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BrBRHUHu0102-69092007000100011

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National varietyBr
Year2007
SourceScielo

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Os outros alemães de Sérgio: etnografia e povos indígenas em Caminhos e fronteiras

Introdução Amplamente celebrado por suas contribuições ao pensamento social e à história do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) continua sendo, cerca de meio século após a publicação de suas obras mais conhecidas,1 referência obrigatória para a compreensão da história e sociedade brasileiras. Exatamente por isso, seus livros têm sido objeto de estudo e crítica desde o lançamento do primeiro deles, Raízes do Brasil, em 1936. Notadamente a partir de 1982, ano de sua morte, vários autores têm se dedicado a estudar sua obra, seja pelo ponto de vista da história, seja pelo da sociologia, seja ainda pelo da crítica literária.2 Em meio a esta vasta fortuna crítica,3 um conjunto de estudos que procura entender a influência de alguns pensadores alemães nas idéias do historiador paulista. Com efeito, segundo Dias (1985, p. 10), a inspiração deste autor para o estudo da mudança e da transformação históricas pode ser atribuída, em parte, ao seu fascínio pelo método do historismo alemão, de inspiração rankeana.4 Além de Ranke, podemos encontrar na obra de Sérgio Buarque referências marcantes a outros pensadores germânicos: em Raízes do Brasil, fortes traços da sociologia weberiana e da filosofia de Dilthey;5 em Visão do paraíso, nota-se a influência do historiador Ernst Curtius;6 em Monções e Caminhos e fronteiras, como aponta Laura de Mello e Souza (1995), observamos um uso acentuado da antropologia em sua vertente alemã.

É precisamente sobre este terceiro conjunto de autores que versa o presente trabalho. Seguindo a indicação de Souza (1995), procuraremos situar com precisão de que modo Sérgio Buarque utilizou a antropologia alemã em Caminhos e fronteiras. Em outras palavras, investigaremos o uso das etnografias produzidas pelos viajantescientistas alemães da segunda metade do século XIX, bem como a inserção de questões e conceitos caros à etnologia germânica oitocentista na obra analisada.

Para tal, será preciso compreender este livro a partir de dois focos: o contexto em que foi escrito e, ao mesmo tempo, a maneira com que Caminhos e fronteiras se relaciona com a obra anterior de Sérgio Buarque ' Monções ' e com a antropologia contemporânea.

O ponto central deste texto, então, será entender como a etnologia alemã foi incorporada em Caminhos e fronteiras. Como compreender o lugar das várias citações de Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt, Theodor Koch- Grünberg e Fritz Krause? O que teria Sérgio Buarque identificado nestes etnógrafos do século XIX para usá-los com freqüência numa pesquisa sobre São Paulo colonial?

Raízes de São Paulo Comecemos do começo, ou melhor, do contexto.Caminhos e fronteiras foi lançado no ano de 1957, quando Sérgio Buarque de Holanda havia acabado de voltar da Itália, onde passara dois anos lecionando história e literatura brasileiras. O livro fora escrito ao longo de pouco menos de uma década: em 1949 foi publicado nos Anais do Museu Paulista o artigo "Índios e mamelucos na expansão paulista" (Holanda, 1949), que mais tarde formaria a primeira parte do livro em questão.

A segunda e terceira partes da obra vieram a público no decorrer dos primeiros anos da década de 1950, como artigos de jornal ou como conferências.7 O tema central da obra é o sertanismo paulista no período colonial. Utilizando fontes tão diferentes quanto relatos, cartas e crônicas do século XVI, XVII e XVIII, textos de missionários, diários de viagem, documentos oficiais da colônia e etnografias do século XIX, Sérgio Buarque de Holanda compôs um estudo sobre o modo de vida do bandeirante, dando atenção específica às técnicas da vida material que possibilitaram as entradas para o sertão. Nesta obra, vista como "a passagem da ‘sociologia' para a ‘história', do ‘ensaísmo' para a "‘pesquisa'" na trajetória de seu autor (Novais, 2001, p. 7), o historiador enfoca o cotidiano e a vida material dos sertanistas de modo a ressaltar o lugar dos povos indígenas na colonização do interior da América Portuguesa.

Caminhos e fronteiras não se estrutura numa narrativa linear e cronológica sobre como e quando os eventos ocorreram, mas apresenta uma descrição analítica do movimento de entrada em direção ao sertão. O livro divide-se em três partes: na primeira, "Índios e mamalucos", o autor aborda as situações surgidas do contato entre índios e colonizadores, e explica como, em muitas dessas situações, foi necessário ao europeu adotar costumes e técnicas próprias do estilo de vida indígena. Na segunda e terceira partes, respectivamente denominadas "Técnicas rurais" e "O fio e a teia", Sérgio Buarque trata da lenta recuperação do legado indígena e do legado europeu, após o contato inicial.

Como veremos, no meio rural as tradições e as técnicas indígenas se sobrepuseram às adventícias, e no meio urbano foram os costumes e acondutas portuguesas que dominaram.

É importante ressaltar que, antes de Caminhos e fronteiras, o interesse de Sérgio Buarque pela questão da colonização do interior da América Portuguesa havia dado origem a um livro singular. Com efeito, em 1945 o historiador publicaraMonções, um estudo das viagens fluviais entre Porto Feliz e Cuiabá feitas durante os séculos XVII e XVIII, com finalidade de capturar índios para substituir o braço escravo e, a partir do início do século XVIII, em busca de ouro. A ligação deste primeiro livro com Caminhos e fronteiras é notória: se, de um lado, o primeiro trata de um processo histórico posterior àquele estudado no segundo, de outro, ele inaugura um conjunto de trabalhos que reflete o interesse e o esforço de pesquisa do historiador sobre o tema da colonização do interior como parte da formação histórica do país ' interesse este que perdurou por cerca de três décadas, pelo menos.8 A publicação deste primeiro livro sobre as entradas coloniais para o sertão é de grande relevância para a análise que aqui se faz. Além de conter uma série de elementos que indicam a influência da literatura etnológica alemã, esta obra serviu, nas palavras do próprio autor, como estímulo para sua "volta espiritual, bem como física, a São Paulo" (Holanda apud Graham, 1982, p. 7).

Vejamos isso mais de perto.

Entre os anos de 1921 e 1945, Sergio Buarque viveu no Rio de Janeiro, excetuando-se um período de seis meses no Espírito Santo, em 1926, e outro de um ano e meio na Alemanha, entre 1929 e 1930. Na então Capital Federal, trabalhou como jornalista, tradutor, crítico literário e professor de história e literatura brasileiras. Em 1946, entretanto, o historiador deixou o Rio de Janeiro em direção a São Paulo, cidade em que fixaria residência até o fim de sua vida. A mudança foi motivada pela obtenção do cargo de diretor do Museu Paulista.

Uma vez de volta a São Paulo, as atividades do historiador se dividiram, durante os anos de escrita de Caminhos e fronteiras, entre a pesquisa, a direção do Museu Paulista e as aulas de história econômica do Brasil por ele ministradas na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. A partir de 1956, começou a lecionar também na Faculdade de Filosofia da USP, na qual foi contratado como titular da cátedra de História do Brasil em 1958, com a tese Visão do paraíso (cf. Holanda, 2000).

Ao circular pelo Museu Paulista, pela Escola de Sociologia e Política e pelo ambiente acadêmico das ciências humanas em São Paulo nas décadas de 1940 e 1950, Sérgio Buarque presenciou e participou da formação e da consolidação das ciências sociais como disciplinas no Brasil. Nesse processo, foi fundamental a presença de professores e pesquisadores estrangeiros nas instituições de ensino e pesquisa paulistas, que trouxeram consigo temas, métodos e conceitos que formariam a base dos estudos em ciências sociais no período.9 Entre os temas então estudados, o problema do contato cultural e da mudança social estavam na ordem do dia, especialmente via estudos de comunidade e estudos etnológicos.10 Não por coincidência, esses problemas estão também presentes em Caminhos e fronteiras: o estudo parte justamente do contato entre portugueses e índios e da incorporação de costumes indígenas por parte dos sertanistas para entender o processo das bandeiras. Em outras palavras, podemos afirmar que, quando Sérgio Buarque trata dos elementos introduzidos pelos europeus e de como foram usados no sertanismo, ou quando escreve sobre a adaptação dos costumes indígenas por parte dos adventícios neste mesmo processo histórico, ele está de fato introduzindo, num estudo historiográfico, m problema então caro às ciências sociais: como o contato entre culturas distintas as afeta e as transforma? O que resulta ou quais as conseqüências de um encontro cultural? A resposta dada pelo historiador paulista a tais erguntas será evidenciada mais adiante. Por ora, interessa destacar que Sérgio Buarque estava inserido num contexto acadêmico específico, em que a presença de pesquisadores estrangeiros e o tema da mudança cultural eram marcantes.

Conforme Peixoto (2001), professores e pesquisadores franceses e norte- americanos estiveram no Brasil entre 1930 e 1960 e tiveram modos de atuação diferente. Enquanto os franceses vieram, em sua maioria, ligados a uma missão e com objetivo de dar aulas na então recém-criada Faculdade de Filosofia da USP, os norte-americanos, que vieram em maior número, não se instalaram em apenas uma instituição e tinham como objetivo fazer pesquisa no Brasil. No caso dos alemães, entre aqueles cientistas que vieram ao país entre o fim do século XIX e as primeiras décadas do XX, havia vários etnógrafos interessados em fazer pesquisa entre grupos indígenas.11 Nesse sentido, é relevante notar que, do ponto de vista institucional, foi justamente no Museu Paulista que esta vertente alemã da antropologia teve mais espaço e se desenvolveu com mais força.

Logo após sua nomeação como diretor, em 1946, Sérgio Buarque contratou dois etnólogos de ascendência alemã para trabalhar na recém-fundada Seção de Etnologia do museu. Eram eles Herbert Baldus (1899-1970), que seria chefe desta seção, e Harald Schultz (1909-1965), seu assistente. As atividades desenvolvidas por eles entre 1946 e 1956 serviram para fortalecer e incentivar as pesquisas e a produção em antropologia no useu, especialmente na área de estudos indígenas.

Desse modo, podemos citar, em primeiro lugar, as viagens a campo feitas por Baldus e especialmente Schultz para fazer pesquisa e coletar material para coleções etnográficas.12 Além disso, Baldus também supervisionava estudantes estrangeiros interessados em fazer pesquisa etnográfica no país, como no caso do alemão Hans Becher. Com o intuito de ampliar e promover a produção etnológica feita no Brasil, o chefe da seção de etnologia participava de congressos internacionais, ajudou a organizar o XXXI Congresso Internacional de Americanistas naquele museu em 1954, e mantinha contato freqüente com etnólogos estrangeiros (em sua maioria, de língua germânica). Esse contato era feito por cartas, em que Baldus trocava informações sobre bibliografia, pesquisa e congressos, enviava e recebia originais sobre etnologia etc. Nessas cartas revela-se a ligação por vezes pessoal de Baldus com alguns colegas de profissão na Alemanha, como seu antigo professor Richard Thurnwald e o etnólogo Fritz Krause.13 No que se refere à publicação de estudos etnológicos, a entrada de Sérgio Buarque no museu e a contratação que ele fez de Herbert Baldus levaram à retomada da publicação da Revista do Museu Paulista, extinta em 1938.

Diferentemente da série anterior,14 a então nova série tinha como tema principal a antropologia. Com efeito, a maioria dos artigos publicados a partir do primeiro número, de 1947, versava sobre etnologia indígena, sendo que muitos dos autores publicados eram de origem alemã. Nomes como Max Schmidt, Theodor Koch-Grünberg, Paul Ehrenreich e Fritz Krause apareceram nos doze primeiros volumes da nova coleção, em traduções de Herbert Baldus, Egon Schaden e Sérgio Buarque de Holanda, que assinou a versão em português de dois artigos de Fritz Krause (Krause, 1952 a e b).15 Além desses dois artigos da Revista do Museu Paulista, Sérgio Buarque também traduziu um terceiro texto alemão de etnologia, ao qual devemos prestar especial atenção. Trata-se do texto do padre Wilhelm Schmidt (1868-1954), Kulturkreise und Kulturschichten in Südamerika", publicado em 1942 pela Editora Nacional sob o título Ethnologia sul-americana (Schmidt, 1942). Originalmente um artigo do volume de 1913 da revista Zeitschrift für Ethnologie, este livro propõe uma análise das culturas indígenas sul-americanas baseada no estudo de sua vida econômica e material. Seu objetivo seria descobrir, mediante a observação de objetos e técnicas comuns a mais de um grupo, quais povos teriam entrado em contato entre si, identificando assim as rotas de migração os povos dentro do continente. As conexões históricas seriam a explicação de fatos como a transmissão de mitos e da mudança cultural entre os grupos indígenas. Em última análise, as semelhanças e as diferenças entre os povos se deveriam também a essas ligações.16 A experiência de Sérgio Buarque no Museu Paulista é, assim, central para entendermos o uso que ele fez, em suas obras, da etnologia alemã. Podemos afirmar que, precisamente nos anos em que escrevia seu livro sobre as bandeiras paulistas, o historiador teve contato direto e freqüente com etnólogos ' como Herbert Baldus ' que faziam a ligação entre a etnologia alemã e o contexto de pesquisa nesta área no Brasil. Do mesmo modo, naquele contexto Sérgio Buarque teve acesso a livros e artigos que compunham o conjunto do conhecimento etnológico alemão. Interessa agora, portanto, entender como esse conhecimento foi utilizado pelo autor.

Contato, mudança e cultura material Como afirmado, no livro Monções encontramos alguns indícios de que Sergio Buarque embasava-se no conhecimento da etnologia alemã para estudar a colonização do interior da América Portuguesa. Apesar de não estarem presentes de modo tão freqüente e claro como em Caminhos em fronteiras, trechos deste livro fazem menção a esta vertente dos estudos antropológicos, seja com citações, seja elegendo um problema ' o contato cultural ' como foco de trabalho. Naveguemos estas monções, então.

No terceiro capítulo desta obra, chamado "Ouro", Sérgio Buarque trata da descoberta deste metal precioso e das dificuldades encontradas em se obtê-lo.

Assim, ele explica que a tal descoberta motivou a ida de muitos exploradores para a região de Cuiabá, no início do século XVIII, e que a jornada entre Porto Feliz e a região das minas desafiava o explorador com vários tipos de empecilhos. A necessidade de levar e de conservar mantimentos durante a navegação, por exemplo, era um problema que foi resolvido aos poucos com a introdução da lavoura e a criação de animais nos locais em que os colonizadores se instalavam (Holanda, 1990, p. 54). Além disso, foi necessário o desenvolvimento de embarcações que suportassem a grande quantidade de homens e objetos transportados, bem como a regulação do fluxo fluvial que muito aumentou nas primeiras décadas do setecentos ( Idem, p. 57).

Nessas jornadas, a grande quantidade de mosquitos tornava necessário o uso de algum tecido para proteção de tripulantes e passageiros das canoas, e uma das soluções encontradas foi o uso de um objeto de pano chamado "mosquiteiro".

Depois de fazer esta afirmação, o autor especula sobre a origem do objeto: O próprio mosquiteiro não parece ter sido utilizado, ou sequer conhecido, nesses primeiros tempos. Tudo tenderia a indicar que, ao surgir mais tarde com as monções, foi elemento adventício, transplantação, talvez, do tradicional mosquiteiro da Europa ( Idem, p. 61).

Em seguida, aponta seu uso entre os índios: Depoimentos bem mais recentes [que as crônicas coloniais] ainda registram seu emprego fora da Amazônia, entre diferentes grupos indígenas, como os Yucaré e os Guató: nada prova, em todo o caso, que nestes últimos exemplos não seja resultado do contato com os brancos.

[ ] Que tal instrumento ocorresse entre os Omagua e tribos vizinhas, quando ainda estremes de qualquer comércio com europeus, parece mais do que presumível. E se a difusão cingiu-se especialmente a essa área restrita, foi sem dúvida pela dificuldade, entre povos tão primitivos e isolados, de se obterem tecidos próprios (Idem, p. 61).

Sérgio Buarque não chega a uma conclusão sobre a proveniência do mosquiteiro.

Contudo, sua preocupação em tratar detalhadamente da origem deste objeto é um bom exemplo de como o historiador não conhecia mas também utilizava alguns dos pressupostos da teoria difusionista que, ao menos durante o início do século XX, fizera escola na antropologia.

Evidentemente, o autor de Monções não tem por objetivo chegar a uma história totalizante da humanidade, nem de procurar as conexões istóricas entre os grupos indígenas da América do Sul. Porém, a determinação da origem indígena ou adventícia dos objetos e dos costumes dos sertanistas ' uma constante nos textos de Sérgio Buarque ' sugere que ele ao menos fazia uso do método do difusionismo, ainda que com um objetivo diferente.

Do mesmo modo, quando trata dos grupos indígenas encontrados pelos exploradores durante as viagens fluviais, Sérgio Buarque cita os Guaicuru e explora a origem do uso do cavalo entre eles. Afirma, primeiramente, que este grupo, quando encontrado pela primeira vez pelos colonos, estava de posse de uma série de objetos europeus, como equipamentos de montaria e armas, além de usar cavalos.

Sobre o uso desses animais, supõe que tenha sido introduzido pelos espanhóis: "Essa aquisição deu-se, certamente, nos momentos iniciais da colonização e foi tão rápida que, em geral, as mais antigas reminiscências deixadas no conquistador, por semelhantes tribos, os apresentam inseparáveis de seus cavalos" ( Idem, p. 94). Em seguida, traça hipóteses sobre como tal aquisição teria ocorrido: Embora não se conheçam as etapas históricas dessa aquisição tudo inclina a crer que ela não terá exigido da parte do Guaicuru nenhuma readaptação violenta a novas normas de existência. Em outras palavras, sua vida não precisou suportar nenhuma transformação verdadeiramente radical, para acomodar-se ao uso do eqüino ( Idem, p.

95).

Percebe-se nesta passagem, novamente, uma preocupação não apenas em estabelecer a origem do uso do cavalo entre estes índios, mas também a atenção ao passo anterior: definir quais objetos e técnicas faziam parte, originalmente, de que cultura, e mostrar como se deu a aquisição por parte da outra. Em outras palavras, Sérgio Buarque buscava entender a mudança cultural pela aquisição e troca de objetos e técnicas, em conformidade com os métodos da teoria difusionista.

Contudo, não é apenas ao difusionismo que Sérgio Buarque se reporta. O historiador indica conhecer correntes teóricas que se opunham às idéias difusionistas, e chega a oferecer exemplos de fatos que poderiam render argumentos a uma ou outra. Assim, quando trata, logo no início de Monções, das embarcações indígenas usadas pelos europeus, afirma que o aparecimento de um tipo específico destas, feita de couro ' a pelota [ ] parece oferecer argumento aos etnólogos empenhados no combate às teorias exageradamente difusionistas. Em seu notável estudo sobre a navegação entre os povos indígenas de nosso continente, Georg Friederici, referindo-se à pelota e ao seu correspondente norte- americano, o bullboat ' cuja disseminação geográfica teria coincidido inicialmente com a do bisão ', não hesitou em apontar esse fato como belo exemplo em favor da tese de que a similitude do meio natural ou das condições de vida tende a gerar identidade ou similitude de costumes (Idem, p. 25).

Neste trecho, o autor faz alusão à corrente teórica desenvolvida pelo etnólogo Adolf Bastian (1826-1905) na Alemanha, na segunda metade do século XIX, que ficou conhecida como teoria das idéias elementares ou Elementargedanken. Para Bastian, existe uma unidade psíquica da humanidade que produz nos homens em todos os lugares idéias elementares semelhantes, isto é, todos os povos do mundo têm essas idéias elementares graças a uma lei psíquica geral. Estímulos externos diferentes provocariam reações diferentes, e daí surgiriam as diferenças (e também similaridades) entre os povos, divididos no que Bastian chamou de "áreas culturais" (Lowie, 1946, p. 50).

No trecho citado de Monções, Sérgio Buarque atribui ao alemão Georg Friederici o intento de dar argumentos à teoria de Bastian. Ainda que o historiador brasileiro não tenha citado literalmente o etnólogo berlinense, é válido supor que conhecesse bem suas idéias, uma vez que dentre os etnólogos alemães que são citados tanto em Monções quanto em Caminhos e fronteiras, alguns foram discípulos de Bastian ou adeptos de suas idéias.17 Isto não significa que o autor transitasse e se utilizasse igualmente dos pressupostos e das idéias dessas duas teorias. Em seus textos , como vimos, uma tendência a procurar a origem cultural dos costumes identificados, o que fazia parte do método difusionista. O que importa ressaltar, com a afirmação de que Sérgio Buarque estava familiarizado com mais de uma teoria da etnologia alemã, é que de fato o conjunto de idéias antropológicas formadas por essas correntes serviu de base para o historiador formular sua própria maneira de entender o processo estudado. Em outras palavras, mesmo não tendo aderido a uma ou outra teoria, seu conhecimento de ambas permitiu que usasse um conceito específico, central para ambas, que serviu de fio condutor de sua análise.

Estamos nos referindo ao conceito de cultura material. Tanto em Monções como em Caminhos e fronteiras, para levar a cabo sua investigação, Sérgio Buarque fez do estudo da cultura material o caminho para a compreensão da dinâmica do contato entre colonizadores e indígenas no Novo Mundo e dos processos sociais daí decorrentes.

Nesse sentido, Ilana Blaj apontou que [ ] o notável historiador não se aproxima dos múltiplos elementos da vida e da cultura material como mera ilustração, o que implicaria no educionismo, nem com perguntas feitas aprioristicamente, o que transformaria as produções e reproduções da vida concreta em simples corroboração. Ao contrário, deixa que os elementos da cultura material falem por si e, desta forma, revelem as múltiplas dimensões da vida real, as dimensões do social, do mental e do cotidiano (Blaj, 1998, p. 30).

Com efeito, Sérgio Buarque não foi o único intelectual de sua geração a tratar do tema da cultura material.18 Contudo, a maneira específica com que o historiador usa este conceito o aproxima dos etnólogos alemães que ele mesmo cita em seus trabalhos, uma vez que a cultura material era o ponto central de atenção da etnologia alemã no século XIX, em suas duas principais vertentes.

Os etnólogos alemães citados por Sérgio Buarque tinham como arcabouço teórico justamente as idéias destas duas correntes. Acreditavase, então, que o conjunto de objetos e técnicas da vida material servia para caracterizar uma cultura e o modo de vida de um povo. Os aspectos da vida social como o parentesco, a religião e os mitos eram também estudados, mas a cultura material servia de instrumento privilegiado para se averiguar o estágio de desenvolvimento de um povo e as influências que este possivelmente recebera do contato com outro.

No mesmo sentido, as coleções etnográficas recolhidas por estes etnólogos em suas expedições pela América do Sul eram formadas exatamente por objetos da cultura material dos grupos indígenas visitados.19 Tais objetos seriam expostos em museus, estudados e analisados para caracterizar uma cultura ou determinar o grau de destruição da mesma, resultado do contato com a civilização européia.

Para estes etnólogos, o contato entre duas culturas diferentes resultaria na aniquilação daquela considerada mais fraca, e a cultura material era a expressão mais clara dos resultados deste contato.

Sérgio Buarque de Holanda também utilizou o tema da vida material em seus estudos, mas o desfecho de seus trabalhos é diferente da conclusão a que chegavam os alemães.

Nos exemplos indicados do livro Monções, fica claro como o historiador se reportava a uma técnica da escola difusionista, isto é, buscar as origens dos objetos da cultura material. Em Caminhos e fronteiras, como veremos a seguir, o uso desta técnica é ainda mais evidente: o autor escolhe alguns aspectos da vida material dos sertanistas e vai mostrando a origem ' freqüentemente indígena ' de tais aspectos, mediante os dados que recolhe tanto de relatos de cronistas como da etnologia alemã, com a finalidade de mostrar a maneira pela qual a herança indígena foi fundamental para o sucesso da empresa colonizadora.

Tratemos deste livro, então.

Logo na introdução da obra o historiador paulista refere-se à questão da cultura material e justifica a atenção dada, no decorrer de seu estudo, a este aspecto da vida dos sertanistas: A acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui, em preferências particulares do autor por esses aspectos, mas em sua convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se mostraram muito mais acessíveis a manifestações divergentes da tradição européia do que, por exemplo, no que se refere às instituições e sobretudo à vida social e familiar em que procuraram reter, tanto quanto possível, seu legado ancestral (Holanda, 2001, p.12).

Esta justificativa sugere que a escolha do autor tenha se fundado em uma razão objetiva, isto é, a maneira como a interação entre europeus e índios se processou. Contudo, como pretendemos mostrar, tal escolha também se pautou no conhecimento da literatura etnológica alemã, que elegeu, no século XIX, a cultura material como chave analítica para entender a história e o desenvolvimento dos povos.

Na primeira parte de Caminhos e fronteiras encontra-se a maioria das referências e citações desta literatura. Isto não se por acaso: os nove capítulos que a compõem tratam das situações de contato entre brancos e índios, e este era um tema ao qual os etnólogos alemães deram atenção específica.

É a divisão do livro a primeira indicação desta escolha pela cultura material.

A parte "Índios e mamalucos" é composta de capítulos sobre os seguintes temas: os caminhos e as maneiras de caminhar pelo sertão; a obtenção de água nas jornadas; a cera e o mel; os hábitos alimentares indígenas; caça e pesca; remédios naturais; doenças e medicina; o uso dos cavalos; e o início das viagens fluviais. A segunda parte, "Técnicas rurais", comporta capítulos sobre a agricultura em geral e os utensílios nela empregados: os trigais; o milho; o monjolo; e as ferramentas de trabalho rural. A terceira parte, "O Fio e a teia", compõe-se de um capítulo sobre as técnicas de tecelagem européias; um sobre a indústria têxtil caseira; e finalmente um último sobre as redes e as redeiras.

Em cada um desses capítulos, Sérgio Buarque vai seguindo as pistas deixadas por suas fontes ' especialmente relatos de cronistas e obras de etnologia ' e assim recompõe as situações vividas pelos sertanistas e a incorporação de traços da vida material dos índios por parte dos portugueses.

Na primeira parte do primeiro capítulo, chamada "Veredas de Posto", o autor explica que, durante os primeiros tempos da colonização, os portugueses usavam as veredas e os atalhos feitos pelos índios para se guiar pelo sertão. Eles eram feitos de diversas maneiras, por exemplo através de seqüências de galhos cortados à mão "espaço a espaço", como indicou von Martius. Quando não era possível usar esse sistema de cortar galhos de árvores, os índios se guiavam pelo sol e pelas estrelas [ ] com tal habilidade que, segundo referem crônicas quinhentistas, dois tupinambás degredados da Bahia para o Rio de Janeiro e levados por mar conseguiram, depois de fugir, tornar por terra ao seu país, caminhando mais de trezentas léguas através de mataria e parcialidades hostis. Durante a noite marcavam as horas, em alguns lugares, pela observação das estrelas e constelações. Durante o dia, pela sombra que o polegar deixa na mão ( Idem, p. 20).

Este trecho permite explorar a questão de como Sérgio Buarque retratou os índios, isto é, que imagem deles transmitiu em seu trabalho. Nota-se uma acentuação das qualidades sensoriais dos nativos da terra: eles saberiam sobreviver em meio à natureza graças à sua capacidade de observá-la e tirar dela os subsídios e os recursos materiais para sua existência.

Isso ocorria, afirma o historiador, porque os índios tiveram de se acostumar, desde criança, "a uma natureza cheia de caprichos" ( Idem, p. 19), e a terem de ser móveis e flexíveis. Por isso, sabiam bem caçar, pescar, rastrear abelhas e ver no escuro. Além dessas habilidades sensoriais, os índios teriam também, segundo Sérgio Buarque, um aguçado senso de orientação. Sabiam como descrever a geografia do país, os rios e seus afluentes e a localização de outras tribos indígenas, assim como podiam desenhar mapas na areia da praia.

Percebe-se, assim, que o historiador paulista atribuía aos índios uma capacidade de observação e percepção da natureza. Ora, de acordo com Eduardo Viveiros de Castro, "o tema das ‘três raças' na formação da nacionalidade brasileira tende a atribuir a cada uma delas o predomínio de uma faculdade: aos índios a percepção, aos africanos o sentimento, aos europeus a razão [ ]" (2002, p. 187). No caso de Sérgio Buarque, essa tendência pode ser confirmada no trecho citado de Caminhos e fronteiras.

Do mesmo modo, o historiador sustenta que Em lugar de ser simples escravo de suas aptidões naturais, dos cinco sentidos, que tinha excepcionalmente apurados, o índio tornava-se, assim, o senhor de um admirável instrumento para triunfar sobre as condições mais penosas e hostis. Podia disciplinar metodicamente muitas daquelas aptidões; criar e recriar mil e um recursos adequados a cada situação nova, sujeitar-se, onde fossem necessários, a comportamentos que lhe garantissem meios de subsistência (Holanda, 2001, p. 22).

Especialmente na primeira parte de seu livro, Sérgio Buarque constrói a idéia de que os índios no Novo Mundo seriam perspicazes, dotados de aguçado sentido e percepção no trato com a natureza. Por isso sabiam tão bem caminhar pelas matas, encontrar água no sertão, se guiar pelas estrelas, ouvir e observar de longe a aproximação do inimigo. Vale notar que as capacidades atribuídas aos índios se relacionam quase sempre às necessidades e imposições da vida material. Não poderia ser diferente, pois o caminho narrativo trilhado pelo historiador estava baseado exatamente numa recomposição da vida material dos sertanistas.

Assim como no caso da orientação geográfica, o conhecimento nativo foi crucial para a sobrevivência do europeu no que se refere à obtenção de água e alimentos. Por isso, Sérgio Buarque dedica quatro capítulos desta primeira parte do livro à descrição da busca por mantimentos. Começa explicando os meios pelos quais os índios descobriam onde havia água no sertão, e afirma: "Em regra, esses meios decorrem da extraordinária capacidade de observação da natureza, peculiar a esses homens e inatingível para o civilizado" ( Idem, p.

37). Para o historiador, foi a intimidade com a natureza que permitiu aos índios e, conseqüentemente, também aos colonizadores, a sobrevivência no meio.

Da mesma maneira que em Monções, neste segundo livro o autor continua lançando mão do recurso de buscar a origem de um costume para explicar como se deu a interação entre as culturas nativas e a adventícia no Novo Mundo. Por exemplo, ao discutir a obtenção de mel, usado na alimentação, Sérgio Buarque questiona a origem desta técnica. Segundo o autor, antes do contato com os europeus os índios conheciam alguns meios de obter mel, mas "é pouco verossímil que sem esse mesmo contato chegassem nossos índios ao sistema relativamente avançado de apicultura que supõe o recurso a cortiços escolhidos e convenientemente adaptados pelo homem" ( Idem, p. 47).

O objetivo do autor, neste livro, é entender o contato entre as culturas indígenas e européia, bem como as mudanças desencadeadas por tal contato.

Entretanto, se no texto uma ênfase na explicação de como os costumes indígenas foram incorporados pelos europeus, também trechos em que o autor se dedica a analisar como os índios adotaram técnicas européias. A passagem acima citada, sobre a apicultura, é um bom exemplo disso. Diferentemente da interpretação dos etnólogos alemães, que previam a destruição dos povos indígenas por causa do encontro com os brancos, para Sérgio Buarque o contato cultural é uma via de mão dupla. Nesse sentido, ele chega a sustentar que a "solidariedade cultural logo se estabeleceu aqui entre o invasor e a raça subjugada" ( Idem, p. 69).

Ironicamente, o uso do adjetivo "subjugada" na frase acima denuncia os limites de tal solidariedade. Não se trata de defender que Sérgio Buarque tenha apontado uma convivência pacífica e ausente de conflitos entre índios e colonizadores, mas evidenciar que o historiador se preocupou em mostrar as contribuições indígenas para a elaboração de um modo de vida condizente com as necessidades dos sertanistas.

Esta interação entre técnicas indígenas e costumes europeus fica clara quando o autor descreve os remédios usados durante as bandeiras. Segundo o historiador, os jesuítas foram os primeiros a utilizar o conhecimento indígena sobre a fauna e a flora para fazer remédios, depois também os colonizadores europeus os usaram para fazer o que ficou conhecido por "remédio de paulistas". A medicina sertaneja foi criada a partir do conhecimento indígena e do conhecimento do velho mundo: ocorreram "processos de racionalização e assimilação a que o europeu sujeitou muitos de tais elementos [da tradição indígena], dando-lhes novos significados e novo encadeamento lógico, mais em harmonia com os seus sentimentos e seus padrões de conduta tradicionais" ( Idem, p. 83).

Na segunda parte de Caminhos e fronteiras o resultado do contato entre índios e colonizadores é visto a partir dos costumes do mundo rural. Sérgio Buarque refere-se primeiramente às técnicas de agricultura, afirmando que o contato com os nativos da terra no período pós-conquista fez com que os europeus aprendessem as técnicas "primitivas" de trabalhar com o solo e as adotassem. Os europeus haviam trazido instrumentos como o arado, a foice, a enxada e o machado, mas tais ferramentas não alteraram o modo de lidar com a terra. O motivo disso, sustenta o autor, foi que "as próprias condições que, no Brasil, impediam o desenvolvimento do uma lavoura estável vieram a fornecer, por outro lado, a persistência dos processos rotineiros herdados, quase sem mudança, do indígena" ( Idem, p. 205).

Por isso, afirma, a resistência das técnicas rurais indígenas é uma característica marcante do período do sertanismo, que pode ser exemplificada pela construção das canoas usadas nas monções. Também foi marcante a adoção, na dieta do sertanista, de alimentos tipicamente indígenas, como a mandioca, o milho e o feijão. Os métodos usados na produção desses alimentos eram ainda, de modo geral, os mesmos usados pelos índios.

A conclusão a que Sérgio Buarque chega é de que o europeu adotou produtos e métodos indígenas desconhecidos e não os modificou, apenas aperfeiçoou aqueles por eles conhecidos ( Idem, p. 169). O mesmo não ocorreu no domínio da vida urbana, em que as técnicas introduzidas pelos adventícios se sobrepuseram aos costumes locais.

A vida nas vilas é o tema da terceira e última parte do livro, "O Fio e a teia", dedicada ao exame das técnicas têxteis. Sérgio Buarque explica que, por volta de 1550, começou-se a se falar da necessidade de tecelões, pois no Brasil havia muito algodão e os índios precisavam de roupas. Essa necessidade de roupas foi uma iniciativa dos jesuítas, e com base nas cartas escritas por eles Sérgio Buarque estuda a implantação da indústria têxtil no país. Em São Paulo, essa atividade se iniciou nos primeiros anos do século XVII, mas não representava um papel preponderante se comparada às atividades de agricultura.

Os ofícios de fiação e tecelagem eram desempenhados por índios e mamelucos, pois tal atividade era vista como indigna. Contudo, usavam-se técnicas européias na produção têxtil ( Idem, p. 229). A fabricação de redes constituiu a única exceção neste domínio, uma vez que esse objeto de origem local, imediatamente adotado pelo europeu, continuou sendo feito de acordo com as técnicas indígenas.

Uma constatação de Sérgio Buarque sobre o uso do tear indígena pelos portugueses é um bom exemplo do argumento que foi repetido no decorrer de todo o livro. O autor aponta que "a adoção generalizada do tear indígena ilustra bem a atitude constante nos portugueses durante a era da colonização, em face dos elementos que desde cedo acolheram da civilização material dos primitivos habitantes da terra" ( Idem, p. 250).

De fato, a adoção dos aspectos da cultura material indígena por parte dos colonizadores constitui ponto central do livro. Como exposto anteriormente, Sérgio Buarque escolhe uma série de elementos e explica como se deu a adoção destes pelos adventícios. Analisa também os objetos e as técnicas do velho mundo que se mantiveram inalterados durante o período das entradas para o sertão. Nos dois casos, a ênfase do autor é nestes objetos e técnicas: sua origem, seu uso, sua aplicação.

Assim como os etnólogos alemães por ele citados, o historiador usa exatamente o conceito de cultura material para compreender como se constituía a vida dos povos. No caso dos alemães, tratava-se dos povos indígenas, no caso de Sérgio Buarque, dos sertanistas. Ademais, como faziam os alemães, o historiador utilizou os objetos e as técnicas da vida material como chave analítica para entender o contato entre os grupos indígenas e os europeus.

Contudo, uma diferença fundamental no resultado da análise feita pelos etnólogos alemães e aquela empreitada por Sérgio Buarque. Nesse sentido, Laura de Mello e Souza observou que, em Monções e Caminhos e fronteiras, seu autor fez um estudo "minucioso das técnicas e práticas da vida cotidiana ' cuja inspiração veio da etnologia de Koch-Grünberg, Nordenskiold, Friederici, mas produziu resultados metodológicos originais" (Souza, 1995, p. 10).

Ora, se a inspiração que a historiadora menciona se reflete na escolha da cultura material como ponto de partida para entender o processo das bandeiras, o resultado original está na visão que Sérgio Buarque de Holanda tem dos efeitos do contato entre índios e brancos. Para os alemães este contato resultaria, cedo ou tarde, na aniquilação dos índios ' o contato cultural teria, para eles, um efeito destrutivo. O historiador paulista, entretanto, apresenta interpretação diferente desse mesmo processo. Se os índios deixariam de existir graças à miscigenação com os luso-brasileiros, que os transformaria em mamelucos, este fato pode ser entendido de modo positivo: do encontro entre portugueses e índios nasceu o sertanista, e com ele a possibilidade da colonização de novos territórios. Para nosso autor, em oposição ao que previam os cientistas alemães, o contato cultural teve efeito construtivo.

Um lugar para a etnografia Mas por que o historiador paulista escolheu os alemães ' ou melhor, por que estes alemães, afinal? Para responder, precisamos ter em vista todo o material documental e bibliográfico usado por Sergio Buarque para compor seus estudos.

As fontes documentais usadas pelo historiador são diversas: relatos coloniais ' tais como memoriais, crônicas e cartas dos séculos XVI, XVII e XVIII, incluindo textos de missionários ', e registros oficiais do governo da colônia sobre as cidades da rota do ouro. Ao lado desses documentos, o autor faz referência a trabalhos de outros estudiosos da história do Brasil, como Capistrano de Abreu, Afonso Taunay, Alfredo Ellis Jr., Paulo Prado e Caio Prado Jr. Além disso, várias referências à etnologia alemã do século XIX e início do XX, como referido.

Dentre tais documentos e livros, dois conjuntos de textos se destacam pelo uso diferenciado que o autor faz deles: os relatos coloniais e os livros de etnologia. Sérgio Buarque usa tais fontes quando se refere aos grupos indígenas, isto é, ele as usa como fontes de dados sobre a vida dos índios no Brasil. Contudo, o autor mais ênfase aos etnólogos que aos autores do período colonial, utilizando os primeiros largamente como fonte de informação, além de se pautar em seus conceitos e métodos, como discutido. O motivo para isso reside numa diferença fundamental entre esses dois tipos de fonte, diferença esta que diz respeito à natureza mesma desses textos.

Os relatos coloniais tinham como objetivo descrever o Novo Mundo para leitores europeus. Muitas vezes esses leitores faziam parte da aristocracia que comandava a metrópole, e o intento dos cronistas poderia ser convencer seus superiores de uma tarefa cumprida ou a se cumprir, relatar suas experiências nas novas terras etc. Acima de tudo, o olhar desses escritores estava embasado em noções de humanidade, verdade, bem e mal próprias do período moderno. Assim, a descrição da vida e dos costumes indígenas estava fortemente atrelada a convicções católicas sobre o homem e o mundo ' o que resultou, para dar alguns exemplos, nas idéias de que os índios não tinham "nem , nem lei e nem rei" e que possuíam uma "alma inconstante".20 O registro dos etnógrafos citados por Sérgio Buarque passa por outra perspectiva. Treinados em universidades alemãs, esses cientistas vieram à América do Sul buscar dados e informações entre algumas sociedades indígenas pois estavam preocupados em entender questões, postas para a ciência daquele período, sobre as diferenças e as similaridades entre os grupos humanos, de maneira geral, assim como sobre o modo de vida específico dos grupos visitados.

Para Florestan Fernandes, as preocupações e as contribuições dos etnólogos estrangeiros que estiveram no Brasil a partir de meados do século XIX [ ] criavam modelos de trabalho altamente apreciáveis nalguns pontos: valorização da pesquisa de campo, importância atribuída à descrição sistemática da realidade observada pelo sujeitoinvestigador [ ], constituição de coleções etnográficas e análise comparativa de situações tribais diferentes (Fernandes, 1958, p. 31).

Esta diferença entre autores do período colonial e etnólogos foi fundamental para Sérgio Buarque. Interessado que estava em entender como os grupos indígenas participaram do processo de ocupação do interior da colônia, o historiador teve de se pautar nos primeiros estudos que traziam pesquisa sistemática entre os povos indígenas no Brasil. Não bastava citar as informações, muitas vezes exotizantes, de missionários ou cronistas ' era preciso recorrer às obras que primeiro se debruçaram, a partir de preocupações científicas, com profundidade e, em alguns casos, exclusividade na questão dos hábitos, das práticas e dos modos de vida indígena no Brasil.

Brasil em movimento Em entrevista concedida a Richard Graham, Sergio Buarque explicou os motivos que o teriam levado a escrever o livro Monções: Eu precisava submeter um trabalho num concurso internacional. Poderia ser poesia, ficção, qualquer coisa. Decidi apresentar alguma coisa sobre história. havia começado a escrever alguns artigos no gênero Casa-grande & senzala, mas de cabeça para baixo. Este livro faz com que o Brasil pareça estático, dominado pelo açúcar, voltado para o Atlântico, parado. Eu queria algo mais dinâmico, voltado para as minas, para o interior. Brasil em movimento (Holanda apud Graham, 1982, p. 11).

De fato, em Monções o autor apresenta ao leitor um Brasil dinâmico, em movimento, de certa forma oposto ao retrato freyreano no país. Contudo, além de se opor à interpretação de Gilberto Freyre sobre o Brasil, em suas obras sobre a expansão para o oeste Sérgio Buarque logrou também se contrapor à visão da historiografia paulista da primeira metade do século XX.

Os historiadores Affonso Taunay e Alfredo Ellis Jr., que entre as décadas de 1920 e 1940 publicaram uma série de livros e artigos sobre o bandeirismo, sustentavam uma visão heróica dos bandeirantes paulistas e diminuíam a importância dos índios no processo de ocupação do interior da colônia. Esta visão mitificada do bandeirante herói foi forjada exatamente nas primeiras décadas do século XX, pois neste período o Estado de São Paulo começou a apresentar um vigoroso crescimento econômico, graças à exportação do café produzido nas fazendas do interior. Esse desenvolvimento econômico gerou um impacto na elite paulista, que logo encontrou na figura do bandeirante herói a origem histórica do progresso de seu Estado: Para esta elite, ser paulista no final do século XIX e primeiras décadas do século XX é encontrar nos "paulistas primevos" do século XVI e nos bandeirantes do século XVII a imagem original e a predestinação que justifica o sucesso e o lugar privilegiado no presente (Oliveira, 1994, p. 16).

Assim, tinham grande receptividade obras como as de Alfredo Ellis Jr., que procuravam mostrar, por meio de "uma complexa teoria do papel do cruzamento étnico" (J. Monteiro, 2002, p. 237), como havia se constituído em São Paulo uma "raça de gigantes". Do mesmo modo, Taunay estabelecia uma ligação contínua entre passado e presente identificando o paulista "atual" com os bandeirantes do século XVII que, sozinhos e graças à sua grandeza, conseguiram desbravar os sertões do país.

As obras de Sérgio Buarque sobre o mesmo processo contêm uma visão bastante diferente sobre os supostos heróis bandeirantes. Como vimos, para este historiador o sucesso das bandeiras e das monções foi possível graças à adoção do conhecimento e das técnicas de vida indígenas, pois os sertanistas, por si sós, não saberiam como enfrentar as dificuldades impostas pelo meio.

Além disso, Sérgio Buarque não , no andeirante, um herói: "Em vez de glorificar os bandeirantes, eu os descrevo como traficantes de escravos ocupados, dia após dia, em ganhar dinheiro [ ]. Eles não tinham a intenção de fundar um império" (Holanda apud Graham, 1982, p. 13). Pode-se dizer, portanto, que Monções e Caminhos e fronteiras superam a historiografia gigantista de Taunay e Ellis Jr.

Ainda nesse sentido, vale a pena recordar alguns fatos da trajetória de Sérgio Buarque: as suas obras sobre as bandeiras e monções foram escritas exatamente no período intermediário entre sua entrada na direção do Museu Paulista (1946) e a obtenção da cátedra de História da Civilização Brasileira na USP (1959).

Ironicamente, quem ocupava estas posições antes de Sérgio Buarque, nas duas instituições, eram respectivamente Affonso Taunay e Alfredo Ellis Jr.! Este fato é simbólico da relação que se estabeleceu entre as obras desses três historiadores: Sérgio Buarque os substituiu, institucionalmente, em dois dos espaços privilegiados de produção do saber histórico em São Paulo. Ao mesmo tempo, suas obras suplantaram a interpretação desses autores sobre a história paulista.

A inovação de Sérgio Buarque está em que ele deu aos índios um lugar decisivo na história das bandeiras. Isso foi possível, do ponto de vista da construção dos argumentos, porque ele buscou precisamente em uma literatura voltada para as questões indígenas, isto é, na etnologia, os dados que lhe permitiram descrever como o modo de vida indígena foi fundamental para o sucesso do empreendimento português. O uso da etnologia, portanto, foi o que permitiu ao autor olhar para os grupos indígenas como partícipes da história.

Notas 1 Referimo-nos aqui ao conjunto dos livros Raízes do Brasil, Monções, Caminhos e fronteiras e Visão do paraíso, publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1936, 1945, 1957 e 1959.

2 Entre os mais importantes intérpretes da obra de Sérgio Buarque, podemos citar Antonio Candido (1989 e 1998), Maria Odila Leite S. Dias (1985), Antonio Arnoni Prado (1992, 1996 e 1998) e Robert Wegner (2000).

3 A esse respeito, ver Galvão (2000).

4 Sobre isso, cf. texto de Sérgio Buarque de Holanda sobre o historiador alemão Leopold von Ranke (Holanda, 1979).

5 As influências destes dois pensadores no livro citado foram estudadas respectivamente por Pedro Monteiro (1999) e Marcus Carvalho (1997).

6 Cf. Vainfas (1998) bem como o prefácio à segunda edição de Visão do paraíso (Holanda, 2000).

7 Quanto à primeira parte do livro, vale destacar que apenas uma diferença entre o texto do artigo e aquele publicado em 1957: o primeiro tinha o título "Índios e mamelucos na expansão paulista", e o segundo recebeu uma pequena modificação, intitulando-se apenas "Índios e mamalucos". as partes dois e três do livro sofreram modificações antes da publicação da obra pela editora José Olympio (cf. Holanda, 2001, pp. 11-14).

8 Cf. Holanda (1990, pp. 9-12).

9 Um estudo alentado do processo de consolidação das ciências sociais no Brasil pode ser encontrado em Miceli (1995 e 2001). Sobre este tema, e mais especificamente sobre a antropologia, conferir ainda Corrêa (1987, 1988 e 2003) e Peirano (1999). Sobre a sociologia e a etnologia no Brasil, cf. o texto clássico de Florestan Fernandes (1958).

10 Como apontou Florestan Fernandes, o estudo sobre mudança cultural era feito em quatro unidades diferentes: os grupos indígenas, as culturas afro- brasileiras, as culturas campesinas e as culturas transplantadas pelos imigrantes (Fernandes, 1958, p. 39). No caso dos grupos indígenas, podemos citar, como um dos primeiros a sugerir o estudo da mudança cultural, o etnólogo Herbert Baldus, em seu Ensaios de etnologia brasileira (cf. Baldus, 1937); e como estudiosos representativos desta vertente no período de 1940 a 1960, Eduardo Galvão, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira.

11 Entre 1880 e 1910 vieram ao Brasil os etnólogos Karl von den Steinen (1855- 1929), cujas expedições ao Xingu foram consideradas as primeiras pesquisas antropológicas xinguanas (cf. Coelho, 1993); Paul Ehrenreich (1855-1914), que esteve entre os Botocudos do Rio Doce, entre os Karajá do Araguaia e também no Xingu; Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que esteve no Alto Xingu e depois na região do Norte Amazônico; Max Schmidt (1874-1950), que pesquisou no Xingu, Mato Grosso e região do Chaco; e Fritz Krause (1881-1963), que esteve entre os Karajá do Araguaia. Todos eles são citados por Sérgio Buarque em seu Caminhos e fronteiras. Em 1903 chegou ao país o então jovem Curt (Nimuendaju) Unkel (1883- 1945), cujas pesquisas entre os índios no Brasil, especialmente os do grupo , abririam uma nova fase dos estudos etnológicos no país. Finalmente, em 1921, chegou Herbert Baldus (1899-1970) ' sobre a trajetória deste etnólogo no Brasil, cf. Passador (2002).

12 Sobre as coleções etnográficas do Museu Paulista, cf. Hartmann e Damy (1986).

13 Sobre este conjunto de cartas, cf. Françozo (2004, pp. 51-53).

14 Sobre a primeira série da revista, bem como sobre a história do Museu Paulista, cf. Schwarcz (1993, pp. 78-83).

15 Além destes, publicaram nesta revista Herbert Baldus, Harald Schultz, Alfred Métraux, Curt Nimuendaju, Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão. Os estudos de comunidade, importante vertente da antropologia no período, também apareceram em artigos de Donald Pierson, Charles Wagley e Thales de Azevedo.

16 Segundo Robert Lowie, os difusionistas alemães ' dos quais Wilhelm Schmidt foi um dos mais importantes ' viam "a humanidade como um todo conectado e trataram de combinar os fatos antropológicos com os arqueológicos", de modo a reconstruir a história humana em sua totalidade (Lowie, 1946, p. 228).

17 Karl von den Steinen foi, dentre os etnólogos alemães que vieram à América do Sul entre a segunda metade do século XIX e o início do XX, aquele que sofrera mais forte e direta influência de Bastian. A partir de um encontro acidental entre os dois na Polinésia em 1880, von den Steinen se interessou pela etnologia e começou a realizar viagens exploratórias em vários lugares do mundo (cf. Schaden, 1956).

18 Ainda que o tenham feito de modo diferente, podemos citar Gilberto Freyre (2000) e Caio Prado Jr. (2000), em cujos estudos a cultura e a vida material têm lugar relevante.

19 Uma listagem das coleções etnográficas de material coletado no Brasil entre 1650 e 1955 pode ser encontrada em Dorta (1992), incluindo-se aquelas formadas por von den Steinen, Koch-Grünberg e Fritz Krause. Sobre as expedições e as coleções etnográficas de viajantes alemães na região amazônica, vale a pena conferir o belo catálogo Deutsche am Amazonas: Forscher oder Abenteurer? Expeditionen in Brasilien 1800 bis 1914 (2002), especialmente os capítulos sobre Karl von den Steinen e Theodor Koch-Grünberg. Sobre as expedições e coleções de von den Steinen, ver, ainda, Coelho (1993).

20 O primeiro exemplo vem de Gabriel Soares de Sousa, em seu Tratado descritivo do Brasil em 1587. Uma boa análise sobre este cronista, bem como sobre o problema da falta de ", lei e rei" entre os índios, pode ser encontrado em John Monteiro (2001, pp. 12-35). O segundo exemplo é do Padre Vieira, e serviu de título a um belo estudo de Eduardo Viveiros de Castro sobre as cartas de missionários do século XVI na América Portuguesa (cf. Viveiros de Castro, 2002).


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