Antonio Colbacchini e a etnografia salesiana
O vasto problema das relações histórico-políticas entre índios e missionários
cristãos tem como pano de fundo uma questão antropológica de fôlego ' a
produção material e simbólica da alteridade cultural. Se toda cultura formula
um modo de pensar o outro ' seja como inimigo, selvagem, bárbaro, seja como
igual ' refletir sobre a atividade missionária é compreender o modo como ela
construiu, historicamente, uma perspectiva antropológica particular da
diversidade cultural. Com efeito, em todos os continentes em que ela se
desenvolveu, e em todas as épocas, essa atividade foi constantemente pautada
pelo objetivo de produzir passagens materiais e simbólicas entre um "outro"
irredutível em suas diferenças para um "outro" pensável e universalizável.
Neste esforço produziu uma obra etnográfica considerável, fonte de inspiração
para historiadores, lingüistas e antropólogos.
Neste trabalho tomarei como objeto de minha reflexão as etnografias
missionárias dos padres salesianos, em particular do Padre Antonio Colbacchini,
produzida entre os anos de 1920 e 1930 no Brasil, sobre os índios Bororo do
Mato Grosso.1 A questão principal que move o exame desta literatura etnográfica
é compreender a especificidade e a particularidade de sua construção textual.
Para tanto, será preciso revelar também seus interlocutores intrínsecos no
contexto histórico particular em que foi produzida. Se o empreendimento for
bem-sucedido, compreenderemos os mecanismos simbólicos e políticos que são
postos em ação em um determinado momento para produzir uma determinada imagem
do índio e construir ' para a sociedade brasileira ' uma visão convincente e
assimilável sobre seu modo de vida e sobre o que poderia ser entendido como sua
"cultura".
Como base desta análise, proponho, em primeiro lugar, um breve esboço do
contexto sociopolítico da época em que se inicia a atividade missionária
salesiana no Brasil.
O projeto salesiano no Brasil
Os Congregados de Dom Bosco chegaram ao Brasil no final do Império de D. Pedro
II, em 1883, com o beneplácito do Imperador.2 Embora ainda prevalecesse o
trabalho escravo, idéias progressistas começavam a mover-se em torno dos
grandes plantadores de café. O impacto na imprensa da primeira exposição
industrial, inaugurada na corte em 1881, indica que as idéias de progresso e
modernidade, que vinham associadas à introdução de máquinas industriais na
manufatura têxtil e cafeeira, já começavam a sensibilizar as elites
proprietárias. As idéias liberais e republicanas enfraqueciam o regime; ainda
assim, alguns dos objetivos que o imperador tinha em mente quando pediu ao
Vaticano a vinda dos salesianos não perderam sua premência com a República: 1)
oferecer uma boa educação para os filhos dessa elite modernizadora e uma
profissão para os jovens migrantes urbanos; 2) assegurar, com a ajuda dos
missionários, a "pacificação" dos "selvagens" para permitir a introdução de
atividades econômicas produtivas nos territórios do interior do país.
Mas quem eram os salesianos e por que essa congregação foi escolhida pelo
governo brasileiro para realizar esse empreendimento naquele momento?
A Congregação Salesiana tinha, naquela época, uma história recente. Criada em
1859 por Dom Bosco em um contexto europeu de crescente secularização, escolheu
uma forma de piedade laica e especializou-se em educar jovens operários de
origem rural e dar assistência aos enfermos. Nesse período, a industriosa
cidade de Turim sofria a pressão social da população pobre de imigrantes rurais
recentes, atraídos pelo seu dinamismo industrial. Essas massas de desempregados
urbanos que viviam em condições violentas eram percebidas como uma ameaça à
ordem social. Como em tantas outras experiências desse tipo ao longo do século
XIX, protestantes e católicos contribuíram para desenvolver um interesse
humanitário que, em casos como o dos metodistas analisados por Jean e John
Comaroff (1991), concorreu para a construção de uma visão não conformista das
relações instauradas pelo industrialismo. No caso particular da vocação
reformista salesiana, ela voltou seus esforços filantrópicos para o cuidado dos
jovens, sobretudo os mais pobres, percebidos como abandonados e em situação de
risco. Seu objetivo maior era o de integrá-los às novas formas de civilidade
urbana. Trabalhando segundo um método oratoriano, no qual se promoviam
diversões variadas para meninos de todas as idades nos dias santos e aos
domingos, os padres procuravam progressivamente retirá-los das ruas, orientando
seus relacionamentos sociais. A esse estilo pedagógico, voltado inteiramente
para a gestão do cotidiano mediante atividades continuadas ' recreio, música,
ginástica, teatro ', Dom Bosco dera o nome de "sistema preventivo". Assim, ao
lado dos internatos e das escolas profissionalizantes, os oratórios pretendiam
gerenciar de maneira mais completa e sistemática possível o tempo do aluno,
fazendo-o abandonar a vagabundagem e o perigo das más companhias. Com os
internatos suprimia-se a promiscuidade doméstica dos mais pobres; com as
escolas de artes e ofícios garantia-se uma profissão; com os oratórios festivos
ofereciam-se atividades para o tempo livre.
Foi, portanto, com esse modelo de civilidade urbana moderna e de formação
integral da juventude que a congregação chegou ao Brasil. Encontrou aqui uma
classe burguesa liberal em fase de afirmação, para a qual os liceus pareciam um
instrumento importante na tarefa de suprimir os hábitos ainda rústicos da
juventude, incutir-lhes boas maneiras e desenvolver neles os valores urbanos.
Para o trato com esta camada jovem, os salesianos desenvolveram um estilo
cordial que se desenvolvia longe do púlpito, do confessionário e da igreja,
abandonando o padrão estilizado do clérigo tradicional. Assim, apesar da
resistência inicial dos liberais, que percebiam na chegada dos salesianos '
caracterizados como versão atualizada do jesuitismo ' um fortalecimento do
clericalismo no país, os colégios e os institutos multiplicavam-se nos
principais pólos políticos e econômicos. No mesmo ano de sua chegada, 1883,
fundam o Colégio Santa Rosa em Niterói, Rio de Janeiro, e nos anos seguintes
quatro novos liceus no estado de São Paulo. Em 1895, o presidente da República
Prudente de Morais, em carta endereçada a Dom Lasagna, então responsável pela
obra de Dom Bosco no Brasil, expressa seu apreço pelos institutos, vendo neles
um instrumento para a transformação dos filhos das classes pobres "em cidadãos
úteis à pátria", uma vez que a "escola do trabalho é uma das importantes
virtudes civis" (Apud Azzi, 2000).
O propósito salesiano de educação de jovens, por meio de uma formação integral,
compartilhava a mentalidade então corrente que tinha como auto-evidente a
universalidade da civilização como condição humana. Nesse sentido, estender o
mesmo método pedagógico construído a partir de uma experiência urbana para
populações ainda "selvagens", isto é, habitantes das florestas e, portanto,
privados de cultura e de civis, parecia não oferecer maiores dificuldades, ao
menos no plano das idéias. Como se sabe, o fundamento clássico da missão é a
construção de uma civitas Dei neste mundo. A "selva" constituiu-se no
imaginário cristão moderno o contraponto à cidade/civilização cristã (Gasbarro,
2006). Nos séculos XIX e XX, essa grade de leitura ainda está em operação na
obra missionária: os salesianos descrevem suas missões como "cidades luxuosas
[...] obra definitiva, que não envergonha as realizações futuras dos tempos
próximos [...] obra de conforto e bem-estar para os povos a catequizar e
atrair" (Nas fronteiras do Brasil, 1950). O elemento novo nessa gramática é a
introdução do cientificismo no plano das relações homens/natureza que, por meio
do valor atribuído à técnica e ao trabalho humano, estendeu o plano da história
(isto é, as relações propriamente humanas) para o mundo natural. Assim, a obra
missionária desse período teve que enfrentar um novo dilema: em contraposição
ao positivismo, deveria ressacralizar a natureza (e a razão), recuperando no
selvagem a "razão natural" que compreende o mundo natural como obra divina; em
contraposição à "religião natural" dos indígenas que adoram a natureza, deveria
civilizá-la, de modo a torná-la parte da ordem social.
A rápida expansão da congregação salesiana na Europa e os bons resultados que
obtiveram em sua primeira incursão na Patagônia argentina indicam que, pelo
menos aos olhos das autoridades de alguns países da América Latina, tal como o
Brasil, o Equador, o Chile e a própria Argentina, ela parecia ter resolvido
adequadamente esse dilema ao associar os princípios do catolicismo aos
benefícios do cientificismo representados, então, pelo "vapor e a eletricidade"
(Botasso, 1991, p. 82).
Mas a obra missionária com as populações indígenas do território brasileiro,
por circunstâncias políticas, esperou quase uma década. No plano da geopolítica
mundial e sob influência do Papa Pio IX, a Igreja Católica estimulava a
centralização do comando da Igreja em Roma. No Brasil, parte expressiva do
episcopado percebia nessa reafirmação da autoridade romana um reforço de sua
própria autoridade contra as peias impostas pelo regime do Padroado ainda
vigente, que submetia a condução da vida da Igreja aos desígnios do Imperador.
Com o apoio da Cúria, bispos brasileiros começam a solicitar a vinda de
congregações religiosas fiéis a Roma. Tal é o caso, por exemplo, do bispo Dom
Macedo Costa do Pará,3 que formaliza um pedido a Dom Bosco em 1881, de envio de
salesianos aptos a formar o clero local para o preenchimento de "quarenta
paróquias vacantes e centenas de tribos selvagens a converter", e do bispo de
Cuiabá, Dom Carlos D'Amour, interessado na reforma do clero local (Azzi, 2000,
p. 69).
Embora obedientes ao Papa, que em 1882 autoriza oficialmente sua entrada no
Brasil, os salesianos têm um cálculo próprio com relação a seu projeto de
expansão. Já instalados na Argentina e no Uruguai, preferiam criar no Brasil
uma base menos isolada do que as dioceses do Pará e Cuiabá e que, embora
submetida à autoridade episcopal como exigia Leão XIII, lhes garantisse
autonomia de ação e decidido apoio econômico e político. Começaram, pois, pelo
colégio Santa Rosa na diocese do Rio de Janeiro, Niterói.
Quando Dom Lasagna é sagrado bispo em 1893, com a característica de prelado
missionário, a questão indígena começa a se tornar uma prioridade para a
congregação no Brasil. Já tendo o lastro de uma década de atuação bem-sucedida
no Rio de Janeiro e em São Paulo, ela se instala em Cuiabá, capital do estado
de Mato Grosso, para tornar-se um ponto de apoio da atividade missionária com
os índios do sertão. Tendo como modelo os liceus de artes e ofícios, a missão
projetava reunir os índios em torno de uma escola agrícola bem equipada, que
fizesse do trabalho com a terra o centro de sua autonomia e prosperidade, bem
como o meio de adestramento do corpo e do espírito dos nativos.
Com esse projeto em mente, para a fundação da colônia em Tachos, em 1902, o
instituto conseguiu do governo provincial 4 mil ha de terra e uma verba anual.
Assim, desde o princípio o trabalho catequético foi pensado em termos de
"colônias agrícolas" (nome que as missões recebiam) voltadas para uma
agricultura moderna, racionalizada, apoiada em princípios científicos de
produtividade e na mais sofisticada tecnologia disponível. Podemos, pois,
perceber claramente que a relação de interculturalidade que então se inicia tem
como condições sociológicas um complexo sistema de produção e circulação de
bens e alimentos, no qual o nativo é considerado parte integrante, como
aprendiz e produtor, e que entra em relações de conflito e aliança com sistemas
fundados na caça e na coleta. Nesta produção de vínculos recíprocos está em
jogo um entendimento sobre a forma de apropriação dos bens, do uso do tempo e
do território. O relato de uma irmã desta colônia de 1903 expressa bem a
natureza dessa disputa. Anota a irmã em sua crônica:
O cacique e o Bari Emanuel, com sua família de sete pessoas, e alguns índios
que estavam sob sua dependência, ausentaram-se desta colônia. Aproveitando a
escuridão da noite, levaram consigo as ferramentas que haviam recebido para
trabalhar. Roubaram também, no campo dos reverendos salesianos, grande
quantidades de milho (Apud Azzi, p. 278).
Fica aqui evidente que a irmã aceita as relações de autoridade do chefe sobre
sua família e dependentes e trata sua "deserção" como uma decisão com a qual
deve consentir. Para descrevê-la prefere o verbo "ausentaram-se" em vez de
"fugiram". Suas críticas recaem sobre o entendimento da propriedade das
ferramentas e do milho. Usa a imagem da "escuridão da noite" para marcar o que
ela percebe como ilicitudes indicadas pelos verbos de negatividade crescente:
"levar" e, em seguida, "roubar". As ferramentas são em parte do índio '
portanto não foram roubadas ', mas o são apenas na medida em que ele aceita
trabalhar: foram-lhes doadas apenas nessa condição, portanto o que houve aqui
foi o rompimento de um acordo. Já a apropriação individual do trabalho coletivo
é claramente qualificada como roubo ' o milho é dos salesianos responsáveis no
que diz respeito às regras de sua distribuição e troca. A falta neste caso é
mais grave porque indica uma confusão de códigos: o índio tratara como objeto
de coleta, dom divino, o que fora produzido pelo trabalho humano.
Mas vejamos a seguir qual o contexto político mais amplo, dentro do qual
procura se desenvolver esse tipo de projeto missionário.
A missão salesiana no contexto político governamental
Com a guerra contra o Paraguai (1865-1870) ficou patente para o governo a
vulnerabilidade das fronteiras do Mato Grosso. Em 1888, o governo imperial
criou a "Comissão Construtora de Linhas Telegráficas" de modo a unir, pelo
telégrafo, o centro político da nação às fronteiras do Paraguai e da Bolívia.
Dois anos mais tarde, uma comissão chefiada pelo major Antonio Ernesto Gomes
Carneiro, secundado pelo então alferes-aluno Cândido Mariano da Silva Rondon,
iniciava uma linha que atravessava 600km no sertão habitado pelos Bororo.
Durante dois anos a comissão realizou seu trabalho observado de perto pelos
índios. Os trabalhos posteriores de conservação e expansão de novas linhas
ficaram a cargo de Rondon que, ao longo de dez anos de atividade, estabeleceu
uma relação amistosa e de colaboração com os índios, aprendendo sua língua e
tornando-se seu defensor (Gagliardi, 1989, pp. 140-148). Veremos adiante que
Rondon acabou por representar um modelo militar de pacificação secular e
positivista que, de certo modo, se contrapunha ao projeto salesiano.
Da parte do governo provincial de Mato Grosso, a premência era integrar em um
sistema econômico estável a extensa região que separa a capital do estado,
Cuiabá, à capital do estado vizinho, Goiânia (Vangelista, 1996). Para tanto,
era necessário liberar o território do vale do rio São Lourenço da presença dos
índios Bororo que, ainda na década de 1880, estavam em permanente conflito com
fazendeiros e colonos. Em 1887, o capitão Antonio José Duarte conseguira
estabelecer relações pacíficas com alguns chefes de diversas aldeias Bororo do
rio São Lourenço, os quais, guiados pelo famoso cacique Mugúio Kúri, ingressam
solenemente na cidade de Cuiabá e entregam as armas ao capitão (Bordignon,
1986). Inspirado nos ideais de integração dos índios ao sistema econômico
nacional de José Bonifácio, o governo funda, então, duas colônias militares:
Teresa Cristina, na confluência dos rios Prata e São Lourenço e Santa Isabel,
entre o São Lourenço e Piqueri (Viertler, 1972, 1982). A experiência não foi
bem-sucedida. De uma população geral de cerca de 3 mil índios, a vila militar
Teresa Cristina abrigava em 1888 uma aldeia de trezentos bororo que viviam de
modo semi-independente (Castilho, 2000, p. 44). Mais trinta aldeamentos
instalaram-se nos seus arredores. Prevalecia apenas o princípio militar da
"pacificação", que redundava, na prática, em não estimular conflitos com os
índios (Viertler, 1982, p. 64). Faltava ainda à ação militar um modelo de
integração. Em razão disso, a convivência na colônia torna-se progressivamente
insuportável: os soldados deviam prover a alimentação desses índios, o que
significava que recaía sobre eles todo o esforço agrícola. A cachaça era
distribuída gratuitamente (enquanto os soldados tinham que pagá-la) e os
"roubos", brigas e "homicídios" cometidos pelos índios não eram punidos.
Rapidamente, a convivência degenerou para bebedeiras, sexo e violência entre
índios e soldados.4 Para controlar a situação, o governo cede a colônia aos
salesianos em 1895. Mas ao procurarem adequá-la ao seu modelo de colônia
agrícola, enfrentaram a resistência dos Bororo, então pouco dispostos a abrir
mão do álcool, a trabalhar nos campos e a abandonar seus ritos funerários. Em
menos de quatro anos, os Bororo despovoaram a colônia; o novo presidente da
província Antonio Correa da Costa, dispensou os serviços dos salesianos e
realocou a administração da colônia a seus aliados políticos (Marcigaglia,
1955).
Diante do fracasso dessa primeira tentativa missionária apoiada pelo governo,
Dom Antonio Malan encarrega padre Balzola a procurar um novo campo de trabalho
independente, que sai em expedição, em 1901, pelo norte do estado de Mato
Grosso, entre o rio Araguaia e o rio das Mortes, região muito freqüentada pelos
índios, onde funda no ano seguinte a sua primeira colônia: Sagrado Coração. Em
1905, padre Malan funda uma nova colônia no rio das Garças ' Colônia Imaculada
(fechada em 1918) e, no ano seguinte, funda uma terceira colônia, Sangradouro,
pensada para ser ponto de apoio na comunicação entre a capital, Cuiabá, e a
colônia do Sagrado Coração. Em 1907, com a finalidade de formação de noviços,
inclusive indígenas, ele também funda a casa de Palmeira que, no início,
contava com oitenta índios5 (Turuzzi, 1985). De um modo geral, é possível
afirmar que o processo de implantação do sistema missionário salesiano no Mato
Grosso, apesar de uma grave crise de meios e pessoal entre 1918 e 1932,
concluiu e consolidou-se nos anos de 1950 (Corazza, s.d.). Na década de 1930,
eles já recebiam do governo brasileiro a metade de todas as subvenções
destinadas às instituições missionárias católicas. O formato de sua
institucionalização, inspirado no modelo das antigas reduções jesuíticas, não
se modificou até o Concílio Vaticano II, quando começa a perder grande parte de
seu vigor e influência. O impacto da crise ideológica dos anos de 1970, que
colocou em xeque mate o paradigma tridentino de missão, os obrigou a repensar
inteiramente suas relações com a política brasileira e com os índios. Mas nesse
processo, que recebeu o nome de "teologia da inculturação", o saber etnológico
acumulado no passado foi importante, diria mesmo estratégico, para a construção
dos direitos políticos e territoriais dos índios neste período mais recente.
Vimos, pois, que o encontro entre missionários salesianos e índios Bororo se
deu em um contexto determinado, de um lado, pelo projeto do Estado de ocupar
política e economicamente o território em nome de sua soberania e, de outro,
pelo projeto missionário de conversão da juventude indígena por meio da virtude
do trabalho,6 do controle do tempo e dos corpos em uma obra que vai muito além
da exploração puramente econômica. Mas como os índios Bororo entraram nessa
equação? Quais as estratégias possíveis nesse contexto? Vejamos se é possível,
com os poucos dados de que dispomos, avançar um pouco no esclarecimento dos
subterfúgios por eles utilizados para responder a essas determinações.
As estratégias bororo
Grande parte da literatura sobre o contato, por não incluir na sua perspectiva
de análise as estruturas de significado que intermedeiam as relações e seu
papel na construção do mundo indígena, tende a avaliar a ação missionária com
base em parâmetros ideológicos construídos na segunda metade do século XX. Essa
grade de leitura não é capaz de apreender a densidade histórica das categorias
antropológicas de "bárbaro" e "selvagem", atribuindo-lhes o sentido
depreciativo do senso comum contemporâneo. Ao não ter em conta o caráter
construtivista de códigos de interculturalidade, tais como o demônio ' que como
bem o demonstra Gasbarro (2006) é um instrumento de reflexão sobre a diferença
e de construção de novas civilizações ', imputa aos salesianos o uso dessas
imagens com o intuito reducionista de apenas legitimar seu domínio e tutela dos
índios. Ao não compreender o valor heurístico da oposição civilização versus
barbárie, percebe o horizonte civilizatório da missão como uma imposição
arbitrária e ilusória, porque de fato apenas anula a cultura indígena.
Parafraseando Octavio Paz, poderíamos dizer que o termo evangelização se
converteu, nesses casos, em um projétil. Ora, "com projéteis se pode ferir
adversários, não compreender uma situação histórica" (Paz, 1989, p. 26). Assim,
a análise das estruturas de significado que intermedeiam as relações depende da
historicização das categorias teológico-antropológicas utilizadas pelos
missionários e, também, não pode prescindir de uma atenção particular para o
modo como "a cultura Bororo" foi construída nessa relação por quase meio
século. Veremos adiante que as etnografias salesianas foram um poderoso
instrumento dessa edificação. Mas, tendo em vista que ela se fez em relação,
seria preciso visualizar minimamente com quem foi produzida e a partir de que
tipo de vínculos.
Pode-se afirmar, em linhas gerais, que os diversos grupos indígenas em suas
relações com o mundo colonial tiveram, historicamente, três grandes
alternativas: tentar uma vida independente, o mais longe possível do contato;
tentar uma aliança militar ou uma aliança com os colonos; tentar um aldeamento
no sistema missionário. Diferentes grupos domésticos Bororo ensaiaram, em
momentos distintos, cada uma dessas três alternativas. É importante ressaltar
também que, se levarmos em conta os dados disponíveis na literatura, embora
muito fragmentados e muitas vezes contraditórios, os variados agrupamentos
indígenas não mantinham relações sociais estáveis e recorrentes; no mais das
vezes viviam vidas independentes, segundo os nichos ecológicos em que
habitavam, e apresentavam características diferenciadas no que diz respeito à
pintura corporal, ao uso de matérias primas e a padrões de aldeamento e de
enterro (Viertler, 1982, p. 20). Além disso, grande parte da população Bororo '
aquela que depois de décadas de conflito armado buscou uma vida independente,
longe do contato com os colonos e atravessou ainda no século XVIII o rio
Paraguai em direção a atual Bolívia ' parece ter desaparecido, misturando-se a
outras populações tribais. A parte dos Bororo que pode ser reconhecida foi
aquela que, de um modo ou de outro, estabeleceu um modus vivendi com o mundo
colonial do século XIX. Esta porção também estava dividida em inúmeros grupos
independentes entre si.7
A colonização desse imenso território de cerca de 350 mil km se fez em duas
grandes etapas:
a) Ao longo do século XIX ocorre a expansão das grandes fazendas de gado sobre
o oeste do território Bororo na região do norte do Pantanal São Lourenço, entre
os rios Paraguai e São Lourenço, ao sul da cidade de São Luiz de Cáceres. Após
anos de conflitos, os grupos Bororo remanescentes que a elas foram incorporados
mantiveram com os proprietários relações de troca semi-independentes: viviam em
suas aldeias, caçavam durante as chuvas, recebiam aguardente ou dinheiro pelo
trabalho e presente em troca de suas mulheres. Ao final do século, eles estavam
dispersos e miscigenados à população local (Viertler, 1982, pp. 48-55).
b) A região leste, entre Cuiabá e Goiás, começa a ser penetrada já em meados do
século, e permanece um cenário de contínuas batalhas, perseguições e emboscadas
com grande perda de vidas de parte a parte até a década de 1880, quando se dá,
em 1885, a deposição de armas de uma aldeia de quatrocentos Bororo do rio São
Lourenço ao alferes Antonio José Duarte. Logo depois, uma segunda aldeia de 68
pessoas também aderiu à aliança. A intenção era manter com eles um estado de
contínua abundância de meios de subsistência a fim de entabular relações
amistosas e duradouras que permitissem o avanço do trabalho dos colonos. Mas o
principal problema então era manter a regularidade deste provimento para uma
população de "selvagens" estimada em 10 mil pessoas, contando apenas com os
meios escassos enviados pelo governo (Idem, pp. 62-63). Na verdade, a colônia
militar não foi capaz de impedir a eclosão de novos conflitos: em 1890 os
Bororo assassinam a família de Manuel Inácio em vingança pelo envenenamento de
duzentos dos seus; no ano seguinte, matam três soldados do destacamento da
recém-inaugurada linha telegráfica; em 1897 o chefe Bororo Clemente Jirie
Ekuréu8 assalta a fazenda Tatu, matando os familiares do fazendeiro Clarismundo
em vingança pela morte de cem índios. Constantemente o telégrafo acordava a
cidade com notícias de novos e ferozes assaltos e terríveis vinganças
(Viertler, 1982, p. 67; Bordignon, 1986, p. 28; Albisetti, 1962, p. 14).
Ao final do século XIX, o decréscimo populacional, o aumento da pressão
ocupacional sobre seus territórios e o desequilíbrio das armas estimulam alguns
chefes a arriscar novas tentativas de aliança. Ela foi empreendida a partir da
iniciativa de chefes de clãs que, neste tipo de sociedade, gozam de grande
autonomia decisória.9 Alguns deles conviveram nas colônias militares,
experiência esta que, como vimos, foi rapidamente abortada. Entre 1892 e 1898,
outros Bororo entram em contatos esporádicos com o tenente Cândido Mariano da
Silva Rondon, responsável pelo distrito telegráfico de Mato Grosso Em 1901, o
grande chefe Cadete começa a freqüentar em pequenas turmas os acampamentos de
Rondon. A mando de Cadete, outros dois chefes clânicos, acompanhados de seu
grupo doméstico, incorporaram-se à comissão, fazendo a derrubada e a limpeza da
área em troca de alimentos por mais de um ano. Esse tipo de relacionamento, que
supunha troca de trabalho por presentes e reconhecimento legal do direito de
propriedade dos índios sobre a terra, constituiu não só as bases de um
humanismo positivista muito influente na ideologia civilizatória republicana,
mas também o fundamento do Sistema de Proteção do Índio (SPI), criado pelo
governo federal em 1910.
Quando o primeiro grupo de 140 índios Bororo, chefiado por sete chefes clânicos
e dois Bari (xamãs), se arrancham nas instalações da Colônia Salesiana de
Tachos, a aldeia estava fracionada:10 apenas uma metade (Tugarege), ainda assim
sem a adesão de um de seus clãs (Páiowe), aceitou viver na missão. A outra
metade (Ecerae) reuniu-se com uma aldeia do alto Araguaia. A metade Tugarege
instalou-se na missão à maneira de um território clânico, colocando em operação
o mesmo código utilizado na ocupação de seus espaços de caça, onde edificaram
uma aldeia provisória. Assim, também no caso dos salesianos, sua relação com os
Bororo se dava com uma fração bastante reduzida da população geral. A maior
parte dos grupos vivia fora das missões e estabelecia com elas relações
políticas e estratégicas que os missionários não eram capazes de controlar
inteiramente. Em suas cartas ao ministro da congregação em Roma, por exemplo,
Padre Balzola, primeiro diretor de Tachos, queixava-se que os Bororo, quando
recebiam visitas de outros índios, davam de presente tudo o que haviam recebido
dos missionários, depois pediam insistentemente aos missionários novos bens,
deixando a missão em estado permanente de carência (Castilho, 2000, p. 78).
Esse rápido panorama das diferentes estratégias de aproximação entre chefes
Bororo e agentes coloniais permite perceber que a história do contato, se é
possível fazê-la, é constituída de pequenas histórias parciais e fragmentadas
que dependem do encontro de clãs particulares, ou mesmo grupos domésticos, com
setores coloniais particulares. Esse dado é determinante das condições de
observação implícitas nas descrições etnográficas salesianas. Ainda que
empreendessem viagens para conhecer outras aldeias, os Bororo com os quais os
missionários salesianos conviveram, e os que descreveram, foram aqueles grupos
domésticos que, em função de cálculos estratégicos diversos, decidiram
estabelecer com eles relações de aliança. E, na maior parte das vezes, essa
"redução" dizia respeito a grupos numericamente pequenos em relação à população
geral, que podiam variar de cinqüenta a quatrocentas pessoas, embora este seja
um contingente elevado para uma aldeia Bororo. Muito provavelmente o núcleo
urbano das missões com seus equipamentos ' internatos, enfermarias, campos e
igreja ' nunca reproduziu o funcionamento desta unidade social que a aldeia
representava no mundo indígena, uma vez que, freqüentemente, abrigou partes de
vários grupos distintos.
Assim, pode-se dizer que este artefato econômico, social e simbólico que a
colônia agrícola missionária constituiu já representava, desde o primeiro
momento de sua existência, um arranjo novo de relações que, diferentemente da
experiência na colônia militar ou nas relações esporádicas de grupos domésticos
com Rondon, articulou unidades do sistema indígena a unidades do sistema
colonial em uma convivência continuada e produtora de novas relações. A aldeia
como unidade básica da organização social Bororo viabiliza-se, segundo
Viertler, em função dos meios de caça; ora, a produção constante e o
armazenamento de víveres na missão introduzem um dado novo nesta equação: ser
beneficiário regular do abastecimento missionário permite, de um lado, a
reprodução material de unidades sociais menores do que a aldeia, sem
necessariamente interromper, de outro, sua unidade funcional, que pode sempre
se valer de uma rede de relações mais ampla, externa ao universo físico da
missão. Dito de outro modo, a organização produtiva da colônia agrícola
possibilitou uma dissociação entre a função econômica da aldeia e sua função
social e simbólica, introduzindo chefes e xamãs em um novo sistema de relações.
Essas considerações tornam bem evidente que a etnologia salesiana, ao
reconstruir a cultura indígena, não descreveu a vida indígena na missão (que
permanece invisível nesse tipo de narrativa), nem fundou sua observação na vida
de uma aldeia "em funcionamento". Veremos adiante quais os suportes ideológicos
que dão forma a essa narrativa. O que nos interessa sublinhar neste momento é o
modo como, ao suprimir o relato da fragmentação das relações que embasavam o
conhecimento da vida indígena a descrição projeta uma imagem de sociedade sobre
a vida indígena que generaliza para um todo hipotético relações com grupos
domésticos específicos. Na verdade, a literatura sobre os Bororo evidencia a
autonomia de seus grupos domésticos, potencialmente auto-suficientes,
ressaltando o fato de que qualquer esforço coletivo só se exercia em contextos
rituais (Novaes, 1986, pp. 119-129). Isso indica a fluidez de qualquer ordem
social mais abrangente, como, por exemplo, a solidariedade clânica, que só
emerge em momentos formais, como nos funerais. Foi preciso que forças externas
se encarregassem do comando das atividades coletivas econômicas e/ou políticas
para que ordens sociais supradomésticas, tais como "comunidade", "tribo" ou
"sociedade", pudessem emergir de modo mais estável. Assim, como já havia feito
os missionários protestantes na África, como Henri Junod para os Ba-ronga em
Lourenço Marques, as etnografias missionárias constroem imaginariamente uma
sociedadeBororo cuja experiência social os indígenas, na verdade, não poderiam
ter tido, mas que foram progressivamente adquirindo.
Bem assentado o contexto de interlocução ideológico e político da atuação
salesiana, assim como o quadro das relações sobre o qual ela produziu seu ponto
de vista sobre o mundo indígena, detenho-me agora num dos produtos essenciais
dessa construção: as etnografias salesianas sobre os Bororo e um de seus
principais autores, Padre Antonio Colbacchini.
Antonio Colbacchini e a etnografia salesiana
Em 1938, o presidente Getúlio Vargas oferece a Colbacchini a mais alta
condecoração nacional conferida a um estrangeiro em reconhecimento à sua obra
de pacificação. Tinha, então, 57 anos. Formado em filosofia e teologia,
transformou-se a partir de 1906 em pioneiro e explorador do Mato Grosso. Sua
primeira obra sobre os Bororo foi publicada em Turim em 1925. Foi diretor da
colônia agrícola de Tachos a partir de 1907.
Missionário e etnógrafo, Colbacchini foi um personagem da transição do século
XIX para o século XX ' ao mesmo tempo explorador e homem de ciência, em um
momento em que a antropologia não estava ainda consolidada como disciplina
acadêmica. Ele escreveu para uma elite intelectual e para os homens políticos
de seu tempo.
O modo como apresenta sua posição de autor é também interessante: ele se quer o
resultado de uma síntese entre a vida selvagem e o conhecimento do homem que
não é outra coisa senão uma tradução para a linguagem humana da experiência
inefável e indizível do paraíso. Colbacchini seria, pois, a ponte entre dois
mundos aparentemente inarticuláveis entre si: o mundo da selvageria, que não
pode ser dito nem pensado, e o mundo humano, que deve ser conhecido. Em sua
conferência de agradecimento à condecoração que recebera, ele assim se
apresenta:
Missionário sertanejo que, já há mais de trinta anos, vive em constante
consórcio com os filhos da selva, que, na aspereza da vida selvagem, revestem e
refletem as belezas e os suaves encantos das virgens florestas, parecia-me que
entre mim e vós, Exmos. Srs, ou melhor, entre mim e a culta sociedade, um
profundo abismo tivesse sido aberto que, talvez, nunca tivesse podido transpor
(1939, s.p.).
Para expressar essa idéia de homem-ponte, de tradutor, Colbacchini lança mão de
personagens históricos disponíveis no imaginário político brasileiro. Tal como
o antigo deus romano das Portas, Janus, o missionário possui duas faces opostas
'apresenta-se ao mesmo tempo como sertanejo e bandeirante. Por paradoxal que
possa parecer, esta combinação, que associa a imagem do índio-vaqueiro a do
caçador de índio, realiza duplamente a passagem entre opostos, reduzindo-a por
meio da produção de um termo intermediário. Vejamos rapidamente qual o
repertório que essas duas imagens mobilizam.
O sertanejo é o homem dos planaltos agrestes do interior do país (o sertão).
Vive uma vida rústica e isolada acompanhando o gado selvagem. A vida sertaneja
entre o século XVII e boa parte do XIX dependia da espingarda, elemento vital
na defesa contra o índio e condição do assentamento das fazendas O heroísmo era
reconhecido na valentia e nas qualidades do vaqueiro. Nesta parte do Novo
Mundo, cada homem podia ser o rei de si mesmo, chefe de bando, administrador
autônomo da justiça através da vingança. Em muitas ocasiões, pode formar o
exército privado de um proprietário de terra. Assim, o homem do sertão
construiu-se em nossa história como irredento que carrega, contra o
colonizador, a vida primordial absoluta: homem da terra e livre, conhecedor da
paisagem e a ela integrado, freqüentemente mestiço de índio. Esse personagem
foi imortalizado no imaginário brasileiro em meados do século XX na figura do
cangaceiro e seu personagem maior, o caboclo Lampião.11 "Quando a ordem pública
começa a deitar seu longo braço no sertão", observa o historiador Frederico de
Mello, "o que se vê é a paulatina condenação do viver pelas armas [...] e o
emprego da expressão cangaceiro para arcaizar esse modo de vida" (2005, pp. 18-
24).
O bandeirante é o pioneiro paulista que, a partir do final do século XVI até
meados do século XVIII, se lança em expedições de resgate de índios e de
riquezas. Nessa faina terrível desbravaram territórios e desbarataram as
reduções jesuíticas do Uruguai. A metrópole muitas vezes recorreu a esses
bandos aguerridos de mamelucos e reinóis para se defender do gentio revoltado,
para policiar fronteiras e conquistar novas terras para a colônia. Permaneceu
no imaginário brasileiro como o conquistador intrépido, independente, que
empurrou as linhas da fronteira portuguesa para o interior e que, sem o apoio
do governo, conseguiu subtrair porções do território às invasões espanholas do
sertão meridional.
Esse personagem foi redesenhado pelos intelectuais paulistas no contexto
republicano do século XIX. O problema do índio estava, então, no centro do
debate sobre as relações entre raça e nacionalidade. Embora a oposição Tupi/
Tapuia, expressão de nacionalidade mestiça do Império, tivesse se fragilizado
em face das novas teorias raciais antimiscigenadoras, interessava aos paulistas
resgatar e idealizar suas origens Tupi ' retratados como guerreiros aliados dos
colonos e dos missionários para caçar os Tapuias ferozes do sertão. Para
amenizar a fama do bandeirante sanguinário reaparece a imagem do herói mestiço.
Paulo Prado, em 1923, assim o retrata:
[..] o cruzamento com o indígena corrigiu de modo feliz a excessiva
rigidez, a dureza inteiriça e fagueira do colonizador europeu do
século XVI; o índio, nesse amálgama, trouxe o elemento mais afinado,
a agilidade física, os sentidos mais apurados, a intensa observação
da natureza quase milagrosa para o homem branco (2000, p. 148).
Nessa apropriação interessada do passado indígena paulista, produziu-se a
representação do mestiço luso-indígena vulgarizado na forma do bandeirante. No
contexto dos regionalismos dos anos de 1930, que buscavam particularizar a
nação em seus tipos humanos e suas paisagens, as habilidades indígenas nutriram
reiteradamente a descrição do caboclo. O presidente Getúlio Vargas retoma as
representações caboclas do bandeirante e o enaltece como símbolo de soberania
territorial e, portanto, de nacionalidade.
Colbacchini apresenta-se, pois, como sertanejoe bandeirante.Na aproximação
dessas duas imagens opostas e intermediárias, ele reduz a distância que separa
a polaridade índio versus colonizador. O sertanejo é a primeira categoria
mediadora: como o índio, ele é da terra e está em luta contra o governo em sua
vida de cangaceiro. Mas, imediatamente, aparece seu contraponto: o bandeirante.
Quando se toma como referência o poder político, temos que o sertanejoestá para
índioassim como o bandeirante, para o colonizador: o primeiro tem por inimigo o
governo em seu irredentismo, o segundo tem por presa o índio. Contudo, quando
se assume o ponto de vista da territorialidade, sertanejose
bandeirantespertencem à mesma categoria dos homens livres, independentes,
porque conhecedores do território; como herdeiros das habilidades indígenas,
estão igualmente distantes do índio bravio e do colonizador estrangeiro. São
eles os verdadeiros homens de uma terra que deixa de ser natural e se torna
histórica (nacional) pela ação desses novos guerreiros. São os verdadeiros
filhos da terra, o que de novo caracteriza a nação em formação. Tal como esses
homens mestiços, independentes dos poderes políticos e autônomos porque
conhecedores do território, Colbacchini apresenta-se como expressão legítima da
voz dos gentios. Não foram os próprios Bororo que lhe deram o nome de Boe
Imegera, chefe dos Bororo?
A produção do discurso etnográfico de Colbacchini constrói-se, portanto, como
uma forma de conhecimento que expressa uma confluência de interesses
contraditórios ' o desejo de eliminar o índio e tomar-lhes o território e a
necessidade de conservá-lo como mão-de-obra, guerreiro, conhecedor da paisagem
e agente de povoamento pela mestiçagem e aldeamento; o desejo de domesticar os
índios e a necessidade de conservá-los naturais, donos da terra contra a
ocupação metropolitana. De qualquer modo, as imagens mobilizadoras do sertanejo
e do bandeirante caracterizam um processo de construção de uma sociedade que
não se percebe como diretamente nascida das sociedades indígenas nem em
continuidade histórica com a metrópole. A catequese, e não a corte como no caso
da Nova Espanha, representou nesse contexto ideológico e político o instrumento
da civilização, oferecendo um modelo de sociabilidade que não tinha ainda
contraparte laica tendo em vista a brevidade da corte portuguesa no Império e a
inexistência de instituições universitárias. E civilização era antes de tudo
urbanidade, isto é, produção de relações sociais, de civis, para homens
pensados como naturais. As edificações missionárias representavam o modelo
empírico dessa visão de mundo ou, como diria Octávio Paz, "dessa visão dos
homens no mundo e dos homens comomundo" (1989, p. 52).12 Ao contrário do
indigenismo militar republicano, baseado na idéia de "pacificação" que vai se
consolidando ao longo do século XX, para a qual civilizar era principalmente
controlar o território e a população, base da soberania do Estado, Colbacchini
supõe a existência de uma "nação clandestina" que só pode ser conhecida quando
se toma o ponto de vista do sertão. Esta proto-nação edifica-se com os valores
da liberdade, da fraternidade e da inocência primordial.
Assim, compreender a obra etnológica de Colbacchini é analisar como sua
descrição mobiliza a imaginação para responder às contradições aparentemente
sem solução que a incorporação dos índios, com suas diferenças, se impõe à
consciência do homem de seu tempo.
* * *
Se do ponto de vista de sua perspectiva a obra de Colbacchini olha para o mundo
indígena na confluência das idéias de seu tempo, como procurei demonstrar,
também do ponto de vista da construção interna sua narrativa etnológica tem um
estilo bastante particular. Em texto ainda em elaboração, pretendo mostrar o
modo como a cosmologia cristã produz uma grade de leitura para a observação
etnográfica de Colbacchini, e como essa configuração se rearticula na versão
registrada na Enciclopédia Bororo.Veremos, então, como o totemismo, o dilúvio e
as almas operam como códigos de mediação entre o universo indígena e o cristão.
Mas em virtude dos limites que um artigo desta natureza impõe, concentrar-me-
ei, por ora, menos no conteúdo da narrativa do que nas suas formas de
estruturação.
Dissemos que a descrição etnográfica de Colbacchini não estava apoiada na
observação cotidiana e sistemática da vida nas aldeias, uma vez que a
organização social que a colônia agrícola engendrava colocava em relação
unidades culturais em um novo sistema de relações. Com efeito, se observarmos
sua construção textual com mais cuidado, perceberemos que ela é o resultado
dessas relações privilegiadas com certos personagens indígenas tomados como
informantes ' xamãs ou chefes, que estabeleceram relações de troca com os
missionários. E mais, personagens que, como Akírio Bororo Kejéwu que escapou de
um infanticídio ordenado pelo chefe e foi educado na Missão do Sagrado Coração,
são capazes de um certo distanciamento em relação ao seu próprio mundo,
tornando-o comunicável.
A narrativa etnográfica, no entanto, torna invisível este ponto de vista e
apresenta o relato da cultura indígena como produto de uma vida em comum com o
nativo em geral, abstração esta expressa com toda clareza nas legendas das
fotos de apoio: "índios Bororo com o pariko"; "jovens Bororo"; "índio Bororo na
pesca com flecha" etc. Lévi-Strauss já havia observado esse efeito de discurso
quando afirma em Cru e o cozido que as descrições salesianas eliminam as
divergências nos testemunhos de seus informantes. "Educadamente", conta Lévi-
Strauss, mas com decisão, "pedia-se que os índios formassem um concílio e se
pusessem de acordo sobre o que deveria se tornar a unicidade do dogma" (1971,
p. 48). Esta padronização da cultura em termos de doxa apresenta-se como uma
tradução literal da narrativa de um "sábio" nativo. Assim, ainda que o próprio
informante algumas vezes modifique o mito para ajustá-lo ao que, na sua
opinião, seria a realidade etnográfica, "liberdade deplorável em relação a um
texto mítico" segundo Lévi-Strauss (Idem, p. 50), esse discurso adquire uma
tripla natureza de verdade: é verdadeiro porque se constrói fora das relações
de contato ' o nativo fala diretamente ao leitor; é verdadeiro porque é a
expressão original, primordial, da voz desse povo, para a qual o missionário é
apenas o tradutor invisível e silencioso; e, finalmente, porque constitui a
transmissão de um saber tradicional que corre o risco de desaparecer para
sempre ' o chefe ou o xamã contam como se ensinassem. O registro aqui se torna
um ritual iniciático. O esforço e o tempo que esses índios dedicaram para
ensinar sua língua, seus mitos e ritos aos missionários foram extraordinários.
Muitas vezes a tarefa lhes custou toda uma vida de lealdade e dedicação. Por
que aceitaram fazê-lo?
Talvez nunca tenhamos resposta satisfatória para essa questão. É certo, no
entanto, que durante muito tempo os Bororo se recusaram a fazê-lo. Os
missionários queixam-se que, por um longo período, os chefes guardaram seu
segredo e os enganaram quanto aos sentidos de sua língua. No entanto, também os
índios queriam dominar a língua do branco. Na medida em que para eles a palavra
é criadora (e não a técnica e o trabalho como pensavam os salesianos), possuir
sua língua é possuir os segredos de sua riqueza em bens culturais, é domesticar
o branco. Estabeleceu-se, assim, um acordo no plano da troca de conhecimentos,
que tornou a acumulação, a organização e a distribuição de saberes o
toposprivilegiado dos processos de tradução.
A questão que se impõe agora é a de saber como esse quadro intercultural
determinou o tipo de conhecimento produzido pelos salesianos sobre os Bororo.
Dissemos que o missionário escolhia como "mestre" os indivíduos que, a seu ver,
tinham o conhecimento o mais completo possível de tradições, mitos e ritos.
Para eles, a maior parte dos índios, salvo alguns chefes e determinados xamãs,
tinha apenas um conhecimento parcial e aproximado de sua cultura. Nesse
sentido, pode-se perceber que a "cultura nativa" não é aquela vivida e
conhecida de todos os índios e que eles não estão todos imersos nessas relações
de troca de conhecimentos que a inscrição etnográfica inaugura. Nesse processo
de organização da memória e de classificação de ritos e costumes por comparação
àqueles conhecidos dos missionários, a cultura Bororo vai ganhando
sistematicidade e coerência. Sua inscrição monográfica confere-lhe uma forma
que se cristaliza na história e se torna parâmetro do "ser" Bororo. Assim,
quando os mais velhos hesitam sobre a correção de certos passos ou gestos
rituais, a etnografia, o registro, está ali para dar a ver a cultura
verdadeira. Temos, pois, que o registro e a reprodução da memória por meio da
etnografia constróem um saber tradicional que se perpetua no tempo e se
generaliza na forma, no qual se inscreve uma significação coletiva de perda a
cada vez que esse patrimônio assim imortalizado muda seu curso.
O paradoxo implícito na produção da etnografia missionária reside no fato de
que, para criar a imagem da cultura nativa, o etnógrafo provoca uma mutação nas
formas tradicionais de produção da memória. Essas narrativas mobilizam-se pela
necessidade de ao mesmo tempo preservar a memória nativa e interromper seus
processos de transmissão. As etnografias salesianas, como parte integral e
fundadora do projeto de conversão, universalizam o conhecimento do que é "ser
Bororo" de uma forma até então desconhecida para os próprios nativos, e, nesse
mesmo movimento, produzem uma espécie de "conversão" do Bororo à cultura
Bororo.
Notas
1 A literatura salesiana de cunho etnográfico sobre as culturas indígenas,
embora volumosa em número de páginas e muito rica em detalhes de observação,
não é vasta nem variada no enfoque. Avaliada em seu conjunto, essa produção que
se estende por mais de meio século ' de 1919, quando surge a primeira edição de
Antonio Colbacchini sobre os Bororo, até a recente publicação de Bartolomeu
Giaccaria e Cosma Salvatore sobre os Xavante em 2001 ' é obra de poucos autores
e se completa com a publicação de um ou no máximo dois títulos de caráter quase
sempre enciclopédico. Com efeito, pode-se dizer que o "estilo" missionário da
escrita salesiana se singulariza pelo fato de que o trabalho de tradução e
inscrição que o move resulta em uma só obra tecida ao longo de toda uma vida.
Os Bororo orientais de Colbacchini e Albisetti ([1925] 1942), Os Xavante de
Giaccaria e Heide (1952) e Os indígenas do Uaupés de Alcionílio Bruzzi (1977)
são três títulos capitais, três povos e três momentos distintos que resumem a
trajetória de décadas de observação, convívio, tradução e registro dos
salesianos nos pontos de encontro com os povos que se propuseram civilizar.
Sobre os Bororo, em particular, cabe acrescentar a obra pioneira de A. Tonelli
de 1927 e as notas biográficas e testemunhais de Dom Balzola recolhidos por A.
Cojazzi, Fra gli indi del Brasile-Matto Grosso e publicados em 1932, o resumo
de Colbacchini da obra supracitada, quando recebeu a condecoração "Cruzeiro do
Sul" em 1938, e, evidentemente, a obra de fôlego que constituiu a Enciclopédia
Bororo, cujo primeiro volume foi publicado em 1962. Embora pouco extensa em
número de títulos, esta obra é, no entanto, muito rica e complexa em sua
construção narrativa.
2 Em carta a Dom Bosco em 1882, Dom Lasagna diz: "O próprio imperador D. Pedro
II, monarca sábio e ativíssimo como nenhum, dignou-se a admitir-me em audiência
particular em seu palácio de Petrópolis, no dia de Pentecostes, e se entreteve
comigo por muito tempo em familiar conversação [...]. Depois de bem informado
[...] sumamente satisfeito, exprimiu seu desejo de ver brevemente transplantada
a nossa instituição para seu vasto Império prometendo-nos a sua augusta
proteção e despedindo-me com a maior benevolência e cortesia" (Apud
Marcigaglia, 1955, p. 18).
3 Desde que fora designado para a diocese do Pará em 1886, Dom Macedo Costa
tornara-se um defensor intransigente do catolicismo romanizado. Em 1872,
desencadeou, ao lado de Dom Vital de Oliveira, uma crise política ao enfrentar
o Regime do Padroado, que ficou conhecida como a "Questão Religiosa".
4 Em 1888, Steinen assim descreve a situação: "bebedeiras confraternizando
soldados, mulheres e chefes Bororo presenteados com roupas e cobertores;
rapazes robustos mimados com pinga e roupas pelos cuiabanos; homens Bororo que
se negavam a plantar, embora de posse dos machados de ferro, que lhes haviam
sido dados pela colônia; o consumo de cana e mandioca pilhados fora da época
das plantações da colônia; [...] relações sexuais entre dirigentes da colônia e
algumas mulheres Bororo; brigas de Bororo embriagados com pinga distribuída
gratuitamente para estes, enquanto tinha de ser comprada pelos soldados que
ainda mais se irritavam por terem que cultivar para os Bororo e poderem ser
presos em casos de delito enquanto nada acontecia a seus ofensores Bororo"
(Apud Viertler, 1990, p. 66).
5 Esse noviciado fechou em agosto de 1920 em função do assassinato de seu
diretor José Thanuber pelos índios Bororo (Turuzzi, 1985).
6 "Os missionários trabalham muito e rezam pouco porque eles vêem no trabalho a
melhor oração que possam fazer a Deus" (Nas fronteiras do Brasil, 1950, p. 40).
7 Para esta porção, Albisetti e Venturelli sugerem a existência de pelo menos
seis grupos diferentes: os habitantes dos cerrados (Boku mogorege); os
habitantes da floresta (Itura mogorege); os habitantes das margens do peixe
pintado (Orari mogorege); os habitantes da bacia inferior do rio São Lourenço;
os habitantes da montanha (Tori Okwa mogorege); os que usam longas flechas
(Utugo kuridoge), habitantes do curso médio do rio Taquari (Enciclopédia
Bororo, 1962, pp. 281-283).
8 Jiríe Ekuréu acompanhou com relutância o chefe Meriri Otodúia, que decidira
entrar na missão salesiana Tachos em 1902. Sempre foi tratado pelos
missionários como inimigo, pois manteve ao longo de toda sua vida uma atitude
hostil. Ainda assim, permaneceu muitos anos na missão para se proteger contra a
vingança de Clarismundo. Sua morte em 13 de agosto de 1913 teria sido provocada
por um feitiço de um dos mais célebres feiticeiros Bororo ' Kiége Etóre
(Albisetti e Venturelli, 1969, p. 1221).
9 Segundo Viertler, a aldeia é a unidade mínima de aglutinação dos indivíduos.
Para seu funcionamento, ela deve garantir um número populacional mínimo
necessário ao preenchimento dos cargos ligados a rituais de iniciação e ao
funeral (1990, pp. 5 e 206). Segundo Chiara Vangelista, a aldeia é uma
"estrutura aberta' que pode, por razões internas ou externas, desagregar-se e
suas partes juntar-se a outras" (1996, p. 171).
10 Embora os próprios salesianos tenham redefinido várias vezes os seus
esquemas da aldeia Bororo, ela é tradicionalmente descrita como um círculo
dividido em duas metades no eixo leste-oeste: os Tugarege, ao norte, e os
Ecerae, ao sul. Cada metade é subdividida em quatro clãs, cada um deles, dono
de um patrimônio de cantos, danças, enfeites, armas, nomes pessoais e
detentores da primazia sobre certas matérias-primas (Viertler, 1972, p. 8).
Croker enfatiza a hierarquia interna a cada clã, determinada pelos grupos de
ascendência, em detrimento das relações interclânicas, cujos arranjos seriam
mais fluidos e flexíveis (idem, p. 17). Segundo Viertler, a aldeia empírica
freqüentemente não acompanha o modelo, pois depende do contingente de moradores
em determinado momento, sobras das transformações acarretadas por brigas,
mortes e nascimentos (Idem,p. 208).
11 Virgulino Ferreira da Silva ' o Lampião ' representa a figura máxima do
personagem do cangaço. Nascido em 1898, em Pernambuco, filho de pequeno
proprietário rural, lutou contra grandes fazendeiros e contra as forças
militares entre 1919 e 1938, quando foi derrotado. Dominou porções rurais de
sete estados durante mais de vinte anos, formando bandos armados que chegavam a
120 homens. Sua astúcia militar residia na capacidade de confederar bandos
existentes sob seu comando, ampliando, assim, sua influência. Foi imortalizado
pela literatura e pelo cinema como o símbolo do sertão nordestino (Mello, 2005,
pp. 18-24).
12 Octavio Paz distingue civilidade, palavra de origem cortesã que define o
aristocrata que vive na corte, de civilizado, palavra burguesa que caracteriza
o homem ilustrado e progressista. Segundo ele, a noção de civilidade na Espanha
tinha o sentido cristão de evangelização.