A História da África nos bancos escolares: representações e imprecisões na
literatura didática
Não costumo iniciar minhas reflexões com perguntas diretas, já que as mesmas
exigem respostas diretas. E efetivamente esta não é uma qualidade que carrego.
Porém, neste momento, é difícil encontrar outra forma de chamar a atenção do
leitor, provavelmente professor de História. Por isso vamos a ela: "O que
sabemos sobre a África?"
Talvez as respostas sofram algumas variações, na densidade e na substância de
conteúdo, dependendo para quem ou onde a pergunta seja proferida. Acredito, no
entanto, que o silêncio ou as lembranças e imagens marcadas por estereótipos
preconceituosos vão se tornar ponto comum na fala daqueles que se atreverem a
tentar formular alguma resposta. Atrevimento sim! Quantos de nós estudamos a
África quando transitávamos pelos bancos das escolas? Quantos tiveram a
disciplina História da África nos cursos de História? Quantos livros, ou
textos, lemos sobre a questão? Tirando as breves incursões pelos programas do
National Geographic ou Discovery Channel, ou ainda pelas imagens chocantes de
um mundo africano em agonia, da AIDS que se alastra, da fome que esmaga, das
etnias que se enfrentam com grande violência ou dos safáris e animais exóticos,
o que sabemos sobre a África? Paremos por aqui. Ou melhor, iniciemos tudo aqui.
O ofício de historiador ou de professor não consigo percebê-los tão separados
habilita-nos à compreensão e análise da humanidade em sua trajetória no
tempo. Isto não pode ocorrer apenas por adoração às pesquisas ou ao poder de
contar histórias. Voltar ao passado apenas por erudição ou curiosidade não é a
nossa tarefa. O passado comunica o presente, o presente dialoga com o passado.
Só assim nossa árdua função se recobre de significados e de sentidos. Desconfio
que os alunos também pensem assim. Se a História da África, como um campo do
pensamento humano, se justifica por si só, no nosso caso, a responsabilidade
adquire um duplo peso.
Primeiro: temos que reconhecer a relevância de estudar a História da África,
independente de qualquer outra motivação. Não é assim que fazemos com a
Mesopotâmia, a Grécia, a Roma ou ainda a Reforma Religiosa e as Revoluções
Liberais? Muitos irão reagir à minha afirmação, dizendo que o estudo dos
citados assuntos muito explica nossas realidades ou alguns momentos de nossa
História. Nada a discordar. Agora, e a África, não nos explica? Não somos
(brasileiros) frutos do encontro ou desencontro de diversos grupos étnicos
ameríndios, europeus e africanos? Aí está a dupla responsabilidade. A História
da África e a História do Brasil estão mais próximas do que alguns gostariam.
Se nos desdobramos para pesquisar e ensinar tantos conteúdos, em um esforço de,
algumas vezes, apenas noticiar o passado, por que não dedicarmos um espaço
efetivo para a África em nossos programas ou projetos. Os africanos não foram
criados por autogênese nos navios negreiros e nem se limitam em África à
simplista e difundida divisão de bantos ou sudaneses. Devemos conhecer a África
para, não apenas dar notícias aos alunos, mas internalizá-la neles. Para isso
devemos saber responder, com boa argüição, a pergunta inicial do texto. Porém,
chega de defesas ou apologias de uma História, e nos concentremos nas "coisas
sérias".
A História da África nos bancos escolares
Se o ensino de História no Brasil 1 passou por uma profunda transformação nos
últimos vinte anos, a mesma parece não ter atingindo de forma significativa o
estudo da História da África. Da criação da primeira cátedra de História no
país, em 1838, no Colégio Pedro II, até o final dos anos 1970, as mudanças no
ensino da disciplina foram limitadas pelo modelo positivista hegemônico em uso.
Porém, os anos 1980 e 1990 reservaram um espaço fecundo e estimulante para a
(re)significação de sua existência. Estabeleceu-se um diálogo, mais ou menos
aberto, entre os diversos setores interessados em repensar a abordagem da
História em sala de aula. Outras perspectivas teóricas Marxismo e História
Nova passaram a inundar os livros didáticos, levando à incorporação de
abordagens econômicas estruturais e temáticas dos conteúdos tratados ou
determinados pelos currículos.
Aqueles que se sentaram em bancos escolares até o fim da ditadura militar
tinham que se contentar, ou aturar, uma História de influência positivista
recheada por memorizações de datas, nomes de heróis, listas intermináveis de
presidentes e personagens. Sem contar a extrema valorização da abordagem
política pouco atraente, do eurocentrismo na História Geral e da exaltação da
nação e de seus governantes na História do Brasil. Todos esses conteúdos eram
apresentados com pouco ou nenhum perfil crítico e não existiam brechas para a
participação das pessoas comuns nos fatos tratados. O ruir da traumática
aventura dos militares ao poder se fez acompanhar de um esforço de
historiadores, professores e técnicos na tentativa de modificar o ensino da
história.
Como ressonância dos debates que circulavam nas universidades desde os anos
1950, o marxismo pareceu ser a alternativa óbvia para referenciar as
modificações dos currículos e reescrever os livros didáticos. Porém, a dose de
mudanças foi muitas vezes ortodoxa, limitando a história a modelos vulgares das
análises marxistas e a complexas estruturas e sistemas econômicos. Outras vezes
foi inócua, atingindo de forma bastante limitada a docentes e alunos. Para
alguns, cristalizou-se como única proposta a ser seguida, fugir dela era
renunciar ao papel de formador de consciências críticas e esclarecidas. Para
outros, a troca de perspectiva teórica não se fez acompanhar da qualificação
docente e do material utilizado em sala de aula. É essa perspectiva teórica,
com seus avanços e obstáculos que, até o final dos anos 1990, foi, se não
hegemônica, majoritária no ensino da disciplina.
Nessa mesma década como reflexo das mudanças teóricas que inundavam os cursos
de História, a partir os ventos soprados pela historiografia francesa
percebeu-se que, se a reestruturação escolar tinha sido frutífera, era ainda
inadequada. Apesar da experiência paulista2 dos anos 1980, é a partir de 1995
que encontramos uma presença mais marcante dos referenciais da História Nova
nos livros didáticos e nas salas de aula, chamada aí de História temática. Não
se pode negar os efeitos positivos dessas influências. Uma série de atividades
pedagógicas,3 envolvendo abordagens diversificadas da História, associadas à
escrita de novos manuais e reedições dos que já circulavam por algum tempo,
informavam os novos rumos tomados pelo ensino da disciplina. Porém, e apesar
dos esforços, existem lacunas e problemas de certa relevância no debate que se
montou acerca da adoção do ensino temático no Brasil. A formação de alguns
centros de Pós-Graduação,4 especializados no ensino de História, e de núcleos
de pesquisa,5 além da promoção de congressos e encontros nacionais revelam a
preocupação com as mudanças acerca do assunto. Fica evidente também, ainda
hoje, por motivos conjunturais maiores, o descontentamento de boa parte dos
alunos e docentes pela forma como ainda é ministrada a disciplina História nas
escolas. Porém este é um outro problema.
A partir deste quadro, de certa forma crítico, mas estimulante para aqueles que
defendem mudanças ainda maiores para a História ensinada, percebemos um outro
desencontro. Em artigos publicados recentemente, em duas qualificadas
coletâneas (ver Abreu, 2003, Karnal, 2003; Bittencourt, 1997b), vários
pensadores fizeram incursões reflexivas sobre o atual momento do ensino de
História e das inovadoras e, de certa forma, problemáticas propostas dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs). Entre as discussões levantadas, uma
chamou-nos a atenção: o debate acerca do combate à discriminação racial e do
ensino da História da África.
O artigo de Hebe Maria Mattos, O Ensino de História e a luta contra a
discriminação racial no Brasil, merece uma referência à parte. Mesmo guardando
idéias gerais, ainda que elucidativas, a autora demonstra sensibilidade e
iniciativa ao levar para um palco de discussões maior um assunto lembrado por
poucos: o ensino da História da África. Mattos alerta para a necessidade de um
redimensionamento teórico e espacial sobre a questão. Se existia uma tendência
dos estudos anteriores de olhar o negro no Brasil, a proposta da autora,
influenciada pelas reflexões do britânico Paul Gilroy, é de perceber a África,
os africanos, e a identidade negra do país dentro de um contexto histórico mais
abrangente: o Mundo Atlântico.
Quando se rompe com uma perspectiva essencializada das relações entre
identidade e cultura, decorre que qualquer abordagem sobre as
ambigüidades da identidade negra no Brasil se torna indissociável do
entendimento da experiência da escravidão moderna e de sua herança
racializada espalhada pelo Atlântico [...]. Gilroy aborda este
processo [a afirmação de novas identidades negras] como construção
política e histórica fundada em diferentes trocas culturais
(africanas, americanas e européias) através do Atlântico, desde o
tráfico negreiro, na qual a questão das origens interessa menos que
as experiências de fazer face à discriminação através da construção
identitária e da inovação cultural. (Mattos, 2003: 129-130)
Outra fundamental questão abordada pela historiadora é a negligência com a qual
se trata a História da África nas universidades e as conseqüências de tal fato
no ensino.
Ainda mais grave, há alguns conteúdos fundamentais propostos nos
novos PCNs especialmente a ênfase na história da África que,
infelizmente, ainda engatinham como área de discussão e pesquisa nas
nossas universidades, impondo-se como limite ainda maior ao esforço
pedagógico que pode ser feito para uma abordagem que rompa com o
europocentrismo que ainda estrutura os programas de ensino das
escolas. (ibidem:131)
As últimas páginas de seu artigo são dedicadas à análise de como a História da
África foi trabalhada em um dos novos livros didáticos utilizados no país (ver
Montellato, 2000). O ponto de destaque é que o volume analisado, voltado para a
6ª série do Ensino Fundamental, utiliza uma proposta de abordagem temática da
História. A autora passa a dialogar com o livro procurando salientar seus
avanços e tropeços, que parecerem ser em maior número. Por exemplo, no capítulo
que trata da Expansão Marítima Européia dos séculos XV e XVI, a "África aparece
apenas como uma sucessão de pontos geográficos a serem ultrapassados". Na
unidade seguinte, que estuda o "desencontro entre culturas" Mattos se incomoda
que
não haja nem uma palavra sequer sobre África, africanos ou os
diversos povos daquele continente e de como participaram destes
desencontros. Eles entram em cena na terceira unidade, para
caracterizar "a construção da sociedade colonial", basicamente como
força de trabalho.
Em outros momentos, como no debate sobre a escravidão, os autores do livro
reproduzem versões tradicionais da historiografia brasileira, ao naturalizarem
a escravidão por "ela", de alguma forma, já existir em África. A África pré-
colonial só irá aparecer na última unidade, porém, Mattos não realiza nenhum
comentário mais específico sobre o assunto. Por fim, a autora conclui que
a tendência de conjunto [...] é o lugar encapsulado (como uma simples
questão de mão-de-obra) e naturalizado (negro = africano = escravo)
da questão negra no ensino da história do Brasil. Qualquer trabalho
com livros didáticos anteriores aos PCNs apenas reforçaria esta
tendência [...]. (ibidem:132-134).
Cabe ressaltar que este trabalho da autora não é especificamente sobre o ensino
da História da África, mesmo que o aborde ao longo do texto, e nem ela é uma
africanista. Talvez isso revele a pouca profundidade ao analisar a abordagem da
África anterior ao século XIX, presente no manual. De qualquer forma, sua
contribuição deve ser destacada, já que foi uma das poucas vozes entre os
historiadores a publicar algum material sobre o tema. Suas conclusões gerais
também demonstram sua preocupação com a formação dos professores. Mesmo que
timidamente, aponta algumas alternativas.
Desenvolver condições para uma abordagem da história da África no
mesmo nível de profundidade com que se estuda a história européia e
suas influências sobre o continente americano. Já começaram a estar
disponíveis em língua portuguesa alguns títulos que tornam esta
tarefa relativamente viável, para além dos dois volumes monumentais
sobre história da África pré-colonial, de Alberto da Costa e Silva.
Ensinar história da África aos alunos brasileiros é a única maneira
de romper com a estrutura eurocêntrica que até hoje caracterizou a
formação escolar brasileira. (ibidem:135).
No que concerne ao estudo da História da África, não podemos ignorar o fato de
que após o processo de libertação africano, ocorrido na segunda metade do
século XX, principalmente até os anos 70, ocorreu uma expansão quantitativa e
qualitativa significativa das pesquisas realizadas sobre a história do
Continente, tanto por africanistas como por historiadores dos países
recémformados (Difuila, 1995). Porém, devido a problemas internos e ao descaso
externo, esses países falamos especialmente dos países africanos de língua
portuguesa6 , tiveram alguma dificuldade em transportar para seus ensinos as
inovações conquistadas por seus pesquisadores. No mundo europeu, esse momento
foi marcado por um novo perfil das pesquisas, até então realizadas sob a tutela
do olhar colonialista. Já na América, concentraram-se, principalmente nos
Estados Unidos e no Brasil, os maiores esforços de entendimento sobre a África,
evidenciados pelas pesquisas e centros de estudos montados. Mesmo assim, se
comparados com estudos realizados sobre outras temáticas, ainda são esforços
pálidos.
Enfim, o momento é propício ao debate da questão, já que o atual governo, na
época com poucos dias de existência, sancionou uma lei7 tornando obrigatório o
ensino da História dos afro-brasileiros e da África em escolas do Ensino
Fundamental e Médio. Medida justa e tardia, e ao mesmo tempo difícil de ser
implementada. Isso por um motivo prático: muitos professores formados ou em
formação, com algumas exceções, nunca tiveram, em suas graduações, contato com
disciplinas específicas sobre a História da África. Soma-se a esse relevante
fator a constatação de que a grande maioria dos livros didáticos de História
utilizada nesses níveis de ensino não reserva para a África espaço adequado,
pouco atentando para a produção historiográfica sobre o Continente. Os alunos
passam assim, a construir apenas estereótipos sobre a África e suas populações.
Portanto, seria justo perguntar: como a História da África é ensinada em nossas
escolas?
Para responder a tal questão faremos um breve exercício. Na realidade, é uma
espécie de teatro experimental de uma pesquisa maior, que desenvolvo em tese de
doutorado na linha de pesquisa Comércio e Transculturação no Mundo Atlântico,
do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília. Em meu
projeto tenciono fazer o seguinte percurso: analisar a forma como os livros
didáticos de História produzidos a partir de 1995 utilizados nas escolas
brasileiras, portuguesas, angolanas e cabo-verdianas representaram(am) por meio
de imagens e textos escritos os africanos, e qual o papel reservado à História
da África em meio às temáticas e conteúdos abordados.
Neste caso, farei aqui um breve, mas fundamental, teste. Nesta primeira parte
do artigo tivemos a preocupação de alertar, assim como outros já o fizeram,
para as graves lacunas existentes na formação acadêmica e no ensino sobre a
História da África. Na segunda parte apresentaremos a trajetória das leituras
realizadas sobre os africanos e que revelam as representações construídas ao
longo do tempo acerca da África. E por fim, em um terceiro momento realizaremos
um estudo de caso. Ao analisarmos um dos poucos livros didáticos (Schmidt,
1999) que abordam a História da África pré-colonial com um capítulo específico,
intentamos iniciar uma leitura crítica sobre os acertos e desacertos da
abordagem efetuada sobre a levantada temática nos manuais. Esperamos que seja
uma iniciativa válida.
Os africanos sob os olhares ocidentais e notícias da historiografia sobre a
África
Silêncio, desconhecimento e representações eurocêntricas. Poderíamos assim
definir o entendimento e a utilização da História da África nas coleções
didáticas de História no Brasil. Das vinte coleções compulsadas pela pesquisa,
apenas cinco possuíam capítulos específicos sobre a História da África.8 Nas
outras obras, a África aparece apenas como um figurante que passa despercebido
em cena, sendo mencionada como um apêndice misterioso e pouco interessante de
outras temáticas. Tornou-se evidente também que, quando o silêncio é quebrado,
a formação inadequada e a bibliografia limitada criam obstáculos significativos
para uma leitura menos imprecisa e distorcida sobre a questão. Percebemos,
então, que a tarefa de análise de manuais didáticos exigiria não apenas um
conhecimento considerável acerca da História e da historiografia africanas.
Seria preciso fazer uso de outro suporte de análise, que permitisse o
entendimento de como esses livros influenciaram a construção das distorções e
simplificações elaboradas sobre a África e apropriadas por milhares de alunos e
professores naquele Continente, no Brasil e em Portugal.
Se o objetivo aqui é analisar a forma como os africanos e a História da África
foram representados na literatura didática de História, torna-se indispensável
fazermos uma incursão por alguns dos trabalhos que tentaram esclarecer como o
imaginário ocidental sobre a África e os africanos foi gestado. É claro que as
contribuições vão além dos conceitos que serão discutidos, passando pelo
entendimento das relações sistêmicas maiores. No entanto, construir
instrumentos de pesquisa e reflexão mais apurados apresentam-se como tarefas
obrigatórias. Para isso, retornaremos às citadas reflexões traçando uma breve
trajetória das representações elaboradas sobre os africanos, articulando-a aos
caminhos seguidos pela historiografia africana.
Visões sobre a África
Em recente viagem à África,9 o presidente Luiz Inácio Lula da Silva demonstrou
a intenção do Estado brasileiro, pelo menos de forma simbólica, de quebrar o
silêncio de algumas décadas nas relações econômicas e diplomáticas mais
vantajosas entre as duas margens do Atlântico. Deixando de lado as perspectivas
figurativas do tour pela região sul do Continente São Tomé e Príncipe,
Angola, Moçambique, Namíbia e África do Sul o presidente, em seus
improvisados, e, portanto, mais reveladores discursos, cometeu o que foi para
alguns uma gafe, para outros uma dura ofensa à África. Ao fazer comentários
sobre a limpeza e organização de Windhoek, capital da Namíbia, Lula evidenciou
as imagens que incorporamos e perpetuamos sobre o Continente. Não tiremos as
palavras do presidente, sua íntegra nos ajuda à reflexão sobre nosso imaginário
acerca da África e dos africanos.
Estou surpreso porque quem chega a Windhoek [capital da Namíbia], não
parece estar num país africano. Poucas cidades do mundo são tão
limpas, tão bonitas arquitetonicamente e têm um povo tão
extraordinário como tem essa cidade [...]. A visão que se tem do
Brasil e da América do Sul é de que somos todos índios e pobres. A
visão que se tem da África é de que também é um continente só de
pobre (Correio Braziliense, 2003: 2).
Não iremos crucificar o presidente como outros fizeram. Não que concordemos com
tal disparate conclusivo, até porque, tendo oportunidade de se corrigir nos
dias seguintes, Lula afirmou que apenas constatou o óbvio. Porém, é muito mais
enriquecedor analisar os pensamentos do nosso chefe de Estado por uma outra
dimensão. Independente de Lula ter formação superior ou não, ser presidente ou
cidadão comum, nordestino ou gaúcho, pobre ou rico, sua postura de admiração
com uma "cidade limpa" na África é surpreendentemente comum. Para ser mais
claro: excluindo um seleto grupo de intelectuais e pesquisadores, uma parcela
dos afrodescendentes e pessoas iluminadas pelas noções do relativismo cultural,
nós, brasileiros, tratamos a África de forma preconceituosa. Reproduzimos em
nossas idéias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam um Continente
marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabilidade política, AIDS, fome e
falência econômica. Às imagens e informações que dominam os meios de
comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa
de estudos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos os
afrodescendentes aqui dentro. A África não poderia ter, fazendo uma breve
inversão do olhar presidencial, ruas limpas, um povo extraordinário e bela
arquitetura. Seguindo esse raciocínio, a viagem não poderia ter outra dimensão
do que a econômica, e o Brasil não poderia ter outra postura do que a de ajuda
humanitária à África, já que, por sermos tão melhores do que eles, seria
ilógico esperar algo de lá.
Para além da educação escolar falha, é certo afirmar que as interpretações
racistas e discriminatórias elaboradas sobre a África e incorporadas pelos
brasileiros são resultado do casamento de ações e pensamentos do passado e do
presente. Neste caso, percebe-se que as representações deturpadas sobre o
Continente africano não são uma exclusividade brasileira dos dias do presidente
Lula. As distorções, simplificações e generalizações de sua história e de suas
populações são comuns a várias partes e tempos do mundo ocidental. Dessa forma,
se continuarmos a reproduzir leituras e falas como a citada, é muito provável
que o imaginário de nossas futuras gerações sobre a África não sofra
modificações significativas.
Alguns autores10 já tinham alertado sobre as dificuldades de compreensão dos
olhares estrangeiros que percorreram o Continente africano. O historiador
português José da Silva Horta (1995, 1991) em dois excelentes trabalhos,
refletiu sobre os possíveis limitadores e influenciadores das leituras
européias realizadas em África, leituras essas que incorporamos durante o
período colonial e que foram reforçadas ao longo dos séculos seguintes. Horta
defende a idéia, comungada por outros autores, de que os textos sobre os
africanos escritos ou imagéticos , presentes nas mais diversas obras ao
longo do tempo, não passam de
representações
,11 ou seja, são (re)construções do real. É certo que esses textos foram
escritos (pintados) a partir de uma série de referências ou categorias
culturais daqueles que estiveram em África ou procuram interpretar as notícias
que lá chegavam.
Ao lermos os textos europeus que retratam o Africano (o mesmo sucede,
aliás, se interpretarmos ícones), mesmo os mais descritivos, temos de
partir sempre do princípio de que estamos perante representações, o
que é dizer, perante (re)construções do real. [...] Essa construção
faz-se de acordo com as categorias culturais e mentais de quem viu,
ou (e) de quem escreve [...]. A representação é, aqui, a tradução
mental de uma realidade exterior que se percepcionou e que vai ser
evocada oralmente, por escrito, por um ícone estando ausente.
(Horta, 1995: 189)
Evidencia-se dessa relação observado/observador um jogo não só de dominação
e resistência, mas também de dificuldade de explicar e reconhecer a alteridade.
Ao mesmo tempo, fica claro que as relações sociais, intelectuais e culturais só
se concretizam quando ocorre entendimento. E para entendermos algo, quase
sempre, fazemos uso de nossa cosmovisão e estrutura de explicação do universo,
emprestando significados ao que está sendo observado ou apresentado (ibidem:
190). Sabemos que as representações são construídas em nosso imaginário não de
forma passiva. Quase sempre incorporamos outras definições e conceitos de forma
consciente, e mesmo que adotemos determinada postura menos irrefletida, ela
pode ser alterada a qualquer momento, dependendo dos reflexos que nos chegam e
de nossas intenções.
A representação, enquanto tradução mental de uma realidade exterior
percepcionada, implica um processo de abstração que passa pelo gerir
mais ou menos inconsciente das classificações disponíveis no
stock cultural para tornar inteligível e avaliar essa realidade. Os
valores que lhe subjazem cristalizam-se assim em categorias, lugares-
comuns e estereótipos, que organizam a cada momento as
representações, das quais são como que a linguagem, o código de
referência permanente. (ibidem:209)
Compete aqui lembrar que esse processo não ocorreu em uma via de mão única
europeus/africanos. Os africanos evidentemente elaboraram suas interpretações e
significações para o que vivenciavam ao entrar em contato com os europeus.
Em suma: as representações recíprocas são uma dimensão essencial do
encontro de Europeus e Africanos, de uma história em comum. Práticas
e representações constituem um binômio indissociável. As últimas têm,
portanto, um papel coadjuvante na explicação da natureza do
relacionamento entabulado entre duas partes que se observam e que
interagem. [...] Trata-se de uma convergência natural e necessária em
todos os fenômenos resultantes do encontro ou confronto de culturas
[...] (ibidem:191).
Seria plausível afirmar que os olhares sobre o Outro estariam impregnados do
"estranhamento", da dificuldade de emprestar significados e aceitar as
diferenças. Ao mesmo tempo, tal relação é fundamental para a afirmação/
reelaboração da própria identidade. Nesse movimento os europeus emprestaram,
quase sempre, um aspecto de inferioridade aos povos da região. De certa forma,
também teriam sido os contatos com os europeus que fizeram os africanos
perceberem ou serem "obrigados" a aceitar que entre eles existiam elementos de
proximidae e de identidade.
O psiquiatra negro Frantz Fanon,12 ao investigar os impactos psicológicos do
processo de dominação européia na África, afirmava que "o negro nunca foi tão
negro quando a partir do momento em que foi dominado pelos brancos" (Fanon,
1983:212). O filósofo africano Kwame Appiah confirma a idéia de que "a própria
categoria do negro é, no fundo, um produto europeu, pois os 'brancos'
inventaram os negros a fim de dominá-los" (Appiah, 1997:96).
Percebe-se, portanto, que a troca de olhares sobre o outro e sobre a própria
identidade é um instrumento dinâmico, em constante resignificação e com
múltiplas variáveis. Neste caso, atentemos para as visões européias sobre os
africanos.
Desde da Antigüidade, os escritos de viajantes, historiadores ou geógrafos,
como Heródoto (séc. V a.C.) e Cláudio Ptolomeu (séc. II), fazem referência à
África de forma a demarcar as diferenças e a representar, a partir dos filtros
estrangeiros, o Continente e suas gentes.13 Os elementos que parecem ter
chamado mais a atenção das leituras européias foram a cor da pele dos
africanos, chamados de etíopes, e as características geográficas da região,
conhecida por Etiópia. Essa própria forma de denominar a África conhecida, que
no período se limitava à área acima do Saara, utilizada por gregos e romanos,
levava em consideração um desses grandes elementos de estranhamento, já que o
termo grego Aethiops, significa terra dos homens de pele negra (Difuila, 1995:
53).
Heródoto, em sua História, deixou registrada sua impressão acerca dos
africanos, em um misto de estranhamento, admiração e desqualificação. Em sua
lógica descritiva ele afirmava que "os homens daquelas regiões são negros por
causa do calor" e os "etíopes da Líbia são entre todos os homens os de cabelos
mais crespos" (Heródoto, 1988: 95, 361). A relação entre a cor e o clima,
associada à ênfase no tipo de cabelos revela o impacto que a diferença de
fenótipos entre os europeus e os africanos causava ao estrangeiro. Além disso,
afirmava o historiador que "o sêmem por eles ejaculado quando se unem às
mulheres também não é branco [...], e sim negro como a sua tez (acontece o
mesmo com o sêmem dos etíopes)" (ibidem: 182). Em seus comentários também
encontramos elogios aos etíopes, já que estes seriam "homens de elevada
estatura e muito belos e de uma longevidade excepcional". Na descrição
geográfica da região o viajante grego acredita ser a Etiópia "a mais remota das
regiões habitadas; lá existe muito ouro e há enormes elefantes, e todas as
árvores são silvestres, e ébano (...)" (ibidem: 185-6).
Porém, não só de curiosidade se constituem seus escritos. Em outros trechos
fica evidente a inferioridade dos etíopes perante os gregos e egípcios, já que
estes eram bárbaros sem civilização e identificados como trogloditas.
Esses soldados, estabelecendo-se na Etiópia, contribuíram para
civilizar os etíopes, ensinando-lhes os costumes egípcios (ibidem:
98).
Esses garamantes saem com seus carros de quatro cavalos à caça de
trogloditas etíopes, pois os trogloditas etíopes são os corredores
mais rápidos sobre os quais já ouvimos contar histórias. Esses
trogloditas se alimentam de serpentes, de lagartos e de répteis do
mesmo gênero; eles não falam uma linguagem parecida com qualquer
outra, e emitem gritos agudos como os dos morcegos (ibidem: 250).
Ainda na Antigüidade, o geógrafo alexandrino Cláudio Ptolomeu, baseando-se em
estudos anteriores, conseguia "com sua Geografia a evolução máxima dos
conhecimentos relativos aos contornos da África" (Djait, 1982: 119). A África
não passaria da região do Equador e o clima abaixo dele seria insuportável. Sua
cartografia serviria de base para os teólogos e geógrafos medievais.
No medievo, as imagens sobre os africanos foram completamente tangidas pelo
imaginário europeu. A teoria camita e a fusão da cartografia de Cláudio
Ptolomeu com cosmologia cristã relegam a África e os africanos às piores
regiões da Terra. Na cartografia medieval, os mapas seguem um padrão, sendo a
Terra um círculo com as terras conhecidas Europa, Ásia e África
distribuídas no centro em forma de um T. Na realidade, o termo mais usado para
designar essas representações era "mapas TO", de Orbis Terrarum. Um exemplo
desses mapas é o de Psalter (1250), ao lado (Noronha, 2000). Outra idéia
explica a "nomenclatura TO: ela sugere o Cristo crucificado (T) e o oceano (O)
que circunscreve todo o orbe" ou ainda o T como "representação geométrica dos
três mares", o Mediterrâneo, o Helesponto e o mare indicum(Noronha, 2000: 681-
689 e Kappler, 1994: 24).
O paraíso terrestre aparecia sempre ao Norte, no topo, distante dos homens, e
Jerusalém, local da ascensão do filho de Deus aos céus, no centro. A Europa,
cuja população descendia de Jafet, primogênito de Noé, ficava à esquerda (do
observador) de Jerusalém e a Ásia, local dos filhos de Sem, netos de Noé, à
direita. Ao Sul aparece "o continente negro e monstruoso, a África. Suas gentes
eram descendentes de Cam, o mais moreno dos filhos de Noé" (Noronha, 2000: 681-
689). Neste caso, mais uma vez o desprestígio recobria a África. Segundo os
textos bíblicos, Cam foi punido por flagrar seu pai nu e embriagado. Seus
descendentes deveriam se tornar escravos dos descendentes de seus irmãos e
habitar parte do território da Arábia, do Egito e da Etiópia.
Com as Grandes Navegações e os contatos mais intensos com a África, abaixo do
Saara, os estranhamentos e os olhares preconceituosos continuam. No século XV,
duas encíclicas papais a Dum Diversas e a Romanus Pontifex "deram direito
aos Reis de Portugal de despojar e escravizar eternamente os Maometanos, pagãos
e povos pretos em geral" (Lopes, 1995: 22). Além disso, o imaginário dos
navegantes iria sobreviver, de forma diversa, nos séculos seguintes. Os temores
sobre o Mar Oceano e a região abaixo do Equador iriam alimentar as elaborações
e representações dos europeus sobre os africanos. Monstros, terras inóspitas,
seres humanos deformados, imoralidades, regiões e hábitos demoníacos iriam ser
elementos constantes nas descrições de viajantes, aventureiros e missionários.
Em excelente obra introdutória à História da África, Mary Del Priore e Renato
Venâncio, retrataram essas construções mentais.
Acreditava-se, também, que a parte habitável da Etiópia era moradia
de seres monstruosos: "os homens de faces queimadas". [...] A cor
negra, associada à escuridão e ao mal, remetia no inconsciente
europeu, ao inferno e às criaturas das sombras. O Diabo, nos tratados
de demonologia, nos contos moralistas e nas visões das feiticeiras
perseguidas pela Inquisição, era, coincidentemente, quase sempre
negro (Del Priore e Venâncio, 2004: 56).
Para a maior parte dos autores, a descrição física da zona meridional
africana se associava à idéia de intolerância climática. No século
XI, Vicente de Beauvais, dominicano e leitor da real família de
França, opunha o Norte e o Sul para explicar que o primeiro era seco
e frio e o segundo, quente e úmido. Ao norte, os homens seriam sadios
e belos; ao sul, frágeis, doentes e feios. Por culpa do clima
tórrido, seus corpos negros e moles eram sujeitos a males como a
gangrena, a epilepsia, as diarréias. Ao norte, os corpos, isentos de
doenças, teriam uma coloração rosada (ibidem: 58).
Ao longo dos contatos estabelecidos nos tempos modernos os preconceitos foram
apenas se alternado. A ausência da fé cristã, trocada em África por "cultos
pagãos e fetichistas", de Estados organizados aos moldes dos europeus e o
convívio com padrões urbanísticos, estéticos e artísticos diversos fizeram com
que as leituras européias sobre a África pouco mudassem.
No século XIX, as crenças científicas, oriundas das concepções do Darwinismo
Social e do Determinismo Racial, alocaram os africanos nos últimos degraus da
evolução das "raças" humanas. Infantis, primitivos, tribais, incapazes de
aprender ou evoluir, os africanos deveriam receber a benfazeja ajuda européia,
por meio das intervenções imperialistas no Continente. Neste mesmo período, o
pensamento histórico passa por (re)adequações, surgindo uma espécie de história
científica.
As perspectivas das reflexões historiográficas, do século XIX até a década de
1960, espelham, em parte, os silêncios insuportáveis que até pouco tempo se
fizeram sobre a temática no Ocidente e no Brasil, e explicam a manutenção das
representações construídas em relação aos africanos. Partindo da idéia de que a
história é o campo das ações mentais e materiais humanas no tempo, a África
é a região do mundo de mais longa historicidade. Berço da humanidade, esse
Continente foi palco de diversificadas experiências sociais e múltiplos
fenômenos culturais. No entanto, o aparecimento da "ciência histórica", na
Europa dos oitocentos, desconsiderou, por meio de seus pressupostos, a história
vivenciada naquele Continente.
Nas leituras dos autores que abordaram a trajetória da historiografia africana
encontramos alguns elementos em comum na identificação de como a África aparece
nos escritos historiográficos ocidentais e nos dos próprios africanos. A
divisão/classificação desses escritos, realizada pelo cientista social
guineense Carlos Lopes, servirá como guia de nossa incursão. Segundo Lopes,
existiriam três grupos nos quais poderiam ser localizadas, por afinidades
maiores, as diversas investigações ou "falas" realizadas sobre a África, a
partir do século XIX: a Corrente da Inferioridade Africana, a Corrente da
Superioridade Africana, e uma Nova Escola de estudos africanos. Para uma melhor
apreensão dessas interpretações, é preciso lembrar que elas são herdeiras
diretas de um imaginário14 já bastante distorcido acerca dos africanos.
Segundo os pensadores do século XIX, os povos africanos subsaarianos
encontravam-se imersos em um estado de quase absoluta imobilidade, seriam
sociedades sem história. No caso, é preciso que se frise que a História,
naquele momento, passara a se confundir com dois elementos: as trajetórias
nacionais entendidas como os inventários cronológicos dos principais fatos
políticos dos Estados europeus, quase sempre protagonizados por figuras
ilustres ou heróis; e com o movimento retilíneo e natural rumo ao progresso
tecnológico e civilizacional. Dessa forma, a idéia da transformação, da busca
constante pelo novo, pelo moderno, se tornaria uma obsessão. Além disso, devido
aos rigores metodológicos, o passado somente poderia ser acessado com o uso dos
documentos escritos oficiais.
Observados de dentro dessa perspectiva histórica, os povos africanos não
possuíam papel de destaque na história da humanidade. Primeiro pela ausência,
em grande parte das sociedades abaixo do Saara, de códigos escritos havia a
predominância da tradição oral. E, segundo, por serem classificadas como
sociedades tradicionais15 quando a tradição aparece no sentido de preservar,
como em uma bolha do tempo, o passado , estando fadados a um eterno
imobilismo.
Os pesquisadores que abordam a construção da historiografia africana utilizam
exemplos, que hoje poderíamos chamar de "clássicos", para descrever este estado
de coisas. O mais citado é a categórica afirmação do filósofo alemão Friedrich
Hegel, ainda na primeira metade do séc. XIX, acerca da inexistência da História
em África, ou de sua insignificância para a humanidade.
A África não é uma parte histórica do mundo. Não tem movimentos,
progressos a mostrar, movimentos históricos próprios dela. Quer isto
dizer que sua parte setentrional pertence ao mundo europeu ou
asiático. Aquilo que entendemos precisamente pela África é o espírito
a-hstórico, o espírito não desenvolvido, ainda envolto em condições
de natural e que deve ser aqui apresentado apenas como no limiar da
história do mundo. (Hegel, 1995: 174).
Apesar de Hegel não ter uma influência tão significativa assim nos
historiadores do período seguinte, parece que essa idéia não ficou limitada aos
oitocentos, influenciando trabalhos posteriores. Manuel Difuila lembra que um
dos primeiros estudiosos das temáticas africanas, H. Schurz, comparou a
"História das raças da Europa à vitalidade de um belo dia de sol, e a das raças
da África a um pesadelo que logo se esquece ao acordar" (Difuila, 1995: 52).
Ainda nesta direção um renomado professor da Universidade de Oxford, Sir Hugh
Trevor-Hoper, demonstrou, em 1963, compartilhar das idéias de seus companheiros
anteriores.
Pode ser que, no futuro, haja uma história da África para ser
ensinada. No presente, porém, ela não existe; o que existe é a
história dos europeus na África. O resto são trevas [...], e as
trevas não constituem tema de história [...] divertirmo-nos com o
movimento sem interesse de tribos bárbaras nos confins pitorescos do
mundo, mas que não exercem nenhuma influência em outras regiões"16
(apud Fage, 1982: 49).
Para os historiadores do século XIX ou da virada para o XX, a História da
África vivenciada ou contada teria começado somente no momento em que os
europeus passaram a manter relações com as populações do Continente. Não só
pela ação de registrar e relatar, feita por viajantes, administradores,
missionários e comerciantes do século XV ao XIX, mas principalmente pelas
mudanças introduzidas pelos europeus na África.
O filósofo africano Valentin Mudimbe chamou a atenção, por exemplo, sobre as
argumentações utilizadas pelos europeus para explicar as origens da técnica
estatuária usada pelos iorubás, da arte do Benin e da arquitetura do Zimbabwe.
Todos esses elementos de destaque da cultura africana seriam frutos de
interferências de outras civilizações na África negra, e não criação africana
(Mudimbe: 1988, 45). Carlos Lopes apresenta outras pesquisas neste estilo. A
tendência seria, de alguma forma, preservar as afirmações de que a África não
possuiria história, e de que tudo lá encontrado não passaria de uma cópia
inferior ao produzido em outros lugares.
Ao estudar os conhecimentos astronômicos dos Dogon nos anos 40, M.
Griaule e os seus discípulos ficaram fascinados com o nível de
conhecimentos existente. Recentemente, o conhecido astrônomo Carl
Sagan, da Universidade Cornell, decidiu avaliar esses mesmos
conhecimentos Dogon, e concluiu que os "Dogon, em contrate com todas
as sociedades pré-científicas, sabiam que os planetas, incluindo a
Terra, giram sobre si próprios e à volta do Sol"... Como é que se
pode explicar este extraordinário conhecimento científico? Sagan não
duvidou um segundo que deve ter sido devido a um gaulês que
atravessou aquelas paragens, e que provavelmente estava mais avançado
que a ciência da época (Lopes, 1995: 23).
Infere-se, portanto, que, há cinqüenta anos, investigar o passado do Continente
negro ainda era uma tarefa marcada por um certo isolamento e pelo descaso.
Mesmo que percebida como inovadora, por alguns, a maioria dos historiadores a
julgava desnecessária ou inviável.17 O Continente que deu vida ao próprio homem
foi condenando por muitos deles ao esquecimento ou à inferioridade.
A mudança dessa perspectiva começou a ocorrer um pouco antes das lutas pelas
independências, nos anos 1950 e 1960, e se estenderia até o final da década de
1970. De uma forma geral, pode-se afirmar que, na segunda metade do século XX,
aconteceu uma espécie de revolução nos estudos sobre a África. As investigações
se diversificaram e ampliaram suas abordagens.
Em um primeiro momento, a fragmentação política do Continente forçava a
construção de histórias nacionais para cada região "inventada" pelos europeus e
reinventada pelos africanos. De forma geral, a independência criou, por parte
de uma nova elite política e intelectual, a necessidade da elaboração das
identidades africanas dentro do Continente, e deste perante o mundo. Para isso,
era imprescindível retornar ao passado em busca de elementos legitimadores da
nova realidade e encontrar heróis fundadores e feitos maravilhosos dos novos
países africanos e da própria África. Por essa visão, o Continente possuiria
uma história tão rica e diversificada quanto a européia.
Segundo o filósofo africano Kwame Appiah, era preciso ter qualidades e forças
em um mundo competitivo e em uma África submersa em problemas dos mais diversos
tipos. Para ele, entre esses primeiros pensares pós-independência estaria o
aparecimento de ideologias que defendiam e (re)significavam a identidade
africana: o pan-africanismo e a negritude. Ambas, com intensidades e objetivos
diferentes, buscavam enfatizar a existência de uma identidade comum africana,
que serviria como sinal distintivo e de qualificação, muitas vezes apaixonada,
dos africanos com relação ao resto da humanidade (Appiah, 1997: 19-53). Essas
correntes tiveram uma grande influência nos estudos ali organizados até o final
dos anos 1970, e na própria articulação e crescimento dos movimentos negros do
outro lado do Atlântico.
Uma das principais gerações de pensadores desse grupo foi a dos intelectuais
liderados pelos africanos Joseph Ki-Zerbo e Cheikh Anta Diop. A maior parte dos
historiadores ligados a esse movimento supervalorizou o argumento de que a
África também tinha sua história. Tal iniciativa fez com que Carlos Lopes
chamasse esse grupo de "Pirâmide Invertida", ou Corrente da Superioridade
Africana. Para Lopes, não seria difícil entender ou justificar este nome, já
que eles estavam ligados à iniciativa de modificar as leituras e visões sobre a
África, procurando redimensionar sua história, inclusive colocando-a como o
ponto de partida para explicar a História Ocidental (Lopes, 1995: 25-26).
As investigações deveriam, portanto, focar a África em sua própria trajetória.
As histórias dos reinos e civilizações africanas foram utilizadas como exemplo
da capacidade de organização, transformação e produção africanas, que em nada
ficava a dever para os padrões europeus. Assim como os vestígios materiais
deixados do passado técnicas de cultivo, padrões de estética da arte
estatuária, ruínas dos mais diversos matizes foram usados para evidenciar as
qualidades do Continente. No entanto, os autores que abordam o período são
unânimes em afirmar que os esforços dessa vertente18 resvalaram em erros
anteriormente cometidos. Um dos mais evidentes era a ação desproporcional de
enaltecer as características histórico-culturais da África. A imprecisão, aqui,
foi cometer o mesmo erro dos estudos europeus, só que agora não utilizando o
eurocentrismo, mas sim o afrocentrismo. Em alguns estudos os africanos passaram
a ser percebidos como meras vítimas das ações externas, perdendo novamente o
papel como agentes históricos (ibidem: 24-26).
No final dos anos 70 e início dos 80, passada a euforia de se pensar a África
por ela mesma, surgiu, nas palavras de Lopes, uma "nova escola de historiadores
africanos", despojados das cargas emocionais dos seus predecessores e
igualmente preocupados com a continuidade das investigações. Porém, no caso
desses novos historiadores, competia a eles a trabalhosa tarefa de ampliar os
estudos sobre o Continente e integrar suas pesquisas às constantes inovações da
historiografia mundial (ibidem: 28).
Nesse período, ficou claro que as fontes escritas não eram tão escassas para a
África. Arquivos ultramarinos europeus, na própria África, além das diversas
fontes em árabe, facilitavam a investigação sobre certos sistemas vigentes
durante séculos na história da região. Houve também uma sofisticação do uso de
metodologias no caso da tradição oral, assim como a aproximação com a
Antropologia, a Lingüística e a Arqueologia, que já ocorria há algum tempo,
acentuou-se.
Nos últimos anos, a historiografia africana passou a ser caracterizada por
estudos ligados às epidemias, ao cotidiano, às novas tendências da economia e
da ciência política, da importância do regional, do gênero, da escravidão, da
cultura política, das influências da literatura e de uma quase incontável
diversidade de temáticas para investigação. Pesquisas realizadas por africanos
e africanistas têm procurado desvendar e explicar o Continente pelas óticas
sempre diversificadas das reflexões históricas. Estudos sobre o passado remoto
ou recente das regiões, do processo de formação da África atual, do
entendimento da diversidade de suas culturas e povos, das releituras sobre os
contatos com os europeus e sobre os complexos problemas a que submerge hoje o
Continente foram alvo de uma quantidade avassaladora de investigações.
Encontros e publicações19 têm imprimido um ritmo estimulante para aqueles que
se interessam pelo seu passado. Apesar dos problemas, alguns inerentes à
própria situação socioeconômica da região, e às heranças e ranços
historiográficos que ainda insistem em destratar ou minimizar a relevância dos
estudos históricos ali desenvolvidos, as investigações aumentaram em termos
quantitativos e qualitativos.
De qualquer forma, e apesar dos esforços, seria precipitado afirmar que as
velhas representações sobre os africanos tenham desaparecido. Talvez a viagem
de Lula à África tenha sido um sinal disso.
O livro didático de História entre representações
Se levarmos em consideração que a grande maioria dos autores de livros
didáticos são historiadores, ou pelo menos professores de História, os manuais
escolares com seus textos escritos e imagéticos ganham o status de serem
representações da História. Da mesma forma, seria natural pensar que as mesmas
serão (re)significadas pelos seus leitores, sejam eles professores ou alunos.
Entendemos, portanto, que os textos e os recursos imagéticos presentes em um
livro didático mapas, figuras, fotografias, pinturas, charges ou desenhos
são produtos da interpretação e da representação de uma certa realidade pelos
seus autores.
Os próprios manuais guardam uma larga possibilidade de entendimento a partir do
contexto no qual foram fabricados, do momento historiográfico vivenciado, das
diversas demandas e influências que se apresentaram na elaboração desse tipo de
material e de ideologias ou mentalidades circulantes. Ao escrever um texto
sobre a formação dos Estados nacionais europeus e ignorar a multiplicidade
étnica da África pré-colonial, ou utilizar imagens de africanos escravizados e
brutalizados e não aquelas em que aparecem resistindo ou interagindo ao
tráfico, o autor está fazendo uso de uma série de critérios: sua formação
acadêmica, suas convicções ideológicas, seu contexto histórico, o público para
quem está elaborado o material, a intenção das editoras, as limitações de sua
formação para tratar todos os assuntos e as pressões do mercado editorial. De
certa forma, seu trabalho final é o resultado de seus olhares direcionados e
cheios de significados e interpretações, resultando num tipo de representação
da história. O livro didático
[...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de
uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como
textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e
valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família,
criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca [...]
(Bittencourt, 1997: 72)
A partir das palavras e imagens significantes presentes nos livros, os
próprios alunos irão construir suas representações significados ou somente
absorverão as representações elaboradas pelos autores. De acordo com Zamboni
Com relação à produção do conhecimento em sala de aula, lidamos
diretamente com a construção e elaboração de imaens e palavras. Neste
aspecto, a compreensão dos sentidos das palavras é de fundamental
importância [...] Quando uma palavra adquire determinado significado,
pode ser aplicada a outras situações: é a aplicação de um conceito a
novas situações concretas, é um tipo de transferência. (Zamboni,
1998: 94-5)
Entretanto, acreditamos que a construção de significados em sala de aula não se
limita às palavras ou textos escritos. As imagens, além de contribuírem para o
processo de ensino-aprendizagem em História (ibidem: 75), também informam uma
maneira de os alunos olharem os indivíduos ou grupos sociais que convivem com
eles.
A imagem enquanto representação do real estabelece identidade,
distribui papéis e posições sociais, exprime e impõe crenças comuns,
instala modelos formadores, delimita territórios, aponta para os que
são amigos e os que se deve combater. (Meireles, 1995: 101)
Seria plausível, então, pensar que se uma criança africana, européia ou
brasileira for acostumada a estudar e valorizar apenas ou majoritariamente
elementos, valores ou imagens da tradição histórica européia elas irão
construir interpretações ou representações influenciadas pelas mesmas. Da mesma
forma, se as imagens reproduzidas nos livros didáticos sempre mostrarem o
africano e a História da África em uma condição negativa, existe uma tendência
da criança branca em desvalorizar os africanos e suas culturas e das crianças
africanas em sentirem-se humilhadas ou rejeitarem suas identidades.20
Tentaremos, neste artigo, realizar um exercício inicial sobre essas questões.
Um estudo de caso: a África na Nova História Críticade Mario Schmidt
"Muitos brasileiros de hoje descendem de povos africanos. Por isso, conhecer a
história da África nos faz conhecer nossa própria história". É com esse
parcial21 argumento que Mario Furley Schmidt22 inicia o décimo primeiro
capítulo (África)do segundo volume de sua coleção intitulada Nova História
Crítica. Antes de maiores reflexões sobre o tema que se registre o elogio.
Juntamente com outras poucas coleções, esta é uma das obras que dedica um
espaço exclusivo para tratar o Continente. Quase sempre, a África aparece em
óbvias passagens da História do Brasil ou Geral, ligada à escravidão, ao
domínio colonial no século XIX, ao processo de independência e às graves crises
sociais, étnicas, econômicas e políticas em que mergulhou grande parte dos
países africanos formados no século XX. A África torna-se um apêndice ou um
complemento. São poucos os livros que dão destaque à História da África.
Por razões que talvez espelhem as defasagens da formação acadêmica e do mercado
editorial, e as circunstâncias específicas da elaboração de um livro didático,
o autor do manual incorreu em algumas imprecisões que têm sido comuns quando
o assunto é abordado. Mesmo citando uma literatura clássica sobre a
historiografia africana, e apesar de vários aspectos positivos de seu texto,
observar os desvios cometidos motivam a análise sobre a questão. Voltemo-nos a
elas.
Apesar do título da coleção, o livro de Schmidt demonstra ter uma
inquestionável influência "marxista". O vocabulário empregado em certas
passagens ao longo dos capítulos, e da própria Introdução da série uma
espécie de Introdução ao Estudo da História , evidenciam uma abordagem
marcadamente econômica dos temas e o uso de conceitos como o de luta de
classes, ancorando parte de sua narrativa nos antagonismos entre dominados e
dominadores, capitalistas e proletariados, senhores e escravos. Mesmo que, no
Manual do Professor,o autor cite a História Social como referencial teórico, e
nas temáticas abordadas dê uma atenção especial a aspectos culturais, a
influência dos pressupostos da Nova História Francesa ou da História Social
Inglesa é limitada. Seu texto possui uma base "marxista" e que ao poucos vai
incorporando as pesquisas e idéias oriundas das novas concepções
historiográficas. Na realidade, soma-se a um grande grupo de livros que se
encontram em uma espécie de transição.
No que concerne ao estudo da História da África, o volume aqui analisado guarda
algumas singularidades e alguns lugares comuns. No Manual do Professor, que vem
separado do livro didático, Schmidt procura justificar a inserção de um
capítulo de História da África na sua coleção.
Eis aqui um tema freqüentemente negligenciado por nosso ensino. Falta
mais grave quando sabemos que todos os brasileiros são culturalmente
descendentes dos africanos.
Como falar de um assunto tão vasto em tão pouco espaço? Preferimos
nos concentrar em alguns aspectos fundamentais. Primeiro, mostrar aos
alunos que os "africanos" são na verdade diferentes uns dos outros (e
apenas alguns desses povos vieram como escravos para o Brasil).
Segundo, rejeitar os clichês próprios de filmes, desenhos animados e
quadrinhos etnocêntricos, ao estilo Tarzan e Fantasma. Procuramos
transmitir nosso próprio sentimento de encanto e surpresa com as
maravilhosas criações dos povos africanos: as pirâmides de Méroe, a
vida intelectual agitada em Tombuctu, as geniais esculturas iorubás,
o imponente e misterioso grande Zimbábue. (Schmidt, 1999b: 24)
Se, de fato, é um tema negligenciado pelo nosso ensino, por que o autor alerta
que sua abordagem será restrita, se sua intenção é valorizar ou minimizar o
esquecimento da História da África que fizesse uma análise efetivamente
abrangente. Como veremos logo a seguir, se sua coleção possui espaço para
tratar a Reforma Religiosa européia em catorze páginas, por que reservar apenas
dez para toda a África pré-colonial? Escolha do autor? Da editora? Do mercado
consumidor? Dos currículos?
Tais questões nos fazem percorrer rapidamente o citado volume realizando um
balanço das páginas dedicadas aos assuntos. É revelador o grande espaço
reservado às temáticas oriundas de uma abordagem eurocêntrica da História, e as
restrições a que são submetidas a História da América e da África. Por exemplo,
enquanto os capítulos que tratam de temas como Europa Medieval, Absolutismo
Monárquico, Renascimento Cultural e Construção do Pensamento Moderno
Ocidental23 possuem respectivamente vinte, quinze, vinte e dezoito páginas e
vasta bibliografia, a História da América pré-colombiana, América Espanhola e
História da África24 possuem, cada uma, onze, dez e dez páginas, e literatura
de apoio restrita. Ou por falta de conhecimento ou de interesse, a escolha foi
feita no sentido de conceder menor atenção para essas temáticas.
Com relação à História da África, a bibliografia citada, apesar de conter nomes
importantes da historiografia africana, é ainda bastante restrita se comparada
à difusão de estudos e pesquisas que a História da África passou nos últimos
vinte anos. A presença dos trabalhos de Basil Davidson, Roland Oliver, Joseph
Ki-Zerbo demonstra o contato com a vertente de estudos efetuados até a década
de 1970. Já a citação da obra de Alberto da Costa e Silva revela um pequeno
contato com os novos estudos, porém, a referência é ainda insuficiente.25
Fora o capítulo específico sobre a África, ela transita em outras partes do
volume. No capítulo 5 "A Expansão Marítima" -, o Continente é retratado ora
como um obstáculo a ser superado para atingir o lucrativo mercado de
especiarias do Oriente, ora como uma fonte de riquezas naturais ouro, marfim
ou de oferta de mão-de-obra os escravos.
Apesar de tantos riscos, de tantas incertezas, aqueles bravos homens
toparam o desafio. E fizeram o que nenhum outro europeu havia
conseguido antes: contornar o litoral da África, alcançaram o Oriente
pelo mar e chegaram à América. E tudo em apenas algumas décadas!
(Schmidt, 1999: 94)
Ao contornar a África, os portugueses observavam o que podiam. Na
África haviam interessantes riquezas: o marfim, por exemplo, o
precioso dente do elefante, que servia para fazer objetos de luxo. Na
Guiné, uma região ao sul do deserto do Saara, era possível obter ouro
em boas quantidades... A África também tinha algo que atraiu a cobiça
européia: seres humanos (ibidem: 102).
Um ponto de destaque no capítulo é a citação sobre o viajante muçulmano Ibn
Battuta, que percorreu grande parte da África setentrional deixando em sua
obra, Viagens,26 informações coletadas pelas suas observações pessoais. Com
relação, ao que ele menciona sobre Ibn Battuta, alertamos para as imprecisões e
a pequena relevância concedida a sua passagem sobre a África, já que Schmidt
cita suas impressões acerca da Ásia.
Neste mesmo capítulo, o autor transita entre outros acertos e desacertos.
Quando trata das relações da África com o mercantilismo europeu e a sua
integração ao Mundo Atlântico o autor utiliza corretamente uma imagem feita por
um grupo étnico que habitava o Benin, representando os europeus que chegavam ao
Continente. A postura mercantil-bélica fica evidente na pequena estatueta.
Alertar para as representações feitas de europeus pelos diversos grupos
africanos é um exercício fecundo para que os alunos passem a reconhecer a
diversidade cultural e a autonomia dos grupos humanos da África. Normalmente, o
que ocorre é a reprodução das representações elaboradas pelos europeus sobre os
africanos.
Porém, ao analisar os efeitos da escravidão nas populações africanas, o texto
revela uma frágil preocupação com o contexto histórico da época, sendo
evidentemente carregado de juízos de valor e de um grave anacronismo.
Por incrível que pareça, alguns papas chegaram a autorizar a
escravização dos africanos. A Igreja Católica alegava que essa era
uma maneira de fazer os africanos "abandonarem as religiões do diabo
e conhecerem o cristianismo". (Schmidt, 1999:102)
Ao exigir da Igreja Católica do período uma postura contrária à que
historicamente manteve, o autor desconsiderou as perspectivas teológicas e
temporais do Catolicismo. A idéia de que a Igreja foi omissa ou permissiva não
condiz com as práticas e posturas do Vaticano à época, são reflexões que
encontram eco apenas a partir dos olhares contemporâneos.27 Não podemos
esquecer que os elementos que embasaram as bulas papais que autorizavam os reis
portugueses a escravizar eternamente os muçulmanos, os pagãos e os africanos
negros, foram retirados de um imaginário maior, no qual o negro e os infiéis
eram tipificados como inferiores aos homens da cristandade européia.28 Soma-se
a esse quadro passional o uso pouco adequado de uma imagem ilustrando a relação
da Igreja com a escravidão. Nela é reproduzido o estereótipo do negro passivo,
submisso e sofredor.
Já no capítulo 13, "O Escravismo Colonial", Schmidt incorre em erros
tradicionais à literatura didática. Um dos mais "clássicos" é se referir à
África apenas a partir do tráfico, como se o Continente não tivesse uma
história anterior à escravidão atlântica. Schmidt não repete este deslize,
porém, ao reproduzir o mapa do tráfico de escravos volta a uma antiga divisão,
na qual a África se encontra separada em duas ou três faixas étnico-geográfico-
lingüísticas de onde sairiam os escravos. A diversidade e complexidade dos
povos africanos ficam nubladas ao realizarmos este imperfeito fatiamento da
África. Os alunos, ao terem contato com está simplista leitura passam a
reproduzi-la, transformando milhares de grupos étnicos em outros dois bantose
sudaneses. O autor do livro procura estabelecer uma outra divisão, na qual,
usando ainda uma fusão de grupos lingüísticos com espaços físicos, opta por
denominar as regiões do tráfico em África de Guiné, Costa da Mina e Angola, de
onde viriam os "congos" e os "angolas". Parece que soma voz às leituras
científicas do século XIX que percebiam os africanos subsaarianos como iguais,
em sua simplicidade e inferioridade.
Ao fazer referência do uso da escravidão no Mundo Atlântico e das motivações
econômicas que alimentaram o tráfico negreiro, duas posturas do autor
incomodam. Primeiro, ele não faz alusão explicativa à escravidão tradicional
africana, como se a escravidão fosse uma invenção árabe ou européia naquele
Continente.29 Mesmo sabendo das profundas diferenças entre a escravidão
praticada pelos africanos e aquela utilizada sob influência dos árabes ou
europeus, seria fundamental um comentário sobre o tema. Segundo, ao tentar
situar o aluno perante as relações das práticas materiais com as mentalidades
de um certo período, a análise do autor se reveste de um perigoso anacronismo.
Schmidt afirma que, mesmo sendo apoiada pela Igreja, governos, comerciantes,
políticos, fazendeiros e pela mentalidade da época,30 a escravidão era injusta
em sua própria essência e nunca poderia ter sido justificada. O autor perde os
limites temporais e os critérios do relativismo, fazendo com que o aluno
visualize uma história na qual todos devem ter como valores e referências de
vida os padrões ocidentais atuais.
Além das necessidades econômicas, existia a mentalidade da época. A
escravidão não era escandalosa como é hoje. Até mesmo os padres
tiveram escravos. Já pensou se alguém disser que temos de aceitar as
injustiças sociais de hoje porque no futuro alguém vai falar que no
nosso tempo "as injustiças eram normais?" (Schmidt, 1999: 213).
De forma parecida, não existem menções aos africanos traficantes. Para o autor,
somente os comerciantes portugueses, espanhóis, ingleses e brasileiros fizeram
parte das redes de lucro oriundas de tal atividade. A participação de africanos
no comércio de homens é simplesmente ignorada (ibidem: 205 e 211).
Com relação ao capítulo 11, "África", algumas considerações gerais a realizar.
Schmidt se esforça em legitimar o estudo da África, o que não deixa de ser um
ponto louvável. Porém, o critério por ele eleito nos parece falho.
Ao citar os grupos étnicos africanos que foram estudados, o autor utilizou uma
difundida idéia entre os historiadores africanos pertencentes à chamada
corrente da "Superioridade Africana",31 que no período próximo anterior e
posterior às independências utilizaram padrões ou referências europeus para
afirmar ao mundo e aos próprios africanos que a História do Continente negro
possuía elementos sofisticados e formas de organização avançadas, e que
deveriam ser estudadas. Neste sentido, encontrar os grandes "impérios", as
grandes construções e as esplendorosas obras de arte tornou-se quase que uma
obsessão.32 Porém, se a África era e é uma região de grande autonomia,
capacidade criativa e de fecunda participação na História geral, não seria
preciso eleger padrões europeus para sua afirmação. Esta crítica já foi feita,
com grande pontualidade, a alguns daqueles historiadores. Porém, Schmidt parece
desconhecê-la, pois é justamente esse o critério eleito pelo escritor para
selecionar o que será estudado no capítulo.
Quem não admira o povo do rio Nilo, das múmias, dos faraós, que
escrevia livros de Matemática e construía pirâmides? A maioria dos
egípcios antigos eram africanos e tinham a pele negra ou mulata. O
que é mais uma prova contra as pessoas racistas que teimam em dizer
que "os negros não foram capazes de formar uma grande civilização".
Acontece que o Egito não foi a única grande civilização da África.
Existiram muitas outras. É o que descobriremos a partir de agora
(Schmidt, 1999: 177).
Como se os "pequenos" grupos não tivessem relevância, ou diante da
impossibilidade de atentar para os milhares de grupos que se espalham pela
África, a seleção ocorreu se espelhando na História da Europa: o estudo das
grandes civilizações ou reinos. Não é isso que realizamos com relação ao ensino
da História? Não elegemos a Civilização Grega, o Império Romano, o Império
Bizantino, a Civilização muçulmana? Não ignoramos a existência em África de
organizações políticas ou sociais, com grandes semelhanças às européias ou
americanas, mas é preciso que se demonstre e enfatize suas singularidades e
especificidades.
Com relação à forma de denominar ou identificar as etnias africanas, o uso de
alguns termos ou conceitos como naçãooucivilização parece ser por demais
impreciso, diante do grande suporte que as pesquisas antropológicas e
históricas já deram sobre o assunto. Soma-se a isso uma abordagem muitas vezes
simplista e restrita a descrições da economia ou da formação política de reinos
como o da Núbia civilização Kush , de Gana, do Mali, do Kongo e do Ndongo e
de etnias como a dos hauças, iorubás, ibos, askans e ajas. Fica evidente que o
autor encontra dificuldades em tratar os grupos étnicos africanos, e confunde
ainda mais os alunos ao usar termos ou definições que se ajustam mais
especificamente ao contexto histórico europeu ou de outras regiões do que ao
africano. Não que não possam ser aplicados no entendimento da África, mas, se
utilizados, devem ser contextualizados. Porém, neste caso, o uso de
civilização, nação e povo como sinônimos é uma postura pouco didática. É o que
ocorre, por exemplo, ao tentar explicar que eram os hauças, da África
Ocidental.
A civilização dos hauças começou a ser construída por volta do século
XI [...]
Os hauças eram, na verdade, diversos povos que falavam uma língua
semelhante.
Habituados ao comércio internacional, os hauças aceitavam conviver
com pessoas de outras nações[...]. (Schmidt, 1999:179-180)
Outra confusão acerca da questão ocorre quando o autor refere-se aos iorubás.
Na África, esse grupo passou apenas a se identificar dessa forma por volta do
século XVIII. Até então eles se auto-identificavam de acordo com a origem de
suas cidades ou pequenos reinos: Oyo, Ifé, Ijexá, Ketu, Ijebu. No Brasil, foram
chamados, de uma forma geral, de nagôs. São praticamente inexistentes as
referências que denominam os iorubás na África como nagôs. Porém, Schmidt
parece desconhecer este dado.
Muitos habitantes do povo ioruba vieram escravizados para o Brasil, a
partir do século XVIII. Era comum chamá-los de nagôs, embora na
verdade os nagôs fossem apenas os iorubás estabelecidos onde hoje
está o Benin. (ibidem: 181)
Quando passa a descrever algumas características gerais das civilizações
africanas eleitas para estudo, o autor volta a incorrer em desacertos. Por
exemplo, ao citar a cidade de Tombuctu, no Mali, Schmidt ressalta a importância
cultural e comercial da região, mas insere no texto e nos seus comentários
conceitos ou termos que só poderiam ser aplicados em outros contextos. É o que
acontece quando ele faz referência à Tombuctu como um centro de
comérciointernacional.
Essa famosa cidade tinha dezenas de milhares de habitantes e uma das
maiores universidades do mundo. Era também um grande centro de
comércio internacional. Vendiam-se até livros escritos em árabe que
abordavam assuntos como Medicina, Geometria, Religião, Poesia e
História. (ibidem: 179)
Podemos perguntar: onde estavam as nações africanas naquele momento, já que
partimos da premissa de que o comércio internacional ocorre entre nações. Ao
mesmo tempo, era de se esperar que a conversão de parte das populações da área
ao islamismo fizesse da leitura do Alcorão e de outros textos em árabe uma
prática comum. Por que então o espanto do autor (Vendiam-se até livos...)?
Ocorreram também imprecisões e simplificações, ao descrever a cultura material
dos "reinos" do Kongo e Ndongo. O autor poderia ter enfatizado a relevância da
metalurgia e o circuito comercial que envolvia as atividades econômicas da
região, mesmo que não fosse a atividade econômica principal. Porém, ele segue o
caminho da simplificação: "A organização social dos reinos Kongo e Ndongo era
semelhante. Produziam ferro e sal, criavam galinhas, cachorros e cabritos"
(ibidem: 181).
Alguns deslizes mais graves demonstram a pouca preocupação do autor em permitir
a construção de conhecimento e análises por parte dos alunos. Ele antecipa essa
ação e incorre em arriscadas afirmações. Isso se torna claro em passagens nas
quais Schmidt tece considerações sobre o poderio militar/econômico e as
práticas da cultura material de alguns grupos africanos. As imprecisões variam
entre a emissão de juízos de valor e a realização de leituras anacrônicas. Ao
tratar dos conflitos entre o Abomei (Daomé) e os iorubás, Schmidt comenta uma
das conseqüências do conflito: "Infelizmente grande parte das riquezas do reino
Abomei vieram do comércio de escravos" (idem). Infelizmente para quem? E por
que?
Algo parecido repete-se ao citar uma das características "comuns" às culturas
do reino do Kongo e do Ndongo, na qual transparece uma ação "moralizadora"
ocidental despropositada em evidenciar o consumo de bebidas alcoólicas na
região.
O vinho feito de palmeira era muito apreciado, embora fizesse muito
mal à saúde quando bebido exageradamente. O guerreiro bêbado era
fácil de ser derrotado, o sábio bêbado não passava de tolo. (idem)
Interessante notar que a mesma crítica não ocorre com relação aos europeus.
Outra limitação evidente é concentrar a análise na costa ocidental do
Continente, reservando um pequeno parágrafo à África oriental, que é assim
apresentada.
No litoral oeste da África, banhado pelo oceano Índico, muitas
cidades-estados se desenvolveram em função do comércio internacional.
Mercadores árabes e chineses traziam seus produtos em troca de ouro,
marfim e cobre. As escavações dos arqueólogos já encontraram até
mesmo, vasos de porcelana chinesa antiga! (Também existem pinturas
chinesas antigas representando girafas africanas) (ibidem: 182)
No que se refere às cosmologias africanas, em nenhum momento o autor atenta
para uma abordagem explicativa da relação entre as diferentes percepções e
definições daquilo que os ocidentais chamam de religião para as elaborações
africanas sobre a questão. A literatura existente sobre o pensamento
tradicional religioso africano oferece um rico subsídio para este debate, na
minha opinião, fundamental para relativizar o universo africano e demonstrar
como suas estruturas de explicação das relações sociais e de suas cosmovisões
são diferentes das ocidentais.33 Schmidt incorre também em comprometedoras
simplificações.
Muitos povos africanos desenvolviam o culto aos antepassados. Os
parentes mortos eram adorados como deuses por seus familiares, que
acreditavam que os espíritos podiam ajudar ou perturbar o cotidiano
dos vivos. Por isso, era comum jogar-se um pouco de bebida na terra
para que o espírito do parente morto pudesse beber e se alegrar.
[...]
Uma parte importante dos africanos acreditava num único Deus: eles se
tornaram muçulmanos. (ibidem: 183)
No primeiro exemplo se empresta ao universo africano algumas práticas que, se
ocorriam em certas regiões do continente, possuíam significados singulares e
complexos, comuns às tradições afro-brasileiras, sem maiores explicações ou
detalhamentos. Já, na segunda citação fica uma inquietante dúvida: que parte
importante dos africanos era monoteísta? E esse é o único elemento que
possibilitou a conversão ao islamismo? Não podemos ignorar o fato de que o
fenômeno religioso em África não tem as mesmas bases do que o Ocidental. Por
isso, para os povos da região seria mais adequado usar o termo cosmologia e não
religião. Além disso, é difícil identificar este número tão grande de
sociedades que "adoravam apenas um deus".
Destaca-se, no entanto, a citação do orixá Exu, divindade-chave do panteão
iorubá, e que foi confundida e sincretizada pelos missionários cristãos tanto
em África como na América como a figura do Diabo, da tradição judaico-cristã.
Schmidt chama a atenção dos alunos para as faces africanas do orixá, mesmo que
de forma superficial se afastando dos significados e funções de maior destaque
emprestados ao orixá pelos iorubás, mas evitando estereótipos e
ocidentalizações.
No uso das imagens, Schmidt parece se sair um pouco melhor, apesar das citações
de fontes imprecisas ou ausentes. A apresentação do capítulo, com um conjunto
de máscaras africanas, é bastante estimulante, assim como o mapa da África
presente na página seguinte, que incorre, como ele mesmo alerta, em algumas
imprecisões temporais, mas foge das representações cartográficas tradicionais
dos manuais.
As presenças de imagens da Mesquita de Sexta-feira, em Mopti, da cidade de
Tombuctu, no Mali, do Grande Zimbabwe, assim como de esculturas feitas pelos
iorubás e no Daomé, são importantes instrumentos na apresentação das formas
arquitetônicas, das religiosidades, artes e filosofias africanas. Da mesma
forma, o autor inova traçando uma linha do tempo com os principais momentos da
História do Continente.
Schmidt também procura chamar a atenção dos alunos para as representações dos
africanos feitas pelos europeus. A mudança da fisionomia dos africanos, de seus
gestos, roupas e comportamentos, que recebem feições européias, é destacada
pelo autor. A demonstração do preconceito europeu com o Continente, ou o olhar
eurocêntrico que marcava a relação entre as partes citadas, pode se tornar uma
abertura para o palco de debates e reflexões sobre a temática do racismo, da
discriminação e da intolerância.
No final do capítulo, Schmidt demonstra sua preocupação em articular os
conteúdos históricos estudados com o contexto presente. Porém, a imagem que ele
transmite aos alunos da África contemporânea é simplista e falsa. Ninguém
desconhece as dificuldades e carências do Continente, mas resumir a África a
essas faces é um perigoso argumento. "Hoje em dia, os países da África são
pobres e a população passa por grandes necessidades" (Schmidt, 1999: 183).
Reflexões
Acredito que, percorrido esse breve caminho sobre a abordagem da História da
África em nossos bancos escolares, temos ainda não respondida a questão que
introduz o artigo "o que sabemos sobre a África?". Talvez demore mais algum
tempo para que possamos professores e alunos fazê-lo com desenvoltura.
Porém, fica evidente que ensinar a História da África, mesmo não sendo uma
tarefa tão simples, é algo imperioso, urgente. As limitações transcendem ao
mesmo tempo em que se relacionam os preconceitos existentes na sociedade
brasileira, e se refletem, de um certo modo, no descaso da Academia, no
despreparo de professores e na desatenção de editoras pelo tema. Por isso, não
sei se aquela pergunta ainda uma tem resposta aceitável.
É obvio que muito se tem feito pela mudança desse quadro. Louve-se, nesse
sentido, a ação de alguns núcleos de estudo e pesquisa em História da África
montados no Brasil, como o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), da
Universidade Federalda Bahia, o Centro de Estudos Afro-Asiáticos e o Centro de
Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Candido Mendes (UCAM), e o Centro de
Estudos Africanos, da USP. Enalteça-se a iniciativa legal do governo, do
movimento negro e de alguns historiadores atentos à questão. Ressalte-se a ação
de algumas instituições e professores que têm promovido palestras, cursos de
extensão e oferecido ou proposto cursos de pós-graduação em História da África,
como na UCAM e na Universidade de Brasília (UnB). Porém, ainda existem grandes
lacunas e silêncios. A obrigatoriedade de se estudar África nas graduações, a
abertura do mercado editorial traduções e publicações para a temática, até
a maior cobrança de História da África nos vestibulares são medidas que tendem
a aumentar o interesse pela História do Continente que o Atlântico nos liga.
Talvez assim, em um esforço coletivo, as coisas tendam a mudar.
Incursionar sobre o ensino de História da África parece se algo tentador,
motivador e necessário. Esperamos que o presente trabalho venha a contribuir na
melhoria e continuidade de algumas iniciativas aqui abordadas, sempre
objetivando à formação humana e o reconhecimento do Continente que se conecta
conosco pelas fronteiras Atlânticas.
Notas
1. Sobre a temática ver os ótimos trabalhos de Nadai (1992), Munaka (2001),
Fonseca (1993) e Diehl (1999), presentes na bibliografia.
2. Estamos nos referindo às importantes experiências com o ensino temático
ocorridas no estado de São Paulo e em outras partes da Federação nos anos
oitenta. Naquela oportunidade, os debates de (re)elaboração dos currículos de
História nas Secretarias de Educação levariam à constatação de que o modelo de
ensino até então adotado era insustentável e que era imperiosa a confecção de
uma nova abordagem para a História ensinada nas escolas. Porém, neste momento,
tirando os debates iniciais sobre a Nova História francesa que ocorriam na
UNICAMP e na USP, o Brasil não possuía, nas graduações e nas pesquisas
históricas, elementos suficientes para ancorar tal perspectiva. Já nos anos
noventa o quadro era outro. Tanto as graduações como as pós-graduações já
estavam voltadas para as temáticas comuns à Nova História, à História Social e
à História Cultural, possibilitando uma "transferência" mais coesa dessas
perspectivas para o ensino da História.
3. Sobre o tema ver o artigo escrito por Pereira (2001).
4. Como da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e do Departamento
de História da Universidade Estadual de Londrina.
5. Citamos, como exemplo, o núcleo regional da ANPUH-RS, com seu Grupo de
Trabalho (GT) sobre Ensino de História e Educação.
6. Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe.
7. Lei 10639, de 9 de janeiro de 2003.
"Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e
particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo nego nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil".
8. A pesquisa se encontra em fase inicial, na qual, apenas quinze, das trinta
coleções de livros didáticos de História, selecionadas para análise, foram
compulsadas. As obras são as seguintes: Mozer (2002), Rodrigue (2001), Macedo
(1999), Dreguer (2000) e Schmidt (1999).
9. A viagem ocorreu no mês de novembro de 2003.
10. Entre os vários pesquisadores que dissertaram sobre a trajetória da
historiografia africana e pensaram as questões acerca das representações
encontramos nomes como Joseph Ki-Zerbo,Djibril Tamsir Niane, Elikia M'Bokolo,
Kwame Appiah, Franz Fanon, Carlos Lopes, José da Silva Horta, John Fage e
Philip Curtin.
11. Para Carlo Ginzburg o termo guarda em sua aplicação nas ciências humanas
uma certa ambigüidade, que se revelaria por dois encaminhamentos reflexivos
acerca da questão. Para alguns a representação "faz as vezes da realidade",
lembrando sua ausência. Para outros, ela "torna visível a realidade
representada e, portanto, sugere sua presença". Neste caso, o primeiro exemplo
seria efetivamente uma representação e seria lida como tal. Já no segundo
exemplo ela poderia se confundir com o que é representado, não sendo mais
percebida como um instrumento de ligação, para ser o próprio objeto que está
sendo representado. Ocorreria, portanto, uma oscilação entre evocação e
substituição do que é representado (Ginzburg, 1999: 85). Já para Roger Chartier
"[...] nenhum texto mesmo aparentemente mais documental [...] mantém uma
relação transparente com a realidade que apreende. O texto, literário ou
documental, não pode nunca se anular como texto, ou seja, como um sistema
construído consoante categorias, esquemas de percepção e de apreciação, regras
de funcionamento, que remetem para as suas próprias condições de produção"
(Chartier, 1988: 63).
12. Fanon nasceu na ilha de Martinica, na América Central, em 1925. Até sua
morte, em 1962, esteve engajado na luta de libertação das colônias francesas na
África.
13. Fora os trabalhos dos citados autores encontramos várias outras
referências: Políbio, séc. II a.C.; Estrabão, séc. I a.C.; Plínio, o Velho,
séc. I; Tácito e Plutarco, séc. II.
14. Desde da Antigüidade os escritos de viajantes ou "historiadores", como
Heródoto e Plínio, o Velho, fazem referência à África. No medievo, a teoria
camita e a fusão da cartografia de Cláudio Ptolomeu com o imaginário cristão,
relegam a África e os africanos às piores regiões da Terra. Com as Grandes
Navegações e os contatos mais intensos com a África abaixo do Saara os
estranhamentos e olhares simplificantes e reducionistas continuam. No século
XIX, a ação das potências imperialistas no continente e a difusão das teorias
raciais reforçam os estigmas já existentes sobre a região.
15. O conceito de tradicional aqui utilizado deve ser relativizado. Trabalhamos
com a perspectiva de que as sociedades tradicionais se encontram abertas e, em
grande parte das vezes, absorvem os impactos causados pelas mudanças sem
maiores transtornos. Sobre a temática ver a obre de Appiah (1997).
16. Estas idéias foram expostas numa série de cursos apresentados pelo
professor, intitulada "The Rise of Christian Europe". Ver Fage (1982)
17. Mais à frente apontaremos os motivos disso.
18. A referência aos citados grupos de estudos sobre a áfrica hora como
"grupos", hora como "vertentes", não ocorre por um descaso nosso, mas é apenas
uma forma de demonstrar a flexibilidade de classificação ou ordenamento de
trabalhos utilizados em nossa pesquisa.
19. Desde os anos 1960, acontecem encontros e congressos sobre as mais diversas
temáticas e investigações sobre a África. Porém, nos últimos quinze anos, esses
eventos atingiram uma dimensão significativa, contando com um grande número de
participantes e de pesquisas divulgados. Podemos citar alguns de maior
relevância como o Colóquio de Construção e Ensino da História da África, as
Reuniões Internacionais d História de África, os Congressos Luso-Afro-
Brasileiro de Ciências Sociais, os Seminários Internacionais sobre a História
de Angola, o African Studies Association (ASA), nos Estados Unidos; o West
African Research Association (WARA), no Senegal e nos Estados Unidos; o Women
in Africa and African Diaspora (WARD), nos Estados Unidos; e o Association
Canadienne dês Études Africaines (ACEA/CAAS), em Toronto. As publicações também
têm tido um crescimento quantitativo e qualitativo de destaque, seja em obras
coletivas, seja na divulgação de investigações e reflexões individuais. Ver
Bibliografia.
20. Sobre a temática ver Silva (1995).
21. A História da África é um tema obrigatório e de grande fecundidade
reflexiva, mesmo sem suas vinculações com a história do Brasil.
22. Autor de uma das novas séries de livros didáticos de História lançadas na
segunda metade da década de 1990.
23. Na mesma ordem capítulos 3, 6, 10 e 16.
24. Respectivamente os capítulos 7, 15 e 11.
25. Um comentário mais específico dessas obras exigiria um esforço que não se
adequaria a nossa proposta.
26. Ibn Battuta,Viagens. Tradução francesa de M. G. Slane, 1843.
27. De novo alertamos que, não estamos desconsiderando os esforços de alguns
missionários, religiosos ou teólogos contrários à escravidão. Apenas
evidenciamos o debate político-diplomático-religioso de esferas hierárquicas
maiores acerca da questão ou que se tornaram características gerais da Igreja.
28. Acerca da questão, ver o trabalho de Lopes (1995).
29. No capítulo 11, página 180, o autor separou um subtítulo "A escravidão
negra" para tratar da relação entre os africanos e a citada instituição.
Porém, ele não menciona, de forma explicativa, a escravidão tradicional
africana. Sobre o assunto, ver os seguintes trabalhos: Selma Pantoja (2000),
Paul Lovejoy (2002), Patrick Manning (1988) e Alberto da Costa e Silva (1992).
30. Por motivos que transcendiam o fator econômico, já que o africano era
percebido como inferior e pagão/infiel, podendo ser alvo da ação missionária e
salvadora dos ocidentais.
31. O historiador guineense Maria Difuila organizou uma nova classificação para
a historiografia africana, passando a dividi-la em três fases: corrente da
Inferioridade Africana; corrente da Superioridade Africana; e os novos estudos
africanos. Com relação à corrente da Superioridade Africana uma de suas
principais características era supervalorizar o continente, ora utilizando
categorias européias, no estudo de antigas civilizações africanas, ora
afirmando a superioridade da África em relação ao mundo. Ver Difuila (1995).
32. Sobre a questão ver os trabalhos de Philip Curtin (1982), Manuel Difuila
(1995) e Carlos Lopes (1995).
33. Sobre o assunto ver as obras de Appiah (1997), Horton (1990), Ray (2000) e
Mbti (1977).