Os outros alemães de Sérgio: etnografia e povos indígenas em Caminhos e
fronteiras
Introdução
Amplamente celebrado por suas contribuições ao pensamento social e à história
do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) continua sendo, cerca de meio
século após a publicação de suas obras mais conhecidas,1 referência obrigatória
para a compreensão da história e sociedade brasileiras. Exatamente por isso,
seus livros têm sido objeto de estudo e crítica desde o lançamento do primeiro
deles, Raízes do Brasil, em 1936. Notadamente a partir de 1982, ano de sua
morte, vários autores têm se dedicado a estudar sua obra, seja pelo ponto de
vista da história, seja pelo da sociologia, seja ainda pelo da crítica
literária.2
Em meio a esta vasta fortuna crítica,3 há um conjunto de estudos que procura
entender a influência de alguns pensadores alemães nas idéias do historiador
paulista. Com efeito, segundo Dias (1985, p. 10), a inspiração deste autor para
o estudo da mudança e da transformação históricas pode ser atribuída, em parte,
ao seu fascínio pelo método do historismo alemão, de inspiração rankeana.4 Além
de Ranke, podemos encontrar na obra de Sérgio Buarque referências marcantes a
outros pensadores germânicos: em Raízes do Brasil, há fortes traços da
sociologia weberiana e da filosofia de Dilthey;5 em Visão do paraíso, nota-se a
influência do historiador Ernst Curtius;6 em Monções e Caminhos e fronteiras,
como aponta Laura de Mello e Souza (1995), observamos um uso acentuado da
antropologia em sua vertente alemã.
É precisamente sobre este terceiro conjunto de autores que versa o presente
trabalho. Seguindo a indicação de Souza (1995), procuraremos situar com
precisão de que modo Sérgio Buarque utilizou a antropologia alemã em Caminhos e
fronteiras. Em outras palavras, investigaremos o uso das etnografias produzidas
pelos viajantescientistas alemães da segunda metade do século XIX, bem como a
inserção de questões e conceitos caros à etnologia germânica oitocentista na
obra analisada.
Para tal, será preciso compreender este livro a partir de dois focos: o
contexto em que foi escrito e, ao mesmo tempo, a maneira com que Caminhos e
fronteiras se relaciona com a obra anterior de Sérgio Buarque ' Monções ' e com
a antropologia contemporânea.
O ponto central deste texto, então, será entender como a etnologia alemã foi
incorporada em Caminhos e fronteiras. Como compreender o lugar das várias
citações de Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt, Theodor Koch-
Grünberg e Fritz Krause? O que teria Sérgio Buarque identificado nestes
etnógrafos do século XIX para usá-los com freqüência numa pesquisa sobre São
Paulo colonial?
Raízes de São Paulo
Comecemos do começo, ou melhor, do contexto.Caminhos e fronteiras foi lançado
no ano de 1957, quando Sérgio Buarque de Holanda havia acabado de voltar da
Itália, onde passara dois anos lecionando história e literatura brasileiras. O
livro fora escrito ao longo de pouco menos de uma década: em 1949 foi publicado
nos Anais do Museu Paulista o artigo "Índios e mamelucos na expansão paulista"
(Holanda, 1949), que mais tarde formaria a primeira parte do livro em questão.
A segunda e terceira partes da obra vieram a público no decorrer dos primeiros
anos da década de 1950, como artigos de jornal ou como conferências.7
O tema central da obra é o sertanismo paulista no período colonial. Utilizando
fontes tão diferentes quanto relatos, cartas e crônicas do século XVI, XVII e
XVIII, textos de missionários, diários de viagem, documentos oficiais da
colônia e etnografias do século XIX, Sérgio Buarque de Holanda compôs um estudo
sobre o modo de vida do bandeirante, dando atenção específica às técnicas da
vida material que possibilitaram as entradas para o sertão. Nesta obra, vista
como "a passagem da sociologia' para a história', do ensaísmo' para a
"pesquisa'" na trajetória de seu autor (Novais, 2001, p. 7), o historiador
enfoca o cotidiano e a vida material dos sertanistas de modo a ressaltar o
lugar dos povos indígenas na colonização do interior da América Portuguesa.
Caminhos e fronteiras não se estrutura numa narrativa linear e cronológica
sobre como e quando os eventos ocorreram, mas apresenta uma descrição analítica
do movimento de entrada em direção ao sertão. O livro divide-se em três partes:
na primeira, "Índios e mamalucos", o autor aborda as situações surgidas do
contato entre índios e colonizadores, e explica como, em muitas dessas
situações, foi necessário ao europeu adotar costumes e técnicas próprias do
estilo de vida indígena. Na segunda e terceira partes, respectivamente
denominadas "Técnicas rurais" e "O fio e a teia", Sérgio Buarque trata da lenta
recuperação do legado indígena e do legado europeu, após o contato inicial.
Como veremos, no meio rural as tradições e as técnicas indígenas se
sobrepuseram às adventícias, e no meio urbano foram os costumes e acondutas
portuguesas que dominaram.
É importante ressaltar que, antes de Caminhos e fronteiras, o interesse de
Sérgio Buarque pela questão da colonização do interior da América Portuguesa já
havia dado origem a um livro singular. Com efeito, em 1945 o historiador
publicaraMonções, um estudo das viagens fluviais entre Porto Feliz e Cuiabá
feitas durante os séculos XVII e XVIII, com finalidade de capturar índios para
substituir o braço escravo e, a partir do início do século XVIII, em busca de
ouro. A ligação deste primeiro livro com Caminhos e fronteiras é notória: se,
de um lado, o primeiro trata de um processo histórico posterior àquele estudado
no segundo, de outro, ele inaugura um conjunto de trabalhos que reflete o
interesse e o esforço de pesquisa do historiador sobre o tema da colonização do
interior como parte da formação histórica do país ' interesse este que perdurou
por cerca de três décadas, pelo menos.8
A publicação deste primeiro livro sobre as entradas coloniais para o sertão é
de grande relevância para a análise que aqui se faz. Além de já conter uma
série de elementos que indicam a influência da literatura etnológica alemã,
esta obra serviu, nas palavras do próprio autor, como estímulo para sua "volta
espiritual, bem como física, a São Paulo" (Holanda apud Graham, 1982, p. 7).
Vejamos isso mais de perto.
Entre os anos de 1921 e 1945, Sergio Buarque viveu no Rio de Janeiro,
excetuando-se um período de seis meses no Espírito Santo, em 1926, e outro de
um ano e meio na Alemanha, entre 1929 e 1930. Na então Capital Federal,
trabalhou como jornalista, tradutor, crítico literário e professor de história
e literatura brasileiras. Em 1946, entretanto, o historiador deixou o Rio de
Janeiro em direção a São Paulo, cidade em que fixaria residência até o fim de
sua vida. A mudança foi motivada pela obtenção do cargo de diretor do Museu
Paulista.
Uma vez de volta a São Paulo, as atividades do historiador se dividiram,
durante os anos de escrita de Caminhos e fronteiras, entre a pesquisa, a
direção do Museu Paulista e as aulas de história econômica do Brasil por ele
ministradas na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A partir de 1956,
começou a lecionar também na Faculdade de Filosofia da USP, na qual foi
contratado como titular da cátedra de História do Brasil em 1958, com a tese
Visão do paraíso (cf. Holanda, 2000).
Ao circular pelo Museu Paulista, pela Escola de Sociologia e Política e pelo
ambiente acadêmico das ciências humanas em São Paulo nas décadas de 1940 e
1950, Sérgio Buarque presenciou e participou da formação e da consolidação das
ciências sociais como disciplinas no Brasil. Nesse processo, foi fundamental a
presença de professores e pesquisadores estrangeiros nas instituições de ensino
e pesquisa paulistas, que trouxeram consigo temas, métodos e conceitos que
formariam a base dos estudos em ciências sociais no período.9
Entre os temas então estudados, o problema do contato cultural e da mudança
social estavam na ordem do dia, especialmente via estudos de comunidade e
estudos etnológicos.10 Não por coincidência, esses problemas estão também
presentes em Caminhos e fronteiras: o estudo parte justamente do contato entre
portugueses e índios e da incorporação de costumes indígenas por parte dos
sertanistas para entender o processo das bandeiras. Em outras palavras, podemos
afirmar que, quando Sérgio Buarque trata dos elementos introduzidos pelos
europeus e de como foram usados no sertanismo, ou quando escreve sobre a
adaptação dos costumes indígenas por parte dos adventícios neste mesmo processo
histórico, ele está de fato introduzindo, num estudo historiográfico, m
problema então caro às ciências sociais: como o contato entre culturas
distintas as afeta e as transforma? O que resulta ou quais as conseqüências de
um encontro cultural? A resposta dada pelo historiador paulista a tais erguntas
será evidenciada mais adiante. Por ora, interessa destacar que Sérgio Buarque
estava inserido num contexto acadêmico específico, em que a presença de
pesquisadores estrangeiros e o tema da mudança cultural eram marcantes.
Conforme Peixoto (2001), professores e pesquisadores franceses e norte-
americanos estiveram no Brasil entre 1930 e 1960 e tiveram modos de atuação
diferente. Enquanto os franceses vieram, em sua maioria, ligados a uma missão e
com objetivo de dar aulas na então recém-criada Faculdade de Filosofia da USP,
os norte-americanos, que vieram em maior número, não se instalaram em apenas
uma instituição e tinham como objetivo fazer pesquisa no Brasil. No caso dos
alemães, entre aqueles cientistas que vieram ao país entre o fim do século XIX
e as primeiras décadas do XX, havia vários etnógrafos interessados em fazer
pesquisa entre grupos indígenas.11 Nesse sentido, é relevante notar que, do
ponto de vista institucional, foi justamente no Museu Paulista que esta
vertente alemã da antropologia teve mais espaço e se desenvolveu com mais
força.
Logo após sua nomeação como diretor, em 1946, Sérgio Buarque contratou dois
etnólogos de ascendência alemã para trabalhar na recém-fundada Seção de
Etnologia do museu. Eram eles Herbert Baldus (1899-1970), que seria chefe desta
seção, e Harald Schultz (1909-1965), seu assistente. As atividades
desenvolvidas por eles entre 1946 e 1956 serviram para fortalecer e incentivar
as pesquisas e a produção em antropologia no useu, especialmente na área de
estudos indígenas.
Desse modo, podemos citar, em primeiro lugar, as viagens a campo feitas por
Baldus e especialmente Schultz para fazer pesquisa e coletar material para
coleções etnográficas.12 Além disso, Baldus também supervisionava estudantes
estrangeiros interessados em fazer pesquisa etnográfica no país, como no caso
do alemão Hans Becher. Com o intuito de ampliar e promover a produção
etnológica feita no Brasil, o chefe da seção de etnologia participava de
congressos internacionais, ajudou a organizar o XXXI Congresso Internacional de
Americanistas naquele museu em 1954, e mantinha contato freqüente com etnólogos
estrangeiros (em sua maioria, de língua germânica). Esse contato era feito por
cartas, em que Baldus trocava informações sobre bibliografia, pesquisa e
congressos, enviava e recebia originais sobre etnologia etc. Nessas cartas
revela-se a ligação por vezes pessoal de Baldus com alguns colegas de profissão
na Alemanha, como seu antigo professor Richard Thurnwald e o etnólogo Fritz
Krause.13
No que se refere à publicação de estudos etnológicos, a entrada de Sérgio
Buarque no museu e a contratação que ele fez de Herbert Baldus levaram à
retomada da publicação da Revista do Museu Paulista, extinta em 1938.
Diferentemente da série anterior,14 a então nova série tinha como tema
principal a antropologia. Com efeito, a maioria dos artigos lá publicados a
partir do primeiro número, de 1947, versava sobre etnologia indígena, sendo que
muitos dos autores publicados eram de origem alemã. Nomes como Max Schmidt,
Theodor Koch-Grünberg, Paul Ehrenreich e Fritz Krause apareceram nos doze
primeiros volumes da nova coleção, em traduções de Herbert Baldus, Egon Schaden
e Sérgio Buarque de Holanda, que assinou a versão em português de dois artigos
de Fritz Krause (Krause, 1952 a e b).15
Além desses dois artigos da Revista do Museu Paulista, Sérgio Buarque também
traduziu um terceiro texto alemão de etnologia, ao qual devemos prestar
especial atenção. Trata-se do texto do padre Wilhelm Schmidt (1868-1954),
Kulturkreise und Kulturschichten in Südamerika", publicado em 1942 pela Editora
Nacional sob o título Ethnologia sul-americana (Schmidt, 1942). Originalmente
um artigo do volume de 1913 da revista Zeitschrift für Ethnologie, este livro
propõe uma análise das culturas indígenas sul-americanas baseada no estudo de
sua vida econômica e material. Seu objetivo seria descobrir, mediante a
observação de objetos e técnicas comuns a mais de um grupo, quais povos teriam
entrado em contato entre si, identificando assim as rotas de migração os povos
dentro do continente. As conexões históricas seriam a explicação de fatos como
a transmissão de mitos e da mudança cultural entre os grupos indígenas. Em
última análise, as semelhanças e as diferenças entre os povos se deveriam
também a essas ligações.16
A experiência de Sérgio Buarque no Museu Paulista é, assim, central para
entendermos o uso que ele fez, em suas obras, da etnologia alemã. Podemos
afirmar que, precisamente nos anos em que escrevia seu livro sobre as bandeiras
paulistas, o historiador teve contato direto e freqüente com etnólogos ' como
Herbert Baldus ' que faziam a ligação entre a etnologia alemã e o contexto de
pesquisa nesta área no Brasil. Do mesmo modo, naquele contexto Sérgio Buarque
teve acesso a livros e artigos que compunham o conjunto do conhecimento
etnológico alemão. Interessa agora, portanto, entender como esse conhecimento
foi utilizado pelo autor.
Contato, mudança e cultura material
Como já afirmado, no livro Monções encontramos alguns indícios de que Sergio
Buarque embasava-se no conhecimento da etnologia alemã para estudar a
colonização do interior da América Portuguesa. Apesar de não estarem presentes
de modo tão freqüente e claro como em Caminhos em fronteiras, trechos deste
livro fazem menção a esta vertente dos estudos antropológicos, seja com
citações, seja elegendo um problema ' o contato cultural ' como foco de
trabalho. Naveguemos estas monções, então.
No terceiro capítulo desta obra, chamado "Ouro", Sérgio Buarque trata da
descoberta deste metal precioso e das dificuldades encontradas em se obtê-lo.
Assim, ele explica que a tal descoberta motivou a ida de muitos exploradores
para a região de Cuiabá, no início do século XVIII, e que a jornada entre Porto
Feliz e a região das minas desafiava o explorador com vários tipos de
empecilhos. A necessidade de levar e de conservar mantimentos durante a
navegação, por exemplo, era um problema que só foi resolvido aos poucos com a
introdução da lavoura e a criação de animais nos locais em que os colonizadores
se instalavam (Holanda, 1990, p. 54). Além disso, foi necessário o
desenvolvimento de embarcações que suportassem a grande quantidade de homens e
objetos transportados, bem como a regulação do fluxo fluvial que muito aumentou
nas primeiras décadas do setecentos ( Idem, p. 57).
Nessas jornadas, a grande quantidade de mosquitos tornava necessário o uso de
algum tecido para proteção de tripulantes e passageiros das canoas, e uma das
soluções encontradas foi o uso de um objeto de pano chamado "mosquiteiro".
Depois de fazer esta afirmação, o autor especula sobre a origem do objeto:
O próprio mosquiteiro não parece ter sido utilizado, ou sequer
conhecido, nesses primeiros tempos. Tudo tenderia a indicar que, ao
surgir mais tarde com as monções, foi elemento adventício,
transplantação, talvez, do tradicional mosquiteiro da Europa ( Idem,
p. 61).
Em seguida, aponta seu uso entre os índios:
Depoimentos bem mais recentes [que as crônicas coloniais] ainda
registram seu emprego fora da Amazônia, entre diferentes grupos
indígenas, como os Yucaré e os Guató: nada prova, em todo o caso, que
nestes últimos exemplos não seja resultado do contato com os brancos.
[ ] Que tal instrumento ocorresse entre os Omagua e tribos vizinhas,
quando ainda estremes de qualquer comércio com europeus, parece mais
do que presumível. E se a difusão cingiu-se especialmente a essa área
restrita, foi sem dúvida pela dificuldade, entre povos tão primitivos
e isolados, de se obterem tecidos próprios (Idem, p. 61).
Sérgio Buarque não chega a uma conclusão sobre a proveniência do mosquiteiro.
Contudo, sua preocupação em tratar detalhadamente da origem deste objeto é um
bom exemplo de como o historiador não só conhecia mas também utilizava alguns
dos pressupostos da teoria difusionista que, ao menos durante o início do
século XX, fizera escola na antropologia.
Evidentemente, o autor de Monções não tem por objetivo chegar a uma história
totalizante da humanidade, nem de procurar as conexões istóricas entre os
grupos indígenas da América do Sul. Porém, a determinação da origem indígena ou
adventícia dos objetos e dos costumes dos sertanistas ' uma constante nos
textos de Sérgio Buarque ' sugere que ele ao menos fazia uso do método do
difusionismo, ainda que com um objetivo diferente.
Do mesmo modo, quando trata dos grupos indígenas encontrados pelos exploradores
durante as viagens fluviais, Sérgio Buarque cita os Guaicuru e explora a origem
do uso do cavalo entre eles. Afirma, primeiramente, que este grupo, quando
encontrado pela primeira vez pelos colonos, já estava de posse de uma série de
objetos europeus, como equipamentos de montaria e armas, além de usar cavalos.
Sobre o uso desses animais, supõe que tenha sido introduzido pelos espanhóis:
"Essa aquisição deu-se, certamente, nos momentos iniciais da colonização e foi
tão rápida que, em geral, as mais antigas reminiscências deixadas no
conquistador, por semelhantes tribos, já os apresentam inseparáveis de seus
cavalos" ( Idem, p. 94). Em seguida, traça hipóteses sobre como tal aquisição
teria ocorrido:
Embora não se conheçam as etapas históricas dessa aquisição tudo
inclina a crer que ela não terá exigido da parte do Guaicuru nenhuma
readaptação violenta a novas normas de existência. Em outras
palavras, sua vida não precisou suportar nenhuma transformação
verdadeiramente radical, para acomodar-se ao uso do eqüino ( Idem, p.
95).
Percebe-se nesta passagem, novamente, uma preocupação não apenas em estabelecer
a origem do uso do cavalo entre estes índios, mas também a atenção ao passo
anterior: definir quais objetos e técnicas faziam parte, originalmente, de que
cultura, e mostrar como se deu a aquisição por parte da outra. Em outras
palavras, Sérgio Buarque buscava entender a mudança cultural pela aquisição e
troca de objetos e técnicas, em conformidade com os métodos da teoria
difusionista.
Contudo, não é apenas ao difusionismo que Sérgio Buarque se reporta. O
historiador indica conhecer correntes teóricas que se opunham às idéias
difusionistas, e chega a oferecer exemplos de fatos que poderiam render
argumentos a uma ou outra. Assim, quando trata, logo no início de Monções, das
embarcações indígenas usadas pelos europeus, afirma que o aparecimento de um
tipo específico destas, feita de couro ' a pelota
[ ] parece oferecer argumento aos etnólogos empenhados no combate às
teorias exageradamente difusionistas. Em seu notável estudo sobre a
navegação entre os povos indígenas de nosso continente, Georg
Friederici, referindo-se à pelota e ao seu correspondente norte-
americano, o bullboat ' cuja disseminação geográfica teria coincidido
inicialmente com a do bisão ', não hesitou em apontar esse fato como
belo exemplo em favor da tese de que a similitude do meio natural ou
das condições de vida tende a gerar identidade ou similitude de
costumes (Idem, p. 25).
Neste trecho, o autor faz alusão à corrente teórica desenvolvida pelo etnólogo
Adolf Bastian (1826-1905) na Alemanha, na segunda metade do século XIX, que
ficou conhecida como teoria das idéias elementares ou Elementargedanken. Para
Bastian, existe uma unidade psíquica da humanidade que produz nos homens em
todos os lugares idéias elementares semelhantes, isto é, todos os povos do
mundo têm essas idéias elementares graças a uma lei psíquica geral. Estímulos
externos diferentes provocariam reações diferentes, e daí surgiriam as
diferenças (e também similaridades) entre os povos, divididos no que Bastian
chamou de "áreas culturais" (Lowie, 1946, p. 50).
No trecho citado de Monções, Sérgio Buarque atribui ao alemão Georg Friederici
o intento de dar argumentos à teoria de Bastian. Ainda que o historiador
brasileiro não tenha citado literalmente o etnólogo berlinense, é válido supor
que conhecesse bem suas idéias, uma vez que dentre os etnólogos alemães que são
citados tanto em Monções quanto em Caminhos e fronteiras, alguns foram
discípulos de Bastian ou adeptos de suas idéias.17
Isto não significa que o autor transitasse e se utilizasse igualmente dos
pressupostos e das idéias dessas duas teorias. Em seus textos há, como vimos,
uma tendência a procurar a origem cultural dos costumes identificados, o que
fazia parte do método difusionista. O que importa ressaltar, com a afirmação de
que Sérgio Buarque estava familiarizado com mais de uma teoria da etnologia
alemã, é que de fato o conjunto de idéias antropológicas formadas por essas
correntes serviu de base para o historiador formular sua própria maneira de
entender o processo estudado. Em outras palavras, mesmo não tendo aderido a uma
ou outra teoria, seu conhecimento de ambas permitiu que usasse um conceito
específico, central para ambas, que serviu de fio condutor de sua análise.
Estamos nos referindo ao conceito de cultura material. Tanto em Monções como em
Caminhos e fronteiras, para levar a cabo sua investigação, Sérgio Buarque fez
do estudo da cultura material o caminho para a compreensão da dinâmica do
contato entre colonizadores e indígenas no Novo Mundo e dos processos sociais
daí decorrentes.
Nesse sentido, Ilana Blaj apontou que
[ ] o notável historiador não se aproxima dos múltiplos elementos da
vida e da cultura material como mera ilustração, o que implicaria no
educionismo, nem com perguntas feitas aprioristicamente, o que
transformaria as produções e reproduções da vida concreta em simples
corroboração. Ao contrário, deixa que os elementos da cultura
material falem por si e, desta forma, revelem as múltiplas dimensões
da vida real, as dimensões do social, do mental e do cotidiano (Blaj,
1998, p. 30).
Com efeito, Sérgio Buarque não foi o único intelectual de sua geração a tratar
do tema da cultura material.18 Contudo, a maneira específica com que o
historiador usa este conceito o aproxima dos etnólogos alemães que ele mesmo
cita em seus trabalhos, uma vez que a cultura material era o ponto central de
atenção da etnologia alemã no século XIX, em suas duas principais vertentes.
Os etnólogos alemães citados por Sérgio Buarque tinham como arcabouço teórico
justamente as idéias destas duas correntes. Acreditavase, então, que o conjunto
de objetos e técnicas da vida material servia para caracterizar uma cultura e o
modo de vida de um povo. Os aspectos da vida social como o parentesco, a
religião e os mitos eram também estudados, mas a cultura material servia de
instrumento privilegiado para se averiguar o estágio de desenvolvimento de um
povo e as influências que este possivelmente recebera do contato com outro.
No mesmo sentido, as coleções etnográficas recolhidas por estes etnólogos em
suas expedições pela América do Sul eram formadas exatamente por objetos da
cultura material dos grupos indígenas visitados.19 Tais objetos seriam expostos
em museus, estudados e analisados para caracterizar uma cultura ou determinar o
grau de destruição da mesma, resultado do contato com a civilização européia.
Para estes etnólogos, o contato entre duas culturas diferentes resultaria na
aniquilação daquela considerada mais fraca, e a cultura material era a
expressão mais clara dos resultados deste contato.
Sérgio Buarque de Holanda também utilizou o tema da vida material em seus
estudos, mas o desfecho de seus trabalhos é diferente da conclusão a que
chegavam os alemães.
Nos exemplos indicados do livro Monções, fica claro como o historiador se
reportava a uma técnica da escola difusionista, isto é, buscar as origens dos
objetos da cultura material. Em Caminhos e fronteiras, como veremos a seguir, o
uso desta técnica é ainda mais evidente: o autor escolhe alguns aspectos da
vida material dos sertanistas e vai mostrando a origem ' freqüentemente
indígena ' de tais aspectos, mediante os dados que recolhe tanto de relatos de
cronistas como da etnologia alemã, com a finalidade de mostrar a maneira pela
qual a herança indígena foi fundamental para o sucesso da empresa colonizadora.
Tratemos deste livro, então.
Logo na introdução da obra o historiador paulista refere-se à questão da
cultura material e justifica a atenção dada, no decorrer de seu estudo, a este
aspecto da vida dos sertanistas:
A acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui,
em preferências particulares do autor por esses aspectos, mas em sua
convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se
mostraram muito mais acessíveis a manifestações divergentes da
tradição européia do que, por exemplo, no que se refere às
instituições e sobretudo à vida social e familiar em que procuraram
reter, tanto quanto possível, seu legado ancestral (Holanda, 2001,
p.12).
Esta justificativa sugere que a escolha do autor tenha se fundado em uma razão
objetiva, isto é, a maneira como a interação entre europeus e índios se
processou. Contudo, como pretendemos mostrar, tal escolha também se pautou no
conhecimento da literatura etnológica alemã, que elegeu, no século XIX, a
cultura material como chave analítica para entender a história e o
desenvolvimento dos povos.
Na primeira parte de Caminhos e fronteiras encontra-se a maioria das
referências e citações desta literatura. Isto não se dá por acaso: os nove
capítulos que a compõem tratam das situações de contato entre brancos e índios,
e este era um tema ao qual os etnólogos alemães deram atenção específica.
É a divisão do livro a primeira indicação desta escolha pela cultura material.
A parte "Índios e mamalucos" é composta de capítulos sobre os seguintes temas:
os caminhos e as maneiras de caminhar pelo sertão; a obtenção de água nas
jornadas; a cera e o mel; os hábitos alimentares indígenas; caça e pesca;
remédios naturais; doenças e medicina; o uso dos cavalos; e o início das
viagens fluviais. A segunda parte, "Técnicas rurais", comporta capítulos sobre
a agricultura em geral e os utensílios nela empregados: os trigais; o milho; o
monjolo; e as ferramentas de trabalho rural. A terceira parte, "O Fio e a
teia", compõe-se de um capítulo sobre as técnicas de tecelagem européias; um
sobre a indústria têxtil caseira; e finalmente um último sobre as redes e as
redeiras.
Em cada um desses capítulos, Sérgio Buarque vai seguindo as pistas deixadas por
suas fontes ' especialmente relatos de cronistas e obras de etnologia ' e assim
recompõe as situações vividas pelos sertanistas e a incorporação de traços da
vida material dos índios por parte dos portugueses.
Na primeira parte do primeiro capítulo, chamada "Veredas de Pé Posto", o autor
explica que, durante os primeiros tempos da colonização, os portugueses usavam
as veredas e os atalhos feitos pelos índios para se guiar pelo sertão. Eles
eram feitos de diversas maneiras, por exemplo através de seqüências de galhos
cortados à mão "espaço a espaço", como indicou von Martius. Quando não era
possível usar esse sistema de cortar galhos de árvores, os índios se guiavam
pelo sol e pelas estrelas
[ ] com tal habilidade que, segundo referem crônicas quinhentistas,
dois tupinambás degredados da Bahia para o Rio de Janeiro e levados
por mar conseguiram, depois de fugir, tornar por terra ao seu país,
caminhando mais de trezentas léguas através de mataria e
parcialidades hostis. Durante a noite marcavam as horas, em alguns
lugares, pela observação das estrelas e constelações. Durante o dia,
pela sombra que o polegar deixa na mão ( Idem, p. 20).
Este trecho permite explorar a questão de como Sérgio Buarque retratou os
índios, isto é, que imagem deles transmitiu em seu trabalho. Nota-se aí uma
acentuação das qualidades sensoriais dos nativos da terra: eles saberiam
sobreviver em meio à natureza graças à sua capacidade de observá-la e tirar
dela os subsídios e os recursos materiais para sua existência.
Isso ocorria, afirma o historiador, porque os índios tiveram de se acostumar,
desde criança, "a uma natureza cheia de caprichos" ( Idem, p. 19), e a terem de
ser móveis e flexíveis. Por isso, sabiam bem caçar, pescar, rastrear abelhas e
ver no escuro. Além dessas habilidades sensoriais, os índios teriam também,
segundo Sérgio Buarque, um aguçado senso de orientação. Sabiam como descrever a
geografia do país, os rios e seus afluentes e a localização de outras tribos
indígenas, assim como podiam desenhar mapas na areia da praia.
Percebe-se, assim, que o historiador paulista atribuía aos índios uma
capacidade de observação e percepção da natureza. Ora, de acordo com Eduardo
Viveiros de Castro, "o tema das três raças' na formação da nacionalidade
brasileira tende a atribuir a cada uma delas o predomínio de uma faculdade: aos
índios a percepção, aos africanos o sentimento, aos europeus a razão [ ]"
(2002, p. 187). No caso de Sérgio Buarque, essa tendência pode ser confirmada
no trecho citado de Caminhos e fronteiras.
Do mesmo modo, o historiador sustenta que
Em lugar de ser simples escravo de suas aptidões naturais, dos cinco
sentidos, que tinha excepcionalmente apurados, o índio tornava-se,
assim, o senhor de um admirável instrumento para triunfar sobre as
condições mais penosas e hostis. Podia disciplinar metodicamente
muitas daquelas aptidões; criar e recriar mil e um recursos adequados
a cada situação nova, sujeitar-se, onde fossem necessários, a
comportamentos que lhe garantissem meios de subsistência (Holanda,
2001, p. 22).
Especialmente na primeira parte de seu livro, Sérgio Buarque constrói a idéia
de que os índios no Novo Mundo seriam perspicazes, dotados de aguçado sentido e
percepção no trato com a natureza. Por isso sabiam tão bem caminhar pelas
matas, encontrar água no sertão, se guiar pelas estrelas, ouvir e observar de
longe a aproximação do inimigo. Vale notar que as capacidades atribuídas aos
índios se relacionam quase sempre às necessidades e imposições da vida
material. Não poderia ser diferente, pois o caminho narrativo trilhado pelo
historiador estava baseado exatamente numa recomposição da vida material dos
sertanistas.
Assim como no caso da orientação geográfica, o conhecimento nativo foi crucial
para a sobrevivência do europeu no que se refere à obtenção de água e
alimentos. Por isso, Sérgio Buarque dedica quatro capítulos desta primeira
parte do livro à descrição da busca por mantimentos. Começa explicando os meios
pelos quais os índios descobriam onde havia água no sertão, e afirma: "Em
regra, esses meios decorrem da extraordinária capacidade de observação da
natureza, peculiar a esses homens e inatingível para o civilizado" ( Idem, p.
37). Para o historiador, foi a intimidade com a natureza que permitiu aos
índios e, conseqüentemente, também aos colonizadores, a sobrevivência no meio.
Da mesma maneira que em Monções, neste segundo livro o autor continua lançando
mão do recurso de buscar a origem de um costume para explicar como se deu a
interação entre as culturas nativas e a adventícia no Novo Mundo. Por exemplo,
ao discutir a obtenção de mel, usado na alimentação, Sérgio Buarque questiona a
origem desta técnica. Segundo o autor, antes do contato com os europeus os
índios já conheciam alguns meios de obter mel, mas "é pouco verossímil que sem
esse mesmo contato chegassem nossos índios ao sistema relativamente avançado de
apicultura que supõe o recurso a cortiços escolhidos e convenientemente
adaptados pelo homem" ( Idem, p. 47).
O objetivo do autor, neste livro, é entender o contato entre as culturas
indígenas e européia, bem como as mudanças desencadeadas por tal contato.
Entretanto, se há no texto uma ênfase na explicação de como os costumes
indígenas foram incorporados pelos europeus, também há trechos em que o autor
se dedica a analisar como os índios adotaram técnicas européias. A passagem
acima citada, sobre a apicultura, é um bom exemplo disso. Diferentemente da
interpretação dos etnólogos alemães, que previam a destruição dos povos
indígenas por causa do encontro com os brancos, para Sérgio Buarque o contato
cultural é uma via de mão dupla. Nesse sentido, ele chega a sustentar que a
"solidariedade cultural logo se estabeleceu aqui entre o invasor e a raça
subjugada" ( Idem, p. 69).
Ironicamente, o uso do adjetivo "subjugada" na frase acima denuncia os limites
de tal solidariedade. Não se trata de defender que Sérgio Buarque tenha
apontado uma convivência pacífica e ausente de conflitos entre índios e
colonizadores, mas evidenciar que o historiador se preocupou em mostrar as
contribuições indígenas para a elaboração de um modo de vida condizente com as
necessidades dos sertanistas.
Esta interação entre técnicas indígenas e costumes europeus fica clara quando o
autor descreve os remédios usados durante as bandeiras. Segundo o historiador,
os jesuítas foram os primeiros a utilizar o conhecimento indígena sobre a fauna
e a flora para fazer remédios, depois também os colonizadores europeus os
usaram para fazer o que ficou conhecido por "remédio de paulistas". A medicina
sertaneja foi criada a partir do conhecimento indígena e do conhecimento do
velho mundo: ocorreram "processos de racionalização e assimilação a que o
europeu sujeitou muitos de tais elementos [da tradição indígena], dando-lhes
novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com os seus
sentimentos e seus padrões de conduta tradicionais" ( Idem, p. 83).
Na segunda parte de Caminhos e fronteiras o resultado do contato entre índios e
colonizadores é visto a partir dos costumes do mundo rural. Sérgio Buarque
refere-se primeiramente às técnicas de agricultura, afirmando que o contato com
os nativos da terra no período pós-conquista fez com que os europeus
aprendessem as técnicas "primitivas" de trabalhar com o solo e as adotassem. Os
europeus haviam trazido instrumentos como o arado, a foice, a enxada e o
machado, mas tais ferramentas não alteraram o modo de lidar com a terra. O
motivo disso, sustenta o autor, foi que "as próprias condições que, no Brasil,
impediam o desenvolvimento do uma lavoura estável vieram a fornecer, por outro
lado, a persistência dos processos rotineiros herdados, quase sem mudança, do
indígena" ( Idem, p. 205).
Por isso, afirma, a resistência das técnicas rurais indígenas é uma
característica marcante do período do sertanismo, que pode ser exemplificada
pela construção das canoas usadas nas monções. Também foi marcante a adoção, na
dieta do sertanista, de alimentos tipicamente indígenas, como a mandioca, o
milho e o feijão. Os métodos usados na produção desses alimentos eram ainda, de
modo geral, os mesmos usados pelos índios.
A conclusão a que Sérgio Buarque chega é de que o europeu adotou produtos e
métodos indígenas desconhecidos e não os modificou, apenas aperfeiçoou aqueles
por eles já conhecidos ( Idem, p. 169). O mesmo não ocorreu no domínio da vida
urbana, em que as técnicas introduzidas pelos adventícios se sobrepuseram aos
costumes locais.
A vida nas vilas é o tema da terceira e última parte do livro, "O Fio e a
teia", dedicada ao exame das técnicas têxteis. Sérgio Buarque explica que, por
volta de 1550, começou-se a se falar da necessidade de tecelões, pois no Brasil
havia muito algodão e os índios precisavam de roupas. Essa necessidade de
roupas foi uma iniciativa dos jesuítas, e com base nas cartas escritas por eles
Sérgio Buarque estuda a implantação da indústria têxtil no país. Em São Paulo,
essa atividade se iniciou nos primeiros anos do século XVII, mas não
representava um papel preponderante se comparada às atividades de agricultura.
Os ofícios de fiação e tecelagem eram desempenhados por índios e mamelucos,
pois tal atividade era vista como indigna. Contudo, usavam-se técnicas
européias na produção têxtil ( Idem, p. 229). A fabricação de redes constituiu
a única exceção neste domínio, uma vez que esse objeto de origem local,
imediatamente adotado pelo europeu, continuou sendo feito de acordo com as
técnicas indígenas.
Uma constatação de Sérgio Buarque sobre o uso do tear indígena pelos
portugueses é um bom exemplo do argumento que foi repetido no decorrer de todo
o livro. O autor aponta que "a adoção generalizada do tear indígena ilustra bem
a atitude constante nos portugueses durante a era da colonização, em face dos
elementos que desde cedo acolheram da civilização material dos primitivos
habitantes da terra" ( Idem, p. 250).
De fato, a adoção dos aspectos da cultura material indígena por parte dos
colonizadores constitui ponto central do livro. Como exposto anteriormente,
Sérgio Buarque escolhe uma série de elementos e explica como se deu a adoção
destes pelos adventícios. Analisa também os objetos e as técnicas do velho
mundo que se mantiveram inalterados durante o período das entradas para o
sertão. Nos dois casos, a ênfase do autor é nestes objetos e técnicas: sua
origem, seu uso, sua aplicação.
Assim como os etnólogos alemães por ele citados, o historiador usa exatamente o
conceito de cultura material para compreender como se constituía a vida dos
povos. No caso dos alemães, tratava-se dos povos indígenas, no caso de Sérgio
Buarque, dos sertanistas. Ademais, como faziam os alemães, o historiador
utilizou os objetos e as técnicas da vida material como chave analítica para
entender o contato entre os grupos indígenas e os europeus.
Contudo, há uma diferença fundamental no resultado da análise feita pelos
etnólogos alemães e aquela empreitada por Sérgio Buarque. Nesse sentido, Laura
de Mello e Souza observou que, em Monções e Caminhos e fronteiras, seu autor
fez um estudo "minucioso das técnicas e práticas da vida cotidiana ' cuja
inspiração veio da etnologia de Koch-Grünberg, Nordenskiold, Friederici, mas
produziu resultados metodológicos originais" (Souza, 1995, p. 10).
Ora, se a inspiração que a historiadora menciona se reflete na escolha da
cultura material como ponto de partida para entender o processo das bandeiras,
o resultado original está na visão que Sérgio Buarque de Holanda tem dos
efeitos do contato entre índios e brancos. Para os alemães este contato
resultaria, cedo ou tarde, na aniquilação dos índios ' o contato cultural
teria, para eles, um efeito destrutivo. O historiador paulista, entretanto,
apresenta interpretação diferente desse mesmo processo. Se os índios deixariam
de existir graças à miscigenação com os luso-brasileiros, que os transformaria
em mamelucos, este fato pode ser entendido de modo positivo: do encontro entre
portugueses e índios nasceu o sertanista, e com ele a possibilidade da
colonização de novos territórios. Para nosso autor, em oposição ao que previam
os cientistas alemães, o contato cultural teve efeito construtivo.
Um lugar para a etnografia
Mas por que o historiador paulista escolheu os alemães ' ou melhor, por que
estes alemães, afinal? Para responder, precisamos ter em vista todo o material
documental e bibliográfico usado por Sergio Buarque para compor seus estudos.
As fontes documentais usadas pelo historiador são diversas: relatos coloniais '
tais como memoriais, crônicas e cartas dos séculos XVI, XVII e XVIII, incluindo
aí textos de missionários ', e registros oficiais do governo da colônia sobre
as cidades da rota do ouro. Ao lado desses documentos, o autor faz referência a
trabalhos de outros estudiosos da história do Brasil, como Capistrano de Abreu,
Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr., Paulo Prado e Caio Prado Jr. Além disso, há
várias referências à etnologia alemã do século XIX e início do XX, como já
referido.
Dentre tais documentos e livros, dois conjuntos de textos se destacam pelo uso
diferenciado que o autor faz deles: os relatos coloniais e os livros de
etnologia. Sérgio Buarque usa tais fontes quando se refere aos grupos
indígenas, isto é, ele as usa como fontes de dados sobre a vida dos índios no
Brasil. Contudo, o autor dá mais ênfase aos etnólogos que aos autores do
período colonial, utilizando os primeiros largamente como fonte de informação,
além de se pautar em seus conceitos e métodos, como já discutido. O motivo para
isso reside numa diferença fundamental entre esses dois tipos de fonte,
diferença esta que diz respeito à natureza mesma desses textos.
Os relatos coloniais tinham como objetivo descrever o Novo Mundo para leitores
europeus. Muitas vezes esses leitores faziam parte da aristocracia que
comandava a metrópole, e o intento dos cronistas poderia ser convencer seus
superiores de uma tarefa cumprida ou a se cumprir, relatar suas experiências
nas novas terras etc. Acima de tudo, o olhar desses escritores estava embasado
em noções de humanidade, verdade, bem e mal próprias do período moderno. Assim,
a descrição da vida e dos costumes indígenas estava fortemente atrelada a
convicções católicas sobre o homem e o mundo ' o que resultou, para dar alguns
exemplos, nas idéias de que os índios não tinham "nem fé, nem lei e nem rei" e
que possuíam uma "alma inconstante".20
O registro dos etnógrafos citados por Sérgio Buarque passa por outra
perspectiva. Treinados em universidades alemãs, esses cientistas vieram à
América do Sul buscar dados e informações entre algumas sociedades indígenas
pois estavam preocupados em entender questões, postas para a ciência daquele
período, sobre as diferenças e as similaridades entre os grupos humanos, de
maneira geral, assim como sobre o modo de vida específico dos grupos visitados.
Para Florestan Fernandes, as preocupações e as contribuições dos etnólogos
estrangeiros que estiveram no Brasil a partir de meados do século XIX
[ ] criavam modelos de trabalho altamente apreciáveis nalguns pontos:
valorização da pesquisa de campo, importância atribuída à descrição
sistemática da realidade observada pelo sujeitoinvestigador [ ],
constituição de coleções etnográficas e análise comparativa de
situações tribais diferentes (Fernandes, 1958, p. 31).
Esta diferença entre autores do período colonial e etnólogos foi fundamental
para Sérgio Buarque. Interessado que estava em entender como os grupos
indígenas participaram do processo de ocupação do interior da colônia, o
historiador teve de se pautar nos primeiros estudos que traziam pesquisa
sistemática entre os povos indígenas no Brasil. Não bastava citar as
informações, muitas vezes exotizantes, de missionários ou cronistas ' era
preciso recorrer às obras que primeiro se debruçaram, a partir de preocupações
científicas, com profundidade e, em alguns casos, exclusividade na questão dos
hábitos, das práticas e dos modos de vida indígena no Brasil.
Brasil em movimento
Em entrevista concedida a Richard Graham, Sergio Buarque explicou os motivos
que o teriam levado a escrever o livro Monções:
Eu precisava submeter um trabalho num concurso internacional. Poderia
ser poesia, ficção, qualquer coisa. Decidi apresentar alguma coisa
sobre história. Já havia começado a escrever alguns artigos no gênero
Casa-grande & senzala, mas de cabeça para baixo. Este livro faz
com que o Brasil pareça estático, dominado pelo açúcar, voltado para
o Atlântico, parado. Eu queria algo mais dinâmico, voltado para as
minas, para o interior. Brasil em movimento (Holanda apud Graham,
1982, p. 11).
De fato, em Monções o autor apresenta ao leitor um Brasil dinâmico, em
movimento, de certa forma oposto ao retrato freyreano no país. Contudo, além de
se opor à interpretação de Gilberto Freyre sobre o Brasil, em suas obras sobre
a expansão para o oeste Sérgio Buarque logrou também se contrapor à visão da
historiografia paulista da primeira metade do século XX.
Os historiadores Affonso Taunay e Alfredo Ellis Jr., que entre as décadas de
1920 e 1940 publicaram uma série de livros e artigos sobre o bandeirismo,
sustentavam uma visão heróica dos bandeirantes paulistas e diminuíam a
importância dos índios no processo de ocupação do interior da colônia. Esta
visão mitificada do bandeirante herói foi forjada exatamente nas primeiras
décadas do século XX, pois neste período o Estado de São Paulo começou a
apresentar um vigoroso crescimento econômico, graças à exportação do café
produzido nas fazendas do interior. Esse desenvolvimento econômico gerou um
impacto na elite paulista, que logo encontrou na figura do bandeirante herói a
origem histórica do progresso de seu Estado:
Para esta elite, ser paulista no final do século XIX e primeiras
décadas do século XX é encontrar nos "paulistas primevos" do século
XVI e nos bandeirantes do século XVII a imagem original e a
predestinação que justifica o sucesso e o lugar privilegiado no
presente (Oliveira, 1994, p. 16).
Assim, tinham grande receptividade obras como as de Alfredo Ellis Jr., que
procuravam mostrar, por meio de "uma complexa teoria do papel do cruzamento
étnico" (J. Monteiro, 2002, p. 237), como havia se constituído em São Paulo uma
"raça de gigantes". Do mesmo modo, Taunay estabelecia uma ligação contínua
entre passado e presente identificando o paulista "atual" com os bandeirantes
do século XVII que, sozinhos e graças à sua grandeza, conseguiram desbravar os
sertões do país.
As obras de Sérgio Buarque sobre o mesmo processo contêm uma visão bastante
diferente sobre os supostos heróis bandeirantes. Como vimos, para este
historiador o sucesso das bandeiras e das monções só foi possível graças à
adoção do conhecimento e das técnicas de vida indígenas, pois os sertanistas,
por si sós, não saberiam como enfrentar as dificuldades impostas pelo meio.
Além disso, Sérgio Buarque não vê, no andeirante, um herói: "Em vez de
glorificar os bandeirantes, eu os descrevo como traficantes de escravos
ocupados, dia após dia, em ganhar dinheiro [ ]. Eles não tinham a intenção de
fundar um império" (Holanda apud Graham, 1982, p. 13). Pode-se dizer, portanto,
que Monções e Caminhos e fronteiras superam a historiografia gigantista de
Taunay e Ellis Jr.
Ainda nesse sentido, vale a pena recordar alguns fatos da trajetória de Sérgio
Buarque: as suas obras sobre as bandeiras e monções foram escritas exatamente
no período intermediário entre sua entrada na direção do Museu Paulista (1946)
e a obtenção da cátedra de História da Civilização Brasileira na USP (1959).
Ironicamente, quem ocupava estas posições antes de Sérgio Buarque, nas duas
instituições, eram respectivamente Affonso Taunay e Alfredo Ellis Jr.! Este
fato é simbólico da relação que se estabeleceu entre as obras desses três
historiadores: Sérgio Buarque os substituiu, institucionalmente, em dois dos
espaços privilegiados de produção do saber histórico em São Paulo. Ao mesmo
tempo, suas obras suplantaram a interpretação desses autores sobre a história
paulista.
A inovação de Sérgio Buarque está em que ele deu aos índios um lugar decisivo
na história das bandeiras. Isso só foi possível, do ponto de vista da
construção dos argumentos, porque ele buscou precisamente em uma literatura
voltada para as questões indígenas, isto é, na etnologia, os dados que lhe
permitiram descrever como o modo de vida indígena foi fundamental para o
sucesso do empreendimento português. O uso da etnologia, portanto, foi o que
permitiu ao autor olhar para os grupos indígenas como partícipes da história.
Notas
1 Referimo-nos aqui ao conjunto dos livros Raízes do Brasil, Monções, Caminhos
e fronteiras e Visão do paraíso, publicados pela primeira vez, respectivamente,
em 1936, 1945, 1957 e 1959.
2 Entre os mais importantes intérpretes da obra de Sérgio Buarque, podemos
citar Antonio Candido (1989 e 1998), Maria Odila Leite S. Dias (1985), Antonio
Arnoni Prado (1992, 1996 e 1998) e Robert Wegner (2000).
3 A esse respeito, ver Galvão (2000).
4 Sobre isso, cf. texto de Sérgio Buarque de Holanda sobre o historiador alemão
Leopold von Ranke (Holanda, 1979).
5 As influências destes dois pensadores no livro citado foram estudadas
respectivamente por Pedro Monteiro (1999) e Marcus Carvalho (1997).
6 Cf. Vainfas (1998) bem como o prefácio à segunda edição de Visão do paraíso
(Holanda, 2000).
7 Quanto à primeira parte do livro, vale destacar que há apenas uma diferença
entre o texto do artigo e aquele publicado em 1957: o primeiro tinha o título
"Índios e mamelucos na expansão paulista", e o segundo recebeu uma pequena
modificação, intitulando-se apenas "Índios e mamalucos". Já as partes dois e
três do livro sofreram modificações antes da publicação da obra pela editora
José Olympio (cf. Holanda, 2001, pp. 11-14).
8 Cf. Holanda (1990, pp. 9-12).
9 Um estudo alentado do processo de consolidação das ciências sociais no Brasil
pode ser encontrado em Miceli (1995 e 2001). Sobre este tema, e mais
especificamente sobre a antropologia, conferir ainda Corrêa (1987, 1988 e 2003)
e Peirano (1999). Sobre a sociologia e a etnologia no Brasil, cf. o texto
clássico de Florestan Fernandes (1958).
10 Como apontou Florestan Fernandes, o estudo sobre mudança cultural era feito
em quatro unidades diferentes: os grupos indígenas, as culturas afro-
brasileiras, as culturas campesinas e as culturas transplantadas pelos
imigrantes (Fernandes, 1958, p. 39). No caso dos grupos indígenas, podemos
citar, como um dos primeiros a sugerir o estudo da mudança cultural, o etnólogo
Herbert Baldus, em seu Ensaios de etnologia brasileira (cf. Baldus, 1937); e
como estudiosos representativos desta vertente no período de 1940 a 1960,
Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira.
11 Entre 1880 e 1910 vieram ao Brasil os etnólogos Karl von den Steinen (1855-
1929), cujas expedições ao Xingu foram consideradas as primeiras pesquisas
antropológicas xinguanas (cf. Coelho, 1993); Paul Ehrenreich (1855-1914), que
esteve entre os Botocudos do Rio Doce, entre os Karajá do Araguaia e também no
Xingu; Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que esteve no Alto Xingu e depois na
região do Norte Amazônico; Max Schmidt (1874-1950), que pesquisou no Xingu,
Mato Grosso e região do Chaco; e Fritz Krause (1881-1963), que esteve entre os
Karajá do Araguaia. Todos eles são citados por Sérgio Buarque em seu Caminhos e
fronteiras. Em 1903 chegou ao país o então jovem Curt (Nimuendaju) Unkel (1883-
1945), cujas pesquisas entre os índios no Brasil, especialmente os do grupo Jê,
abririam uma nova fase dos estudos etnológicos no país. Finalmente, em 1921,
chegou Herbert Baldus (1899-1970) ' sobre a trajetória deste etnólogo no
Brasil, cf. Passador (2002).
12 Sobre as coleções etnográficas do Museu Paulista, cf. Hartmann e Damy
(1986).
13 Sobre este conjunto de cartas, cf. Françozo (2004, pp. 51-53).
14 Sobre a primeira série da revista, bem como sobre a história do Museu
Paulista, cf. Schwarcz (1993, pp. 78-83).
15 Além destes, publicaram nesta revista Herbert Baldus, Harald Schultz, Alfred
Métraux, Curt Nimuendaju, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão. Os estudos de
comunidade, importante vertente da antropologia no período, também apareceram
em artigos de Donald Pierson, Charles Wagley e Thales de Azevedo.
16 Segundo Robert Lowie, os difusionistas alemães ' dos quais Wilhelm Schmidt
foi um dos mais importantes ' viam "a humanidade como um todo conectado e
trataram de combinar os fatos antropológicos com os arqueológicos", de modo a
reconstruir a história humana em sua totalidade (Lowie, 1946, p. 228).
17 Karl von den Steinen foi, dentre os etnólogos alemães que vieram à América
do Sul entre a segunda metade do século XIX e o início do XX, aquele que
sofrera mais forte e direta influência de Bastian. A partir de um encontro
acidental entre os dois na Polinésia em 1880, von den Steinen se interessou
pela etnologia e começou a realizar viagens exploratórias em vários lugares do
mundo (cf. Schaden, 1956).
18 Ainda que o tenham feito de modo diferente, podemos citar Gilberto Freyre
(2000) e Caio Prado Jr. (2000), em cujos estudos a cultura e a vida material
têm lugar relevante.
19 Uma listagem das coleções etnográficas de material coletado no Brasil entre
1650 e 1955 pode ser encontrada em Dorta (1992), incluindo-se aí aquelas
formadas por von den Steinen, Koch-Grünberg e Fritz Krause. Sobre as expedições
e as coleções etnográficas de viajantes alemães na região amazônica, vale a
pena conferir o belo catálogo Deutsche am Amazonas: Forscher oder Abenteurer?
Expeditionen in Brasilien 1800 bis 1914 (2002), especialmente os capítulos
sobre Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg. Sobre as expedições e
coleções de von den Steinen, ver, ainda, Coelho (1993).
20 O primeiro exemplo vem de Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado descritivo
do Brasil em 1587. Uma boa análise sobre este cronista, bem como sobre o
problema da falta de "fé, lei e rei" entre os índios, pode ser encontrado em
John Monteiro (2001, pp. 12-35). O segundo exemplo é do Padre Vieira, e serviu
de título a um belo estudo de Eduardo Viveiros de Castro sobre as cartas de
missionários do século XVI na América Portuguesa (cf. Viveiros de Castro,
2002).