Recursos, decisão e poder: conselhos gestores de políticas públicas de Curitiba
Introdução
Os estudos sobre os fenômenos políticos apresentam com muita freqüência,
implícita ou explicitamente, uma questão que não hesitaríamos em qualificar de
"universal", a saber, a questão do poder. Quando se discute uma política
pública, o funcionamento de uma determinada instituição ou os diversos sentidos
da "democracia", de uma forma ou de outra, o objetivo é quase sempre saber
"quem tem o poder".
A questão, no entanto, é tão fácil de ser formulada quanto difícil de ser
respondida. Ainda que possamos encontrar um relativo consenso acerca da
definição mais genérica de poder ' isto é, como uma relação de conflito e de
predomínio ', as dificuldades metodológicas para se responder à questão
universal (quem tem poder?) são tão grandes e os limites das respostas dadas
tão discutidos que aquele consenso acaba por ter pouco significado operacional.
As duas respostas mais usuais a essa questão são oriundas da tradição
weberiana. Ambas entendem o poder como sinônimo de capacidade de influenciar o
processo decisório, isto é, de impor aos outros um determinado curso de ação em
relação a um assunto específico (Wright Mills, 1985, p. 65; Kaplan e Lasswell,
1998, p. 110; Dahl, 1970, 1989). A origem comum na tradição weberiana não
impediu, entretanto, que essas duas perspectivas produzissem orientações
metodológicas bastante distintas, que acabaram por se consagrar na literatura
como o "método posicional" e o "método decisional".
O método posicional pode ser encontrado numa infinidade de textos, entre os
quais o mais famoso é certamente A elite do poder, de C. Wright Mills. Neste
livro, Mills afirma que o poder de tomar as decisões políticas encontra-se nas
mãos daqueles indivíduos que ocupam as posições institucionais estratégicas
numa comunidade. Sendo assim, o procedimento para saber quem governa a
comunidade em análise consistiria, primeiro, em identificar essas posições
estratégicas de mando e, em seguida, fazer aquilo que Mills chama de
"sociologia das posições institucionais" (1985, p. 63).
Os defensores do chamado método decisional, no entanto, identificaram uma falha
metodológica fundamental no procedimento analítico de Wright Mills, a saber, a
inadequação entre a sua definição conceitual de poder e o método por ele
utilizado para operacionalizar aquele conceito. Se o poder é a expressão da
capacidade de impor aos outros, numa relação social, um determinado curso de
ação, então o seu estudo não pode se limitar a identificar os recursos
possuídos por atores políticos e derivar mecanicamente da quantidade e
importância desses recursos o poder de seus proprietários. Enfim, se o poder é
o poder de decidir, somente o estudo de alguns processos decisórios concretos
revelaria ao analista os indivíduos ou grupos sociais capazes de exercer o
poder (Dahl, 1970, 1989; Polsby, 1963). Segundo essa perspectiva, exerceria o
poder aquele indivíduo ou grupo que, num processo decisório específico e
conflituoso, conseguisse fazer com que as suas preferências prevalecessem sobre
as preferências dos demais.
Apesar de bastante persuasiva, essa postura metodológica não escapou de
críticas também contundentes, desenvolvidas em duas direções.
Primeiramente, alguns autores (Bachrach e Baratz, 1969a e b; Crenson, 1971)
observaram que a análise de processos decisórios, tal como feita por Dahl, era
insuficiente para identificar os "poderosos" de uma comunidade, e isso por duas
razões. Primeira, aqueles que participam diretamente do processo decisório
podem decidir levando em conta os interesses de grupos exteriores a este
processo, comportando-se por meio daquilo que a literatura chamou de "regra das
reações antecipadas". Nesses casos, temendo as sanções que sofreriam se
afetassem negativamente os interesses do grupo em questão, os decisores
antecipar-se-iam a qualquer ordem expressa, evitariam qualquer tipo de
resistência frontal e, por fim, acabariam adotando o comportamento desejado
pelos "verdadeiros poderosos". Segunda, o processo decisório seria apenas o
resultado visível de um processo social e político anterior que consistiria na
mobilização consciente por grupos dominantes de uma série de mitos e valores e
mesmo de recursos de força que, pela estigmatização, desqualificação ou simples
repressão, excluiriam da agenda pública uma série de "queixas", reduzindo o
processo decisório a um conjunto de "temas seguros". Feita nesses termos, essa
crítica não representou nenhum rompimento epistemológico com o "método
decisional", já que o poder continua a ser entendido como uma relação de
conflito observável (ainda que às vezes mais difícil de ser visualizado em
função da regra das reações antecipadas ou da exclusão política) entre agentes
conscientes de seus interesses e agindo, basicamente, de maneira estratégica
(Lukes, 1976; Foucault, 1995; Bourdieu, 1989).
Ao contrário, o segundo tipo de crítica feita ao método decisional representou
um rompimento epistemológico (declarado ou não) com a tradição weberiana (e,
portanto, com todas as vertentes vistas anteriormente), já que, na análise do
poder, seus autores preferiram adotar uma perspectiva que poderíamos chamar de
"estruturalista". Apesar das grandes diferenças teóricas e metodológicas, os
autores filiados a esse campo analítico abandonaram, todos eles, a proposta de
reduzir o fenômeno do poder a uma interação entre agentes conscientes de suas
preferências subjetivas. O poder passou a ser visto como um conjunto de
relações sociais institucionalizadas, isto é, capazes de se interiorizarem nos
valores e nas percepções dos atores sociais que, assim, por meio de suas
práticas, reproduziriam relações essencialmente hierárquicas, produtoras de uma
distribuição desigual e regular de recursos de natureza diversa (econômico,
político, simbólico, cultural etc.). Na perspectiva dos autores filiados a esse
campo teórico, não se trata de negar a existência de ações estratégicas e
conscientes por parte do atores sociais, mas sim de afirmar que tais ações são
a parte visível de uma dimensão inconsciente da ação social, isto é, aquela
produzida por longos processos de socialização a que os indivíduos estão
submetidos e que definem para eles a razoabilidade de determinados objetivos a
serem perseguidos. Como parece claro, a operacionalização metodológica dessa
visão do poder é muito mais complicada do que a análise de conflitos
observáveis no processo decisório. Segundo essa perspectiva, somente a
recuperação histórica do longo processo que nos conduziu ao estado atual das
relações sociais pode mostrar que esse "estado" está longe de expressar um
consenso genuíno entre os agentes sociais, mas se constitui, na verdade, na
cristalização final (e não desejada por ninguém) de lutas, vitórias e derrotas
pretéritas.
O presente artigo analisa os conselhos gestores de políticas públicas da cidade
de Curitiba,1 tendo como premissa a questão supracitada sobre o poder no
contexto dessas instituições participativas. Neste caso, a questão torna-se
ainda mais relevante, tendo em vista a intenção declarada (no plano da
legislação) de que essas instituições sirvam para ampliar a participação
popular e, assim, melhorar a qualidade da democracia brasileira. Ora, a
ampliação dessa participação só produziria o efeito que dela se espera caso os
novos participantes sejam capazes de exercer o poder em seu interior, seja
interferindo no processo decisório, seja moldando a agenda pública. Propomos,
nesse sentido, dois eixos temáticos interligados: de um lado, pretendemos
discutir questões teóricas e metodológicas relativas ao conceito de poder e, de
outro, procuramos fazê-lo de forma, por assim dizer, "aplicada", tentando
identificar o modelo analítico mais apropriado para o estudo das relações de
poder no interior de instituições marcadas por uma participação ampliada e por
um baixo grau de institucionalização dos seus procedimentos internos, tais como
os conselhos gestores de políticas públicas.
A pesquisa fez uso das duas primeiras perspectivas resumidas acima, quais
sejam, a do método posicional e a do método decisional. Fizemos isso lançando
mão de dois instrumentos de coleta de dados. De um lado, por meio da aplicação
de um questionário, procuramos identificar os recursos organizacionais e
materiais dos participantes dos conselhos analisados, assim como os aspectos
motivacionais de sua conduta política; de outro lado, procuramos fazer uma
análise do processo decisório em si, visando a identificar os atores que,
dentro dos conselhos, se destacaram na condução desse processo. Conjugando
esses dois procedimentos analíticos, a nossa intenção era ver se seria possível
identificar a existência de alguma relação regular entre a posse de
determinados recursos e a capacidade de influenciar o processo decisório.
Ainda que esse procedimento tenha nos propiciado descobertas interessantes, o
fato é que vários dos limites apontados pelos seus críticos se manifestaram ao
longo da análise. Chegamos à conclusão de que a identificação das relações de
poder num determinado contexto só pode ser completa se conjugarmos uma série de
variáveis qualitativamente distintas, mas francamente complementares. Neste
artigo, não é nosso interesse produzir antinomias, mas defender a idéia de que,
entre as posturas teóricas supracitadas, há mais uma relação de
complementariedade (certamente hierarquizada) do que de mera oposição.
O trabalho está dividido em três partes. Na primeira, apresentamos uma análise
panorâmica do processo decisório nos diversos conselhos analisados. Pretendemos
identificar os atores que exercem maior influência no processo de tomada
decisão dentro dessas instituições. Em seguida, apresentamos um estudo dos
conselhos gestores a partir dos recursos. O objetivo, reiterando, é identificar
os recursos materiais, institucionais e subjetivos mobilizados pelos
conselheiros. Fazemos isso com base na crença de que se é verdade que a
"influência política" não pode ser diretamente derivada da posse de recursos, a
desigualdade de recursos entre os agentes pode ser um elemento central, ao
menos em alguns casos, para entender a desigualdade política. Por fim, na
terceira parte, reconhecemos que os procedimentos analíticos por nós adotados
revelam vários aspectos interessantes dos conselhos gestores, mas, ao mesmo
tempo, mantêm na sombra uma série de elementos que nos parecem fundamentais
para captar de forma plena as relações de poder que se cristalizam nessas
instituições. Nesse sentido, pretendemos nessa terceira parte apresentar alguns
desses elementos. No entanto, é preciso fazer aqui duas observações.
Primeiramente, os "dados" apresentados na terceira seção não fazem parte dos
objetivos inicialmente fixados pela pesquisa; não foram, portanto,
sistematicamente coletados. Em segundo lugar, pela sua própria natureza
(informações de caráter histórico ou coletadas por meio de observação direta de
reuniões e conferências), não se prestam ao tratamento quantitativo que
buscamos imprimir à maior parte de nossas das análises. É preciso, portanto,
que essas explicações adicionais sejam vistas como "prováveis" e que as
informações apresentadas sejam lidas como "indícios".
Poder e decisão2
A análise a respeito da influência dos grupos no interior dos conselhos3
focaliza quatro momentos do processo deliberativo, a saber: 1) apresentação
inicial de um determinado tema para a apreciação da plenária (quem introduz o
assunto, iniciando o debate); 2) estabelecimento da interlocução (quem institui
o debate); 3) encaminhamento de proposta sobre o tema em questão para a
deliberação (quem encaminha a proposta); e, por fim, 4) qual o resultado dessa
deliberação (aprovação ou não).
Entre os conselhos gestores de políticas sociais em Curitiba, identificamos, ao
menos, um ponto de convergência: há um claro predomínio dos gestores em todos
os momentos do processo decisório. A esse respeito, o Conselho Municipal de
Saúde de Curitiba (CMSC) é o que apresenta a mais bem equilibrada distribuição
de iniciativa política. Ainda assim, pode-se facilmente perceber que, embora em
minoria,4 os atores governamentais controlam a iniciativa do debate neste
conselho. Isso ocorre, em parte, devido ao papel central que o gestor tem
ocupado na mesa diretora, na permanente condição de presidente do conselho,
abrindo, freqüentemente, o debate referente aos assuntos em pauta nas reuniões.
Isso também revela o peso do conhecimento técnico na dinâmica da instituição,
que confere aos assessores técnicos um papel decisivo na disseminação da
informação a respeito das ações e dos programas governamentais, assim como dos
aspectos técnicos envolvidos em assuntos específicos de interesse do conselho.
Se comparado com os demais conselhos estudados, o Conselho Municipal de Saúde
de Curitiba pode ser considerado não apenas uma arena de debate, mas de
controvérsia pública. Praticamente, a metade (46% dos casos) dos assuntos da
agenda do conselho gerou debate e, aproximadamente, um em cada dez assuntos em
pauta (12,8%) suscitou contestação,5 tal como definida por nossa metodologia.
Sendo o usuário o segmento da sociedade civil que mais atua no momento do
debate e que mais gera controvérsia, identificamos a seguinte dinâmica na
reunião do conselho: 1) fazendo uso de recursos cognitivos e das prerrogativas
dos cargos que ocupam, os atores estatais lideram as discussões, apresentando
os assuntos da pauta, esclarecendo questões de ordem técnica, divulgando
informações governamentais, enfim, abrindo o debate; 2) os usuários apresentam-
se como interlocutores e, em certas circunstâncias, contrapõem (apoiados pelos
trabalhadores) seus argumentos aos dos gestores. Portanto, o usuário e o gestor
são segmentos ativos não apenas no sentido de participarem do debate, mas
também porque lhe conferem a qualidade de confrontação de idéias.
Ainda no caso do CMSC, o gestor encaminhou para a votação quase o mesmo número
de propostas (108) que os demais segmentos que têm assento no conselho juntos
(129). Embora esse número não seja tão expressivo quanto o da iniciativa no
campo do debate, ele consolida a liderança do gestor no processo decisório do
conselho. Da mesma forma, os dados referentes ao encaminhamento de propostas
deixam claro que o usuário é o segmento da sociedade civil organizada mais
ativo nas reuniões. Já os prestadores de serviço mantêm-se praticamente
invisíveis durante todo o processo, tanto no debate como no encaminhamento de
propostas para deliberação.
Quando consideramos apenas as deliberações em que houve controvérsia, seguidas
de encaminhamento de mais de uma proposta para votação, o gestor permanece
sendo o segmento com maior iniciativa no encaminhamento da proposta original
para votação (21 propostas), seguido pelo usuário (16 propostas). Nesse
contexto, o trabalhador torna-se mais ativo, aproximando-se do usuário (14
propostas). Por sua vez, o usuário destaca-se na qualidade de formulador de
propostas alternativas (19 propostas), superando o gestor (11 propostas).
Considerando a totalidade das propostas encaminhadas em contexto de
controvérsia, o usuário (35 propostas) supera o gestor (32 propostas). Percebe-
se, então, que o conflito político no âmbito deste conselho gera um cenário de
equilíbrio, tendo como novidade uma maior presença do trabalhador e o papel
contestador do usuário. Considerando, ainda, que o usuário apresentou um número
ligeiramente superior (11) de propostas de resolução ao CMSC do que o gestor
(9), a idéia que há um relativo equilíbrio de influência política no interior
dessa arena fica reforçada.
O que, no entanto, nos impede de realizar uma avaliação conclusiva a respeito
da influência de cada segmento no processo decisório do CMSC é o fato de que
praticamente todas as propostas encaminhadas foram aprovadas. Vale perguntar,
portanto, por que o conselho teria como regra aprovar as propostas apreciadas
em suas reuniões. Podemos, aqui, apenas especular, supondo, por exemplo, que
ele tende a estruturar sua agenda com temas e propostas que estejam em sintonia
com os interesses da maioria de seus membros, excluindo temas não consensuais.
Podemos igualmente supor que determinados setores consigam "impor", na agenda
do conselho, os temas que atendem apenas aos seus próprios interesses. Em ambos
os casos, a influência é exercida no processo de constituição de um "filtro", o
qual define quais as questões estarão presentes e quais serão excluídas do
processo decisório (Cobb e Ross, 1997). Sem o exame do processo de formação da
agenda, não é possível avaliar se e em que medida os interesses de cada
segmento foram atendidos mediante a inclusão e a exclusão de determinados
assuntos na pauta de deliberação do conselho.
A análise do processo decisório nesse conselho indica, portanto, que a
explicação baseada exclusivamente nos dados fornecidos pela observação da
própria deliberação é insuficiente para entendermos os procedimentos por meio
dos quais a influência política é exercida. Essa questão nos ocupará a partir
da próxima seção, na qual apresentaremos fatores externos ao funcionamento do
conselho que, a nosso ver, podem afetar a distribuição da participação e da
influência política no interior da instituição.
No caso do Conselho Municipal de Assistência Social de Curitiba (CMASC), o
predomínio do setor governamental tende ao monopólio da iniciativa política.
Este setor, por meio da Fundação de Assistência Social (FAS) e de outras
secretarias municipais presentes neste conselho, é responsável pelo
encaminhamento de 75,6% das propostas para deliberação (das 37 deliberações em
que foi possível identificar o ator), enquanto o setor não-governamental, com
predomínio dos prestadores, é responsável por apenas 24,4% das deliberações.
Além disso, o controle dos gestores é, nesse caso, exercido sem que qualquer
contestação ou, ao menos, debate seja suscitado. Pouquíssimas vezes as
intervenções iniciais sobre um determinado assunto dentro do conselho foram
seguidas por debate. Encontramos apenas dois casos em que um ator estabeleceu o
debate a partir da intervenção daquele que introduziu um determinado tema.
Nesses casos, a intervenção do segundo ator não teve qualquer sentido de
contestação da fala do ator inicial. Ou seja, a contestação é absolutamente
ausente dessa instituição durante a gestão analisada.
Se seguirmos uma indicação da abordagem decisional, essa preponderância
avassaladora dos atores governamentais não deve ser interpretada como exercício
de relação de poder. Isso porque, de acordo com essa perspectiva, só há relação
de poder onde houver um conflito aberto e observável entre duas preferências
antagônicas. Seguindo esse raciocínio, poderíamos, então, dizer que no processo
decisório do CMASC não há relações de poder. O predomínio do gestor seria menos
relevante do que o consenso que perpassa o processo decisório nesta instituição
e que expressaria, na verdade, uma concordância entre os diversos participantes
em torno dos principais temas ali discutidos. Assim, onde há consenso não há
poder. No entanto, conforme veremos na próxima seção, uma análise que se limite
a observar o processo decisório do CMASC não permite ver que o consenso que ali
predomina expressa, de fato, as relações de poder exercidas externa e
anteriormente ao processo decisório investigado. Isso indica que o pressuposto
teórico da abordagem decisional, segundo o qual as relações de poder só se
revelam no âmbito de processos decisórios concretos e conflituosos, é incapaz
de explicar todas as dimensões que constituem aquelas relações.
Conseqüentemente, o desdobramento metodológico desse pressuposto ' de que o
analista deve observar algumas decisões concretas e procurar identificar
aqueles que conseguem aprovar e/ou vetar propostas, mesmo contra a oposição dos
outros ' é, no mínimo, incompleto.
Recursos e influência política
Como vimos na introdução, a explicação da influência política a partir da posse
de recursos afirma que a capacidade de cada ator para atingir seus objetivos
políticos está direta e proporcionalmente associada aos recursos que ele
dispõe, recursos que, por sua vez, são atributos das posições sociais e
institucionais em que se encontram. Nesta seção, discutiremos a capacidade
explicativa desse modelo em relação ao Conselho Municipal de Assistência Social
de Curitiba e ao Conselho Municipal de Saúde de Curitiba. A análise dos
recursos é importante por duas razões. Primeiramente, porque os recursos,
sobretudo os de natureza institucional, permitem explicar o predomínio dos
gestores na "condução" do processo decisório. Em segundo lugar, e mais
importante, ela abre caminho para a análise dos constrangimentos estruturais
que definem a distribuição, sempre desigual, dos diversos recursos (materiais,
organizacionais, institucionais, simbólicos, políticos) que os atores
mobilizarão a fim de implementar suas estratégias dentro dos conselhos.
Como observação preliminar, podemos dizer que, se é verdade que nos conselhos
analisados há desigualdades na distribuição de recursos, essas desigualdades
são dispersas e não cumulativas (Fuks, Perissinotto e Ribeiro, 2003): o fato de
um segmento ter mais de um recurso não significa que ele tenha mais de todos os
outros recursos.6 Cabe, portanto, a questão: como relacionar tal dispersão de
recursos com o monótono predomínio dos gestores na condução do processo
decisório dentro do CMASC? Ou, situando a questão teórica que serve de fio
condutor para esta discussão, qual a relação entre recursos e influência no
processo decisório neste caso específico?
A princípio, a distribuição de recursos (de renda, de escolaridade,
organizacionais, de ativismo) poderia sugerir que a desigualdade não é um
atributo característico do CMASC. De fato, ainda que os recursos de renda e
escolaridade sejam mais concentrados, cabendo ao segmento dos gestores uma
posição superior e aos usuários o posto mais baixo, os outros tipos de recursos
são distribuídos de forma muito mais dispersa.
O associativismo, por exemplo, é um atributo igualmente distribuído por todos
os segmentos; a filiação partidária encontra-se presente quase que na mesma
proporção em todos os segmentos (em torno de 50%); o interesse por política,
ainda que variável, é alto em todos os segmentos (de 75% a 100%) e o
engajamento em atividades eleitorais revela um predomínio dos usuários, mas
também uma forte presença dos gestores e dos prestadores de serviço. Por fim,
em todos os segmentos existe um alto índice (nunca abaixo de 75%) de
competência política subjetiva e uma distribuição bastante desigual da
percepção dos segmentos quanto à sua capacidade para influenciar as decisões
dentro do conselho, surpreendendo o caso dos gestores, dos quais 50% afirmaram
não ter capacidade alguma de influenciá-las. Os prestadores destacam-se em
relação a esse ponto, sendo 75% os que acreditam ter uma grande capacidade de
influenciar as decisões dentro do CMASC.
No que diz respeito aos recursos organizacionais, as entidades do setor não-
governamental encontram-se, quase sempre, em situação precária; somente as
organizações representativas dos prestadores de serviço têm uma posição mais
relevante. As organizações desse segmento são também as que mais freqüentemente
buscam apoio político em outras instituições (como os poderes Executivo e
Legislativo) e são mais capazes de eleger representantes para cargos públicos
estratégicos. No entanto, há uma desigualdade contundente, pois o setor
governamental é francamente dominante em relação à sua infra-estrutura
organizacional.
Os gestores contam com todos os recursos materiais e financeiros que o Estado
põe à sua disposição. Além dos recursos materiais, os representantes dos
gestores contam com importantes recursos humanos, que se apresentam sob a forma
de apoio dado pelo pessoal técnico ' produção de pareceres que embasam as
decisões no interior do conselho, pareceres estes que os outros conselheiros
têm poucas condições de contestar. Vale lembrar, ainda, um outro aspecto
fundamental que muito contribui para entender o predomínio dos gestores, qual
seja, a inserção nos conselhos como parte de sua atividade profissional.
Enquanto nos outros segmentos a "vontade para agir" resulta de um engajamento
voluntário (ou, provavelmente, de um longo processo de socialização política) e
altamente custoso para a maioria de seus membros, no caso dos gestores à
"vontade para agir" é sobreposta à obrigação profissional.7 Nesse sentido, os
representantes do setor governamental conjugariam de maneira ótima recursos de
natureza institucional com uma "disposição para agir" que é fruto de sua
própria inserção no aparelho de Estado. Neste caso, enfim, haveria uma clara
coincidência entre poder e posição institucional.
Portanto, o papel de destaque que os representantes do governo têm na condução
do processo decisório dentro do CMASC pode ser explicado, de forma
satisfatória, em termos dos recursos de que cada segmento dispõe. Em especial,
a capacidade dos gestores de conduzir esse processo se explica pela sua posição
institucional e pelos recursos que essa posição lhe fornece. Tal desigualdade
contundente de recursos organizacionais, vale observar, parece ser uma
importante variável explicativa para a atuação dominante dos gestores no
processo decisório do CMASC, sobretudo se levarmos em consideração que, como
vimos acima, os demais recursos estão distribuídos de forma muito menos
concentrada.
O mesmo não pode ser dito em relação ao Conselho Municipal de Saúde de
Curitiba. Nesse caso, o comportamento de, ao menos, dois dos segmentos que
atuam no CMSC ' usuários e prestadores de serviço na área de saúde ' não se
explica de forma satisfatória pelos recursos organizacionais e socioeconômicos.
Os dados não poderiam ser mais persuasivos no sentido de apontar uma clara
hierarquia entre os segmentos quanto à posse de recursos. Em primeiro lugar,
com destaque, situa-se o gestor. É forçoso reconhecer que, no que se refere às
condições individuais e coletivas prévias, o gestor se sobressai enquanto
segmento que reúne as condições mais favoráveis para exercer influência
política nas reuniões do conselho. Além de dispor de recursos organizacionais
ilimitados, ele conta com o monopólio dos dois principais recursos distribuídos
no interior do próprio conselho: o de presidir o conselho e o de homologar suas
deliberações.
O segmento da sociedade civil que dispõe de maior volume de recursos é o
prestador, seguido pelo trabalhador. A fragilidade do usuário em relação à
posse de recursos tradicionais, tanto individuais como coletivos, impõe-lhe uma
condição de inequívoca inferioridade em relação aos demais segmentos. Quanto
aos recursos socioeconômicos de natureza individual,8 em especial a renda e a
escolaridade, os usuários também estão em franca desvantagem. Além disso, sua
inferioridade também pode ser observada em relação às organizações que atuam
nos conselhos.
Uma análise superficial dessa situação indicaria que a distribuição da
influência política neste conselho deveria seguir a seguinte ordem: gestor,
prestador, trabalhador e usuário. Quaisquer que sejam os critérios para
definirmos o peso relativo de cada tipo de recurso, essa hierarquia evidencia
os limites de uma explicação da influência política baseada exclusivamente na
posse de recursos.
Assim como no caso do CMASC, a participação dos gestores no Conselho Municipal
de Saúde de Curitiba é, adequadamente, explicada em termos dos recursos de que
esse segmento dispõe. A posição intermediária que o trabalhador ocupa em
relação à participação efetiva nas reuniões do CMSC também corresponde aos
meios de que dispõe em seu favor.
Mais difícil é explicar o "ativismo" dos usuários e, especialmente, a
passividade dos prestadores de serviços a partir da posse de recursos. A
realidade que nos revela o processo decisório do conselho em seus primeiros dez
anos9 estaria mais de acordo com o modelo que supõe haver uma simetria entre a
participação política e a posse de recursos, caso houvesse uma inversão entre
as posições do prestador e do usuário na distribuição de recursos.
Como, então, explicar a influência política do usuário no CMSC? Um dos motivos
pelos quais a explicação fundada na posse de recursos convencionais é limitada
e, no caso da análise em curso, incapaz de dar conta dos fenômenos investigados
deve-se à desconsideração de, ao menos, duas outras dimensões igualmente
potencializadoras da ação política: a primeira, mais subjetiva, diz respeito à
propensão dos conselheiros para o engajamento político; a segunda refere-se ao
padrão de ação política dos grupos. Devemos, portanto, levar em consideração
não apenas os recursos convencionais, como renda e escolaridade, no caso do
indivíduo, ou recursos materiais ou humanos, no caso das organizações. Recursos
de natureza menos tangível, mas, nem por isso, menos eficazes, indicando, por
exemplo, certa disposição para a participação política, são especialmente
relevantes e têm sido levados em consideração em estudos de cultura política
(Skocpol e Fiorina, 1999; Schlozman, Verba e Brady, 1999; Fuks, Perissinotto e
Ribeiro, 2003).
Para contemplar esses aspectos, levamos em consideração, neste artigo, a
presença e o peso de dois tipos de recursos não-convencionais. Primeiramente,
os recursos individuais de natureza subjetiva, que indicam, na forma de
comportamento ' passível de ser medida em termos de engajamento eleitoral,
associativismo e filiação partidária ' ou de "orientação subjetiva"
(competência política), a existência de uma disponibilidade do indivíduo para o
ativismo político. Consideramos também recursos coletivos de natureza objetiva,
embora menos visíveis do que os recursos financeiros e organizacionais, tais
como a rede de apoio político dos grupos organizados que atuam nos conselhos e
o padrão de interação política que estabelecem com instituições estatais no
encaminhamento de suas demandas.
O pertencimento a associações da sociedade civil e a filiação partidária
certamente estão associados à presença de certa motivação para a ação política
' além das habilidades políticas específicas adquiridas nessas experiências ',
constituindo-se, portanto, como um importante indicador da presença de condição
subjetiva favorável à ação política. Os usuários superam, de longe, os demais
segmentos quando se trata da filiação partidária. Apenas 14,3% dos usuários não
são filiados a nenhum partido, em comparação com os 71,4% dos trabalhadores e
com os 50% dos prestadores e dos gestores. A mesma tendência manifesta-se em
relação à preferência partidária. Já a filiação a associações da sociedade
civil é bem distribuída entre os segmentos.
A filiação do indivíduo a uma determinada associação ou partido político pode
assumir a forma de uma relação passiva ou mesmo puramente formal. Uma maneira
de compensar a limitação dessas variáveis quanto à sua capacidade de revelar a
intensidade da motivação para agir politicamente é por meio da informação a
respeito do envolvimento efetivo dos conselheiros em atividades políticas.
Uma das principais atividades dessa natureza é o engajamento eleitoral. Em
relação a esse tipo de atividade político-partidária, chama a atenção a força
(ativismo) dos usuários e a fraqueza (apatia) dos prestadores. Em quase todas
as atividades eleitorais exercidas durante a campanha para a prefeitura de
Curitiba no ano 2.000, a participação do usuário foi superior a 73%. Já os
prestadores não contam com a participação de mais de 25% de seus representantes
nas atividades de campanha eleitoral, exceto na defesa pública do candidato de
sua preferência.10
Assim como os fatores individuais, devemos também levar em consideração certas
condições objetivas que tendem a aumentar a capacidade de ação dos grupos que
atuam no conselho. Essas condições estão associadas à presença de recursos
coletivos não-convencionais, como a inserção dos grupos em redes de apoio
político, das quais participam atores políticos tradicionais, como os partidos
políticos, assim como instituições (igreja e universidade, por exemplo) e
diversas organizações da sociedade civil. Além disso, as organizações que
participam do conselho podem adquirir maior capacidade de ação política
mediante vínculos constituídos com atores estatais ou pela experiência
acumulada em certas práticas reiteradas, como o recurso ao poder Judiciário e a
participação contínua em arenas decisórias, incluindo o próprio conselho.
O tipo de ativismo dominante das organizações que compõem o CMSC varia de
acordo com o segmento em questão. Os prestadores de serviço têm uma atuação
voltada para o Executivo e o Legislativo. Assim, os representantes dos
hospitais de Curitiba (a maioria dos prestadores de serviço) estabelecem
contato e encaminham, com freqüência, as suas demandas ao governo municipal e
aos vereadores. Já as associações profissionais e os sindicatos de
trabalhadores (a maioria dos representantes dos trabalhadores) destacam-se
quando se trata de recorrer à esfera judicial. Os usuários, embora também façam
uso de outros meios, recorrem, com maior freqüência, a formas não
institucionais de ação política, tais como manifestação pública, passeata e
abaixo assinado.
Esse quadro parece indicar que cada segmento ocupa, preferencialmente, certos
nichos de ação política, possivelmente aqueles espaços mais adequados aos
recursos organizacionais de que dispõe. Além disso, as organizações tendem a
canalizar sua ação para aqueles atores estratégicos que fazem parte de sua rede
de apoio político ou para aqueles espaços institucionais mais permeáveis às
suas demandas. Isso pode ser verificado em termos do tipo de apoio predominante
recebido por cada segmento. Portanto, os segmentos contam com maior apoio
exatamente daqueles grupos e instituições a quem dirigem, preferencialmente, a
sua ação política.
Assim, os prestadores afirmam contar mais com o apoio do Legislativo e do
Executivo. Por outro lado, esse segmento indica, com pouquíssima freqüência,
ter o apoio de organizações da sociedade civil. Obviamente, as organizações da
sociedade civil constituem uma importante rede de apoio político para os
usuários. Estes identificaram as instituições religiosas, os sindicatos e as
universidades como os seus principais aliados na sociedade. Os trabalhadores
contam com um apoio ainda mais concentrado nas organizações da sociedade civil.
Esse conjunto de condições, incluindo tanto aquelas de ordem individual e de
caráter subjetivo como as que se referem às organizações e assumem uma
qualidade objetiva, revela os limites de uma explicação fundamentada na posse
de recursos convencionais. Assim, a militância partidária, que se reflete no
engajamento eleitoral, indica que a motivação para ação política pode estar
compensando a fragilidade dos usuários em relação a outros recursos
(organizacionais, de renda e de escolaridade). O apoio recebido por
organizações da sociedade civil e a prática associativa (especialmente, a de
bairro) também parecem compensar, em parte, a menor freqüência com que esse
segmento atua junto às instituições políticas.
Por último, mas não menos importante, devemos considerar o peso da
representação de cada segmento no conselho como um dos fatores que exercem
influência sobre seu comportamento político. Nesse caso, o usuário leva uma
grande vantagem, pois o CMSC, sendo paritário, é constituído por dezesseis
representantes dos usuários e dezesseis representantes dos demais segmentos.11
Mais difícil é explicar a situação do prestador. Sua inércia não é congruente
com a abundância de recursos de que dispõe. Conforme veremos a seguir, nesse
caso, o fato de o prestador reunir condições favoráveis para a ação política
não se traduz em uma ação efetiva. Isso significa que a posse de um determinado
tipo de recurso não implica a sua conversão em influência política. O conceito
central aqui é o de "disponibilidade", ou seja, se alguém dispõe de algum
recurso significa que ele pode, se assim o desejar, fazer uso desse recurso.
Podemos, nesse caso, supor que não haja interesse por parte dos prestadores em
fazer uso de seus recursos.
Sustentamos, nessa seção, o argumento de que uma explicação da influência
política baseada, exclusivamente, na posse de recursos convencionais é
limitada. Em nosso estudo, a evidência mais incisiva dessa limitação é o fato
de que a distribuição semelhante de recursos nos dois conselhos (CMASC e CMSC)
entre os diversos segmentos não resulta na semelhança do comportamento político
de, ao menos, dois dos segmentos (usuários e prestadores de serviço). O
ativismo dos usuários e a passividade dos prestadores de serviço no interior do
CMSC não podem ser explicados de forma tão direta pelos recursos
organizacionais e socioeconômicos que eles possuem.
Contexto e estrutura
Até o momento, tentamos explicar a participação e a influência política dos
conselheiros a partir de duas perspectivas: 1) centrada na atuação dos
conselheiros no processo decisório, tal como recomenda a abordagem decisional;
2) preocupada com as condições prévias à ação dos conselheiros, com ênfase na
posse de recursos, conforme indicação da abordagem posicional. Inovamos apenas
ao incluir um elenco de recursos não-convencionais individuais ' associados a
formas de engajamento político ' e coletivos ' em especial, a rede de apoio
político e os padrões de ação política.
No caso do Conselho Municipal de Saúde, a segunda perspectiva ofereceu uma
explicação plausível para a participação dos gestores e dos trabalhadores.
Notadamente, no caso do gestor, pode-se dizer que a sua preponderância no
processo decisório corresponde aos amplos recursos de que esse segmento dispõe.
No caso do usuário, o modelo baseado na posse de recursos revela-se limitado,
embora seja possível argumentar que uma versão ampliada deste possa identificar
o engajamento eleitoral, a filiação partidária e o associativismo '
responsáveis pela criação de condições subjetivas favoráveis à ação política '
como recursos não-convencionais, compensando a pouca disponibilidade de
recursos tradicionais e criando, portanto, um contexto propício para a sua
participação substantiva e influência nas reuniões do conselho.
No entanto, conforme já observado, a posse de recursos não é capaz de fornecer
uma explicação adequada para a participação política dos prestadores de serviço
no CMSC. O que o modelo fundado na posse de recursos deixa de considerar é que
a mera posse de recursos não se traduz, automaticamente, em participação
política. Em relação a esse aspecto, a abordagem decisional é esclarecedora:
somente o estudo de processos decisórios concretos pode revelar se e em que
medida os recursos de que dispõem os diversos atores envolvidos são convertidos
em influência política.
Possivelmente, no caso dos prestadores, o principal motivo desta discrepância
entre recursos e ação política é a falta de interesse em participar ativamente
no processo decisório. Além da posse de recursos, há de se levar em
consideração quais são os espaços públicos que um determinado ator elege como
arenas privilegiadas de ação política. Certamente, o usuário entende ser o CMSC
um espaço central de ação política, especialmente considerando a escassez de
canais institucionais abertos à participação política desse segmento. O gestor,
por obrigação e por interesse, tem que atuar e, mesmo, conduzir o conselho, uma
vez que: 1) ele é uma instância estatal aberta à participação da sociedade
civil; 2) o conselho é um espaço estratégico para o governo consolidar e
ampliar sua base de apoio na sociedade civil, tanto no sentido mais amplo da
busca de legitimidade como no sentido mais específico do apoio político e
eleitoral; 3) se ele não levar a sério a atuação no conselho, sua dinâmica e
suas deliberações podem fugir de seu controle e, portanto, envolver custos
políticos.
No caso do prestador, parece prevalecer o entendimento de que, ao contrário do
que ocorre no Conselho de Assistência Social e no Conselho da Criança e do
Adolescente, o CMSC não delibera, com freqüência, sobre assuntos de seu
interesse. Podemos supor, então, que o prestador perceba como altos os custos
da ação,12 tendo em vista a expectativa de um baixo "retorno". Além disso,
parece prevalecer entre os prestadores que atuam no CMSC o entendimento de que
este conselho não se constitui como uma arena relevante de tomada de decisão
política na área de saúde. Essa questão é central e está associada, de um lado,
às competências do conselho13 e, de outro, às modalidades e aos conteúdos de
suas deliberações.
Não podemos, portanto, estudar a influência política no interior de uma
determinada instituição pública sem levar em conta o contexto em que ela se
insere, incluindo, nesse caso, a seu peso no sistema mais amplo de arenas
públicas (Hilgartner e Bosk, 1988), assim como a percepção dos diversos atores
envolvidos a respeito da relevância desta instituição. Nesse sentido, a
quantidade e mesmo a qualidade da participação numa arena específica nem sempre
é um bom indicador da influência política real dos atores.
Porém, não é apenas o contexto institucional que conta. Sem levarmos em
consideração o contexto histórico da arena, não estaremos em condição de
avaliar o peso da participação de cada ator envolvido, assim como o padrão de
interação entre os grupos. O legado constituído pelas lutas e alianças, a
história prévia da área em questão, a forma pela qual o conselho foi instituído
(por exemplo, como fruto de uma longa mobilização de forças sociais ou a partir
da iniciativa do Estado), tudo isso define o "perfil" do conselho,
condicionando, de alguma forma, a influência dos grupos nessa arena.
Além disso, diversas variáveis locais (índice de associativismo, orientação
ideológica do governo local, força dos partidos e dos sindicatos de esquerda,
desenvolvimento socioeconômico da comunidade, cultura política predominante)
forçosamente afetam não só o desempenho como também o padrão de interação no
interior desse tipo de instituição. Assim, apesar da proliferação de
instituições do mesmo tipo por todo o Brasil, em função dos incentivos
institucionais e financeiros existentes a partir de 1988 (Arretche, 1999), os
conselhos municipais assumem formas distintas em função da realidade local em
que operam (Cortês, 1998).
Entre essas variáveis, uma é especialmente relevante no caso do CMASC ' seu
processo de gestação e consolidação. Basta observar que este processo contou,
no seu início, com a atuação efetiva de várias forças ligadas aos movimentos
populares e com instituições ligadas à esquerda. A reação do governo local, à
época capitaneado por Rafael Greca de Macedo (PDT), foi rápida e contundente,
visando a evitar qualquer influência significativa dos grupos de esquerda no
interior do Conselho. A conduta do governo pautou-se por tentar se aliar aos
representantes dos usuários, segmento composto majoritariamente por associações
de bairro, e aos prestadores de serviço, formados por entidades filantrópicas,
sempre com vistas a isolar o segmento dos trabalhadores do setor, inicialmente
composto por entidades críticas ao governo (Central Única dos Trabalhadores e
Conselho Regional de Serviço Social).
A primeira gestão do CMASC ainda contou com uma distribuição igualitária da
representação entre o setor não-governamental: três representantes dos
usuários, três dos prestadores e três dos trabalhadores. No entanto, a pressão
governamental contra as entidades críticas ao governo levou a uma reforma do
regimento que promoveu uma redução da representação dos trabalhadores, agora
composto apenas por um único membro, e o aumento, para quatro, da representação
dos usuários e dos prestadores de serviço. As seguidas derrotas e o controle
ostensivo do setor governamental sobre o Conselho desestimularam as entidades
de esquerda, levando-as a desistir de participar do conselho e consolidando,
assim, o controle oficial sobre a instituição.
Em segundo lugar, também como expressão dos esforços do governo e de seus
aliados para controlar o CMASC, vale lembrar a conferência, momento em que os
representantes não-governamentais são escolhidos. Segundo nossas observações, o
processo de escolha dos representantes não-governamentais foi amplamente
controlado pelo governo e seus aliados, consolidando-se, assim, um procedimento
que se iniciara desde os primeiros momentos de criação dessa instituição. As
forças críticas e oposicionistas foram afastadas do processo de eleição dos
representantes não-governamentais desde as primeiras conferências, sendo que na
Conferência observada por nós nenhuma chapa concorrente foi apresentada. O
controle sobre esse processo garantiu que somente representantes alinhados com
a visão governamental fossem conduzidos ao conselho, o que garantiu, por fim,
um processo decisório profundamente harmonioso. Não há contestação no interior
do CMASC porque todas as forças que poderiam contestar a orientação ali
predominante foram excluídas em momentos anteriores ao processo decisório.
A esse respeito, é interessante observar que, diferentemente da tradição
pluralista, para a qual a apatia de alguns grupos revelaria certa satisfação
com a própria condição, outros autores apontam para a possibilidade de se
interpretar tal passividade (ou abstenção) política como algo produzido por
relações de poder regulares, as quais, por meio da produção de derrotas
permanentes, incutiriam nos dominados a sensação de que não haveria nada a
fazer para mudar a situação em que se encontravam. Criar-se-ia, assim, uma
adaptação psicológica que produziria um sentimento de estar desprovido de poder
(sense of powerlessness), cuja perpetuação poderia levar os membros do grupo à
autodepreciação e ao fatalismo, gerando abstenção em vez de resistência
(Gaventa, 1980, pp. 16-18). Ainda que a situação do CMASC não tenha chegado a
esses extremos (em parte, devido ao curto período de tempo da experiência em
questão), o fato é que os representantes das forças oposicionistas dentro do
Conselho anteciparam que seriam, como ocorrera até então, sistematicamente
derrotados pelo governo e, por isso, optaram por se retirar dessa arena
decisória. Enfim, ainda que a situação vivida nesse conselho não tenha
produzido "passividade", já que se trata de grupos e instituições profundamente
engajados na luta social e política, a ação governamental conseguiu fazer como
que eles desistissem de atuar dentro do CMSAC.
Um outro fator que poderia contribuir para entender o processo de exclusão
produzido pelo funcionamento dessa instituição é o fato de alguns
representantes dos prestadores de serviço afirmarem insistentemente não ser
papel do CMASC discutir "política". Nesta visão de mundo, a "caridade" é uma
virtude e a política (sempre entendida como política partidária interessada),
um defeito. Esse tipo de visão seria "funcional" para as intenções do governo
de barrar a participação de forças oposicionistas (elementos ligados a CUT, ao
Partido dos Trabalhadores e ao CRESS), estigmatizadas como portadoras de
"interesses políticos" que não combinam com o espírito caritativo da
assistência social. A caridade seria, assim, uma espécie de "mito"
sistematicamente mobilizado pelos grupos dominantes com vistas a desqualificar
e excluir grupos que tenham alguma pretensão a fazer-lhes oposição,
consolidando, dessa forma, um "viés" das instituições em questão no momento de
pensar a política de assistência social.
Conclusão
Esse artigo tratou da questão da participação política em termos da capacidade
dos atores de influenciar o processo decisório. Inicialmente, avaliamos a
possibilidade de que o real exercício da influência política seja definido em
termos do resultado concreto do conflito político, indicado pelo sucesso de
determinados atores no processo decisório, independentemente da posição
institucional e, em conseqüência, dos recursos de que dispõem. A abordagem
decisional revelou-se limitada para explicar a influência política no interior
dos conselhos estudados quando percebemos, por meio de alguns indícios, que a
conduta dos atores no processo decisório e os resultados ali produzidos
poderiam estar sendo condicionados por fatores exteriores a esse processo.
Em seguida, consideramos a hipótese de que a posse de determinados recursos
explicaria a distribuição da participação política nos conselhos gestores de
políticas públicas em Curitiba. Nossas conclusões indicaram que os recursos são
condições necessárias, mas não suficientes para que haja participação e o
exercício efetivo da influência política, já que os atores com menos recursos
tinham uma atuação mais intensa e eficaz dentro dos conselhos do que outros que
possuíam uma quantidade maior de recursos de diversas naturezas.
Por fim, levamos em consideração os fatores que configuram os contextos
(interno e externo), nos quais os conselhos se inserem, e "estruturaram", em
alguma medida, os distintos padrões de ação e interação no interior dessas
instituições. A introdução desses fatores na análise permitiu, a nosso ver,
superar as limitações das abordagens que levam em conta apenas interações
observáveis no processo decisório ou os recursos possuídos pelos atores
políticos. Desse ponto de vista, pensar a influência política exclusivamente em
termos de recursos ou de interferência direta no processo decisório seria
reduzir a explicação de tal fenômeno a um formalismo incapaz de dar conta das
circunstâncias reais em que as arenas se estruturam e o processo decisório se
desdobra.
Nesse sentido, pensamos que a análise do contexto (interno e externo) como
elemento que afeta a conduta política dos atores dentro dos conselhos deve
levar em consideração cinco fatores: 1) existência de arenas alternativas; 2)
interferência do governo na eleição dos representantes não-governamentais; 3)
existência de valores e ethos específicos de cada policy domain; 4) natureza da
relação entre governo e sociedade civil na comunidade em análise, relação esta
que sofre influência de inúmeros fatores, tais como o grau de associativismo
existente na sociedade e a orientação ideológica do poder Executivo; e, por
fim, 5) contexto interno dos conselhos, isto é, seu desenho institucional,
definido, em grande parte, pela história de sua institucionalização e pela
trajetória das forças sociais que nele atuaram.
Afirmamos no início deste artigo que nosso objetivo não era defender uma
relação de exclusão, mas de complementaridade, entre as diferentes abordagens
sobre o poder. Uma análise das relações de poder em instituições de
participação ampliada deve, portanto, a nosso ver, levar em consideração tanto
as dimensões estruturais, que modelam as capacidades e as preferências dos
atores, como as interações concretas entre eles, as quais, por seu caráter
acentuadamente estratégico, trazem consigo sempre resultados que não podem ser
simplesmente derivados dos aspectos estruturais que constrangem a ação.
As conseqüências dessa postura analítica para a teoria democrática são bastante
relevantes. Seguindo-as, podemos perceber que a ampliação da participação
política ' objetivo universal de qualquer teoria democrática mais ousada ' não
comporta soluções puramente institucionais, como parece sugerir, por exemplo,
Hannah Arendt. Não basta que instituições participativas estejam à disposição
para que a ampliação da participação ocorra. Os constrangimentos
socioeconômicos, simbólicos e políticos podem funcionar como um poderoso
obstáculo à participação ou até mesmo aprofundar a desigualdade política. Por
outro lado, é verdade que a simples existência dessas instituições, ela própria
o resultado da luta política, permitiu a incorporação de determinados atores
políticos no processo de tomada de decisão pública, antes monopolizado pela
burocracia estatal, incorporação esta que pode produzir efeitos não antecipados
por uma análise puramente estrutural.