Vidas de artistas: Portugal e Brasil
As vidas de artistas, como gênero literário, foram fundamentais para a formação
da imagem moderna que se tem do artista e de suas práticas. Suas primeiras
manifestações ocorreram na Itália no século XVI e, a partir de então, o gênero
espalhou-se por todo o Ocidente europeu. Essa progressão ocorreu paralela à
formação das Academias, instituições que passaram a ser o espaço privilegiado
de formação e consagração dos artistas, assim como de reflexão sobre sua
atividade.
As vidas mereceram, principalmente, dois tipos de tratamento: de um lado, seu
uso como fonte, na medida em que se constituíram em um inesgotável celeiro de
informações bastante úteis para interpretação de obras ou esclarecimento dos
mais variados episódios ou problemas da história da arte; de outro, a análise
interna de seus procedimentos retóricos e tropológicos, sua articulação com a
arte do retrato, a comparação com seus similares antigos e sua distribuição em
linhagens de textos complementares ou concorrentes, que configuraram um mapa de
escolas com suas respectivas caracterizações. As vidas foram também muitas
vezes lembradas como elemento importante no processo de elevação social dos
praticantes das artes do desenho (pintura, escultura e arquitetura), pelo fato
de constituírem-se em uma espécie de atestado de nobreza, derivado do
reconhecimento da importância dos artistas nas cortes em que serviram.1
O tratamento dessa questão em Portugal e no Brasil parece-me importante por
dois motivos. Em primeiro lugar, pelo fato de ter sido um tema negligenciado
tanto lá como cá. Em segundo, por entender que o estudo das vidas é estratégico
para a compreensão de aspectos importantes da formação dos respectivos
ambientes artísticos, na medida em que estes buscaram se espelhar nos modelos
dos centros hegemônicos italianos e franceses.
Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que, a despeito das dinâmicas locais
e das demandas que deram origem a inúmeras e multifacetadas manifestações de
arte religiosa ou civil, tanto em Portugal como no Brasil houve, em determinado
momento, um esforço concentrado no sentido de subordinar os fazeres artísticos
a padrões cuja reprodução dependia de três fatores interligados: o espaço
social do artista, a instituição educativa e de consagração, o estatuto
intelectual da arte.
O que demandou três tipos de trânsito: da condição plebéia à nobreza do mérito,
das corporações às academias, do trabalho manual às Artes Liberais.
Artes liberais
A criação das Academias e os escritos sobre arte foram instrumentos decisivos
na reivindicação da mudança de estatuto das artes do desenho, até então
consideradas ofícios mecânicos e submetidas aos regulamentos corporativos das
cidades. Neste contexto, os artistas beneficiaram-se do interesse crescente das
Cortes reais e principescas por serviços e obras que não podiam mais ser
realizados pelas oficinas dos mosteiros, que tradicionalmente respondiam às
suas demandas. O crescimento das Cortes ' e a correspondente necessidade de
obras de conteúdo profano ' fez com que seus mandatários contratassem ou
artistas itinerantes ou aqueles disponíveis nas cidades, mas ainda presos ao
sistema das corporações.
Atraídos para as Cortes em razão de seus talentos, os artistas foram
incorporados em cargos e funções incompatíveis com sua condição social
subalterna, e foram remunerados não por meio do pagamento de encomendas
específicas, como era o caso do artesão nas cidades, mas mediante salários
fixos e outros benefícios (Warnke, 2001, pp. 183-193). Vestidos e tratados de
forma distinta, na medida em que suas obras eram reconhecidas e reverenciadas,
foram sendo atribuídas a eles designações, títulos e honrarias exclusivas do
universo das Cortes, como a designação de familiar do rei, de pintor do rei, de
valete ou camareiro do rei, condições especiais que pressupunham o convívio
direto com os soberanos (Idem, pp. 165-183).
Na medida em que a fama dos artistas tornava a Corte invejável diante de
outras, passaram a ser disputados e a obter maior destaque nas próprias cidades
de origem, o que não impediu a relativa desterritorialização daquele artista
que, por meio de suas virtudes, obtinha fama. O interesse dos artistas
coadunou-se, assim, com a vontade dos reis, e a elevação das artes do desenho à
condição de Artes Liberais foi a resposta necessária neste novo contexto.
A distinção entre Artes Liberais e Ofícios Mecânicos era própria de uma
sociedade na qual o trabalho manual era profundamente desvalorizado, e era uma
evidência para todos que pintores e escultores trabalhavam com as mãos e
despendiam, muitas vezes, um grande esforço físico em suas atividades. Já as
Artes Liberais eram consideradas o resultado do trabalho do espírito e próprias
das camadas elevadas da sociedade. O enobrecimento das artes do desenho
implicou, portanto, na ampliação daquilo que nelas era devido ao espírito, à
função intelectual, em detrimento de seus aspectos artesanais.
O processo pelo qual as artes do desenho ganharam o estatuto de Artes Liberais
é bem conhecido no que diz respeito à Itália, e foi parcialmente decidido na
Florença de meados do século XVI pelo duplo esforço de Vasari, que deu à sua
cidade e à arte italiana duas contribuições inestimáveis: a publicação de Le
vite de più eccellenti pittori, scultori et archittetori (1550/1567) e a
fundação da Accademia del Disegno, em 1563; instituição pioneira de uma série,
que continuou com a Accademia de San Luca, de Roma, em 1593; seguida da
Accademia degli Incamminati de Bolonha, em 1598; e teve seu momento de
culminância com a Académie de Peinture et Sculpture, criada na França, em 1648,
por Mazarino (Pevsner, 1999). Essas instituições estiveram na base do amplo
sistema das artes do Ocidente europeu que, apesar de variações regionais,
definiu um conjunto mais ou menos homogêneo de idéias e rotinas praticadas nos
ateliês, uma hierarquia de gêneros, um estatuto social para o pintor e um papel
específico para a pintura no interior da sociedade.
Falar dessa nova condição da pintura implica em falar sobre a produção de um
discurso, cujas relações com o fazer artístico são muito complexas. Sabe-se,
por exemplo, que, a despeito de sua enorme autoridade, o livro De pictura
(1435) de Alberti teve em sua época escassa influência na prática dos ateliês.
Mas, a despeito disso, como é possível entender a elevação das artes do desenho
sem as operações mentais propostas pioneiramente em De pictura?
Ao aproximar a pintura da poesia, da retórica e da geometria, matérias centrais
do trivium (gramática, retórica, dialética) e do quadrivium (aritmética,
geometria, música, astronomia), Alberti deu um passo importante, pois propôs
orientar a pintura por conhecimentos próprios das Artes Liberais. Mas se De
pictura foi de difícil assimilação em razão de sua erudição humanista, muitos
outros escritos acabaram por rotinizar as idéias nele contidas.
Contudo, mais do que problemas relativos à fortuna dos escritos dos humanistas,
muitas vezes inacessíveis para muitos dos pintores que não dominavam
suficientemente o latim, ou da eventual dificuldade dos tratados escritos em
vernáculo por pintores com formação humanista, a questão da descontinuidade
entre as idéias e a prática dos ateliês adquiriu uma dimensão suplementar no
contexto da redescoberta da arte dos antigos. Infinitamente prestigiados na
Renascença, os pintores da Antigüidade eram conhecidos não tanto por suas
obras, na sua maioria desaparecidas, mas pelas anedotas e pelos escassos
tratados que se mantiveram isentos à corrosão do tempo. Repetia-se à exaustão
tudo aquilo que Plínio, o Velho, escreveu sobre pintura ' e não foi muito ' na
sua História natural, sem que um único quadro pudesse testemunhar a beleza das
"Jovens de Crotona", pintadas por Zeuxis, ou a "Calúnia" de Apeles, conhecida
por uma descrição de Luciano.
O que justificava paradoxos dessa natureza era a firme convicção da condição de
herdeiros que os homens cultos da Renascença tinham com relação à Antigüidade.
Sem ter uma noção muito clara do que era a pintura na Antigüidade, os artistas
do Renascimento consideravam, no entanto, incontestável sua superioridade e,
diante disso, tinham como preceito a necessidade de tomá-la como modelo. Mas,
dada a vacância das obras, restava-lhes como parâmetro sobretudo o discurso. No
entanto, na medida em que o discurso, longe de ser a descrição transparente de
uma realidade a ele exterior, trazia consigo não apenas os preceitos retóricos
de sua própria constituição, mas reconstituía o mundo a partir desses
preceitos, a pintura fazia-se retórica. Daí a impossibilidade de se separar o
universo relativo às artes do desenho do sistema de educação que o Renascimento
recebeu da Antigüidade, no qual a retórica tinha um lugar central. Assim, o
programa que norteou a prática dos artistas, a partir do século XV, só poderia
realizar-se mediante a transformação das artes do desenho em Artes Liberais.
Mas tudo isso tem um pouco de realidade e um pouco de ficção, pois a pintura,
que nunca deixou de existir no milênio medieval, tinha seu próprio sistema de
formação e de reprodução, no âmbito das Artes Mecânicas, na condição de ofício.
E o pintor ganhava dinheiro com isso. No que diz respeito às Artes Liberais,
pelo contrário, como bem lembra Curtius, "são estudos que não servem para
ganhar dinheiro. Chamam-se "liberais" porque dignos de um homem livre" (1996,
p. 72). Daí, uma das contradições nunca resolvidas, pois a pintura era coisa de
terceiro estado e, mesmo elevada, continuou sendo, já que só excepcionalmente
foi subtraída do universo do dinheiro. E mesmo na Itália, onde primeiro
vicejaram essas idéias e as instituições correspondentes, até no século XVII,
muitos pintores, mesmo alguns de renome, estavam submetidos ao estatuto da
servitù particolare, que definia a relação do artista com a casa da nobreza que
o acolhia (Haskell, 1997, p. 22).
Por outro lado, a afirmação da pintura como Arte Liberal dependeu de uma nova
concepção do desenho que diminuiu a importância da habilidade manual e inflou o
espírito: o "desenho externo", obra do olho e da mão, passou a ser subordinado
ao "desenho interno", à idéia. Mas, como conciliar esses preceitos com a
prática rotineira dos pintores que, salvo raras exceções, não tomavam para si a
tarefa de elaborar o conceito de seus quadros?
Seja no século XV, quando Alberti deu os primeiros passos para a constituição
da idéia do pintor erudito, cujo protótipo era o doctus poetada Antigüidade,2
seja no século XVII, quando as Academias eram uma realidade consolidada, a
maioria dos pintores quase nunca tinha em seu ateliê um quadro pronto,
elaborado segundo seu projeto e vontade, à espera de um eventual comprador. Os
quadros eram ordinariamente encomendados, tendo especificados o assunto, o
número de figuras, as dimensões, os materiais; era também comum, quando o
contrato deixava vago o tratamento do assunto, o recurso de o pintor chamar um
poeta amigo para o trato da inventio(Idem, pp. 26-41).
Outro dado que deve ser levado em conta para o exame do problema da elevação da
pintura à condição de Arte Liberal diz respeito aos gêneros. Nem todo pintor,
nem toda pintura eram dignos de tal título, equivalente a um reconhecimento de
nobreza. Na hierarquia dos gêneros, o mais alto era aquele que tratava de
grupos de personagens com temas clássicos ou bíblicos, logo abaixo os retratos,
em seguida, em ordem descendente, a pintura de animais (vivos e em movimento),
as paisagens e, por fim, as naturezas mortas. Quase que exclusivamente a
pintura de his- tória, com seus grupos de personagens, era a que tinha direito
de cidadania entre as artes maiores, já que era nela que o pintor figurava mais
próximo do orador e do poeta. Admitia-se também o retrato, de um lado porque
quase todos os grandes mestres da pintura narrativa foram retratistas, de
outro, porque o retrato também podia ser assimilado ao gênero demonstrativo na
versão laudatória, tão importante em retórica e poética. Havia, portanto, entre
os pintores uma clivagem que mantinha alguns na velha condição dos ofícios
mecânicos, enquanto outros alçavam a condição de praticantes das Artes
Liberais.
Contraditória e imperfeita, a condição da pintura como Arte Liberal, vitoriosa
no plano das idéias, foi aos poucos liberando os artistas das velhas
corporações e de seus intrincados regimentos. Além disso, o conhecimento da
pintura passou a ser recomendado no processo formativo do homem de Corte, o que
se atesta pelas sempre lembradas páginas de O cortesão de Castiglione, nas
quais se diz que, de modo algum, pode ser negligenciado o conhecimento teórico
e prático da pintura:
Não se espantem com meu desejo de que ele [o cortesão] pratique essa
arte, que hoje pode parecer mecânica e pouco conveniente a um
fidalgo, pois me lembro de ter lido que os antigos, em toda Grécia,
sobretudo, desejavam que as crianças nobres se dedicassem nas escolas
à arte da pintura, como a uma coisa honesta e necessária. A pintura
foi admitida no primeiro grau das artes liberais, sendo em seguida
proibido por meio de édito público que fosse ensinada aos escravos
(Castiglione, 1991, p. 92).
Se é duvidoso que essa sugestão tenha sido realmente incorporada como uma
rotina na formação do homem de corte, ao menos é claro que os saberes ligados à
pintura transformaram-se em um elevado valor, a ponto de, um século mais tarde,
na famosa série pintada por Rubens para a galeria do Luxemburgo, ver-se numa
das telas, dedicada à educação de Maria de Médicis, junto de outros
instrumentos simbolizando a importância das Artes Liberais na formação da
princesa, paleta, pincéis, martelo e cinzel testemunhando que ela também fora
instruída nas artes do desenho.
Vidas de artistas e academias portuguesas entre Lisboa e Roma
Como é sabido, até o século XIX, na América portuguesa, a pintura era praticada
por homens de condição inferior, muitas vezes mestiços ou negros egressos da
escravidão; e foi apenas com a transferência da Família Real para o Rio de
Janeiro que teve início o processo que inverteu a equação definidora do lugar
social da pintura no Brasil.
Cabe ressaltar que, em certa medida, esse processo não é fruto de um movimento
cultural que possa ser considerado português, apesar das condições para seu
curso terem tido origem na experiência civilizatória da monarquia portuguesa no
Brasil. Pode-se dizer até que o ensino das belas-artes e a formação de um
sistema social a elas correspondente caminhou relativamente mais rápido no
Brasil do que em Portugal, a despeito da longa história da pintura portuguesa e
de seus tantos protagonistas. Ao menos é o que aparentemente se deduz do fato
de a experiência acadêmica ter sido rotinizada mais cedo no Rio de Janeiro do
que na antiga metrópole. Chama a atenção o fato de em 1932 ter-se fundado uma
Academia Nacional de Belas-Artes em Lisboa, "com caráter verdadeiramente
acadêmico", como está dito no decreto de sua criação (Decreto, 1932). O que não
quer dizer que a experiência acadêmica inexistisse antes em Portugal, mas é uma
indicação do caráter efêmero que tiveram as instituições similares anteriores.
Nos séculos XVI e XVII proliferaram academias em Portugal, mas nenhuma delas
dedicadas às belas-artes. Foram, em geral, reuniões efêmeras de letrados em
busca de alguma ocupação, nas quais circulavam suas produções literárias. O
nome de uma delas é bem emblemático: Academia Instantânea; assim como são muito
sugestivos quase todos os nomes pelos quais foram conhecidas: Academia dos
Generosos, dos Singulares, das Conferências Discretas ou Eruditas, dos
Solitários, dos Melancólicos, dos Enredados, dos Uniformes, dos Fantásticos,
dos Negligentes, dos Anônimos, dos Sagrados Concílios, dos Aplicados, dos
Infecundos etc. No âmbito das artes do desenho, deve-se destacar a fundação, em
1602, da Irmandade de São Lucas, que agregava pintores, arquitetos, escultores,
iluminadores e pessoas que praticassem algum tipo de desenho ou pintura
amadoristicamente, mas esta instituição não teve qualquer caráter acadêmico;
como de hábito, foi uma associação de ajuda mútua e de apoio funerário. Em 1791
foi proposta uma reforma que previa a criação do ensino das artes em seu
interior, mas até a invasão francesa de 1808, quando a Irmandade foi
praticamente dissolvida, nada do que foi planejado havia sido posto em prática
(Costa, 1932).
Instituições acadêmicas relacionadas às belas-artes foram criadas no século
XVIII, mas fora de Portugal, e também não foram muito duradouras. A Academia
Portuguesa das Artes em Roma (Costa, 1935, p. 22), fundada por D. João V, foi
extinta em 1760 quando Portugal rompeu relações com a Santa Sé depois da
expulsão dos jesuítas; e o Colégio Português de Belas-Artes em Roma, criado em
1791, foi extinto em 1797 quando da invasão dos Estados Pontifícios por
Napoleão. Essas academias portuguesas na Itália, e o trânsito permanente de
artistas que eram enviados à península para completar seus estudos em escolas
ou ateliês locais, esvaziaram em certa medida a possibilidade de criação de
instituições duradouras em Portugal. O que lá funcionou, foram escolas ligadas
às grandes obras, como Mafra, ou depois o Paço da Ajuda; ou às manufaturas
reais, a partir da época de Pombal. Em Mafra, entre 1753 e 1770, funcionou uma
escola de modelagem e escultura cujo mestre foi o artista romano Alexandre
Giusti; na Oficina da Fundição de Artilharia do Arsenal Real do Exército,
funcionou uma escola de desenho, gravura e lavra de metais; na Fábrica Real de
Sedas, na Imprensa Régia e Real Fábrica de Cartas de Jogar também funcionaram
aulas de desenho e gravura. Além dessas, a Casa do Risco e o Colégio Real dos
Nobres mantiveram escolas de desenho.
Todas essas experiências expressam o conhecido pragmatismo português, que, do
ponto de vista da arte, cuidou de criar soluções ad hoc para responder a
demandas específicas, e nenhuma delas criou o aparato necessário para alcançar
o estatuto de academia, como em outras partes da Europa. Apesar dos tantos
empreendimentos urbanos que mobilizaram Lisboa depois do terremoto de 1755, das
ousadas iniciativas da época pombalina no que diz respeito à criação e ao
fortalecimento das manufaturas reais que perduraram na época de Dna. Maria Ia,
o ambiente parecia ser acanhado demais E, sobre isso, é sempre lembrada a
anedota acerca do que se passou em meados do século XVIII, quando os artistas
Francisco Vieira Lusitano e André Gonçalves tentaram fundar uma verdadeira
academia em Lisboa, experiência abortada logo de início, quando o povo
apedrejou as janelas da casa onde deveriam funcionar as aulas, em razão do
escândalo causado pela notícia de que nela estaria em exibição um modelo nu
para o trabalho dos alunos.
No início dos anos de 1780, várias iniciativas ligadas às artes do desenho
estavam em curso em Lisboa. Sob os auspícios do poderoso intendente (e chefe de
polícia) Pina Manique, na Casa Pia de Lisboa começou a funcionar uma Aula de
Desenho. Nesta mesma época, Joaquim Carneiro da Silva criava a Aula Régia de
Desenho e Figura, e Cyrillo Volkmar Machado dava início a uma instituição
concorrente batizada Academia do Nu. Como todas elas tiveram dificuldades com
instalações e financiamento, Pina Manique, em 1785, unificou essas iniciativas
em uma única instituição que funcionou na Casa Pia.
Os artistas que se destacavam nessas instituições eram enviados a Itália para
completar seus estudos; e, em razão deste trânsito, é que foi criado pelo
embaixador D. Alexandre de Souza Holstein o Colégio Português de Belas-Artes,
com sede em Roma.
É nesse contexto que se deve destacar outro empreendimento de Cyrillo Volkmar
Machado (1748-1823), que buscou preencher uma enorme lacuna que caracterizava o
ambiente artístico português. Trata-se da publicação de Coleção de memórias
relativas às vidas dos pintores, e escultores, arquitetos, e gravadores
portugueses, e dos estrangeiros, que estiveram em Portugal. Pelas iniciativas
no sentido de se criar uma academia em Lisboa e pela pesquisa que originou este
livro, percebe-se que Cyrillo pretendia para si o papel de Vasari nas artes
portuguesas. Da mesma maneira que seu ancestral florentino, começou por
recolher todas as notícias sobre vidas de artistas que circularam em Portugal
até a sua época. E, agregando a estas informações o que ele mesmo obteve em
arquivos e outras memórias, tentou preencher "este vácuo que se acha na
história geral da Arte" (Machado, 1823, p. 6), que diz respeito ao
desconhecimento da "Escola Portuguesa", tanto por autores portugueses como por
estudiosos que se dedicaram às belas-artes no conjunto da Europa. O trabalho de
Machado teve início em 1793, e uma primeira versão começou a circular em 1794,
mas a obra completa, composta por notícias de 150 artistas, só veio a público
em 1823, ano do falecimento de seu autor.
No período que separa o aparecimento da primeira versão de Coleção de memórias
de sua edição definitiva, outro livro, com objetivos em parte semelhantes, veio
a público. Trata-se de Regras da arte da pintura, livro que tem como
complemento uma Memória dos mais famosos pintores portugueses, e dos melhores
quadros seus, que foi editado em 1815. A primeira parte é uma tradução de um
tratado italiano de Michael Angelo Prunetti, de 1786. O tradutor do tratado e
autor da Memória é José da Cunha Taborda (1766-1836). A Memória traz notícias
de 129 artistas, a começar por Álvaro Pedro (Álvaro Pires de Évora, início do
século XV) e terminar com Francisco Vieira Portuense (1765-1805).
Apesar de Vieira Portuense ser bem mais novo que Volkmar Machado, Taborda não
dedica um verbete a este último, citando-o apenas de passagem em biografia
alheia. O que é, no entanto, escusável, pois uma das regras desde Vasari era
biografar apenas artistas falecidos. De qualquer forma, chama a atenção o fato
de Taborda desconhecer o trabalho prévio de Volkmar Machado que já havia
circulado no exíguo meio artístico português.
Taborda é quase duas décadas mais novo do que Cyrillo Machado, mas suas
trajetórias guardam muitas semelhanças. Ambos completaram suas formações
artísticas em Roma ' Machado em meados da década de 1770 e Taborda entre 1788 e
1797, como pensionista no Colégio Português de Belas-Artes. Ambos atuaram nas
incipientes instituições acadêmicas em Lisboa e trabalharam como pintores de S.
A. R. (sua alteza real) em importantes obras públicas, como Mafra e o Paço da
Ajuda.
Eles também assumiram o papel de realizar tarefas decisivas no ambiente
artístico português. Buscaram concretizar a dupla articulação, por meio da qual
as artes do desenho passaram a ser consideradas uma atividade superior em
outros cantos da Europa: fundar instituições para a formação e a consagração de
artistas e nobilitá-los por meio do trabalho das biografias, que realçavam seus
feitos e destacavam sua importância na história de Portugal. Mas, a despeito de
seu esforço, as academias não foram tão bem, e o sistema começou a ruir pelo
alto quando o Colégio Português das Belas-Artes, que mal começara a dar seus
primeiros frutos, foi obrigado a fechar suas portas na Roma invadida pelos
exércitos franceses, que, uma década mais tarde, alcançariam Lisboa. Já as
vidas de artistas, que eram apenas papel e podiam sobreviver a tais
transtornos, estavam ainda em um estágio primitivo e, como tal, eram cheias de
lacunas e erros.
Escrevendo sobre as Vidasde pintores, escultores e arquitetos que Vasari trouxe
a lume em meados do século XVI, André Chastel faz referência à enorme alteração
que ocorreu com o livro entre a primeira edição de 1550 e a segunda, de 1568.
Depois que o livro veio a público, Vasari foi obrigado a aceitar toda a espécie
de críticas relativas às histórias que estavam mal contadas, aos autores ou às
obras esquecidos ou negligenciados. E foi suficientemente hábil para tirar
proveito disso, constituindo uma rede de colaboradores que ajudaram a corrigir
ou completar informações. E ele mesmo tratou de entrevistar sobreviventes da
última geração de artistas, realizando para isso viagens à Itália Central e à
Itália do Norte. Com isso, pôde conhecer diretamente muitas das obras e
reavaliar suas opiniões, dando ao seu livro uma dimensão antes não prevista. E
Chastel conclui:
O novo texto é para o século XVI de uma inesperada riqueza de
informações; e a comparação entre as duas versões, por meio do jogo
das correções e das adições, fornece também um resumo inestimável da
evolução das idéias e dos gostos durante os quinze anos da
reelaboração. Vasari pôde suavizar seus critérios e nuançar a
doutrina; o que é bem evidente no que concerne a Veneza, onde as
publicações de Aretino e a glória universal de Ticiano tornaram
necessária a admissão do ideal não florentino da cor (1981, p. 24).
Este caminho, que Chastel observou nas duas edições do livro de Vasari, foi um
pouco o caminho de todas as vidas. A biografia de artistas foi trabalho que
envolveu gerações, algumas feitas para completar, outras para se opor,
formando, assim, linhagens e textos. Cyrillo Volkmar Machado tinha consciência
do movimento desses textos e de sua importância. Faz referência aos seus
ancestrais da Antigüidade e aos modernos (Machado, 1823, pp. 3-4), mostrando
que muitos deles ocuparam-se de escolas específicas: "Nem somente cada nação,
mas cada cidade da Itália quis prezar-se de ter visto nascer no seu seio alguns
artistas famosos [...]". E indica que, com isso, as escolas identificaram suas
especificidades, seus "sinais característicos". E termina por constatar que
"nenhum escritor tem falado até agora da Escola Portuguesa" (Idem, p. 6).
Atividade propriamente acadêmica, a redação de vidas de artistas estava no
horizonte imediato da geração de Cyrillo Machado e poderia ter continuidade não
fosse a incúria do meio, não fossem as guerras que desmontaram aquilo que mal
havia sido articulado.
O esforço genealógico e histórico para o conhecimento da chamada Escola
Portuguesa só foi retomado algum tempo mais tarde por frei Francisco de S.
Luiz, dito o Patriarca, que publicou Lista de alguns artistas portugueses, em
1839. E, pouco mais tarde, foi a vez do conde Raczynski, historiador alemão da
Academia de Berlim, apresentar suas contribuições em Les arts en Portugal,
dando continuidade aos trabalhos iniciados por Machado e Taborda. Aquilo que
Vasari conseguiu fazer entre as duas primeiras edições de seu livro demorou um
pouco mais em Portugal, na espera deste alemão que estudava arte portuguesa e
escrevia cartas, em francês, para seus colegas em Berlim, que seriam publicadas
em Paris, em 1846.
Raczinsky foi o primeiro a mostrar as lacunas da obra de Cyrillo Machado,
apontando principalmente para o fato de que a Coleção de memórias, apesar de
pretender abarcar a arte portuguesa desde o século XV, cobre apenas os cem anos
anteriores ao autor, sendo que as informações relativas aos séculos XV, XVI e à
primeira metade do XVII levam em conta apenas 27 artistas distribuídos em 33
páginas, das quais seis são consagradas ao Gran-Vasco, que Machado não conhecia
plenamente, e quatro, a Francisco de Holanda, que parecia conhecer e julgar mal
(Raczynski, 1846, p. 445).
Depois da geração de Cyrillo Machado quase tudo veio abaixo com as invasões
napoleônicas e a transferência da Corte para o Rio de Janeiro. E se o ambiente
artístico em Portugal era até então incipiente, precisou esperar um longo tempo
para rearticular-se. Não apenas o tempo do domínio francês na Europa, que
terminou em 1814, mas os anos de crise, revoluções e guerras civis que
conturbaram Portugal até a derrota final dos Miguelistas em 1834.
O que parece claro é que no período entre 1714 ' quando D. João V enviou os
primeiros pensionistas a Roma ' e 1834, que corresponde à época em que o regime
das academias se tornou absolutamente generalizado na Europa (Pevsner, 1999, p.
129), aquilo que poderia ter sido criado em Portugal foi deslocado para Roma ou
para o Rio de Janeiro. Pode-se dizer que a Academia das Belas-Artes, criada no
Brasil em 1816, é a primeira instituição portuguesa deste gênero que não teve
vida efêmera.3 As duas Academias que surgiram simultaneamente em 1836 em Lisboa
e no Porto são um tanto tardias. Criadas no governo liberal de Passos Manoel,
essas Academias serviram também como depósitos de bens artísticos pertencentes
às ordens religiosas que foram nacionalizadas em 1834. Tais coleções estiveram
na origem do Museu Real de Belas-Artes e Arqueologia, aberto ao público em
1884, instituição que, depois de 1911, transformou-se no Museu de Arte Antiga.
Originariamente, essas Academias tinham funções honoríficas, pedagógicas e
culturais. Do ponto de vista do ensino, a estrutura da Academia de Lisboa era
relativamente simples ' composta por um diretor, sete professores efetivos,
cinco professores suplentes e 29 artistas agregados; dividia-se em sete
"salas": desenho histórico, pintura histórica, pintura de paisagem,
arquitetura, escultura, gravura histórica, gravura de paisagem; oferecia também
cursos noturnos para a formação de operários: aulas de geometria e arquitetura,
desenho de ornamentos, desenho histórico e estudo do modelo vivo (Raczynski,
1846, p. 445). Em 1862, a Academia de Lisboa ganhou o título de Real Academia,
e, em 1881, foi reformada subdividindo-se Academia e Escola. Em 1911, foram
extintas e substituídas por Conselhos de Arte e Arqueologia (Costa, 1932).
Apesar de mal instaladas em velhos conventos, de mal subvencionadas e
dependentes de um corpo docente relativamente antiquado (França, 1999), nada
disso impediu que no âmbito dessas Academias surgissem artistas de grande
talento, como atesta a magnífica coleção de pintura do Museu do Chiado, que, na
parte relativa ao século XIX, apresenta uma plêiade de artistas de grande
talento formados diretamente na estrutura de ensino criada por elas.
No entanto, apesar da vivacidade do ambiente artístico português, a partir de
meados do século XIX, tem-se a impressão de que aqueles elementos básicos de
reconhecimento histórico e biográfico, fundamentais para se solidificar a idéia
de Escola (portuguesa), não estavam suficientemente articulados em instituições
e práticas artísticas.
O que precisa ser levado em conta no exame desses séculos de experiência
portuguesa não é, portanto, a ausência da pintura ' ou do gosto pela pintura ',
pois ela esteve sempre lá, articulada à arquitetura, à escultura e a outros
ofícios na construção do notável patrimônio de obras religiosas e civis que
distinguiram Portugal; nem mesmo a ausência de uma reivindicação bem-sucedida
no sentido de considerar, para efeitos fiscais, a pintura a óleo uma Arte
Liberal (Serrão, 1983); mas a ausência de um discurso e de instituições
correspondentes, com a função de destacar a pintura verdadeiramente das outras
artes e ofícios, a fim de dar a ela uma perspectiva histórica e biográfica, e
de criar para ela um sistema próprio, como ocorreu em outras regiões da Europa.
Chama a atenção, por exemplo, o fato de Nuno Gonçalves, pintor português do
século XV, cuja importância é hoje reconhecida, ter sido redescoberto apenas no
século XX, por José de Figueiredo (1872-1938), historiador da arte e mentor da
nova Academia que se formou em 1932, cujos trabalhos se voltaram para o resgate
daquilo que chamou de Escola portuguesa de pintura dos séculos XV e XVI.
Enquanto em Florença, com Paolo Giovio e Vasari, a pintura foi inscrita na
história da cidade como uma de suas glórias, e as biografias de artistas
proliferaram, dando um novo sentido para o antigo modelo de Plutarco e
Suetônio, em Portugal nada disso ocorreu até o início do século XIX, e os
pintores, mesmo quando notáveis, caíram no esquecimento. Além disso, a
organização da arte em academias criou um sistema de educação, no qual o que se
dizia da pintura tinha uma importância decisiva, tanto para a formação das
novas gerações como para a emergência da referida consciência histórica.
Um indicativo da escassez de referências sobre a vida dos pintores em Portugal
é a própria ausência do nome do artista em época em que isso não era mais
freqüente. Nas histórias da pintura portuguesa do século XVI ' escritas no
século XX ' é comum encontrar referências ao Mestre do Políptico de Viseu, ao
Mestre do Sardoal, ao Mestre da Charola de Tomar, aos Mestres de São Francisco
de Évora, ou simplesmente ao Mestre Desconhecido (Pamplona, 1948)! E esse
desconhecimento da identidade dos pintores vai além, tanto que um dos mais
importantes retratistas portugueses do século XVII, Domingos Vieira, só teve
sua existência pessoal claramente definida na década de 1930. Apesar de quadros
seus serem conhecidos, até então era confundido ou com um certo Domingos
Barbosa ou com um homônimo seu, também pintor, mas um tanto mais velho (Santos,
s. d, p. 43). Problemas de atribuição sempre foram complexos em todos os
cantos, mas em Portugal o que se via é mais do que isso, muitas vezes a própria
identidade do pintor era desconhecida.
Foi necessário esperar pelos anos de 1920 para se ver Eugênio D'Ors, com sua
vertiginosa imaginação estética, dizer que "[...] desponta em Nuno Gonçalves um
modo novo que encontrará na pintura de Velázquez a sua expressão acabada"; ou
então que "o verdadeiro pai da pintura espanhola é Nuno Gonçalves, do mesmo
modo que a fonte secreta do plateresco é, provavelmente, o manuelino". Ou
então, na continuidade de sua reflexão sobre a arte portuguesa, Eugênio D'Ors
destaca:
Eis o retrato de Dona Isabel de Moura, por Domingos Barbosa [Domingos
Vieira], um pintor do qual se ignora tudo e que, contudo, não estava
talvez muito afastado de Velázquez [...], vemos que Domingos não
devia nada a Diogo quanto ao realismo, à sobriedade, ao moderno. E
que, quanto ao último ponto [...] ele ultrapassava-o mesmo: um olhar
como o de Dona Isabel, não o encontraríamos provavelmente em todo o
repertório iconográfico de Velázquez: é-nos necessário chegar a Goya
para nos confrontarmos com olhos que nos fitam assim (s. d, pp. 118,
122, 127).
E as vidas desses pintores, até o século XX, eram muito pouco conhecidas em
Portugal!4
A invenção de uma linhagem de artistas brasileiros
É sabido o quanto a tradição neoclássica francesa desprezava o barroco, mesmo
aquele tão próximo dela, da Itália ou da Espanha (Gomes Jr., 1998). E foi essa
escola que, por meio da Missão Francesa, ocupou-se de ensinar aos brasileiros
os princípios das artes do desenho. Ensinar é a palavra certa, pois o que até
então existia não era por eles bem considerado arte, mas coisa de pintamonos.
Essa idéia, de tão arraigada, por muito tempo permaneceu no pensamento de
alguns descendentes da Missão. Historiador da Missão, Affonso Taunay, em 1912,
afirmava:
Mau grado os esforços encomiásticos de alguns escritores, inspirados por
exagerado nacionalismo, o que resulta aos olhos dos julgadores imparciais é que
a arte brasileira dos princípios do século XIX era, e fora até então, quase
nula.
Salvo uma ou outra manifestação de medíocre intuição do ofício, neste ou
naquele primitivo, os nossos pintores e escultores só haviam dado mostras de
maior rudimentariedade artística. Nas nossas feíssimas igrejas, exceção feita
de uma ou outra, a decoração interna e as telas e painéis provinham de
verdadeiros pintamonos (1912, p. 6).
Se o espírito do movimento artístico no Brasil do século XIX tivesse
permanecido restrito a essa avaliação de Taunay, algo de muito importante teria
falhado no projeto que estava em curso. Do ponto de vista das idéias, Affonso
Taunay é coerente com quase tudo que se pensava sobre pintura no Brasil no
século XIX, mas em 1912, quando publicou o livro, já começava a ser voz
discordante, em razão da recente reavaliação da arte barroca. No entanto, se
tomarmos como referência a atuação de Manuel Araújo Porto-Alegre, o mais
destacado aluno de Debret, vê-se que, a despeito das opiniões correntes no seu
tempo, ele deu início a um trabalho no sentido do reconhecimento e do estudo da
arte da América portuguesa nos séculos XVII e XVIII. É exemplar, quanto a isso,
a "Memória sobre a antiga escola de pintura fluminense", que Porto-Alegre
publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1841.
Apesar de muito breve e impreciso, esse escrito inscreve-se no âmbito de uma
crescente preocupação genealógica, que teve o sentido de estabelecer linhagens
que atestassem a continuidade entre o projeto civilizador do império e as
manifestações culturais anteriores. Do ponto de vista das artes, enquanto a
avaliação de Taunay pressupunha um abismo entre o velho e o novo mundo, que
surgiu do trabalho missionário dos franceses, Porto-Alegre voltava seus olhos
para um passado não tão longínquo, e dava início a um tipo de pesquisa que teve
a virtude de forjar uma aliança entre o passado e o presente. Além disso, por
mais que seu gosto, formado na escola de David, tendesse a reprovar aquele tipo
de arte, atribuiu o nome de "escola" ao grupo de pintores que atuaram no Rio de
Janeiro de fins do século XVII ao início do XIX. Com isso, tirou do anonimato
frei Ricardo do Pilar, José de Oliveira, Manuel da Costa, Francisco Muzzi, João
de Souza, Manuel da Cunha, Leandro Joaquim, um certo "afamado" Raymundo e,
finalmente, José Leandro.
Além desta "Memória", Porto-Alegre escreveu dois outros textos, uma pequena
biografia de "Manuel Dias, o Romano" e "Iconografia Brasileira", no qual
resgata e faz o elogio histórico de Francisco Pedro do Amaral e Valentim da
Fonseca e Silva, que foi o mais importante artista que atuou no Rio de Janeiro
no tempo dos vice-reis. Mesmo apresentando poucos dados, o que não quer dizer
que a pesquisa tenha sido inexistente, estes textos de Porto-Alegre podem ser
considerados os primeiros no gênero das Vidas de artistas brasileiros. Vidasque
foram enriquecidas, prolongadas e que tiveram em A arte brasileira de Gonzaga-
Duque, de 1888, a manifestação mais acabada na literatura artística do século
XIX. Apesar de o livro de Gonzaga-Duque estar aparentemente estruturado como
uma história da arte ' com enquadramento sociocultural e divisão em fases
("causas", "manifestação", "progresso") ', o princípio biográfico pontua o
texto em toda a sua extensão.
Quando Porto-Alegre na "Memória" começa a falar sobre Frei Ricardo do Pilar,
para ele o fundador da escola, cujas pinturas sacras podiam ser vistas na
igreja e no convento dos Beneditinos no Rio de Janeiro, lembra de compará-lo a
Giotto e Cimabue, o que torna claro o modelo ' mítico ' no qual se baseia para
projetar as glórias da escola fluminense (Porto-Alegre, 1841, p. 550). Quando
começa a narrar as poucas notícias sobre Manoel da Cunha, o quinto mestre da
escola, e lembra que este nasceu escravo, mas a despeito disso teve uma
brilhante carreira artística, está a constatar o que era a característica do
meio, onde predominavam nas oficinas homens pardos ou negros, muitos deles
egressos do cativeiro. Mas está também denunciando "o desleixo das coisas
artísticas no nosso país", que se formou como verdadeira "colônia cartaginesa",
preocupada exclusivamente com o tráfico. Mas esse desleixo agora se transforma
em desvelo, e as idéias do sublime e do belo podem, então, encontrar seu lugar
no Brasil.
A história fantasiosa do édito que, na Grécia antiga, teria proibido o ensino
da pintura aos escravos, como que atestando sua nobreza e sua condição de Arte
Liberal, aqui começa a aparecer invertida. As elites incultas legaram as artes
aos escravos ou a homens de condição inferior que, graças às corporações
religiosas ou a umas poucas famílias previdentes que os ampararam, conseguiram
por meio de seu talento que alguma coisa de sublime e belo pudesse existir na
"colônia cartaginesa". E cabia então destacar o seu mérito e mostrar como, a
despeito de sua origem social, foram eles que formaram a escola, que alcançou
seu momento de glória com as instituições artísticas criadas no Império. Ao
fornecer certos dados biográficos dos artistas da escola (por exemplo: Frei
Ricardo do Pilar nasceu em Flandres; Francisco Muzzi era filho de um italiano;
Manuel da Cunha nasceu escravo, mas aperfeiçoou sua arte em Lisboa; Valentim da
Fonseca era filho mestiço de um fidalgote português e de uma negra, nascido no
Rio de Janeiro mas levado a Portugal para estudar...), ou dados estilísticos e
comparações sobre as obras destes pintores (o Cristo na sacristia do convento
dos Beneditinos de Frei Ricardo do Pilar vai além de Giotto e Cimabue; Manuel
da Costa era uma espécie de Góngora acromático, apóstolo dos delírios
borromínicos; José de Oliveira dominava a ciência da perspectiva, possuía a
valentia do claro escuro e riqueza de imaginação; João de Souza pertencia à
classe dos coloristas; ou que um quadro de Manuel da Cunha era imitação de
Daniel de Volterra etc.), Porto-Alegre inseriu esses artistas na história da
arte do Ocidente europeu, integrando-os a tendências pré-existentes. E, por
meio do resgate da atuação de outros artistas, como Manuel Dias e Francisco
Pedro do Amaral, articulou o passado com o presente.
Manoel Dias é estratégico no raciocínio, pois foi um acadêmico antes da
Academia: "conhecido pelo título de Romano, por haver estudado em Roma, ele foi
o primeiro professor público de desenho, e o que estabeleceu a aula do nu" no
Rio de Janeiro (Porto-Alegre, 1848). Com ele aparecia no Brasil uma nova idéia
de formação artística que, a despeito de ter fracassado naquele momento,
prefigurou o que viria a acontecer com a vinda dos franceses. E Francisco Pedro
do Amaral, biografado por Porto-Alegre em "Iconografia Brasileira", é também
estratégico por ser artista de transição, pois estudou em princípio com José
Leandro, o último dos artistas arrolados na escola fluminense, mas também teve
aulas com Manuel Dias e, por fim, com Debret; tendo se destacado também como
fundador da sociedade de São Lucas, em 1827 (Porto-Alegre, 1856). Com isso,
engatavam-se as duas experiências, aquela que teve início no convento dos
Beneditinos no fim do século XVII, com Frei Ricardo do Pilar, e aquela que
abriu definitivamente o Brasil para as artes com a vinda dos artistas franceses
em 1816.
Ao chamar a atenção para as obras desses artistas, indicando onde estavam,
contando uma coisa ou outra sobre sua história, destacando suas virtudes,
Porto-Alegre começava a criar uma certa consciência de patrimônio artístico,
numa época em que quase ninguém se importava muito com a sobrevivência de
bizarrias barrocas. São veementes na "Memória" os protestos contra a
imprevidência que permitiu que obras se arruinassem com o tempo, ou que
tivessem sido caiadas ou completamente destruídas pela ação do homem. E não se
clama apenas contra o descuido, mas se denunciam também os processos de
transformação histórica que justificam, no entender de seus protagonistas, a
destruição de obras do passado e sua substituição por outras.
Mas, com espírito de arqueólogo e algum otimismo, Porto-Alegre pretende mostrar
que nem sempre a destruição é definitiva e que, no caso de pinturas que foram
sobrepostas por outras tintas, "um processo químico muito simples pode ainda
[fazer] reaparecer as imagens" (Porto-Alegre, 1841).
A "Memória" foi uma peça lida em seção do Instituto Histórico em que estava
presente o jovem Imperador. Suas últimas palavras são dedicadas a D. Pedro II,
e são um incentivo para que o monarca tome para si o projeto de proteger as
artes e preservar o passado artístico no Brasil. É peça epidítica, mas tem um
programa que fica claro quando lida com atenção. Porto-Alegre havia sido
formado nos primórdios da Academia das Belas-Artes e ocupava, então, a cadeira
de pintura de história. Nesse momento, almejando maiores poderes, qualificava-
se para tal com a ambiciosa idéia de destacar as artes no âmbito da Corte. Para
isso, faziam-se necessárias a continuidade e a ampliação do mecenato real, com
a finalidade de destacar a Corte por meio das artes, não apenas aquelas que
eram feitas no tempo, mas também as herdadas do passado, a escola fluminense. A
"Memória" constitui-se em apelo pela ampliação da consciência histórica e pela
preservação do patrimônio artístico. Esta expressão ainda não está presente no
texto, mas o conceito se esboça no percurso da argumentação. No primeiro passo,
inventa-se a antiga escola por meio da narração das vidas e da indicação das
obras, em seguida articula-se o passado com o presente artístico, criando a
idéia de uma linha de continuidade e, por fim, há o protesto contra o
vandalismo e a falta de cuidado com a conservação das obras.5
Diferente da visão expressa por Affonso Taunay em A missão artística de 1816,
estes textos de Porto-Alegre buscavam mostrar que o trabalho da colônia dos
artistas franceses não começou do zero, e que o projeto de uma arte nacional
sob os auspícios da Casa de Bragança no Brasil deveria levar em conta pelo
menos um século a mais de história de práticas artísticas, protagonizadas por
homens de condição inferior que mereciam, naquele momento, ocupar um lugar no
panteão da pátria, ou ao menos o reconhecimento daqueles que, ao redigir suas
biografias, constituíam-se em seus herdeiros.
A se tomar como referência a principal corrente que esteve na base do
neoclassicismo, pode-se dizer que, nos idos de 1823, quando foi publicada em
Lisboa a Coleção de memórias de Cyrillo Volkmar Machado, e de 1841, quando
Porto-Alegre leu sua "Memória" no Instituto Histórico no Rio de Janeiro, as
vidas de artistas eram um gênero em declínio. Desde 1764, quando Winckelmann
(1717-1768) publicou a História da arte da antigüidade, a idéia de história da
arte estabelecida por meio de narrativas biográficas vinha sendo posta em
questão. A fórmula que aparece logo na apresentação do livro de Winckelmann é
lapidar:
Nessa obra, tive como finalidade, acima de tudo, discutir a própria
essência da arte; a história dos artistas, afora uma coisa ou outra,
não faz parte dela, como já foi realizada por tantos outros é vão
procurá-la aqui (1790, p. XI).
Seja por uma diferença metodológica ou simplesmente para afirmar sua
autoridade, o erudito alemão tratava com desprezo aqueles que praticaram o
gênero das vidas. E dava pouca importância à acumulação de detalhes
característica da tradição italiana de estudos sobre arte. Seu objetivo não era
encadear acontecimentos em narrativas cronológicas, mas produzir uma reflexão e
uma explicação da Arte com um conteúdo doutrinário.
O pintor e também teórico do neoclassicismo Anton Raphael Mengs (1728-1779),
que em Roma participou do mesmo círculo de Winckelmann, expressou de forma
bastante clara esta nova perspectiva que viria a orientar os estudos sobre arte
a partir da segunda metade do século XVIII. Ao fazer referência à biografia de
um artista que lhe chegara às mãos, Mengs teceu o seguinte comentário:
Não vejo qualquer interesse nesse gênero de narrativas, mais cheias
de elogios do que de verdade; além disso, já temos suficientes vidas
de pintores. Em minha opinião, o que é necessário são novas histórias
da arte ou, na ausência delas, qualquer coisa que possa instruir o
mundo; por exemplo, descrições dos principais modelos da arte, isto
é, quadros e esculturas dos artistas fundamentais, graças aos quais
podem ser reveladas as regras básicas e tornar compreensível as
razões da beleza de tais obras (Pommier, 1996, p. 209).
Essa passagem é um resumo da disposição intelectual que daria nascimento a um
novo tipo de história da arte, mais centrado no exame de obras exemplares e de
seus estilos do que na vida de seus autores. Depois de Winckelmann, essa
tendência pouco a pouco se impôs e culminou na Storia pittorica della Italia,
do abade Luigi Lanzi, de 1795, e na Histoire de l'art par les monuments, depuis
sa décadence au IVe siècle, jusqu'à son renouvellement au XVIe siècle, de
Séroux d'Agincourt, que começou a ser publicada em 1810. Livros que se colocam
explicitamente na trilha aberta por Winckelmann e Mengs.
Mas, na periferia do sistema das artes do Ocidente europeu, em Portugal e no
Brasil, apesar de aparentemente anacrônicas, as vidas de artistas ainda faziam
sentido, já que, independentemente de serem boa ou má maneira de se falar de
arte, cumpriram um papel social na articulação dos ambientes artísticos em que
circularam. Tanto no Brasil como noutros lugares, a elevação da pintura
dependeu sempre de uma dupla articulação discursiva. De um lado, aquela que, na
perspectiva biográfica, individualiza o artista e, por meio do elogio, confere
a ele a nobreza do mérito; de outro, aquela que o inscreve na tradição da
cidade ou, mais tarde, nas tradições nacionais ' que também o nobilita ', dando
à sua arte uma perspectiva histórica que mescla seus feitos com os feitos da
cidade em armas, letras, artes, ciências e outras virtudes.6
Nesse sentido, pode-se dizer que, se a tarefa biográfica que Araújo Porto-
Alegre tomou para si tinha algo de anacrônico, o que se expressa na recorrente
referência a Vasari que aparece em seus textos ' "Quando o Brasil tiver o seu
Vasari, estas curtas notícias hão de servir de base para trabalhos mais amplos,
e desafiarem pesquisas acerca de nossos artistas primitivos" (Porto-Alegre,
1848)7 ', mesmo no interior do mais compacto bastião do neoclassicismo ' a
Academia de Belas-Artes de Paris ', as biografias de artistas continuavam sendo
um gênero rotineiramente praticado. Quatremère de Quincy, que permaneceu na
condição de secretário perpétuo da Academia entre 1816 e 1839, publicou neste
período grandes biografias de Rafael, Michelangelo e Canova, e também Histoire
de la vie et des ouvrages des plus célèbres architectes du XIe siècle jusqu'à
la fin du XVIIIe, obras que, a despeito das restrições de Winckelmann e Mengs,
deram um alento ao gênero. A biblioteca da Academia Imperial das Belas-Artes,
no Rio de Janeiro, possuía exemplares desses quatro livros, sendo que os três
primeiros foram doados por Porto-Alegre, que tinha também entre seus pertences
Regras da arte da pintura, com memórias dos mais famosos pintores portugueses,
e dos melhores quadros seus de José da Cunha Taborda, e podia consultar Vasari
e Palomino de Castro na pequena mas preciosa coleção disponível no palácio da
Academia, no Rio de Janeiro (Gomes Jr., 2003).
Notas
1 O livro As academias de arte de Nikolaus Pevsner (1999), pioneiro e ainda
hoje essencial, é exemplo do primeiro tipo de abordagem: uso intensivo das
vidas como fonte sem o tratamento detalhado de sua importância na formação das
academias. O mesmo pode-se dizer do esclarecedor trabalho de Haskell, Mecenas e
pintores (1997), dedicado ao estudo do universo social dos artistas. O melhor
exemplo do segundo tipo são os artigos de Les vies' d'artistes, publicação
derivada de um colóquio internacional ocorrido no Louvre em 1993, sob a direção
de Matthias Waschek (1996). Sobre a articulação das vidas com a elevação social
dos praticantes das artes do desenho, merece destaque o excelente livro de
Warnke, O artista de corte(2001). Em perspectiva sociológica, o trabalho de
Nathalie Heinich, Du peintre a l'artiste (1993), também merece destaque, pois
examina o gênero das vidas na França e o articula com a problemática da
assinatura e dos auto-retratos, mas é um exemplo de boa articulação com pouca
pesquisa. Sobre Vasari, a bibliografia é vasta, mas é de muito interesse a
apresentação de André Chastel à tradução francesa do mestre toscano Les vies
des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes, comentada adiante (Chastel,
1981). Anterior a todas essas referências, o livro de Julius Schlosser, La
literatura artística, de 1924, continua sendo fonte de consulta essencial não
apenas sobre o gênero das vidas, mas sobre toda a literatura artística
(Schlosser, 1976).
2 O delineamento do pintor erudito começa quando Alberti diz não ser "fora de
propósito que eles [os pintores] tomem gosto pelos poetas e pelos oradores,
pois estes têm em comum com os pintores um grande número de ornamentos. Os
escritores que apresentam conhecimentos abundantes serão úteis para o bom
agenciamento da composição da história, cujo mérito reside essencialmente na
invenção" (op. cit., Livro III, p. 213); e mais adiante exemplifica: "O egrégio
pintor Fídias confessava que havia aprendido em Homero com qual majestade é
necessário pintar Júpiter" (Idem, p. 215).
3 A retomada das artes com D. João V, em Portugal, e a circulação de artistas
entre Lisboa e Roma foi possível graças ao fim da Guerra de Sucessão da
Espanha, que envolveu boa parte da Europa, e que abriu para Portugal um longo
período de paz, só interrompido quase um século depois com as guerras
napoleônicas.
4 É muito ilustrativo desta lacuna o fato de um pesquisador brasileiro, Jaelson
B. Trindade, ter, em 1998, descoberto um pintor português do século XVIII. E o
fato de ser um pintor que atuou em Lisboa no século XVIII deve ser sublinhado,
pois não se trata de alguém perdido em uma província em época remota. A
cuidadosa reconstituição da trajetória e da obra do pintor Bernardo da Costa
Barradas está acessível em Trindade (1998). Outro exemplo que merece destaque é
a recente tradução e publicação de Poesia e pintura ou pintura e poesia de
Manuel Pires de Almeida (Muhana, 2002), tratado escrito em latim em 1633, que
permaneceu inédito até 2002, quando foi cuidadosamente editado e comentado por
Adma Muhana, professora da Universidade de São Paulo. O que é uma demonstração
de que também a reflexão sobre a pintura produziu pouca ressonância no ambiente
artístico português.
5 Em 1942, Hannah Levy publicou na Revista do SPHAN um esclarecedor artigo
intitulado "A pintura colonial do Rio de Janeiro". Hannah Levy revisita a
escola fluminense e todos os estudos sobre ela, desde a "Memória" pioneira de
Porto-Alegre. Suas conclusões são de muito interesse, pois demonstra que os
estudos posteriores à "Memória" se limitaram a recopiar Porto-Alegre, sem se
dar conta de que a "Memória" deveria ser entendida como "fonte intencional" e
estava cheia de lacunas. Duas conclusões são importantes nesse artigo: as obras
da escola "não apresentam nenhum traço que deixe reconhecer que um artista se
tenha inspirado na natureza e no ambiente em que viveu"; e responde
negativamente à pergunta de "se é possível reconhecermos influências exercidas
por um artista sobre outro, dentro da própria pintura carioca" (Levy, 1942, p.
60, 66). Desfaz-se, assim, a idéia de escola. Mas, o que Hannah Levy deixa de
levar em conta é que Porto-Alegre ao redigir vidas seguia um impulso originário
do próprio gênero, que costumava coroar as biografias dos artistas com a idéia
de uma constelação formadora de escola. Verdadeiras ou falsas, tanto as vidas
como as escolas, tinham, antes de tudo, um papel social a cumprir.
6 A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro possuía uma seção
permanente com o título de "Biografias dos Brasileiros Distintos por Letras,
Armas, Virtudes etc.", na qual Porto-Alegre publicou "Manoel Dias, o Romano".
7 Apesar de conhecer Winckelmann, a quem faz referência no texto sobre Manoel
Dias, Porto-Alegre não clamava por ele, mas por Vasari.