Representação política e organizações civis: novas instâncias de mediação e os
desafios da legitimidade
Introdução
Em inúmeros países está se vivenciando uma abertura do poder Executivo à
participação de atores societários ' organizações civis1 ' investidos
juridicamente como representantes de determinados segmentos e interesses da
população no desenho, na implementação e na supervisão de políticas públicas.
De modo semelhante ao que aconteceu nas primeiras décadas do século XX, quando
as instituições da representação política foram alargadas juntamente com a
própria democracia, mediante a emergência dos partidos de massa, esses
processos de reconfiguração da representação englobando o poder Executivo podem
confluir para uma nova ampliação da democracia. Como as organizações civis
estão a desempenhar de facto e de jure um novo papel ativo na representação
política, e tal papel é diferente ao desempenhado por partidos e sindicatos,
isso cria dilemas acerca da sua representatividade. Em contraste com tais
instituições, a grande maioria das organizações não utiliza mecanismos
eleitorais para estabelecer sua representatividade, nem funciona sob a lógica
de afiliação.
Não existem modelos decantados histórica ou teoricamente para pensar como
organizações civis podem construir uma representatividade de índole política
por fora de tais mecanismos. Os atores, porém, não estão aguardando os
teóricos. Uma diversidade de noções de representação, parcialmente construídas,
encontra-se hoje no seio das organizações civis. Algumas dessas noções
apresentam conteúdos compatíveis com o alargamento da democracia, outras têm
conteúdos essencialmente antidemocráticos.
Este artigo visa a iluminar a representação política realizada por organizações
civis e algumas de suas possíveis conseqüências para a ampliação da democracia.
A análise identifica entidades paulistanas que assumem compromissos de
representação e foca (i) os fatores que incrementam sua propensão a se
considerarem representantes das pessoas com ou para as quais desenvolvem suas
atividades, bem como (ii) as feições mais relevantes das diferentes noções de
representação que coexistem no seio dessas entidades. Os resultados
apresentados são produto de uma pesquisa levada a cabo no município de São
Paulo no ano de 2002. Ao todo, 229 organizações civis foram entrevistadas. Os
critérios de escolha favoreceram organizações civis ativas junto a segmentos
mal-aquinhoados da população, o que torna os resultados aqui expostos
particularmente oportunos para o debate sobre a ampliação da democracia. Cumpre
esclarecer que São Paulo é considerada um caso exemplar, capaz de espelhar o
horizonte de reforma da democracia. Não há pretensão de generalizar descrições
empíricas como se fossem proposições válidas para outros contextos, antes, o
caso exemplar sugere tendências e ilumina pontos vulneráveis das discussões
contempladas, indicando a plausibilidade de encetar argumentos como os
elaborados neste artigo.
Há dois corpora de literatura que lidam com o fenômeno aqui estudado, focando-
se ora no sistema político e na reconfiguração da representação, ora na chamada
sociedade civil e nas inovações institucionais participativas. Em ambos os
casos, embora por motivos diferentes, a representação política exercida por
organizações civis tem sido negligenciada. Os resultados, oriundos do universo
das organizações civis de São Paulo, apresentam uma consistência notável e
interpelam de múltiplas formas ambas as literaturas. Primeiro, o apoio
fornecido por organizações civis a candidatos políticos é, de longe, a variável
com capacidade de predição mais acurada da propensão dessas organizações civis
a assumir o caráter de representantes dos seus beneficiários. Outros fatores
também apontam para a centralidade das inter-relações entre as organizações
civis e as instituições políticas. Isso sugere que as dinâmicas de
representação política no terreno das organizações civis ocorrem não de forma
paralela ou alternativa aos canais tradicionais da política, mas em estreita
conexão com eles.
Segundo, quando introduzidas as justificativas ou argumentos de congruência
utilizados pelas organizações civis para sustentar sua representatividade
emerge a heterogeneidade das modalidades de representação próprias desse
universo de atores societários. Entre os argumentos de congruência conciliáveis
com exigências democráticas há evidências do surgimento de uma nova noção de
representação política no seio das organizações civis. Nela é reconhecida a
relevância da representação política exercida por essas organizações não como
canal alternativo e genuíno perante as instituições tradicionais da
representação política, mas como esforço de intermediação orientado a conectar
segmentos da população mal ou sub-representados ao Estado e aos circuitos da
política eleitoral. Conforme será discutido, tal noção de representação por
intermediação condensa os efeitos combinados das últimas décadas de inovação
institucional e reforma do Estado vividas no Brasil, evidenciando que as
próprias dinâmicas de representação no seio das organizações civis mudaram e
assumiram feições explicitamente políticas. Porém, há outras noções de
representação bastante difundidas que encarnam sérios limites e dissonâncias
irreconciliáveis com a democracia.
Sem dúvida, há bons motivos para introduzir ressalvas perante os potenciais
efeitos não democráticos de uma representação política exercida por
organizações civis. Além da inexistência ou precariedade de mecanismos
obrigatórios de sanção e controle (accountability) entre as organizações civis
e os segmentos sociais por elas representados (Przeworski, 2002), há uma
definição ambivalente das fronteiras entre público e privado nas funções dessas
entidades, e, conseqüentemente, tem sido apontada sua funcionalidade à lógica
da privatização e da redistribuição de responsabilidades entre a sociedade, o
Estado e o mercado (Houtzager et al., 2002; Cunill, 1997; Dagnino, 2002). Há
outros reparos pertinentes: a possível proliferação de reclamos baseados em
representatividades substantivas ' raça, gênero ', alheios à lógica formal e
universalista da representação política moderna;2 o engajamento das
organizações civis na pluralização do Estado em inúmeras agências e espaços
participativos que diluem os contornos do próprio Estado como interlocutor dos
protestos e da contestação sociais (Chandhoke, 2003); ou ainda, a falta de
reconhecimento e expectativas acerca das organizações civis na população como
um todo (Harriss, 2004).
Porém, acreditamos ser prudente suspender o veredicto decorrente dessas e
outras ressalvas, pois o arsenal de argumentos disponíveis para a crítica
pressupõe como padrão de referência a configuração tradicional da representação
política ou mandato representativo. As organizações civis não são nem poderiam
ser responsivas ou portadoras de mandato nesses termos, e, por conseguinte,
julgá-las diretamente com esse padrão de referência é operação pouco produtiva
no plano cognitivo. No limite, a delimitação, os alcances e as restrições das
noções de representação existentes nas organizações civis encontram-se hoje sob
disputa política. Suspender as ressalvas esboçadas acima permite continuar a
reflexão, e torna evidentes desafios analíticos que exigem respostas para as
quais há ainda poucos subsídios conceituais e empíricos na literatura. Nossa
proposta de abordagem ' centrada, no momento inicial, na autodefinição do
compromisso explícito e público de representar os beneficiários, membros ou
públicos (doravante beneficiários) ' objetiva contornar a ausência de modelos
para se pensar no papel das organizações civis na reconfiguração da
representação política e na ampliação da democracia, sugerindo uma alternativa
mediante a qual seja viável avançar no terreno do conhecimento empírico sem
assumir antecipadamente um modelo normativo de representação; modelo que, de
modo iniludível, levaria a julgar a legitimidade de tais organizações sem
trazer maiores rendimentos cognitivos.
O arco da argumentação descansa em vários passos. Na segunda seção, situam-se
sucintamente as principais literaturas com as quais dialogamos; na terceira e
quarta seções, equaciona-se uma proposta de abordagem para avançar na
compreensão empírica da representação política realizada por organizações
civis, e explicitam-se as informações metodológicas pertinentes. Nas duas
seções seguintes, expõem-se descritivamente os resultados. Mostram-se, por meio
de modelos probabilísticos, os fatores que incidem e aumentam as chances de
organizações civis assumirem a representação dos seus beneficiários; também
constrói-se uma tipologia empírica dos argumentos de congruência existentes nas
organizações civis. Por fim, realiza-se uma interpretação dos principais
achados à luz de suas implicações para a compreensão da relação entre
organizações civis e política no cenário pós-constituinte, bem como para o
debate contemporâneo sobre a reconfiguração da representação e, sobretudo, da
reforma da democracia. Este artigo encerra com alguns comentários finais à
guisa de conclusão.
Reconfiguração da representação e reforma da democracia
Na América Latina, a democracia sempre foi pensada e construída em referência a
processos históricos e cristalizações institucionais da Europa e dos Estados
Unidos. Talvez pela primeira vez na história, a democracia e seu horizonte de
reformas possíveis passaram a ser pensados, no hemisfério norte, a partir de
experiências vivenciadas no hemisfério sul. Trata-se de uma tendência de
alcances amplos.3 A esse respeito, o Brasil é um laboratório de enormes
dimensões, do qual provém não apenas o experimento participativo mais conhecido
no mundo todo ' o Orçamento Participativo ', mas também reformas
constitucionais que tornaram obrigatória a implementação de conselhos gestores
de políticas nos diferentes níveis da estrutura federativa de governo. As
mudanças nas estruturas do Estado favoráveis à introdução de controles sociais
na gestão pública têm sido simultaneamente estímulo e produto do protagonismo
das organizações civis, agora investidas com funções de representação política.
Assim, o país tornou-se, na última década, referência imprescindível do debate
internacional acerca da reforma da democracia graças a uma onda de novas
experiências participativas no desenho de políticas públicas, enquadradas
inicialmente na Constituição de 1988 ou em administrações municipais sob o
comando do Partido dos Trabalhadores (PT).4
Embora as organizações civis desempenhem aqui e alhures funções de
representação política de facto e de jure ' ora intermediando recursos públicos
em nome de diferentes grupos sociais, ora investidas juridicamente com funções
de representação nos novos arranjos institucionais participativos ', a
problemática da representação política exercida por tais entidades tem recebido
pouca atenção das literaturas voltadas para o estudo da reconfiguração da
representação política e para a reforma da democracia.5
A representação política mediante organizações civis e a eventual emergência de
noções de representação inéditas não são passíveis de compreensão cabal se
submetidas analiticamente à lógica das instituições do sistema eleitoral e do
poder Legislativo. A transformação contemporânea da representação decorre de
deslocamentos e rearranjos no funcionamento das instituições tradicionais do
governo representativo, mas encarna também o alargamento do lócus e das funções
da representação política. Porém, a literatura dedicada a esquadrinhar a
reconfiguração da representação política oferece interpretações de uma
transformação em curso no nível do sistema partidário, em que estaria se
redefinindo a relação entre representantes eleitos e cidadãos representados
pela perda de centralidade dos partidos políticos6 como organizadores das
preferências do eleitorado e pela personalização da política impulsionada
graças aos meios de comunicação de massa.7 Dentro desta perspectiva, a
representação está integralmente condensada nos processos eleitorais e, por
esse motivo, sequer cabe cogitar eventuais funções de representação política
exercidas por organizações civis. Acusar a falta de representatividade das
organizações civis, ora pela ausência de mandato identificável e de
dispositivos de autorização (voto), ora por sua evasão de mecanismos de
controle e sanção (accountability eleitoral), é postura que cancela em vez de
se adentrar na problemática aqui analisada (cf. Przeworski, 2002; Chandhoke,
2003).
Os estudiosos da reforma da democracia, por sua vez, têm enfocado inovações
institucionais que visam a acolher diversas formas de participação nos
arcabouços institucionais de desenho e implementação de políticas públicas, mas
sem prestar qualquer atenção à problemática da representação.8 A problemática
da representação política no seio das organizações civis é encoberta pela
ênfase na "sociedade civil" e na "participação cidadã" como alicerces para a
reforma da democracia. No primeiro caso, porque é concebido que os atores da
sociedade civil emergem em continuidade ou animados por uma conexão genuína com
o tecido social ' ou mundo da vida, como se queira. Essa continuidade
pressuposta tende a dissipar a formulação de questões como em nome de quem e
mediante quais mecanismos de controle e responsividade representam as
organizações civis. Afinal, a separação entre representante e representado é
característica constitutiva da representação política moderna.9 No segundo
caso, em virtude de a participação cidadã cancelar ' ao remeter à presença
direta de pessoas eventualmente afetadas ou beneficiadas por decisões públicas
' a própria idéia de representação. Isto a despeito de as experiências de
inovação institucional para a participação no desenho e na gestão de políticas
terem desencadeado intensa participação de organizações civis, animando
processos inéditos de representação política protagonizados por essas
organizações (Houtzager et al., 2003, p. 25; Gurza Lavalle et al., 2005a;
Wampler, 2004).
Paradoxalmente, a literatura que explora a reforma da democracia pressupõe
implicitamente tanto a existência de respostas satisfatórias acerca da conexão
entre os atores da chamada sociedade civil e a população em geral, como o fato
de essa conexão ser qualitativamente superior às distantes e cada vez mais
rarefeitas relações entre representantes e representados no cenário da
representação política tradicional. De fato, são raras as exceções que têm
formulado explicitamente uma conexão entre os processos de reconfiguração da
representação política e as mudanças acontecidas, no inicio do século XXI, no
plano dos atores societários e da redefinição do seu perfil no transcurso da
reforma do Estado, levada a cabo nas últimas décadas do século XX.10
Em suma, ambas as literaturas manifestam reações diferentes diante do mesmo
dilema. O modelo legítimo disponível de representação política ' mandato
representativo mediante eleições ' foi edificado historicamente por atores e
para desempenhar funções que não coincidem em hipótese alguma com o perfil das
organizações civis. Assim, a ausência de modelos parece levar ao silêncio nos
debates voltados para a reforma da democracia, ao passo que na literatura da
reconfiguração da representação parece conduzir a uma conclusão implícita: se
as eventuais práticas de representação política exercida por organizações civis
não encaixam nas instituições do governo representativo, sequer cabe cogitá-
las.
Representação presuntiva
Diante da ausência de modelos, optou-se por uma estratégia indutiva. A
estratégia consiste em deslocar as questões da representatividade do plano real
para o plano simbólico, centrando a atenção no compromisso representativo do
representante, na sua identificação com o representado e na (auto)percepção
acerca da sua representatividade. Assim, escolheu-se levar a sério e analisar
com cuidado o discurso dos atores acerca da aceitação ou da recusa do seu
caráter de representantes, bem como acerca das justificativas ou dos argumentos
de congruência por eles invocados para sustentar publicamente a índole genuína
do seu compromisso de representar ' representatividade.11
A presunção pública de representar alguém não equivale à sua efetiva
representação, mesmo se amparada empiricamente pelo desempenho de atividades
que, em princípio, pressuporiam o exercício de alguma modalidade de
representação política. Contudo, o comprometimento com os interesses
representados é um componente vital da representação, irredutível a
dispositivos institucionais. No limite, segundo afirmara Burke (1942 [1774]), o
melhor dispositivo para garantir a autenticidade da representação ' sua
representatividade ' seria a existência de um compromisso representativo
genuíno; entrementes, dada a contingência desse componente subjetivo, a
introdução de mecanismos institucionais formais tornava-se iniludível e
desejável. Embora a dimensão subjetiva da representação tenha sido
sistematicamente desvalorizada no campo das teorias da democracia, como
apontado por Sartori em reconhecimento à arguta intuição de Burke quanto à
importância dessa dimensão, as regras e os desenhos institucionais tornam-se
impotentes quando os representantes não são animados ou comovidos por um
compromisso ou "sentimento de representação" (Sartori, 1962). De modo mais
preciso, se a representação é irredutível a mera representação presuntiva, a
representatividade não pode prescindir do compromisso de representar, e ele se
encontra largamente presente nas organizações civis.
O desafio da estratégia indutiva aqui adotada reside em trabalhar com a
representação presuntivamente assumida pelas organizações civis e identificar
as diferentes noções que esses atores têm da sua representatividade. Na medida
em que as organizações civis se defrontam cotidianamente com tarefas de
representação, e, sobretudo, com as dificuldades de assumir essas tarefas
desprovidas de modelos de representação política para se afirmarem como
representantes legítimas, a presunção da representatividade tende a ser
formulada e verbalizada na base de argumentos em boa medida estabilizados;
argumentos não apenas verossímeis ou razoáveis, mas publicamente defensáveis.12
Como será visto, a representação presuntiva dos atores estudados dista de ser
mera manifestação retórica ' os resultados a serem examinados são consistentes
o suficiente para dissolver quaisquer dúvidas a esse respeito.
A estratégia de abordagem assim delineada, por certo, determina as principais
limitações e alcances dos achados gerados pela pesquisa; notadamente, a
incapacidade de explorar qualquer problema inscrito na órbita da representação
efetiva de interesses. Tais restrições, todavia, são compensadas por ganhos
cognitivos consistentes.
Survey, momentos e técnicas da análise
A representação presuntiva e os diferentes argumentos de congruência que a
justificam, assim como o conjunto de variáveis independentes testadas neste
artigo, foram gerados por um survey com organizações civis, realizado no
município de São Paulo, em 2002, ao longo de seis meses de trabalho de campo.
Há registros para 229 organizações sediadas no município de São Paulo e
escolhidas para a conformação da amostra mediante técnica de snowball.13 Em
entrevistas com duração de uma hora, as organizações responderam questionário
desenhado para indagar informações acerca da sua fundação, missão, nível de
formalização, temas de trabalho, membros e/ou beneficiários, vínculos com
outros atores societários e com instituições governamentais. Na bateria de
questões sobre os membros ou beneficiários da entidade, solicitou-se aos
entrevistados, em perguntas abertas, que especificassem o grupo de pessoas para
o qual trabalhava a entidade, e se a entidade se considerava representante do
grupo definido previamente; só depois, e caso a resposta fosse afirmativa,
inquiriram-se os motivos pelos quais a entidade afirmava representar os
interesses dos seus membros ou beneficiários. A partir do exame e da
codificação da última pergunta foi possível sedimentar os diversos argumentos
de congruência, utilizados como justificativa plausível da presunção de
representação. Por sua vez, as respostas afirmativas constituem a autopercepção
dos atores entrevistados acerca de seu caráter de representantes dos seus
beneficiários ' representação presuntiva.
A representação presuntiva foi trabalhada como variável dependente no campo das
estatísticas inferenciais, especificamente mediante estimativas de
probabilidade ' relative risk ratios (RRR) e logistic regressions (LR).14
Estatísticas descritivas e índices simples foram utilizados na análise dos
argumentos de congruência. As RRR permitem identificar quais fatores incidem na
percepção de uma organização civil de modo a aumentar ou diminuir suas chances
de se assumir como representante dos seus beneficiários ' representação
presuntiva.15 As LR elevam os resultados obtidos com as RRR a um patamar
analiticamente mais refinado, pois permitem entender como a representação
presuntiva está relacionada a grupos de variáveis independentes ' e não apenas
a uma característica específica. Neste momento da análise torna-se possível
construir modelos empíricos de combinação de variáveis e definir, mediante
cálculo de probabilidades, qual deles tem maior capacidade como "preditor" da
presença ou não da representação presuntiva no seio das organizações civis. Por
fim, exploraram-se os argumentos de congruência invocados pelas organizações
civis como justificativa plausível da sua representação presuntiva.16 Os
argumentos foram cuidadosamente sistematizados em uma tipologia empírica, a
partir da qual foi possível explorar os tipos de organização e de atividades
vinculados a cada argumento. Aqui apenas serão apresentados os resultados
gerais do modelo probabilístico final (modelo principal ' MP) e da tipologia de
argumentos de congruência.
Condicionantes da representação presuntiva (resultados I)
Ao total, 166 (72,8%) organizações civis na amostra definiram-se como
representantes dos seus beneficiários. Aceitas as ressalvas para não transpor a
representação presuntiva para o plano dos conteúdos efetivamente representados,
é possível mostrar que existe uma relação clara entre se definir como
representante e o exercício de práticas de representação política. Consideramos
quatro tipos de atividades em que práticas de representação política soem
ocorrer, por vezes de modo rotinizado: participação em novas instâncias de
representação dentro do poder Executivo, especificamente conselhos gestores de
políticas públicas e/ou do orçamento participativo; exercício direto de
intermediação de demandas perante agências específicas do poder público;
incidência na política através dos canais tradicionais de caráter eleitoral,
aqui aferida como apoio a candidatos políticos; e incidência na política
recorrendo ao poder Legislativo, registrada como promoção de reivindicações na
Câmara Municipal. Por simples adição, e a partir da definição das atividades
como variáveis dicotômicas, elaborou-se um índice de eventuais práticas de
representação política, empregado para efetuar uma comparação entre as
organizações civis que assumem e aquelas que recusam a representação dos seus
beneficiários.
Conforme mostra a Tabela_1, a representação presuntiva está claramente
associada ao eventual exercício de práticas de representação política. Enquanto
66% das organizações civis que declararam não representar seus beneficiários
realizam uma ou nenhuma das quatro atividades descritas acima, 77% daquelas que
se autodefinem como representantes desempenham mais de duas dessas atividades.
Porém, apenas 17% do total das entidades mantêm relações de afiliação com seus
beneficiários, nas quais, em princípio, existe o "direito de saída". A
esmagadora maioria das organizações sustenta relações mais ambíguas quanto ao
tipo de representação que eventualmente poderia estar associado a elas: 30% se
relaciona com seus beneficiários em termos de comunidade e 44% de público
alvo.17
Para todas as organizações civis, aquelas que se definiram ou não como
representantes dos seus beneficiários, foram exploradas mais de noventa
variáveis independentes mediante estimativas de probabilidade (RRR), abarcando
distintas dimensões das práticas, das características e dos vínculos
interinstitucionais das organizações civis do município de São Paulo: público
das entidades, vínculos com outros atores societários e com atores políticos
tradicionais, temas trabalhados, envolvimento dos beneficiários nas atividades
dessas entidades, projeção de demandas aos diferentes níveis do poder público,
participação eleitoral mediante apoio a candidatos políticos, capacidade
financeira, institucionalização pública (jurídica) e inserção nos novos espaços
participativos de gestão de políticas públicas ' entre outras dimensões
contempladas pela análise.
Após inúmeros testes, o resultado final ou Modelo Principal (MP) acabou
composto por três variáveis: (i) a entidade apoiar candidatos políticos; (ii)
possuir título de utilidade pública; e (iii) realizar atividades de mobilização
e reivindicação perante programas, órgãos ou instâncias do governo.
A quarta coluna da Tabela_2 apresenta os resultados da regressão logística
(LR), os quais podem ser interpretados como propensões, quer dizer, como a
probabilidade de uma variável (dependente) vir associada a outra
(independente), ou como alterações nas chances de um fenômeno ocorrer
(representação presuntiva) quando introduzida à presença de um fator
determinado. Há incrementos na probabilidade de o fenômeno em questão ocorrer
quando o resultado é maior a 1; inversamente, cifras menores à unidade indicam
que a variável independente considerada tem efeitos negativos e diminui as
chances de ocorrência do fenômeno.18
Neste caso ' e sempre controlando as outras variáveis do MP ', o fato de uma
organização civil apoiar candidatos políticos é de longe a variável com maior
capacidade de predição da representação presuntiva, aumentando em mais de dez
vezes as chances de uma entidade assumir o papel de representante dos seus
beneficiários. Em segundo lugar, organizações civis que lançam mão de
mobilizações para levantar reclamos e reivindicações perante diferentes
instâncias do governo apresentam uma propensão cinco vezes maior. Com efeitos
sensivelmente menores ' mas consistentes em todos os testes realizados '
aparece a variável "possuir título de utilidade pública", que dobra as chances
da representação presuntiva. Não há duvidas quanto à significação estatística
desses dados. Ainda na Tabela_2, na quinta coluna, indica-se a confiabilidade
ou significância dos resultados da LR para as três variáveis do MP. Conforme a
convenções estatísticas, os dois asteriscos denotam resultados altamente
confiáveis, em um nível de confiança de 5%. Os resultados receberam tratamento
analítico cuidadoso na seção dedicada à interpretação.
Novas e velhas noções de representação (resultados II)
Justificações são inerentes à lógica da representação presuntiva. O compromisso
de representar, mesmo se concebido sem o alicerce do consentimento dos
representados, desdobra-se em movimento que leva a invocar razões como suportes
da presunção de representação ' não fosse assim, seria difícil conferir a essa
presunção significados capazes de diferenciá-la de um mero arroubo retórico.
Trata-se, deve ser frisado, dos motivos e das razões efetivamente aduzidos
pelas organizações civis para lidar com a difícil questão da sua
representatividade. A gama de razões passíveis de mobilização aponta para os
critérios que, da perspectiva do ator, fundamentam a correção de sua
autodefinição como representante. Nesse sentido, e embora no plano simbólico da
autopercepção, os motivos invocados atualizam a questão da representatividade.
As razões citadas pelas distintas organizações civis compõem grandes
constelações de sentidos, e a tipologia de argumentos de congruência condensa-
as e sistematiza seus elementos centrais. Assim, a tipologia é resultado da
pesquisa, prescinde de elementos conceituais normativos e nada diz a respeito
da forma em que as organizações civis deveriam construir suas funções de
representação política. Na próxima seção serão avaliadas as implicações dos
argumentos de congruência do ponto de vista da sua compatibilidade com a
democracia, entrementes, nos parágrafos seguintes receberão tratamento
descritivo.
As razões aduzidas pelas organizações civis definem seis argumentos de
congruência: eleitoral, afiliação, identidade, serviços, proximidade e
intermediação. Na elaboração da tipologia, a representação conjuga três
elementos: o representado, sempre pessoas cuja vontade se consubstancia de
maneira em maior ou menor grau direta e concreta (voto, reclamo, petição), ou
de maneira necessariamente indireta e abstrata (nação, tradição, bem comum); o
representante, intermediário e guardião dos interesses do representado, cujo
papel descansa em graus diversos de institucionalização, de autorização e de
obrigatoriedade para com os representados; o lócus, a um só tempo instância
onde a representação é exercida e interlocutores perante os quais se exerce '
notadamente o poder público, mas não só.
Neste caso, em que as figuras da representação política tradicional resultam
inadequadas, o representado tende a coincidir com os beneficiários, por vezes
delimitados em termos bastante amplos ' "excluídos", "pobres", "comunidade",
"cidadãos" '; o representante corresponde à organização civil investida de tal
status por autodefinição; e o lócus, especificado apenas de maneira implícita
na maior parte dos argumentos, via de regra se concentra no poder público e,
com menor freqüência, em outras instâncias e perante outros interlocutores
societários. Cada argumento constitui uma modalidade particular de ordenação
das relações entre esses elementos, cuja nota distintiva reside na ênfase
depositada pelo ator no fragmento e no conteúdo dessas relações que ele invoca
como prova da autenticidade da representação por ele assumida ' quer dizer,
como fundamento da sua representatividade.
Argumento eleitoral19
Organizações civis invocam a existência de mecanismos de eleição das lideranças
ou da diretoria como evidência da sua representatividade. Trata-se, em boa
medida, de justificação de facto de índole procedimental formal, que evita a
questão da representatividade, pois apenas é salientada a ocorrência de
processos de escolha consagrados pela sinonímia entre democracia e governo
representativo.20 Graças à utilização de um mecanismo de escolha plenamente
consagrado, torna-se possível para os atores "assegurar" a legitimidade da
representação exercida mediante argumento formal-procedimental ' a realização
de eleições ', evitando especificações a respeito dos conteúdos. (O Quadro_1
contém exemplos de respostas englobadas no argumento clássico-eletivo, bem como
nos outros argumentos.) O lócus implícito como pano de fundo são diversas
agências do poder público.
Argumento de afiliação
21
Organizações civis que invocam a filiação como evidência da sua
representatividade enfatizam a gênese simultânea do próprio ator e do conteúdo
a ser representado; isto é, trata-se não apenas de entidades criadas
especificamente para representar aos indivíduos ou atores envolvidos na sua
criação, mas, sobretudo, de organizações civis que representam interesses
adensados e instituídos apenas mediante o ato de fundação da respectiva
organização. Nesse sentido, representado e representante são gerados no mesmo
processo. Aqui também se apela a razões de facto e, a esse respeito, a
semelhança com o argumento clássico-eletivo não é fortuita, antes, guarda
estreita relação com a cristalização histórica da prática de corporificar
interesses em sindicatos ' utilizado com largueza no século XX. O lócus é
elemento imprescindível do argumento, pois a fundação de um ator com propósitos
de representação apenas adquire sentido pela existência de instâncias e
interlocutores predefinidos ' na maioria dos casos o poder público, mas não só.
Argumento de identidade22
Organizações civis invocam coincidência substantiva plena entre representante e
representado como fulcro da representatividade. O representante espelha a
vontade do representado em virtude de qualidades existenciais, não raro
irrenunciáveis ' gênero, raça, origem étnica '; qualidades imbuídas, em tese,
de uma definição em maior ou menor medida nítida dos interesses a serem
representados. Em outras palavras, a representatividade é identitária e supõe,
por mediação da identidade, a abolição da distância entre representado e
representante ' mulheres representando mulheres, negros representando negros e
assim por diante. Também neste caso, o lócus permanece implícito de forma
difusa.
Os três primeiros argumentos são ou familiares ou constitutivos da história da
democracia moderna, e costumam receber tratamento no campo das teorias e dos
debates da representação; entretanto, eles aparecem em posição francamente
secundária como argumentos empregados na justificação do caráter genuíno da
representação assumida pelas organizações civis da amostra ' oscilando entre 4%
e 7% (Quadro_1). Já os argumentos mais invocados como sustentação da
representatividade são em parte estranhos e não necessariamente compatíveis com
a democracia (serviços, 23%; proximidade, 27%; intermediação, 31%).
Argumento de serviços23
A ênfase recai na relação entre a organização civil que assume o papel de
representante e seus representados; todavia, em sentido muito diferente daquele
relativo ao argumento da proximidade. Neste caso, a entidade invoca benefícios
outorgados como alicerce da sua representatividade; ou seja, sua atuação na
melhoria da vida das pessoas, normalmente, mediante o fornecimento de serviços
' desde tratamentos médicos os mais diversos até distribuição de cestas
básicas, passando por treinamentos profissionalizantes, bolsas, suporte moral e
apoios de natureza variada. Se na maioria dos argumentos o lócus permanece
difuso, aqui ele é omitido por completo e sequer aparece levemente insinuado.
Argumento de proximidade
24
Organizações civis enfatizam seu relacionamento com os beneficiários, invocando
vínculos marcados pela cercania e horizontalidade como demonstração de seu
interesse e papel genuínos na qualidade de representantes. A afirmação de tal
proximidade assume manifestações diversas: emancipação, ou o empenho de
potencializar a auto-organização do beneficiário e de fomentar seu
protagonismo; empatia, ou o compromisso profundo com o beneficiário por
afinidade, solidariedade e identificação real com seus problemas e
necessidades; abertura, ou a disposição de acolher e estimular a participação
direta e a opinião do beneficiário na orientação e na organização do trabalho
da entidade. Embora não coincida necessariamente com o poder público, há um
lócus claramente sugerido no argumento, pois favorecer o protagonismo e a
capacidade de reivindicação e resolução de problemas do beneficiário reenvia a
algum interlocutor pressuposto.
Argumento de intermediação
25
Entre os seis argumentos encontrados, este é excepcional se considerado que a
organização civil estriba sua representatividade não na relação com seu
beneficiário, mas com o lócus da representação. Toda representação pressupõe o
exercício de expedientes de intermediação, mas isso não equivale a conferir à
intermediação, em si, a posição de fundamento da autenticidade do papel
desempenhado pelo representante. Contudo, é essa precisamente a ênfase do
argumento, segundo a qual as funções de intermediação levadas a cabo pela
entidade conseguem abrir portas e franquear o acesso a instâncias de tomadas de
decisão no poder público; instâncias que, de outra forma, permaneceriam
inalcançáveis para os beneficiários. Assim, a capacidade de interlocução do
ator com diferentes instâncias do poder público é utilizada de maneira legítima
' sempre do ponto de vista do argumento do ator ' para a reivindicação de
direitos, não para a barganha de dádivas ou favores. Por fim, a relação com o
representado, e não com o lócus, é que permanece difusa neste caso.
Uma vez exposta a tipologia, o primeiro dado interessante a ser mencionado diz
respeito ao uso de um único argumento por parte das organizações civis que
assumiram presuntivamente a representação dos seus beneficiários: apenas 1%
desses atores lança mão de três argumentos para justificar sua
representatividade, 5% invoca dois argumentos, e a esmagadora maioria (94%)
concentra suas razões em um só argumento.26
É pertinente explorar, então, os argumentos em questão à luz das eventuais
práticas de representação política levadas a cabo pelas diferentes organizações
civis. Conforme já advertido, cabe proceder com cautela quanto à possibilidade
de verificar a conexão entre argumentos e práticas de representação. Volta-se à
Tabela_1, mas desta vez para examinar se existe uma relação entre as quatro
práticas de representação política e as seis noções de representação. Conforme
mostra a Tabela_3, o argumento clássico-eletivo e de filiação, correspondentes
aos expedientes de representação consagrados nas democracias de massa, são
levantados por entidades que, de fato, atingem a pontuação mais alta pela
concentração de atividades eventualmente vinculadas à representação política; o
argumento de identidade, por sua vez, mantém comportamento semelhante, embora
com cifras menos avultadas. A maioria das organizações que invocam esses
argumentos desempenha pelo menos três atividades de representação. No outro
extremo, apenas os argumentos de intermediação, de proximidade e serviços são
invocados por organizações civis que não realizam sequer uma das atividades
eventualmente ligadas a práticas de representação política; mais: o argumento
de congruência baseado no fornecimento de serviços mostra o pior desempenho,
sendo utilizado por atores que majoritariamente (60%) efetuam até duas
atividades apenas. Por seu turno, aproximadamente 80% das organizações civis
que lançam mão dos argumentos de intermediação e proximidade realizam mais de
duas atividades de representação.
Em suma, os argumentos familiares à democracia mostram relações consistentes
com o exercício de práticas de representação, ao passo que o argumento de
serviços é ambíguo a ponto de ser invocado em 40% das ocasiões por organizações
civis que realizam apenas uma ou nenhuma dessas práticas. Os dois argumentos
mais interessantes do ponto de vista da reconfiguração da representação e da
ampliação da democracia, proximidade e intermediação ' conforme será
argumentado adiante ', apresentam alguma ambigüidade, mas coincidem com
atividades de representação.
Organizações civis, representação e democracia: interpretação
Os processos de reforma do Estado e, em particular, a onda de inovações
institucionais participativas ocorrida pelo mundo afora nos últimos anos
intensificaram o protagonismo político das organizações civis. Praticamente
três quartos das organizações civis em São Paulo, colhidas na amostra do
universo associativo mais ativo que trabalha com ou para as camadas populares,
assumem a representação presuntiva dos seus beneficiários. Mais: o compromisso
de representar, quando avaliado da perspectiva das diferentes práticas de
representação política ao alcance das organizações civis, aparece com respaldo
empírico, isto é, a representação presuntiva encontra-se claramente associada
ao eventual exercício de práticas de representação política. A relação inversa
é igualmente consistente: exercício de poucas ou nenhuma prática de
representação coincidem com a recusa das organizações civis a se autodefinirem
como representantes.
Conexão entre organizações civis e o circuito da política tradicional
O fato de uma organização civil afirmar ser representante dos seus
beneficiários está intimamente vinculado, em São Paulo, às suas relações com as
estruturas tradicionais da política. Com maior precisão, apoiar candidatos
políticos é de longe o melhor "preditor" da representação presuntiva, seguido
com certa distância por mais dois atributos, a saber, a posse de títulos de
utilidade pública e a realização de mobilizações e reivindicações perante o
poder público. O apoio a candidatos remete ao engajamento das organizações
civis no suporte de determinados políticos em campanhas eleitorais nos últimos
cinco anos, possivelmente em troca do compromisso de trabalhar em prol de
causas do interesse da organização. As atividades de mobilização e
reivindicação perante programas, órgãos ou instâncias do governo são eloqüentes
por si só e não requerem maiores esclarecimentos, visto se tratar da conhecida
estratégia de pressão externa sobre instâncias do poder público responsáveis
pela tomada de decisões. Os títulos de utilidade pública respondem à lógica da
legislação aplicável às organizações civis em São Paulo e implicam, por
definição, o propósito da respectiva organização de preservar uma interface com
o Estado para viabilizar sua missão e seus objetivos mediante a obtenção de
benefícios públicos, como isenções fiscais, subvenções e auxílios com verba
pública, convênios para o fornecimento local de serviços públicos
descentralizados ou para a participação na administração e no desenho de
políticas públicas, bem como licenças para a realização de sorteios (Szazi,
2001, pp. 89-110; Landim, 1998a, pp. 79-83).
A estreita conexão entre a representação presuntiva e as dinâmicas e o
arcabouço tradicional da política suscitam pelo menos duas ordens de
considerações que interpelam diretamente o debate contemporâneo em torno da
reconfiguração da representação política e da reforma da democracia. Primeiro,
conforme exposto no início deste artigo, o debate sobre reforma da democracia e
sua ênfase nas potencialidades da chamada sociedade civil, curiosamente, não
têm sido acompanhados de trabalhos sistemáticos para esquadrinhar a
problemática da representação subjacente em boa parte dos pressupostos
analíticos que alicerçam tais potencialidades ' a começar pelo pressuposto de
uma continuidade ou conexão "natural" entre sociedade e sociedade civil. A
desatenção a um assunto tão nevrálgico para a agenda da reforma da democracia
pode obedecer, pelo menos em parte, ao fato de se tratar de uma questão
delicada ' a representatividade das organizações civis ', inscrita no terreno
histórico e intelectual das instituições políticas da democracia. A proposta de
abordagem aqui desenvolvida mostra não apenas a pertinência de se explorar a
problemática da representação política no seio das organizações civis, mas
também a plausibilidade de avançar no equacionamento desse desafio sem levar
precocemente a uma conclusão peremptória sobre a falta de representatividade
dessas organizações. Sugere também que o compromisso de representar nas
organizações estudadas em São Paulo é moldado, fundamentalmente, na interface
com as campanhas eleitorais e seus candidatos, evidenciando tanto um filão de
interações a serem esquadrinhadas como os custos analíticos da distinção
rígida, não raro própria desse debate, entre a chamada sociedade civil e as
instituições políticas.27
Segundo, se a representação presuntiva for traduzível efetivamente em
representação política por organizações civis, isso parece acontecer não apenas
à margem de ou contra, mas, sobretudo, graças e em estreita interação com os
circuitos tradicionais da representação política ' sistema político ', e com as
formas comuns do exercício da política dentro das organizações civis ' pressões
via mobilização. Assim, contra advertências alarmadas sobre os riscos de
usurpação das instituições legítimas do modelo cristalizado de representação
política, o caso de São Paulo levanta evidências favoráveis à idéia da
reconfiguração da representação pela emergência de novas instâncias societárias
de intermediação que interagem de forma complementar ' embora conflitos não
sejam excluídos ' com as instituições consagradas do governo representativo. A
interação complementar com os processos eleitorais ocorre por intermédio dos
candidatos, o que sugere importantes correções aos diagnósticos quanto à
fatalidade de uma desconexão progressiva entre os atores políticos dos
processos eleitorais e suas bases ou nichos sociais.
Não há qualquer garantia a priori de as eventuais dinâmicas de representação
política ativas no universo das organizações civis serem representativas em si
pelo simples fato de ocorrerem no plano societário. Caso elas se desempenhem
efetivamente como novas instâncias de mediação entre a população e os processos
eleitorais ou, como acontece de fato no Brasil, entre a população e a gestão
pública no desenho e na implementação de políticas, as organizações civis
apenas poderiam contribuir para a reforma da democracia se elas próprias forem
representativas ou mostrarem capacidade para preservar certa tensão na relação
entre representantes e representados. Clientelismos e patrimonialismos de
diversas espécies, por exemplo, também costumam ter lugar nesse plano. Para
avaliar a representatividade das organizações civis não há, todavia, modelos
práticos sedimentados no terreno das instituições de representação política, e
tampouco modelos teóricos razoavelmente aceitos ou difundidos.
Auto-reconhecimento das funções políticas de intermediação societária
Os argumentos de congruência exprimem as justificativas invocadas pelas
diferentes organizações civis para sustentar publicamente sua qualidade de
representantes, mesmo se e precisamente porque considerada a inexistência de
componentes sine qua non do modelo de representação política consagrado nas
democracias ' notadamente as eleições. O fato de a esmagadora maioria das
organizações (94%) incorrer a apenas um argumento de congruência respalda a
interpretação de que as justificativas invocadas constituem formulações
relativamente estabilizadas.28 Análise idêntica para o caso das organizações
civis da Cidade do México, por exemplo, mostrou que 20% das entidades da
amostra utilizam mais de um argumento, e um número superior a 10% utilizam três
argumentos ou mais (Gurza Lavalle et al., 2005c). Em São Paulo, por sua vez,
apenas 1% da amostra lança mão de três argumentos.
Encontraram-se argumentos de importância marginal no discurso das organizações
civis, embora claramente sintonizados com uma representação política de cunho
democrático; um argumento de importância central, a rigor incompatível com as
exigências normativas próprias da democracia; e argumentos igualmente centrais,
todavia, adequados para se pensar em perspectiva mais promissora o papel das
organizações civis na reforma da democracia e na reconfiguração da
representação política. Nesses últimos argumentos é possível apreciar um
deslocamento histórico relevante: críticas à representação política e noções de
representação genuína, características das organizações civis brasileiras
durante o último terço do século XX, cederam passo a novas compreensões que
encarnam nitidamente os processos de reconfiguração da representação política
pela ampliação do seu lócus e de suas funções para o terreno do desenho, da
implementação e da supervisão de políticas públicas. Assim, a maior novidade
encontrada nos argumentos de congruência, potencialmente impregnada de
conseqüências para a reforma da democracia e para a reconfiguração da
representação política, reside na relação entre o argumento de proximidade e o
argumento de intermediação.
Os resultados apresentados, por certo, põem em xeque interpretações que
desenvolvem modelos únicos de representação no seio das organizações civis,
caracterizados por supostas feições comuns, como o funcionamento em rede, a
flexibilidade e a adaptabilidade dos seus desenhos organizacionais ou a
presença de dinâmicas deliberativas ou dialógicas (cf. Chalmers et al., 1997).
O tratamento unitário dispensado com freqüência ao diverso mundo das
organizações civis sob a rubrica "sociedade civil" oblitera fatos comezinhos:
os atores do mundo societário obedecem a lógicas diferentes, não
necessariamente compatíveis com quaisquer esforços analíticos ou práticos de
reforma da democracia.
A análise que se segue abordará os argumentos de congruência invocados pelas
organizações civis em termos da sua "novidade" histórica, das suas implicações
para a reforma da democracia e para a compreensão da reconfiguração da
representação política, e, quando pertinente, do contexto específico que
permite interpretar essas conseqüências. A rigor, nem todos os argumentos
operam sob a lógica de uma representação presuntiva, pois alguns deles, embora
minoritários, reproduzem no plano societário os dispositivos de autorização e
as dinâmicas de legitimação próprias à representação política das democracias
no século XX. Os argumentos eleitoral, de filiação e de identidade correspondem
ao primeiro grupo minoritário, e, de maneiras diferentes, cada um deles lança
mão de expedientes de representação essenciais a ou largamente presentes na
história da democracia.
Semelhante ao modelo de representação política consagrado, o argumento
eleitoral encontra nas eleições seu fulcro. Eleições e representatividade
distam de ser sinônimos, como atestado não apenas pelas inúmeras denúncias da
impotência dos partidos para sanar o déficit de representação das democracias
contemporâneas (Chalmers et al., 1997; Friedman e Hochstetler, 2002; Roberts,
2002), mas também por diagnósticos agudos acerca das limitações do mecanismo
eleitoral e do parlamento como lócus da representação para garantir a
responsividade e o controle dos representantes eleitos (Sartori, 1962; Manin et
al., 1999b). Contudo, eleições oferecem mecanismos de sanção sobre os
representantes (accountability) e tendem a estimular a sensibilidade destes
perante as demandas e as necessidades dos representados (responsividade). A
despeito de as eleições no seio das organizações civis carecerem do escrutínio
público e da formalização próprios dos processos políticos eleitorais, elas
seguem a mesma fórmula e critérios de legitimidade. Organizações civis
submetidas a mecanismos eleitorais na sua relação com os beneficiários poderiam
revitalizar a representação política quando incorporadas como instâncias de
mediação nos processos de desenho e implementação de políticas públicas, ou,
simplesmente, na canalização de demandas e cobranças através dos circuitos da
política eleitoral.
O argumento de filiação também é francamente minoritário, e estriba a
representatividade de quem o invoca na coincidência entre a criação da
correspondente organização civil e o ato de instituir os interesses a serem
representados. Como peça-chave das estruturas trabalhistas de representação de
interesses nas democracias de massa, ele coexistiu com o modelo dominante da
representação política no século XX, embora sua estirpe seja mais antiga,
remontando à associação medieval de direitos a categorias sociais específicas,
consagradas nas guildas, nas corporações e em circunscrições territoriais
submetidas ao poder régio (Marshall, 1967; Bendix, 1996; Pitkin, 1989). Seja
pelas "cotizações", pela participação na escolha da diretoria, seja por outros
mecanismos de sanção e controle não raro associados à noção de afiliação
(stricto sensu), o argumento admite mecanismos para fixar e manter a relação
entre a organização e seus beneficiários; mecanismos, aliás, conhecidos e
largamente utilizados com legitimidade na última centúria. Organizações civis,
cujas funções de representação respondem à filiação dos seus membros, mesmo se
minoritárias, poderiam contribuir ao revigoramento da representação política
quando conectadas com os atores políticos tradicionais ou quando inseridas nos
processo de desenho e supervisão de políticas públicas.
O argumento de identidade descansa nos efeitos atribuídos a semelhanças
existenciais ou substantivas. A posição marginal ocupada pelo argumento de
identidade pode causar espanto, particularmente se for considerado que a
chamada política da diferença tem merecido crescente atenção na teoria política
pelas suas implicações ora adversas, ora favoráveis à cidadania.29 As dinâmicas
de representação no seio das organizações civis em São Paulo, e plausivelmente
em outras cidade brasileiras, parecem pouco ou nada guiadas por lógicas
identitárias. O argumento de identidade prescinde, em princípio, de mecanismos
de controle e sanção, pois a semelhança existencial encerra tudo o que o
representante deve ser para atuar conforme espera o representado. Ainda assim,
quando o pressuposto da coincidência entre características existenciais do
representante e suas escolhas ou atuação é relaxado o bastante, torna-se
plausível atribuir-lhe um olhar ou uma perspectiva (Young, 2002, pp. 121-153) '
de gênero ou de raça, por exemplo ' que, de forma laxa, isto é, sem pressupor
interesses ou opiniões predefinidos, corresponde a alguma qualidade ou atributo
substantivos considerados indesejavelmente sub-representados. Nesse sentido,
ainda que com peso ínfimo, as organizações civis animadas por lógicas
identitárias poderiam contribuir na correção de exclusões sistemáticas na
representação política ou no desenho e na gestão de políticas públicas.
No argumento de serviços lança-se mão, como justificativa da representação
assumida, dos benefícios ou serviços fornecidos pelas respectivas organizações
civis aos seus beneficiários. De certa forma, nele opera uma sinonímia ou
identificação entre a capacidade de distribuir ou produzir benefícios reais e a
sinceridade do compromisso de representar para o bem das pessoas. Obviamente,
também neste caso subjaz uma crítica à representação política pela sua
incapacidade de garantir uma relação efetiva entre a atuação do representante,
de um lado, e a solução de problemas e necessidades ou o cumprimento de
expectativas dos representados, de outro. Daí a efetividade aparecer como peça-
chave do argumento. A despeito da crítica implícita, a solução oferecida é
peculiarmente vulnerável se avaliadas suas conseqüências do ponto de vista do
papel das organizações civis na reforma da democracia e na reconfiguração da
representação. Nos argumentos examinados, i) o lócus da representação permanece
subentendido, mas não é omitido; ii) embora com níveis diferentes de
formalização e com resultados incertos, existem dispositivos de aproximação
entre representantes e representados, normalmente acompanhados de mecanismos
que permitem algum tipo de sanção e controle; iii) quaisquer que sejam esses
mecanismos e sua eventual eficácia, pressupõem que sua ativação pode ter alguma
incidência sobre a atuação do representante no lócus da representação. Visto
que a justificativa do argumento de serviços reside no fornecimento direto de
benefícios, nele aparece cancelada a função de intermediação e, portanto, o
lócus. Além disso, não contempla mecanismos de controle ou sanção. A ausência
de intermediação e de lócus anula a essência da própria representação. À margem
dos méritos das organizações civis voltadas à prestação de serviços e/ou à
beneficência, particularmente em sociedades cindidas pela iniqüidade, como a
brasileira, no argumento em questão não há elementos compatíveis com os
princípios normativos mínimos da democracia que tornem plausível ou sequer
desejável a sua projeção para o plano da representação política.
Ao argumento de proximidade subjaz uma crítica implícita: acusa as distorções
causadas por arcabouços institucionais de intermediação, incapazes de
transmitir com fidelidade a voz e os anseios da população, opondo a eles um
compromisso genuíno e uma prática dirigida a fazer com que as pessoas atuem e
falem por si próprias ou sejam representadas nos seus interesses autênticos. De
fato, não surpreende a alta recorrência do argumento ' por sinal, o segundo
mais invocado ', tanto por se tratar de atores societários não estritamente
políticos, como pela particular origem histórica de parte considerável desses
atores no Brasil. No argumento é possível perceber efeitos duradouros do
extraordinário peso da Igreja na constituição simbólica e material de
organizações civis, bem como a intensa participação de militantes de esquerda
refugiados no ativismo civil da proscrição política imposta pelo regime militar
(Sader, 1988; Doimo, 1995; Landim, 1998b; Houtzager, 2004). Transparecem, no
primeiro caso, a renúncia ao protagonismo, a empatia (compaixão) e o trabalho
silencioso lado a lado com os oprimidos, como cânones de uma posição correta de
intervenção social da Igreja; no segundo, as convicções de emancipação e a
noção forte de uma identificação dos verdadeiros interesses das camadas sociais
desfavorecidas; em ambos os casos, a valorização da participação e, por
conseguinte, das experiências de democracia direta. A participação e a
proximidade física constituem, em princípio, condições favoráveis para reforçar
a relação entre representantes e representados, viabilizando algumas formas de
controle ou sanção. Organizações civis próximas de seus beneficiários e abertas
à participação são, sem dúvida, mais preferíveis para o revigoramento da
representação política do que aquelas distantes e herméticas. Porém,
independentemente do seu valor, derivado do seu conteúdo de solidariedade, o
argumento repõe velhos dilemas da democracia direta: se ênfases extremas na
participação acabam anulando a própria representação, pois cancelam no
nascedouro a intermediação (Pitkin, 1967, pp. 209-240; Sartori, 1962), à medida
que a participação ganha escala na definição de interesses a serem
representados, ela se torna propriamente representação ' como tal,
incompreensível como sucedâneo defeituoso da participação.
No argumento de intermediação, a ênfase distintiva vincula o representante e o
lócus da representação mediante o reconhecimento explícito da importância de
mediar interesses perante o Estado para abrir canais passíveis de serem
percorridos por reivindicações de direitos que, normalmente, não encontrariam
vias de expressão nas diversas instâncias de tomadas de decisão do poder
público. A importância conferida à intermediação ante o Estado é traço digno de
nota: o argumento estabelece como ponto de partida a urgência de paliar uma
desigualdade que não é diretamente de renda, mas de acesso ao Estado; isto
supõe, do ponto de vista do ator, tanto assumir um posicionamento privilegiado
na desigual distribuição da capacidade de alcançar o Estado, como um
compromisso de utilizar essa capacidade para elevar a voz daqueles que de outra
forma não seriam ouvidos. O argumento coincide em parte com o conceito de
advocacy, comum na literatura que lida com ONGs e, inclusive, na literatura de
representação, bem como nos cruzamentos entre ambas (Fox, 2000; Urbinati, 1999;
Sorj, 2005). A crítica implícita no argumento não visa às instituições
tradicionais de representação política em si, devido a quaisquer dinâmicas
inerentes de desvirtuação dos anseios dos representados; no entanto, acusa
déficits na sua capacidade de ecoar interesses e atender direitos de diversos
segmentos "politicamente excluídos" da população, estabelecendo como própria a
tarefa de conectar esses segmentos com o Estado e com os circuitos da política
eleitoral. Não há no argumento indícios de mecanismos de sanção ou controle
capazes de reforçar a relação entre representantes e representados ' as
organizações e seus beneficiários ', e isso traz à tona os dilemas da
representação de interesses no seio das organizações civis.
Em contrapartida, se for lembrado que, no Brasil da ditadura e do contexto da
transição, o discurso de parte nada desprezível das organizações civis era
guiado por forte antiestatismo, assim como pela opção pelo trabalho anônimo com
as bases ' elementos presentes no argumento de proximidade ', o argumento de
intermediação aparece carregado de novidade. Década-e-meia após a constituinte,
a justificativa da representação presuntiva mais utilizada pelas organizações
civis de São Paulo valoriza a conquista de uma capacidade de intermediação ante
o Estado. Nesse sentido, não parece descabido asseverar que enquanto o
argumento de proximidade permanece fiel à lógica dominante dos atores
societários durante o período da ditadura, o argumento de intermediação espelha
tanto a conjuntura de inovação institucional dos últimos anos como as dinâmicas
de médio prazo de reconfiguração da representação. Emerge consubstanciada,
assim, a conexão entre os processos de reconfiguração da representação política
e as mudanças ocorridas na redefinição do perfil das organizações civis no
contexto da reforma do Estado implementada nos últimos anos.30
Comentários finais
A abordagem adotada neste artigo permitiu avançar nos planos analítico e
empírico para a compreensão da problemática da representação política no seio
das organizações civis. Tanto os fatores que, em São Paulo, alteram a propensão
das organizações civis a firmar seu papel como representantes de seus
beneficiários, como os argumentos de congruência por elas invocados, encerram
achados relevantes para os debates em curso sobre a reforma da democracia e a
reconfiguração da representação política, a começar pelo fato de se tornar
patente o quanto tem sido negligenciada a relação entre representação política
e organizações civis nas discussões. No primeiro caso, a despeito do foco
centrado em atores societários, a ênfase na noção de participação e o
pressuposto de uma conexão natural ou de uma continuidade entre sociedade e
sociedade civil encobrem a ocorrência de fenômenos de representação onde a
literatura identifica processos de aprimoramento da democracia pela
incorporação de mecanismos de democracia direta. No segundo, reconstruções
ricas e nuançadas da reconfiguração da representação política tornam-se
rarefeitas quanto à avaliação das conseqüências dessa reconfiguração para a
democracia. Se a literatura da reconfiguração da representação política estiver
correta, os partidos estão perdendo sua centralidade na organização das
preferências dos eleitores e na construção de identidades representáveis,
cedendo lugar à preeminência dos candidatos e da sua vinculação intimista com a
população, viabilizada pelos meios de comunicação de massa.
Porém, as evidências examinadas nestas páginas permitem afirmar que, em São
Paulo, e plausivelmente no Brasil, as organizações civis desempenham um papel
ativo ' embora não necessariamente positivo ' na reconfiguração da
representação tanto nos circuitos tradicionais da política como nos âmbitos
inaugurados pelas inovações institucionais participativas. De um lado, a
irrefreável cisão entre partidos e bases sociais diagnosticada na literatura
pode estar sendo contrabalançada por estratégias de reconexão, em que as
organizações civis operam com instâncias de intermediação entre partidos e
diferentes segmentos da população. A interpenetração entre atores societários e
atores propriamente políticos não deveria surpreender, não fosse porque os
campos disciplinares e as orientações do debate nos últimos anos traçaram
linhas divisoras rígidas entre eles. Partidos e candidatos investem no campo
societário como parte de suas estratégias políticas, e organizações civis
cultivam orientações e alianças políticas preferenciais para a realização dos
seus objetivos. São precisamente organizações civis envolvidas nessa reconexão
que assumem a representação presuntiva dos seus beneficiários.
A constatação da relação entre organizações civis e reconfiguração da
representação política nada diz a respeito de suas conseqüências positivas ou
negativas para a qualidade da democracia. Isso, é claro, traz à tona a delicada
questão da representatividade das organizações civis, e as dificuldades de
avaliar tal representatividade no registro de uma representação política
pautada por exigências democráticas. As evidências examinadas indicam que não é
pertinente equacionar essa questão ensejando a elaboração estilizada de um
modelo único de representação para as organizações civis; antes, encontraram-se
diversas modalidades de representatividade invocadas pelas organizações civis
como justificativa razoável da autenticidade da representação assumida. Sem
dúvida, um número considerável de organizações civis concebe a legitimidade da
representação dos seus beneficiários em termos que assumiriam feições perversas
se projetados para o plano da representação política. Entretanto, há diferentes
argumentos de congruência conciliáveis com exigências democráticas. Entre eles
destaca-se uma nova noção de representação explicitamente política e em clara
sintonia com os processos de reconfiguração da representação. Nela parecem
condensados os experimentos de inovação institucional participativa e de
reforma do Estado vividos no Brasil nos últimos anos, evidenciando que no âmago
de ambos os fenômenos as próprias dinâmicas de representação no seio das
organizações civis mudaram e adquiriram feições assumidamente políticas. Esse
conjunto de organizações civis não reivindica qualquer noção de autenticidade
ou representação genuína em face das instituições tradicionais, como aparece
com freqüência nos discursos de atores societários, mas declara seu
comprometimento com um trabalho de intermediação orientado a conectar
representantes e representados, isto é, segmentos da população mal ou sub-
representados, de um lado, e Estado e circuitos da política eleitoral, de
outro. Trata-se, assim, de argumento que situa as organizações civis como uma
nova instância de mediação entre representantes e representados.
Malgrado a crescente participação de atores societários no desenho e na
supervisão de políticas públicas ' participação, no Brasil, com estatuto
jurídico inscrito na Constituição ', e apesar da autocompreensão de parte nada
desprezível das organizações estudadas acerca do seu papel não como alternativa
às instituições tradicionais da representação política, mas como um novo andar
de intermediação institucional societária apto para vincular as necessidades e
as demandas de determinados segmentos da população com as instâncias públicas
de tomadas de decisões, inexistem critérios de legitimidade cristalizados para
cimentar a relevância histórica adquirida por novas práticas, canais e atores
envolvidos em tarefas de representação política. Tal inexistência é contingente
e não cabe abraçá-la como ponto de partida pacífico; antes, parece mais
prudente assumir que a construção desses critérios de legitimidade,
independentemente de ser bem ou mal-sucedida, constitui e constituirá um objeto
de disputa política no futuro mediato.