afirmando que estes deveriam estar radiantes, já que
a corrente imigratória que, de acordo com o seu modo de pensar mais
convém ao país [...] vai agora inundar o Brasil em negros caudais
humanos, em caudais de gente física e intelectualmente forte, sem os
graves defeitos morais dos portugueses, dos italianos, dos espanhóis,
de todos esses povos que, por virem para cá, ajudar a desbravar, a
cultivar, a fazer a Pátria, pensam depois que podem por tão simples
razões, merecer, senão a gratidão, pelo menos a consideração dos
brasileiros seus filhos! Se é porém de tal imigração que precisa o
país para melhoria da raça que o sangue europeu contaminou, porque
então não suscitamos nós, com a imigração dos pretos norte-americanos
que agora começará, a imigração dos peles-vermelha e demais índios,
não só dos Estados Unidos, mas da Venezuela, da Colômbia, do Peru?!
("Os Novos Imigrantes", O Paiz, 9.7.21).
O autor em questão não parece ter maiores preocupações em dissimular o fato de
que, em sua visão, quando se trata de decidir a imigração mais conveniente para
o Brasil, a questão racial é praticamente o único elemento em jogo. Isso
poderia parecer óbvio, mas como se verá, poucos foram tão explícitos na
racialização do debate sobre a imigração de afro-americanos como o jornalista
citado. Afinal, proibir a entrada de qualquer descendente de africanos seria
uma atitude radical que só através de algumas piruetas teóricas poderia ser
conciliada com a idéia de que o Brasil era um país despido de preconceitos.
Este ponto praticamente dominou o debate na Câmara dos Deputados a partir do
momento em que o projeto de Cincinato Braga e Andrade Bezerra foi apresentado.
Bezerra era deputado por Pernambuco, e em julho de 1921 havia apresentado
projeto liberando verbas para fomentar a imigração européia. Em sua defesa do
projeto, o autor considerou as imigrações russas, japonesas e turco-árabes
"inconvenientes", e achava que a imigração deveria ser restrita a agricultores,
"que são os únicos que nos convêm" ("A Organização Geral do Trabalho", O
Imparcial, 13.7.21). No mesmo mês, Bezerra apresentou o projeto impedindo "a
importação de indivíduos de raças negras", por achar necessário "proteger-nos
contra essa calamidade" ("Comentários sobre a Nossa Política Econômica e
Imigratória", O Imparcial, 20.7.21).
Esta racialização explícita do debate imigratório traria grandes problemas a
seu autor na Câmara já a 29 de julho de 1921, quando cabia meramente decidir se
o projeto seria ou não objeto de deliberação. Tratava-se de um ato protocolar,
mas a discussão foi bastante exaltada havendo mesmo aqueles que julgaram ser o
projeto indigno de ser considerado pela Casa. Um dos questionamentos mais
incisivos partiu do deputado gaúcho Joaquim Osório:5
Sr. Presidente: a República não admite privilégios de nascimento,
desconhece foros de nobreza. Perante a Constituição republicana não
há senhores nem vassalos, patrícios nem plebeus, ricos nem pobres,
privilégios de raça, casta ou classe. A República a todos os homens
irmana e nivela perante a lei. A República não tem preconceitos de
raças, sentimentos exclusivistas, não distingue entre brancos, negros
e pardos. A Constituição republicana prescreve, em tempo de paz, que
"qualquer" um pode entrar no território nacional ou dele sair com sua
fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de
passaporte. Ainda assegura a brasileiros e residentes no país todos
os direitos e garantias constitucionais especificadas no art. 72.
É a consagração do direito do homem e do cidadão que a Revolução
Francesa de 1789 proclamava como a "requisição dos títulos perdidos
da humanidade". [...]
[O projeto] é um atentado aos direitos do homem e do cidadão,
proclamados pela humanidade, é um atentado à Constituição da
República, é um atentado à dignidade da raça negra. O Brasil, que a
13 de maio de 1888 aboliu a escravidão, que nessa data áurea comemora
a fraternidade dos brasileiros e glorifica Toussant Louverture, que
conhece o concurso da raça africana na fundação e organização da
nossa nacionalidade, o Brasil, pelos seus representantes, só pode
repelir esse infeliz projeto, que seria o indício de um Código Negro,
de uma política de preconceitos de raça indigna de uma República.
Em nome dos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, que
constituíram o lema da Revolução Francesa; em nome destes princípios
imortais consagrados pelo Brasil e pela lei republicana em seu código
político; em memória do concurso da raça negra à causa do Brasil, e
aos seus heróis e mártires que bem sintetizam Marcílio Dias e
Henrique Dias; em homenagem ainda, a essa augusta mulher, a Senhora
Isabel, Princesa Imperial Regente, sancionadora da lei de 13 de maio
de 1888, cujo aniversário hoje decorre; em nome dos sentimentos
brasileiros, que não distinguem ou condenam os homens pela cor da
pele, mas tão-somente pelos seus méritos e virtudes; nas proximidades
do centenário da Independência do Brasil, pelo respeito devido à
memória de José Bonifácio, que desde 1824 propugnava pela
fraternidade dos homens, que tolerara a monarquia no Brasil por não
compreender uma República com escravos ' em nome desses princípios e
sentimentos de glorificadores da alma humana, não julgo objeto de
deliberação o projeto Cincinato Braga e Andrade Bezerra.
Se Osório se recusava, por princípio, a discutir a questão em termos raciais,
Bezerra permaneceu inabalável, vendo o Brasil como um país sitiado necessitando
de urgente defesa:
[...] permitia-lhe o regimento da casa que reclamasse para o seu
projeto ao menos a atenção da Câmara, porque assim provavelmente, se
se positivassem as ameaças já hoje reconhecidas oficialmente, de a
América do Norte mandar para aqui como indesejáveis os homens de cor
que lá vivem, o Congresso já teria ganho tempo então para tomar
qualquer atitude de significativa repulsa à injúria que tal fato,
devido aos antecedentes norte-americanos em relação aos negros,
envolveria o bom nome do Brasil.
Obviamente, Bezerra buscava acionar o recurso do patriotismo, afirmando, com
todas as letras, que tal imigração havia sido planejada diretamente pelo
governo norte-americano.6 Mas tal argumento não se mostrou eficaz para conter
os ataques dos demais deputados, a começar por seu companheiro de bancada, João
Cabral, que disse
[...] não compreender como o Sr. Andrade Bezerra, professor de
Direito e católico romano praticante, havia esquecido, ao redigir o
seu projeto proibindo a entrada de negros no Brasil, não apenas os
mais belos artigos da nossa Constituição Federal, mas principalmente
a sua fé cristã e os doces preceitos da doutrina do louro nazareno.
Declarou-se ainda "verdadeiramente horrorizado" com o projeto. Na mesma linha,
Carlos Penafiel achava que o projeto era "um atentado também contra o
catolicismo, porque os filhos de Cã também eram filhos de Deus". O também
pernambucano Gilberto Amado achava que "o projeto irrita e ofende os
sentimentos nacionais, porque todos os seus congressistas têm origem na raça
etíope", enquanto Manoel Villaboim achava "que é preciso não ser brasileiro
para apoiar tal projeto". Já o amazonense Álvaro Batista
Não podia compreender no Brasil questões de raça que não se
justificam modernamente, em relação a qualquer nacionalidade, e entre
nós, muito menos em relação à "raça infeliz", que tivemos tantos anos
duramente escravizada, e na qual encontramos o braço infatigável que
plantou as nossas lavouras, extraiu as nossas riquezas e colaborou,
heroicamente, na vitória das nossas guerras e na defesa da nossa
nacionalidade.
Nota-se aqui que o desejo de ver no Brasil um país marcado pela ausência de
preconceitos poderia ter diversas fontes, da crença nas virtudes do amalgamento
racial à defesa do igualitarismo, passando pelos que viam no racismo algo
anticatólico ou ainda antinacional. Fosse através do republicanismo do
positivista Joaquim Osório, do catolicismo de João Cabral e Carlos Penafiel, da
crença no "Brasil mestiço" de Gilberto Amado e Manoel Villaboim ou da visão
histórica bastante tradicional de Álvaro Batista, o fato é que o projeto de
Bezerra (Cincinato Braga, co-autor, não estava presente naquela data na Câmara)
sofreu ataques duríssimos no Legislativo por definir os critérios de entrada no
Brasil em termos raciais.7 Após ser julgado objeto de deliberação, o projeto
foi encaminhado às comissões competentes mas não foi adiante. Posteriormente, o
deputado mineiro Fidélis Reis, que já havia sido o único a se pronunciar
favoravelmente em relação ao projeto no debate da Câmara apresentou uma espécie
de nova versão do projeto, com o intuito aberto de dificultar a imigração de
africanos, asiáticos e seus descendentes, além de fomentar a imigração
européia, mas tal iniciativa igualmente não obteve êxito (Ramos, 1996:65).
Parecia mais prudente reprimir a imigração de afro-americanos discretamente,
através de atividades consulares, do que expor a nação à crítica internacional
em função de um projeto polêmico.
II. "A bagaceira com que nos ameaça a América"
Tendo em vista o debate legislativo, é surpreendente notar que o projeto foi
quase unanimemente aplaudido nas páginas da imprensa carioca, em especial
através da pena dos cronistas. Nas semanas seguintes, diversos periódicos
discutiram o projeto, alguns se limitando a reproduzir as palavras de deputados
cuja posição mais agradasse ao jornal,8 mas poucos cronistas escaparam de
alguma incursão no tema. Já no dia seguinte, um articulista abria seu texto
louvando o fato de que "uma das grandes felicidades do Brasil consiste
justamente na nossa falta de preconceitos de raças humanas". Após desenvolver,
por algumas linhas, esta idéia, tecendo elogios à ausência de preconceitos
verificada no Brasil, seu anônimo autor comentava:
Mas porque não cultivamos preconceitos não se deve concluir que
possamos aceitar uma imigração condenável no ponto de vista eugênico,
e perigosa, pelo menos, do ponto de vista social e econômico.
Mais ou menos instruídos, com uma longa tradição de ódios, os negros
norte-americanos viriam trazer para o nosso meio uma divisão de raças
que não conhecemos, além de perturbar profundamente o lento processo
de caldeamento e depuração que cumprimos há quatro séculos. O fato de
sermos um país semideserto, necessitando do braço estrangeiro para o
aproveitamento e valorização das nossas riquezas, não significa que
devemos abrir as nossas portas a todos que a elas batem. Podemos e
devemos escolher os imigrantes que nos convêm, como o fazem todos os
países, a começar pelos Estados Unidos. O negro é tão indesejável,
sob aquelas relações que já citamos, como o asiático ("As Imigrações
Indesejáveis", O Jornal, 30.7.21).
O texto citado traz alguns dos elementos que se repetiriam ao longo de todo o
debate na imprensa, mostrando, com rara sinceridade, o conflito entre o desejo
de branquear a nação e o orgulho da ausência de preconceitos raciais que era
elemento constituinte de uma imagem bastante difundida do país, tanto no plano
interno quanto no externo. Além disso, inseria-se um elemento crucial de toda
essa discussão: o conceito de "adaptabilidade", já que tais imigrantes, por
serem originários de "uma longa tradição de ódios", atrapalhariam "o lento
processo de caldeamento e depuração". Como alguns autores têm argumentado, a
possibilidade de assimilação tranqüila à população brasileira era um elemento
central na definição de "imigrante desejável" (Ramos, 1996; Lesser, 2001), e
tais afro-americanos pareciam especialmente indesejáveis sob esse ponto de
vista, o que se pode notar em virtualmente todos os discursos favoráveis ao
projeto.
No mesmo caminho, um artigo de Antônio Leão Veloso lamentava as divisões
raciais entre os humanos, crendo que o Brasil está livre do problema. Sobre o
projeto, afirma que "todo o mundo sabe que tal medida visa impedir a invasão do
território nacional por negros descontentes dos Estados Unidos". Crê que a
mestiçagem eliminou o "elemento negro" da população, evitando problemas raciais
e deixando o Brasil longe do racismo europeu. Mas
[...] o fato é que, do melhor modo, o Brasil resolveu o problema das
competições raciais, não lhe sendo preciso, como outros povos,
apontar o caminho da rua aos seus compatriotas negros. Não quer isto
dizer, todavia, que a tolerância demonstrada para com os nossos
negros nos obrigue a receber os dos outros. ("A Questão Negra",
Correio da Manhã, 1.8.21).
Conclui, portanto, a favor do projeto em termos que levam inevitavelmente um
observador atento a questionar seu discurso de que o Brasil estava a salvo do
"problema das raças". Afinal, o "negro" aparecia explicitamente como um
problema resolvido pela competência dos brasileiros em fazê-lo, de modo que não
parecia justo ao autor que o país fosse penalizado por ter sabido eliminar uma
ferida em potencial a tempo. Assim, os preconceitos raciais apareciam como uma
decorrência da falta de capacidade dos brancos norte-americanos de resolver um
problema, de modo que indiretamente os "negros" seriam a causa última dos
conflitos raciais pelo simples fato de existirem e viverem em um país não
mestiçado.9
Note-se que essa visão de que o problema racial brasileiro estaria resolvido e
seria reativado por estes imigrantes acaba por colocar o branqueamento e a
ausência de preconceitos no Brasil como fenômenos irmãos, ambos derivados da
miscigenação racial. No mesmo sentido argumentava Mário Guedes, para quem
[...] entre nós, não existe, propriamente, preconceito de raça. Ora,
a vinda de indivíduos da raça negra, de procedência norte-americana,
virá criar tal preconceito no país. Poderá despertar sentimentos que
não temos" ("Imigração Negra", Correio da Manhã, 2.8.21).
Para Guedes, a ausência de preconceitos no Brasil era comprovada pelo fato de
que "no Brasil não há mais o negro puro. A geração brasileira atual nunca
conheceu tal tipo", enquanto nos EUA, "conquanto a raça negra aí não seja de
todo pura, o é mais do que em qualquer região fora da África". Além disto, o
próprio caráter dos descendentes de africanos nos dois países seria muito
diverso, faltando ao americano o sentimentalismo do brasileiro. Segundo ele, "a
nossa gente de cor [...] se dá melhor com o brasileiro branco do que com o seu
próprio irmão de pele, vindo dos Estados Unidos". Guedes opera claramente
dentro da ideologia do branqueamento, crendo que seu sucesso, através da
miscigenação, teria eliminado a questão racial no Brasil, o que mostra um dos
caminhos através dos quais a idéia de democracia racial ganhava corpo. Nesta
formulação, o elogio da mestiçagem era uma conseqüência direta do
branqueamento, sendo a miscigenação um elemento que resolveria o problema da
nação pelo desaparecimento do "negro puro".10
Se parecia haver uma contradição na defesa da ausência de preconceitos através
de uma legislação imigratória racista, buscava-se equacionar este difícil
dilema através da idéia de que os imigrantes não seriam indesejáveis em função
de sua raça, mas sim devido ao fato de trazerem para o país o germe da
discórdia e por sua inadaptabilidade:
A imigração em massa, o êxodo, enfim, não será aconselhável, ainda
mais em se tratando duma gente que está cheia de preconceitos e de
rivalidades com a raça branca. Aqueles pretos são indesejáveis
evidentemente.
Mas o modo por que o projeto procura alcançar os seus fins é
excessivo. Em face de nossas leis políticas, não podemos fazer
diferença nessa questão de cor. Desde a campanha da abolição
fraternizamos, pretos e brancos, unidos numa aproximação exemplar.
Ainda há pouco, na Conferência da Paz, batemo-nos pelo princípio da
igualdade das raças.
Diante desses precedentes, não se explica que, de um momento para
outro rompamos com essa igualdade, criando contra os pretos uma
medida de exceção. Nem o próprio pacto de 24 de fevereiro permitirá
essa injusta diferença entre brancos e pretos.
Cumpre corrigir o projeto que se apresenta desses excessos ilegais,
restringindo-o a seu verdadeiro fim, que é não interdizer a imigração
de qualquer indivíduo da raça preta, mas somente a dos que vierem dos
Estados Unidos.
Ainda mais quando somente esses é que serão indesejáveis, não porque
são pretos, mas porque trazem no espírito, contra o branco, um
sentimento de hostilidade que será, na nossa ordem social, um perigo
e um mal, valendo por uma verdadeira imigração dessa questão de raças
que, mercê de Deus, não conhecemos ainda no nosso país ("Imigração de
Negros", Jornal do Brasil, 30.7.21).
O aparente beco sem saída se resolvia desta forma ao colocar-se uma questão
racial em termos nacionais (Lesser, 1994b). Desse ponto de vista, não se
trataria de barrar a entrada de "pretos", mas sim daqueles impregnados da
hostilidade racial que seria característica dos Estados Unidos. Assim,
argumentava-se que não era uma questão entre "brancos" e "pretos", mas uma
caracterização nacional que separaria "Brasil" e "Estados Unidos".
Naturalmente, um olhar cético perguntaria se o autor levantaria o mesmo
argumento no caso de indivíduos de puro sangue anglo-saxônico desejassem
emigrar para o Brasil. Seriam proibidos em função de sua eventual indisposição
contra os afro-brasileiros?
O mesmo argumento é levantado de forma mais explícita em um artigo de Veiga de
Miranda, favorável ao projeto, e que busca atacar as "defeituosas premissas" de
seus opositores. Em primeiro lugar, crê que não se pode comparar os afro-
brasileiros com africanos ou afrodescendentes de outros países, e os próprios
afro-brasileiros afirmariam isto se perguntados. Pensa que a imigração africana
traria um "rebotalho grosseiro e exótico", que levaria os afro-brasileiros a
"retrogradar em civilização", e que os afro-americanos trariam consigo o ódio
racial. Aos opositores do projeto que teriam evocado os sofrimentos do
cativeiro, o autor responde que se deve defender os direitos dos descendentes
de escravos, e crê que a miscigenação seja uma saída já encaminhada para a
solução do problema. Neste ponto o autor chega ao previsível argumento:
É possível atingirmos a um caldeamento completo. É de esperar-se que
não tenhamos sempre o bloco irredutível da carne preta, como os
Estados Unidos. Por que dificultar e retardar a hora dessa
homogeneização, injetando contingente endurecido do corpo cuja
dissolução se vai operando?
Finaliza crendo que os "escrúpulos constitucionais" não deveriam ser levados em
conta, já que o importante era evitar o surgimento de um "viveiro de pretos"
("Em Defesa do Preto", O Paiz, 2.8.21). Com isto, Veiga afirmava defender os
interesses dos afro-brasileiros, já que a "importação de indivíduos de raças
negras" traria a barbárie que os contaminaria, além do ódio racial que os
colocaria em situação desfavorável.
O artigo em questão utiliza uma variada gama de estratégias visando opor-se à
imigração de descendentes de africanos sem parecer estar endossando qualquer
forma de preconceito racial. Preocupado com a entrada de um "bloco irredutível
da carne preta", o autor parece incomodar-se com a inadaptabilidade dos
imigrantes afro-americanos. Sua estratégia essencial é, novamente, a de
colocar-se como defensor da nacionalidade, estratégia essa que se manifesta de
diversas formas. Pensa nos "pretos" como um problema, já resolvido em
território brasileiro através da miscigenação, mas que poderia renascer através
da imigração norte-americana, o que indica a presença de uma formulação da
idéia de democracia racial que a associa com o branqueamento. Reforça este
argumento alegando escrever seu artigo "em defesa dos pretos", pois seu
objetivo seria protegê-los da barbárie africana e do ódio racial norte-
americano, colocando novamente como elemento principal do debate a questão
nacional. Mas o leitor mais exigente não pode deixar de notar que Miranda
estabelece, desde o início, uma relação inteiramente assimétrica em termos de
poder entre brancos e "pretos": a ausência de preconceitos no Brasil seria uma
dádiva dos brancos, mas é sugerido que esta imigração poderia iniciar a
violência racial branca caso se estabelecesse um "viveiro de pretos" no Brasil.
Ao fim do texto relaxam-se visivelmente os pruridos democráticos do autor, que
prega que se mandem às favas os "escrúpulos constitucionais" em nome de se
impedir que o Brasil se transforme em um "viveiro de pretos". Aqui se vê a
exata dimensão do medo branco que, 33 anos após a Abolição, uma "onda negra"
poderia despertar.11
Tal medo era evidenciado em outro artigo, que utilizava um argumento
nacionalista inflamado para se opor à imigração de afro-americanos, em um ponto
de vista no qual a defesa contra a invasão norte-americana surgiria como
necessidade imediata. Seu autor argumentava, com tintas de paranóia absoluta,
que tal imigração seria parte de um plano de empresários norte-americanos para
dominar o Brasil, chegando a descrever exatamente o que imaginava ser o
raciocínio de tais empresários:
Não se enforca mais pretos na América do Norte, manda-se-os para o
Brasil. Faz-se os nossos pretos dar pancadas nos brancos daqui,
correr com todos os brancos a pau; depois enforcamos tudo que é negro
e ficamos donos disto. ("Looping the Loop", Careta, nº 687, 20.8.21)
Note-se que o autor parecia partilhar a idéia bastante difundida de que a
imigração em questão traria problemas raciais desconhecidos no Brasil, mas,
neste caso, contrariamente a outros, o que se tem é um temor da destruição dos
brancos brasileiros. O autor informava ainda seus leitores da concepção racial
que informava seus temores:
Ora, não há motivo algum que justifique qualquer compaixão para com
os pretos. Deus criou uma só Eva. Esta, porém, era branca. Logo, todo
indivíduo que não tiver pele ebúrnea não é filho de Deus. É bem
possível, agora, que exista uma Eva negra. Esta, no entanto, só pode
ter sido criada pelo tinhoso. E é mesmo. A prova irrefutável disso é
o cheiro de enxofre que os negros trazem na pele. Sendo assim, cada
negro que um branco matar é mais um degrau que se sobe na escada do
céu. (ibidem)
Se esta explicitação de paradigmas racistas é excepcional na documentação do
período,12 o fato é que o temor manifestado pelo autor era compartilhado por
diversos autores que escreveram sobre o assunto. Isso tornava o argumento
nacionalista um dispositivo freqüentemente acionado para justificar a repulsa
pela possibilidade de imigração de afro-americanos, colocando a questão em
termos de uma defesa contra o imperialismo norte-americano. Um dos autores a
utilizar essa possibilidade foi o literato Coelho Neto, que descreve as
contribuições dos escravos que "nos ajudaram a vencer os grandes obstáculos que
se opunham à nossa marcha nos primeiros tempos, aos que colaboraram conosco na
construção da nacionalidade", e afirma que a estes
[...] seria ingratidão repelirmos. Mas prestarmo-nos a receber a
bagaceira com que nos ameaça a América, que anda a varrer do seu
território com melindres de asseio o que tem por imundície [...] isso
não! [...]
Felizmente houve na Câmara quem protestasse contra a afronta, que
outra coisa não é o projeto dos capitalistas do dólar, que escumando
a América do que a polui, lançam sobre o Brasil o dejeto infamante.
Não nos levemos por sentimentalismos piegas: o caso não é para
piedade, mas para repulsão e ativa ("Repulsa", Jornal do Brasil,
31.7.21).
Apesar do inflamado engajamento de Coelho Neto na defesa dos interesses
nacionais,13 é impossível deixar de notar que esta defesa da pátria está
impregnada de imagens raciais. Afinal, é explícito o fato de o autor culpar os
afro-americanos pelos conflitos raciais de seu país, já que tais conflitos só
existiram por ter havido brancos dispostos ao confronto, e é difícil imaginar o
respeitado cronista descrevendo norte-americanos de ascendência européia como
"dejetos", "imundície" ou "bagaceira". Coelho Neto parece crer que, tendo
havido enfrentamento entre norte-americanos de ascendência européia e africana,
a culpa necessariamente seria destes, indicando a presença de uma clara
hierarquização racial a informar sua recusa em aceitar a imigração em questão.
Outra forma de temor despertado pela possibilidade de imigração afro-americana
era manifestada por Miguel Mello, para quem os planos do Brazilian-American
Colonization Syndicate estavam associados ao pan-africanismo de Marcus Garvey.
Para Mello, a colonização seria uma "colônia colossal", verdadeiro "exército
invasor", "cheio de ódio". Acha que "separados, isolados, um a um, poderiam ser
bem recebidos [...]. Juntos, porém, como levas compactas de imigrantes
inseparáveis, não nos podem convir!" ("Aos Domingos",Gazeta de Notícias,
7.8.21). Mello é outro autor a utilizar a estratégia de fugir de uma rejeição a
tal imigração em termos que pudessem soar como racistas. O autor faz questão de
mencionar que nada teria a opor a uma imigração de indivíduos isolados, mas a
imigração conjunta de uma quantidade maior de afro-americanos lhe despertava o
terror frente ao que lhe parecia uma massa invasora pronta a destruir a
hegemonia branca. Na documentação aqui apresentada o temor de Mello relativo a
uma invasão de afrodescendentes orientados por uma concepção política coerente
é um fenômeno isolado, mas mostra inequivocamente a presença do pavor dos
grupos dirigentes brasileiros quanto aos efeitos da presença de um grupo de
imigrantes afro-americanos.
A posição contrária à imigração de afro-americanos, ainda que hegemônica, por
certo não era a única a aparecer impressa nas páginas dos jornais. A revista
semanal O Malho publicava, no auge da discussão, uma charge mostrando Cincinato
Braga expulsando a pauladas uma enorme quantidade de afro-americanos pobres, e
de outro lado recebendo com toda a amabilidade alguns ricos. Na legenda, o
comentário de Zé Povo:
Isso é que é sabedoria de sabido! Mete o pau nos que precisam de
pegar no cabo de enxada, e abre a porta aos que precisam de trocar...
as pernas! Não é questão de cor: é questão de dinheiro! E chama-se um
homem adiantado, o Cincinato! E reclama trabalho e mais trabalho para
o Brasil, como quem pede pão para a boca! Imaginem se ele fosse o
contrário! ("Contra os Pretos! É bico ou cabeça?", 6.8.21)
A crítica ao projeto, personificada no prestigiado deputado, tinha como pano de
fundo a concepção de que, se eram necessários braços para a lavoura, não faria
diferença a origem racial destes imigrantes, um ponto de vista verdadeiramente
pouco comum nas páginas da imprensa carioca daquele período.
Além disto, o mesmo exemplar do periódico, na seção "Notas da Semana" dizia ser
o projeto inconstitucional, pois a citada "lei dos indesejáveis" já regulava
quem poderia ou não migrar para o Brasil:
O projeto dos Srs. Bezerra e Cincinato é, pois, uma excrescência, com
o caráter odioso do preconceito de cor, não só anticonstitucional
como perfeitamente idiota [...]. Isso sem levar em linha de conta que
o Brasil deve um século de trabalho e prosperidade ao braço negro, e
tem na sua história muitos lugares de honra ocupados por heróis da
mesma cor, entre eles Henrique Dias, o herói da batalha dos
Guararapes, nascido na terra do Sr. Andrade Bezerra.
Qualificando o projeto como inconstitucional e atribuindo-lhe um caráter
racista, o redator de O Malho imputava sérias críticas à iniciativa,
demonstrando a ausência de um pensamento unívoco na imprensa carioca sobre o
tema.
Outro autor a criticar a o projeto Cincinato-Bezerra foi Benjamin Costallat,
que após afirmar que "estamos com a mania do perigo negro", afirmava:
Acho que é medo demais. Não falando da violação de todos os
princípios liberais e do direito que essa medida acarretaria, acho
simplesmente que é medo demais [...] E depois, que diabo fez o negro
para dar esse medo ao branco? Só se o branco tem o medo que os
remorsos dão. Quem ao preto privou de suas melhores qualidades foi o
branco. O branco, que lhe tirou a vergonha com a chibata, a energia
com a cachaça e lhe deu todos os vícios que na pureza do seu deserto
e em plena liberdade o africano desconhecia ("Liberdade Preta,
Liberdade Branca", Gazeta de Notícias, 31.7.21).
Para Costallat, a aprovação do projeto significaria a criação de um "direito
branco" e um "direito negro". Além disso, "a liberdade terá uma noção preta e
uma noção branca. A liberdade do preto será a cadeia. A liberdade do branco
será absoluta". Além de lançar mão de argumentos explicitamente fundados no
liberalismo, a estratégia de Costallat era reinserir a questão racial no
debate, reforçando uma tendência já mostrada nos debates da Câmara dos
Deputados: aqueles que eram favoráveis ao projeto (ou ao menos ao seu
princípio) tendiam a privilegiar a discussão sobre a questão nacional, buscando
esvaziar de significado a questão racial, que por sua vez era privilegiada
pelos opositores do projeto de Cincinato Braga e Andrade Bezerra. Costallat
nota ainda a presença de um grande "medo branco" estruturando muitas das
opiniões favoráveis ao veto da imigração de afro-americanos, o que se justifica
tendo em vista o que foi exposto anteriormente.
Outro jornalista a se mostrar contrário ao projeto foi Assis Chateubriand. Seu
primeiro ponto era afastar qualquer acusação de barbarismo imputada aos
possíveis imigrantes, argumentando que os afro-americanos estariam no mesmo
nível intelectual que os brancos daquele país, citando W. E. B. Du Bois como
referência. Crê que, por serem oprimidos, os afro-americanos teriam
desenvolvido melhor suas habilidades, sendo impossível vê-los como inferiores.
Achava ainda que tal proibição soaria mais descabida em um país onde "todos têm
um pé na África", e que foi em boa parte construído por escravos e seus
descendentes. Afirma ainda ser o projeto inconstitucional, por proibir a
entrada em massa de cidadãos de outro país, concluindo que "haveria mil formas
para nos defender do 'presente de pretos' americano, que não esse projeto que
ofende o pundonor da raça como ferro em brasa" ("O Problema do Negro", Correio
da Manhã, 22.9.21).
A última passagem citada mostra que Chateubriand talvez não fosse inteiramente
contrário à intenção do projeto, mas não deixa de ser interessante notar que,
assim como os deputados Gilberto Amado e Manoel Villaboim, tal autor utilizava
a miscigenação como arma contrária à proibição da imigração. Assim como
diversos jornalistas favoráveis ao projeto, Chateubriand associava a mistura
racial à ausência de preconceito, mas subtraía desta fórmula o elemento do
branqueamento, o que modificava inteiramente o efeito da argumentação. Com
efeito, se para autores já citados o branqueamento, como fruto da miscigenação,
havia viabilizado a ausência de preconceitos raciais no Brasil, nesta visão era
inteiramente indesejável a entrada no país de novos indivíduos de ascendência
africana, que iriam repor um problema já resolvido anteriormente. Contudo, no
raciocínio de Chateubriand, isso não é um problema, pois o elogio da
miscigenação não se faz através da via do branqueamento, sendo a mistura racial
uma finalidade em si, a demonstrar a inviabilidade do preconceito racial no
Brasil.
Nota-se, desta forma, que em geral tanto os opositores quanto aqueles que eram
favoráveis à imigração afro-americana sustentavam seus argumentos a partir da
idéia de que o Brasil teria como singularidade a ausência completa de
preconceitos raciais. A tese de que o Brasil seria uma verdadeira democracia
racial, expressa na mistura de raças, parecia já inteiramente consolidada nos
momentos aqui estudados, mais de uma década antes de Gilberto Freyre dar aquela
que se tornaria a formulação mais conhecida de tal ponto de vista. Contudo, a
discussão presente nos periódicos cariocas mostra que o sucesso da fórmula
freyreana certamente deveu-se, em boa parte, a sua capacidade de dar corpo a
uma idéia geral que possuía uma ampla gama de significados por parte daqueles
que a apoiavam. Em formulações conservadoras e herdeiras das ideologias
cientificistas do século XIX, a democracia racial era um desdobramento natural
do branqueamento no Brasil, fórmula essencial para a resolução da questão do
sangue africano nas veias da nação. Contudo, eram igualmente possíveis leituras
nitidamente mais igualitárias da idéia de democracia racial, e neste caso esta
idéia poderia ser invocada quando se tratava de garantir direitos para os
descendentes de africanos, mesmo os que não fossem brasileiros.14
III. O palco da discussão racial e nacional
Se o debate sobre a imigração de afro-americanos não se manteve restrito aos
legisladores, burocratas e diplomatas brasileiros, mostrando grande força nas
páginas da imprensa, não deixaria de ganhar dimensões ainda mais amplas. Por
certo, a questão foi alvo de intensas discussões nas ruas, sendo um dado
importante o fato de ter sido tematizado pelo teatro de revista carioca. Este
era um dos gêneros favoritos de entretenimento na Capital, sendo freqüentado
por um público bastante variado e colocando em destaque temas da atualidade de
forma polissêmica, servindo assim como verdadeira arena através da qual
diversos grupos sociais acompanhavam a discussão de temas cruciais de sua época
(ver Mencarelli, 1999; Gomes, 2003). Sendo a questão da imigração afro-
americana um tema fortemente presente nas páginas da imprensa carioca, não
poderia deixar de ser tematizado nos alegres palcos musicados da Capital
Federal.
E os fãs do teatro de revista não se decepcionariam, pois a 29 de setembro de
1921 estreava Duzentos e Cinqüenta Contos, da consagrada dupla de autores,
Carlos Bittencourt e Cardoso de Menezes. A peça, que obteve um sucesso
significativo, tinha dois eixos temáticos conduzindo a cena. O primeiro, que
dava título à peça, era um intricado caso que envolvia um desfalque no Banco do
Brasil, cuja elucidação se arrastou por meses e despertou intensa curiosidade
do público, que acompanhava com interesse o surgimento de novos fatos relativos
ao caso que surgiam a todo instante, bem como as caracterizações que apareciam
nas páginas policiais sobre os inúmeros protagonistas, de variadas origens
sociais e nacionalidades.15 A outra questão central da peça era a da imigração
afro-americana, cujo sentido aparecia no texto da peça inteiramente associado à
questão racial brasileira.16
A peça se abre com um prólogo, que se passa em Macumba, um reino cujos
habitantes têm pele escura. Macumba sofre com a superpopulação, e necessita
exportar alguns de seus habitantes para outro país. Pensa-se no Brasil, por sua
ausência de preconceitos, mas tendo em vista o projeto apresentado ao
Congresso, o rei Caruru e a rainha Mafuá mandam um enviado, Honolulu, com o
objetivo de impedir sua aprovação, já que esta inviabilizaria a imigração dos
habitantes de Macumba. O prólogo se encerra com a sugestão de que o Brasil
acaba por aceitar os imigrantes de todas as raças.
Todavia, o desenvolvimento da peça indica que a realidade é bastante diferente.
O primeiro ato se abre com o malandro Ressaca caindo da cama, esclarecendo o
espectador de que o prólogo na verdade havia sido um sonho daquele personagem.
A peça em seus primeiros movimentos busca familiarizar o espectador com os
personagens da peça, alguns dos quais são três hóspedes de uma pensão (o
malandro Ressaca, o português Centenário e o norte- americano Mr. Bull), além
de Brasilina, a dona do estabelecimento. Após algumas cenas, chega à pensão um
novo hóspede, Lulu, que é alvo de reprovação de todos em função de sua origem
racial. Além de lembrar à assistência da peça o personagem do sonho de Ressaca,
a chegada de Lulu parece ter o objetivo de despertar simpatias da platéia, pois
o personagem distribui generosamente gorjetas entre os funcionários da pensão,
que passam a admirá-lo. Mas Ressaca, Centenário e Mr. Bull se mantêm
irredutíveis em seu desejo de que Lulu vá embora, o que indica um desejo de
troça dos autores da peça em relação ao preconceito racial, pois Centenário e
Mr. Bull apenas aderem à idéia de Ressaca, que por seu lado quer tão-somente um
pretexto para ir embora, já que não tem dinheiro para pagar a hospedagem na
pensão.
Porém, a cena muda quando Lulu declara precisar de um secretário que o ajude a
fechar seus negócios. Ressaca prontamente se oferece, o que abre espaço para
que o português, o malandro e o norte-americano possam se aproveitar das
oportunidades oferecidas pelo rico estrangeiro. O debate sobre a questão da
imigração afro-americana, até então implícita, torna-se evidente no momento em
que Lulu afirma ter o desejo de tentar impedir a aprovação do projeto de
Cincinato Braga e Andrade Bezerra. Este propósito de Lulu inicia o debate sobre
o assunto, que fatalmente leva os personagens da peça à discussão sobre o
preconceito racial. Brasiliana, a dona da pensão, teme a imigração de
descendentes de africanos, afirmando que "o Brasil precisa melhorar sua raça",
embora tenha sido uma das mais ardentes defensoras da presença de Lulu na
pensão. Centenário, por seu lado, concorda que o Brasil precisa melhorar a
raça, mas pensa que os problemas do país são causados pelos brancos; para o
português, o Brasil é tão grande e rico que todos devem ser admitidos em nome
do progresso. Já Ressaca, favorável ao projeto, crê que a única imigração que
convém ao Brasil é a dos portugueses.
Note-se que, na polifonia característica do teatro de revista, estão colocadas
na boca dos personagens de Duzentos e Cinqüenta Contos as mais diversas falas
sobre o tema, reproduzindo vários argumentos que haviam sido utilizados na
discussão do projeto na Câmara dos Deputados e nas páginas da imprensa. Um
aspecto relevante refere-se às falas que couberam a cada personagem. Brasiliana
adota uma postura mais próxima das elites do século XIX, mas parece estar
suscetível a mudar de opinião, já que considera Lulu "muito decente". Ressaca
vê nos portugueses a possibilidade de uma assimilação tranqüila, subentendendo-
se uma afinidade natural, o que é comprovado pela opinião do português
Centenário, aberta à imigração, parecendo ver na diversidade a oportunidade do
progresso do Brasil. Uma leitura atenta parece indicar que Ressaca e Centenário
se defendem mutuamente: o malandro, "tipicamente brasileiro", vê afinidade com
os portugueses; por seu lado, Centenário relaciona intimamente progresso e
mistura racial, defendendo a "nação mestiça", da qual Ressaca seria um
representante.
No final da peça, os autores parecem expressar opinião favorável à imigração
afro-americana, a partir da revelação de que Mr. Bull e o italiano Piratini
seriam os responsáveis por um roubo de 250 contos que havia vitimado Lulu,
levando Ressaca a observar que o dinheiro do americano era originado da
quantidade de água que este despejava no leite que vendia. Esta fala na boca de
um malandro leva o espectador a crer que, na verdade, os malandros, no mau
sentido, são os americanos, que ganham dinheiro à custa de golpes baixos no
povo brasileiro, enquanto o brasileiro seria um malandro inofensivo. Tal como
desenhado por seus autores, o final da peça deixa o "negro" Lulu na posição de
vítima do norte-americano Mr. Bull e do italiano Piratini. O primeiro parecendo
representar um imperialismo explorador, enquanto o segundo era oriundo de uma
das nações cuja imigração era tida como desejável por aqueles que endossavam o
projeto de Cincinato e Bezerra.
A denominação dos personagens da peça é outro elemento a indicar o ponto de
vista dos autores sobre a questão tematizada. Um exemplo é dona da pensão,
Brasiliana, que a princípio desconfia de modo evidente de Lulu, e quando da
discussão a respeito de qual imigração seria adequada ao Brasil, expressa uma
opinião muito próxima das elites do século XIX, ao dizer preferir os europeus,
visto que o Brasil "precisa melhorar a raça". À medida que a peça transcorre,
Brasiliana caba por aceitar Lulu, tornando-se uma defensora do personagem que
representa os africanos e seus descendentes na peça. A forma pela qual Duzentos
e Cinqüenta Contos é construída por seus autores parece sugerir que estes
desejavam ver em Brasiliana uma alegoria de um país que estaria em processo de
superar antigas convicções racistas em nome de uma maior igualdade racial.
Vale lembrar que as revistas permitiam ao heterogêneo público que as assistia a
existência de formas de leitura bastante diferenciadas. Se Carlos Bittencourt e
Cardoso de Menezes parecem ter escrito uma peça visando uma tomada de posição
em favor da imigração afro-americana, eram contudo obrigados pelo gênero em que
atuavam a fugir do teatro de tese e deixar espaço para outras formas de ver a
questão. O espectador poderia tão-somente divertir-se com os golpes do malandro
Ressaca e com a revelação final de que Mr. Bull era um trapaceiro que nada
deixava a dever a seu similar nacional. Seria ainda possível criar-se uma
empatia, principalmente entre os não favorecidos, pelo drama de Lulu, alvo de
toda a sorte de preconceitos, e essa empatia poderia evoluir ou não para uma
reflexão mais aguda do espectador sobre temas de raça e classe no Brasil. De
resto, quando o tema da imigração é explicitado na peça pode-se ver as mais
diversas opiniões sendo expressas pelos personagens, de modo que um espectador
poderia simplesmente ver reforçada uma opinião anterior na fala de um deles e
manter tal ponto de vista, independente do desenvolvimento posterior da trama.
Em conjunto com os debates parlamentares e os artigos publicados nos
periódicos, Duzentos e Cinqüenta Contos ajuda a mostrar as maneiras pelas quais
um assunto de Estado poderia alastrar-se pelas ruas da Capital e tornar-se tema
de discussões em todos os setores da sociedade, caracterizando a existência de
um amplo espaço público de discussão, o que torna difícil medir evolução de
questões como a idéia de democracia racial apenas através de textos consagrados
da literatura e do pensamento social.17 Além disso, pode-se notar que, por mais
que Gilberto Freyre permaneça um nome difícil de ser superestimado, o autor
pernambucano entrou em cena em um debate que já estava bastante adiantado. Das
visões mais racistas aos autores que buscavam a igualdade racial, o fato é que
todos pareciam compartilhar o pressuposto de que a singularidade brasileira se
daria em torno da miscigenação e da ausência de preconceitos. Estas idéias
possuíam a insuperável virtude de poderem receber incontáveis formulações,
servindo a diversos propósitos, da exaltação do branqueamento como forma de
resolver o "problema" da existência de pessoas de pele escura à legitimação de
aspirações igualitárias no campo racial. Não seria justamente esta polissemia o
elemento a justificar o fato de a idéia de "democracia racial", tão questionada
ao longo de décadas, ainda se fazer presente em pleno século XXI?
NOTAS
1. Há uma bibliografia extensa sobre o branqueamento. Ver, por exemplo,
Skidmore (1976, 1994), Schwarcz (1993), Borges (1993). Para uma bibliografia
especificamente dedicada à relação entre imigração e branqueamento, ver
Seyferth (1991), Lesser (1994b e 2001) e Lenharo (1986).
2. Discussões anteriores à obra de Freyre que definem o Brasil em torno da
idéia de ausência de preconceitos raciais podem ser encontradas em Seigel
(2001) e Gomes (2003, cap. 4). Nesses dois trabalhos se pode notar que tal
idéia recebeu formulações tanto mais conservadoras quanto progressistas em
relação a Gilberto Freyre. Reações conservadoras à obra de Freyre foram
documentadas em Maio (1999).
3. A maior parte dos trabalhos relativos ao assunto dedica-se a São Paulo, dado
que se trata do estado brasileiro onde ocorreu a maior entrada de imigrantes
europeus no período. A evolução histórica das visões sobre os imigrantes
europeus ao longo da Primeira República foi estudada em Andrews (1998: cap. 3).
4. Ver o Decreto nº 4247, de 6 de janeiro de 1921, em Brasil (1922). É
importante notar que, embora Meade e Pirio (1988) tenham afirmado que esta lei
impedia a imigração afro-americana para o Brasil, não há nada a respeito de
raça ou nacionalidade em seu texto.
5. O assunto foi polêmico a ponto de jornais publicarem trechos do debate no
dia seguinte. Ver, em especial, "Congresso Nacional", Jornal do Commercio,
30.7.21. A versão integral está em Brasil (1921a:2353 e ss.). Todas as
referências seguintes ao debate parlamentar foram retiradas dessas fontes.
6. Por certo, tal medo refletia o fato de terem havido rumores, após a Guerra
Civil americana, de que os EUA planejariam "exportar" ex-escravos para a
Amazônia, visando livrar-se do "problema". Ver Luz (1968).
7. Uma das únicas exceções que pude localizar nas Atas do Congresso foi a do
deputado Fidélis Reis, para quem os afro-americanos eram "indesejáveis".
8. "Na Câmara", Correio da Manhã, 30.7.21, reproduzia trechos da fala de
Andrade Bezerra, enquanto "A Entrada é Franca!", Gazeta de Notícias, 30.7.21,
imprimiu longos trechos do ponto de vista de Joaquim Osório.
9. No mesmo sentido argumentava Jackson de Figueiredo que "Seria interessante
que a grandeza de coração com que soubemos nos redimir do crime da escravidão,
viesse a servir de base a que se eternizasse em nosso país um grave problema,
já quase resolvido" ("O Caso dos Negros Norte-Americanos", O Jornal, 3.8.21).
10. Esta formulação que liga a ideologia do branqueamento à idéia de democracia
racial nos anos 1920 é estudada por autores como Andrews (1998:cap. 5);
Caulfield (2000:273-277); Seigel, (200:parte 2).
11. Impossível deixar de referir-me aqui a Azevedo (1987), que estuda os medos
da elite em relação a uma possível "onda negra" ao longo do século XIX.
12. Outro exemplo era José Maria Bello, inteiramente favorável ao projeto, por
achar que "ninguém contesta, nem mesmo está em discussão, a inferioridade dos
negros em relação aos brancos europeus e aos próprios amarelos do extremo
oriente asiático", e que sem a escravidão "poderíamos ser hoje um vasto país de
brancos [...] e conseqüentemente estar em outro grau de civilização". Lamenta,
ainda, que os portugueses não tenham adotado políticas raciais semelhantes às
norte-americanas ("A Imigração de Negros", O Imparcial, 6.8.21).
13. Novamente, como na fala do deputado Andrade Bezerra, sugere-se que a
imigração seria um projeto do governo norte-americano para se livrar de um
problema, transferindo-o para o Brasil. Este argumento foi usado inúmeras vezes
por defensores do projeto. Ver "Vade Retro!", de João Rialto, Careta, nº 685,
6.8.21.
14. Isso pode ser atestado pelo fato de grupos engajados na causa afro-
brasileira nos anos 1920 utilizarem a idéia da igualdade racial como
singularidade brasileira com o fim de justificar suas aspirações. Ver Seigel,
(2001, cap. 4); Caulfield (2000:279-281); Gomes (2003, cap. 4).
15. A longa e tortuosa história do desfalque no Banco do Brasil pode ser
acompanhada em qualquer dos veículos da grande imprensa do período,
principalmente na segunda quinzena de agosto de 1921.
16. As referências ao texto da peça utilizam como fonte o exemplar preservado
nos arquivos da 2ª Delegacia Auxiliar de Polícia, caixa 15, nº 279 (Arquivo
Nacional).
17. De fato, é visível o surgimento de uma bibliografia recente visando
contextualizar o alastramento da caracterização do Brasil como uma democracia
racial a partir de um enfoque mais próximo da história social, como por exemplo
Andrews (1998), Caulfield (2000) e Seigel (2001).