Violência e gênero: novas propostas, velhos dilemas
Este artigo tem como propósito situar alguns deslocamentos semânticos nos usos
da noção de violência contra mulher, desde o início dos anos de 1980 no Brasil.
Discussão intrincada pelas suas variadas vozes, vale enfrentá-la para a
compreensão, de um lado, de alguns problemas envolvidos na distribuição de
justiça e na consolidação dos direitos de cidadania na sociedade brasileira
contemporânea. De outro lado, a partir do exame desses deslocamentos é possível
empreender uma reflexão sobre os efeitos e os limites das articulações
analíticas entre crime, violência e relações marcadas pelas diferenças de
gênero.
O ponto de partida dessa discussão é a aposta política que os movimentos
sociais têm feito na revisão jurídica e nas instituições do sistema de justiça
criminal como modo privilegiado de combate à violência. Essa aposta dá um
caráter específico ao que tem sido chamado de judicialização das relações
sociais. Tal expressão busca contemplar a crescente invasão do direito na
organização da vida social. Nas sociedades ocidentais contemporâneas, essa
espécie de capilarização do direito não se limita à esfera propriamente
política, mas tem alcançado a regulação da sociabilidade e das práticas sociais
em esferas tidas, tradicionalmente, como de natureza estritamente privada, como
são os casos das relações de gênero e o tratamento dado às crianças pelos pais
ou aos pais pelos filhos adultos.
Alguns analistas consideram que essa expansão do direito e de suas instituições
ameaça a cidadania e dissolve a cultura cívica, na medida em que tende a
substituir o ideal de uma democracia de cidadãos ativos por um ordenamento de
juristas que, arrogando-se a condição de depositários da idéia do justo, acabam
por usurpar a soberania popular.1 As delegacias especiais de polícia voltadas
para a defesa de minorias são, no entanto, fruto de reivindicações de
movimentos sociais e, por isso, podem ser vistas como exemplo que contesta tal
argumentação. Elas indicam antes um avanço da agenda igualitária, porque
expressam uma intervenção da esfera política capaz de traduzir em direitos os
interesses de grupos sujeitos ao estatuto da dependência pessoal.
A história dos movimentos feministas no Brasil foi assim marcada por conquistas
significativas no que diz respeito a seus objetivos legais. Contudo, o que fica
evidente nos debates em torno das delegacias de defesa da mulher e mais
recentemente em torno da Lei "Maria da Penha"2 é o encapsulamento da violência
pela criminalidade e o risco concomitante de transformar a defesa das mulheres
na defesa da família.
Foucault já ensinou que não é possível entender a dinâmica das relações de
poder apenas pela instância do jurídico. Isso não significa dizer que o
universo jurídico não seja perpassado por poder e interesses, mesmo com sua
pretensão de neutralidade. Ainda que devamos reconhecer que o jurídico é um
campo de disputas, no qual o sistema de direitos é constantemente atualizado,
ele se organiza institucionalmente com base em critérios que, ao buscar uma
justiça para todos, tende a apagar a dinâmica política que o constitui.
A luta pela expansão do acesso à justiça implica, pois, negociações. E
negociações entre atores sociais que não têm o mesmo poder na disputa que
formata as regras do jurídico, sendo próprio do jogo democrático a emergência
de novos atores empenhados na formulação de demandas. Essa dinâmica, na
expressão de Habermas (1994, p. 134), tem que ser vista de modo crescentemente
"contexto-sensitivas" para que o sistema de direitos possa ser atualizado
democraticamente.
Da mesma forma, o significado de violência - que atribui o sentido de danos,
abusos e lesões a determinadas ações - é constituído historicamente e depende
do poder de voz daqueles que participam do jogo democrático. É, portanto, de
importância fundamental empreender distinções entre os significados de
processos de violência e daqueles processos que criminalizam os abusos.
Longe de construir verdades ou normatividades, nosso objetivo nesse artigo é
entender as dinâmicas de negociação no âmbito da justiça, bem como seus limites
para atender à complexidade que reveste as relações de violência, o que tem a
ver com as dessimetrias de poder relativas a gênero e está implicado nas
idiossincrasias que marcam os contextos contemporâneos. Sem a pretensão de
esgotar ou fechar questões, é preciso reconhecer que as dinâmicas dessimétricas
das relações de gênero têm pontos de encontro e semelhança com outras
dessimetrias relacionadas com a produção de diferenças tornadas desigualdades.
Gênero não é uma dimensão encapsulada, nem pode ser vista como tal, mas ela se
intersecciona com outras dimensões recortadas por relações de poder, como
classe, raça e idade.
Sabemos que a cidadania no Brasil sofre intricado paradoxo: nossa Carta
Constitucional é uma das mais avançadas do mundo - integrando temas, segmentos
sociais e direitos segundo concepção inegavelmente progressista -, um conjunto
de instituições governamentais, organismos da sociedade civil e movimentos
sociais atuantes e, no entanto, vivemos em meio a uma persistente desigualdade
social no acesso a justiça. Segundo definições correntes, o Estado não é
puramente o aparelho de estado (setor e burocracias públicas), mas também e,
sobretudo, um conjunto de relações sociais que apresenta uma ordem sobre um
determinado território. "Tal ordem não é igualitária ou socialmente imparcial;
tanto no capitalismo como no socialismo burocrático ela sustenta, e ajuda a
reproduzir, relações de poder sistematicamente assimétricas" (O'Donnell, 1993,
p. 125). O sistema legal é uma dimensão que constitui tal ordem e garante que
as relações sociais, mesmo implicadas em tramas assimétricas, sigam um curso de
aquiescência e compromissos mútuos. Não há efetividade e garantias no sentido
estrito e formal do conteúdo da lei e de sua aplicação. Como afirma O'Donnell,
[...] a cidadania não se esgota nos limites do político (estritamente
definidos, como faz a maior parte da literatura contemporânea). A
cidadania está em jogo, por exemplo, quando, depois de ingressar numa
relação contratual, uma parte que pensa ter uma reclamação legítima
pode ou não apelar a um órgão público legalmente competente, do qual
pode esperar tratamento justo, para que intervenha e julgue a questão
(Idem, p. 127).
O quadro brasileiro tem sido considerado paradoxal, porque mistura
características democráticas e autoritárias: os direitos políticos são
respeitados, porém, "os camponeses, os favelados, os índios, as mulheres etc.
não conseguem normalmente receber tratamento justo nos tribunais, ou obter dos
órgãos do Estado serviços aos quais têm direito, ou estar a salvo da violência
policial - e mais um extenso etc." (Idem, p. 134).3 Mistura essa que tende a
ser vista como resultante de uma espécie de truncamento do exercício pleno da
cidadania, que é qualificado com expressões como "cidadania contraditória"
(Santos, 1999) ou "cidadania regulada" (Santos, 1979). Sem negar a
especificidade brasileira, devemos, no entanto, reconhecer que é difícil hoje
encontrar uma sociedade democrática que não seja palco de polêmicas sobre como
as instituições públicas deveriam melhorar a capacidade de reconhecerem as
identidades das minorias que as compõem.
A criação das delegacias especiais voltadas para a defesa de minorias
desprivilegiadas remete a forma pela qual universalidade e particularidade se
articulam no nosso país. Essas instituições são respostas a um conjunto de
ações levadas a cabo por movimentos e organizações da sociedade civil
empenhados no combate a formas específicas pelas quais a violência incide em
grupos discriminados. Tendo suas práticas voltadas para segmentos populacionais
específicos, o pressuposto que orienta a ação dessas organizações é que a
universalidade dos direitos só pode ser conquistada se a luta pela
democratização da sociedade contemplar a particularidade das formas de opressão
que caracterizam as experiências de cada um dos diferentes grupos
desprivilegiados. Esse movimento leva à criação de tipos diversos de delegacias
de polícia que terão impactos distintos, a exemplo das delegacias da criança e
do adolescente, do idoso e as de crimes de racismo. O dilema dos agentes em
cada uma dessas instâncias é combinar a ética policial com a defesa dos
interesses das minorias atendidas. Esse desafio cria arenas de conflitos
éticos, dando uma dinâmica específica ao cotidiano das delegacias, exigindo de
seus agentes uma monumental dose de criatividade.
A violência contra a mulher e as instituições políticas e judiciárias
Sem a pretensão de fornecer explicações ordenadas, nosso propósito é o de
levantar problemas, questões e dilemas a partir da nossa experiência de
pesquisa e acompanhamento dos debates. Qual seria o melhor modo de qualificar
essas relações? Quais os desafios envolvidos no intercâmbio de expressões como
violência contra a mulher (noção criada pelo movimento feminista a partir da
década de 1960), violência conjugal (outra noção que especifica a violência
contra a mulher no contexto das relações de conjugalidade), violência doméstica
(incluindo manifestações de violência entre outros membros ou posições no
núcleo doméstico - e que passou a estar em evidência nos anos de 1990),
violência familiar (noção empregada atualmente no âmbito da atuação judiciária
e consagrada pela recente Lei "Maria da Penha" como violência doméstica e
familiar contra a mulher) ou violência de gênero (conceito mais recente
empregado por feministas que não querem ser acusadas de essencialismo)? Trata-
se de saber o que significa o emprego de cada uma dessas noções, sua
rentabilidade em termos analíticos, bem como as limitações e os paradoxos que
elas apresentam. De um lado, há um esforço de pensar como essas noções estão
sendo usadas - e por quais atores - no campo da intervenção sobre isso que,
genericamente, se chama violência de gênero. De outro, a reflexão incide sobre
os limites dessa noção e sua substituição pelo termo violência de gênero. Nesse
caso, a pergunta recai sobre a validade e o interesse desse novo conceito. O
conceito de gênero, principalmente nos estudos que têm como referência o
sistema de justiça, foi incisivo na crítica à vitimização, que compreendia as
mulheres como vítimas passivas da dominação. Contudo, o interesse pelas formas
alternativas de justiça não pode nos levar ao extremo oposto, pressupondo que
as mulheres que forem capazes de desenvolver atitudes adequadas podem
facilmente se livrar das práticas discriminatórias, encontrando caminhos
capazes de restaurar direitos e práticas libertárias. Desta perspectiva, não
podemos cair na armadilha de transformar a violência, o poder e o conflito em
problemas de falta de confiança e auto-estima dos oprimidos ou, então, de
dificuldade de comunicação.
A definição de violência contra a mulher no Brasil foi elaborada em meio a uma
experiência política inovadora na década de 1980, em que, ao lado de práticas
de sensibilização e de conscientização, militantes feministas atendiam mulheres
que sofriam violências nos chamados SOS-Mulher.4 O conjunto de idéias que deu
suporte e substância a essa expressão foi elaborado a partir de uma compreensão
particular acerca da opressão sofrida pelas mulheres no âmbito do
Patriarcalismo - noção sintonizada com as discussões feministas em cenário
internacional. Gênero não era a categoria empregada nessa definição e a
condição feminina tinha seu significado articulado a pressupostos
universalizantes, como a idéia de que a opressão é uma situação partilhada
pelas mulheres pelas circunstâncias de seu sexo, independentemente do contexto
histórico ou cultural observado. Uma década mais tarde, tal interpretação
sofreu revisões críticas. Se é possível dizer que a década de 1960 marcou
definitiva e cabalmente a história política do ocidente - e as mudanças
promovidas tiveram participação intensa dos vários movimentos libertários
(entre os quais, o feminismo) -, a segunda metade dos anos de 1980 e os anos de
1990 inauguraram novos paradigmas no âmbito dos debates teóricos e acadêmicos
que questionaram as teorias.5
De qualquer modo, mesmo com conotação universal e um tanto essencialista, o
movimento feminista tornou pública uma abordagem sobre conflitos e violência na
relação entre homens e mulheres como resultante de uma estrutura de dominação.
Tal interpretação não estava presente na retórica tampouco nas práticas
jurídicas e judiciárias no enfrentamento de crimes até a promulgação, em 2006,
Lei n. 11.340 ("Maria da Penha").6 A questão da desigualdade de poder implicada
nas diferenças marcadas pelo gênero, ainda que esteja sugerida na Constituição
e no delineamento dessa lei, encontra imensas resistências nas práticas e nos
saberes que compõem o campo da aplicação e efetividade das leis.
Mesmo se considerarmos a importância da criação de delegacias de defesa da
mulher (DDMs) no combate à violência em 1985,7 temos que ter em mente que a
legislação sobre tais delegacias não fazia menção à violência contra a mulher.
A cultura jurídica que informava e orientava o trabalho nas delegacias definia
como função da polícia judiciária investigar crimes com base no "princípio de
legalidade", segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina como
tal, não há pena sem prévia determinação legal (Santos, 1999). As delegacias
atuavam segundo tipificações penais e, como sabemos, violência contra mulher
(familiar, doméstica ou de gênero) não constituía figura jurídica, definida
pela lei criminal. O que era descrito como tipo penal, implicando uma
classificação, dependia, sobretudo, da interpretação que a agente (e, no caso
concreto, a delegada ou a escrivã) tinha da queixa enunciada pela vítima. A
maior parte dos estudos etnográficos, realizados nos anos de 1980 e 1990, sobre
os atendimentos nessas delegacias revela que em função da ausência de uma
abordagem sobre a complexidade da dinâmica em que ocorrem os conflitos
interpessoais nos quais as vítimas são mulheres, a classificação dos casos
tornava-se aleatória ou por demais imiscuída nos repertórios ou representações
pessoais das agentes.8 Como destaca Santos (1999), as policiais tendiam a
restringir a noção feminista de violência contra a mulher aos crimes e às
infrações cometidos no âmbito da sociedade conjugal em cenário doméstico,
excetuando-se, evidentemente, o estupro ou a violência sexual quando cometidos
por desconhecidos.
Outro aspecto importante destacado pela literatura especializada sobre
procedimento judiciário desse período era de que todo o saber que se tinha
sobre os conflitos conjugais e que orientavam o atendimento e o encaminhamento
dos casos estava subordinado às demandas das queixosas. Santos (1999) e Brandão
(1999) alertaram sobre esse aspecto: a violência conjugal em que a vítima é a
mulher parece ter se constituído como o caso paradigmático a descrever a
violência contra a mulher em geral e, mais tarde, também o que era entendido
quando se mencionava a violência de gênero. De fato, esse paradigma não é
resultante da prática policial. O atendimento nos SOS-Mulher, tal como os dados
a partir dos quais os estudiosos elaboraram suas análises, foram sendo
balizados pelas demandas majoritárias da clientela. A maioria dos casos
referia-se a mulheres de um certo extrato social e queixas relativas ao
relacionamento com maridos, companheiros ou parceiros em contexto doméstico.
Paradoxal e limitante: o objeto foi sendo definido a partir de informações
fornecidas pela demanda imediata. Além disso, casos como violência sexual em
relações conjugais, assédio sexual, discriminação sexual, ou, ainda, violência
psicológica, não encontravam guarida no tratamento institucional.
Outra conseqüência decorrente da ausência de uma reflexão mais fina sobre o
fenômeno está relacionada com a tarefa monumental que as feministas esperavam
que as delegacias desempenhassem. A expectativa difícil de ser realizada era a
de que esses equipamentos policiais tivessem não apenas um papel ativo em
coibir e punir abusos e agressões, mas também um papel pedagógico, como espaço
para o aprendizado e o exercício de virtudes cívicas. O fato é que o
atendimento das demandas não alterou o escopo das representações das vítimas no
sentido de uma maior sensibilização sobre os seus direitos. As pesquisas de
cunho etnográfico mostraram que as mulheres atendidas pelas DDMs descreviam os
conflitos sem mencionarem a categoria violência.9 No mais das vezes, referiam-
se "às graças", "às ignorâncias" dos maridos como excessivas e inaceitáveis,
mas, nem por isso, manifestavam qualquer reconhecimento sobre os efeitos de
tais atitudes no que se refere a esperar que seus relacionamentos
transcorressem em bases mais igualitárias. Gregori (1993) sugeriu que sem uma
atuação que consiga obliterar a "lógica da queixa", corre-se o risco de
alimentar a vitimização, dificultando que os atores sociais envolvidos nos
conflitos problematizem de modo mais contundente os motivos mais profundos que
envolvem as contendas, tal como, suas posições como sujeitos detentores de
direito.10 Da mesma forma, Debert et al. (2006) mostraram que do ponto de vista
da corporação policial era possível observar um deslocamento da violência de
gênero para a violência doméstica.
Em 1996, uma nova lei (Decreto n. 40.693/96) no estado de São Paulo ampliou a
competência destas delegacias especializadas para também investigar crimes
contra crianças e adolescentes. Com apoio da assessoria que coordenava as DDMs
e assinatura do governador Mario Covas, tal ampliação visou a expandir o
universo atendido de modo a dar conta dos crimes cometidos em meio à família. O
argumento subjacente a essa decisão foi a tentativa de delimitar o conjunto de
atendimentos policiais, deixando a cargo das DDMs a violência familiar (e aí
não apenas a que é cometida contra a mulher) e, a cargo dos distritos comuns,
outros crimes que são associados à violência urbana.
Essa ampliação de atribuições das DDMs, em que o acento deixa de ser nos
direitos da mulher e se volta para a violência doméstica, tende a ser defendida
em termos estritamente judiciários. Nas palavras de uma delegada:
Na área do direito, quando a gente apura um fato, a gente apura o
fato por inteiro. Esqueça a questão da mulher. [...] Eu apuro o crime
de homicídio e os crimes conexos a ele, tudo que aconteceu. Se foi
homicídio contra uma pessoa, 2 pessoas, 3 pessoas, tentativas de
homicídio, lesões corporais, está tudo num contexto. É um inquérito
policial, um juízo que vai julgar todas as pessoas. Quando se cria a
delegacia da mulher para apurar crimes específicos contra a vítima
mulher, acontece o seguinte: eu tenho numa casa a mulher agredida, o
filho agredido, o avô agredido, a outra filha vítima de agressão
sexual; eu só podia tocar os crimes em que a mulher era a vítima. Até
por extensão eu tocava os crimes em que a criança era mulher, menina.
E a criança do sexo masculino, o filho, ficava para o distrito da
área apurar - era o mesmo fato sendo apurado por 2 distritos
diferentes. Conclusão - a vítima tinha que prestar depoimento na
minha delegacia, no distrito, no fórum. A gente repartiu um fato que,
juridicamente, não é assim que se apura. Com isso nós trazemos
prejuízo para a prova. E o distrito tocava muito mal essa apuração,
com relação às crianças; dava margem a que o cidadão fosse absolvido.
Então a gente queria que a Delegacia da Mulher, se possível, tivesse
até outro nome e passasse a se chamar Delegacia de Apuração de Crimes
Contra a Família, em geral. Mas é difícil porque a deputada - a Rose
- não abre mão disso aí; [...] Então, fica Delegacia da Mulher, mas
se abriu a competência para se atender criança e adolescente,
independente do sexo, mas vítima da violência doméstica. Nós não
atendemos qualquer criança ou adolescente vítima de qualquer crime. É
só aquele que é vitimizado no ambiente da família; porque o fato é
único e o atendimento é diferenciado. Então este foi o objetivo e
tanto foi bem que as condenações aumentaram bastante e os inquéritos
saíram [...].11
É preciso, no entanto, reconhecer o efeito político da violência doméstica.
Lesões corporais, tentativas de homicídio e homicídios cometidos por maridos ou
companheiros são, sem dúvida, as expressões mais dramáticas e convincentes da
opressão de que as mulheres são vítimas e da importância do trabalho das
instituições voltadas para medidas punitivas ou para procedimentos de proteção
às vítimas. Os dados sobre violência doméstica têm levado autores como Luiz
Eduardo Soares et al. (1996) e Saffioti (2001), a considerarem que o lar é o
espaço onde as mulheres e as crianças correm maior risco.12
A idéia de que a violência contra a mulher não se reduz ao espancamento de
esposas e companheiras é um princípio básico do discurso das feministas que se
manifestaram contra a criação das Delegacias de Polícia de Proteção à Mulher ou
a seu favor. Mas são essas as expressões que mobilizam maior indignação e por
isso, apesar das ênfases dos militantes de não reduzir os problemas à dimensão
familiar, a violência doméstica aparece como uma expressão englobadora das
mazelas da sociedade brasileira e passa a ser confundida e usada como sinônimo
da violência contra a mulher, da violência contra a criança ou ainda da
violência contra o idoso.
Esse deslocamento semântico causa efeitos indesejados quando pensamos no
registro da erradicação da violência de gênero. As demandas feministas -
incorporadas pelo poder público na forma das DDMs - partiam do pressuposto de
que existe um tipo particular de violência, baseado nas assimetrias de poder
imbricadas em determinadas relações sociais, aquelas que são marcadas pelo
gênero e que não se restringem à violência familiar.
Por outro lado, e isso está presente nas falas de vários agentes e atores
ligados às delegacias especiais, a ampliação das atribuições das delegacias
corresponderia a uma tentativa de ampliar a proteção da família, cuja
abordagem, no entanto, está distante da visão feminista sobre o papel das
assimetrias de gênero nas configurações familiares. Não se trata de exigir que
as instituições judiciárias partilhem o ideário feminista, mas que levem a
sério o fato de a mulher ser sujeito de direitos. Por isso é relevante que
tenhamos em mente esse deslocamento do objeto de intervenção e pensar sobre
seus desdobramentos. Organizar ações que visam a eliminar a violência de gênero
implica esboçar outros modos de conceber a família. Mais do que corrigir os
excessos, os abusos cometidos pelos chefes de família - o que parecia estar
sendo indicado no modelo do decreto de 1996 -, erradicar esse tipo de violência
supõe colocar em xeque a desigualdade de poder no seio familiar e tornar
inadmissível qualquer atitude que fira os direitos fundamentais dos envolvidos.
O que se observa no atendimento concreto fornecido pelas DDMs - como mostram
estudos etnográficos e foi confirmado por nossas pesquisas (Debert e Gregori,
2002; Debert et al., 2006) - é a tendência a tratar a violência familiar como
disfunção originada no âmbito de famílias desestruturadas ou carentes de
educação ou ainda provenientes de formações culturais tradicionais. Brandão
(1999), Soares (1999, 2002) e Izumino (2003) sugerem que as DDMs passaram a
fornecer recursos simbólicos para as mulheres que procuram, por intermédio da
queixa, chances para negociar suas relações na família.
É, portanto, importante ampliar o escopo da reflexão sobre o que se quer ou o
que se entende a respeito da erradicação da violência familiar, da violência
contra a mulher, da violência doméstica ou ainda da violência de gênero. Pois,
se é verdade que negociar desse modo implica lutar pelo que consideram ser os
seus direitos, as mulheres atendidas podem ainda atuar ou operar com noções de
direito distantes do modelo de cidadania. O poder Judiciário, em contrapartida,
por não contar com definições ou diagnósticos mais claros sobre as diferentes
dinâmicas que encobrem tais violências acaba refém da demanda imediata da
clientela, não conseguindo instituir novos parâmetros, novos procedimentos ou
práticas que efetivamente constituam entraves para que esses crimes não mais
ocorram.
Da defesa da mulher à defesa da família
Os Juizados Especiais Criminais (Jecrims) foram criados pela Lei 9099 de 1995,
o que representou uma mudança radical na dinâmica das Delegacias de Defesa da
Mulher e no modo como eram conduzidas as ocorrências nelas registradas. Esta
lei tem como objetivos centrais ampliar o acesso da população à Justiça e
promover a rápida e efetiva atuação do direito, simplificando os procedimentos
com o intuito de dar maior celeridade ao andamento dos processos.13 Orientados
pelos princípios da busca de conciliação, esses juizados julgam casos de
contravenção e crimes considerados de menor poder ofensivo, cuja pena máxima
não ultrapassa dois anos de reclusão. Aqui, os princípios da informalidade e da
economia processual dispensam a feitura do inquérito policial; o boletim de
ocorrência foi substituído pela elaboração de um "termo circunstanciado" que
traz um relato dos fatos e a caracterização das partes e pode ser encaminhado,
com presteza, ao Tribunal.
O efeito dessa lei sobre as delegacias de defesa da mulher foi extraordinário,
sobretudo porque a maioria dos casos atendidos por elas é tipificado como
crimes considerados de menor poder ofensivo (lesões corporais e ameaças) e,
como tal, objeto de atendimento pelos novos juizados. Na investigação de 1.036
processos de audiência preliminar no Jecrim do Fórum de Itaquera em São Paulo
ocorridos em 2002, constatamos que 76,6% das vítimas eram do sexo feminino,
sendo que desse montante 80% eram mulheres que sofreram delitos de lesão
corporal e de ameaça por parte de maridos ou companheiros. Os estudos recentes
têm chamado atenção para essa "feminização" da clientela atendida pelos
juizados especiais e, em particular, para a acentuada concentração de casos
relativos às brigas e agressões entre casais no cenário doméstico. A pesquisa
revelou que tal configuração é resultante do expressivo encaminhamento dos
"termos circunstanciados" das delegacias da mulher para os juizados especiais.
Nesse sentido, constata-se um represamento da demanda das DDMs para os Jecrims.
A Lei 9099 e os Jecrims, além de modificar a dinâmica das delegacias da mulher
mostram como a demanda dessas instituições acabou por surpreender seus próprios
propositores. Criados para assumirem na prática uma parcela dos processos
criminais das varas comuns, esses juizados passaram a dar conta de um outro
tipo de infração que não chegava às varas judiciais.
Um dos pontos mais polêmicos da perspectiva dos movimentos feministas é o fato
de essa lei estabelecer que nos delitos de lesão corporal leve, culposa e de
ameaça é necessária a representação do ofendido, o que não ocorre em outros
tipos de crime, como, por exemplo, porte ilegal de arma ou dirigir sem
habilitação. Essa condição torna a apuração e a solução da violência de gênero
mais complicadas, como expressa a Dra. Maria Berenice Dias, desembargadora do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos seguintes termos:
[...] não foi dada atenção merecida ao fato de a Lei n. 9099/95, ao
criar os juizados especiais, ter condicionado o delito de lesão
corporal leve e culposa à representação do ofendido. Com isso,
omitiu-se o Estado de sua obrigação de agir, transmitindo à vítima de
buscar a punição de seu agressor, segundo critério de mera
conveniência. Ora, em se tratando de delitos domésticos, tal
delegação praticamente inibe o desencadeamento da ação quando o
agressor é marido ou companheiro da vítima. De outro lado, quando
existe algum vínculo entre a ofendida e seu agressor, sob a
justificativa da necessidade de garantir a harmonia familiar, é alto
o índice de absolvições, parecendo dispor de menor lesividade os
ilícitos de âmbito doméstico, quase se podendo dizer que se tornaram
crimes invisíveis. Mas tudo isso não basta para evidenciar que a
Justiça mantém um viés discriminatório e preconceituoso quando a
vítima é mulher (Zero Hora, 21/7/2001, p.3).
Uma das críticas mais contundentes dirigidas às delegacias da mulher estava
relacionada ao número elevado de boletins de ocorrência que não se transformava
em denúncias encaminhadas para o Ministério Público e, portanto, ao fato de, no
limite, as vítimas continuarem a ter acesso reduzido à Justiça. Mas, com a
criação dos Jecrims, as ocorrências registradas como lesões corporais leves e
ameaças, e que são a grande maioria, têm um rápido encaminhamento à Justiça, e
as partes podem ser chamadas a comparecer numa audiência perante o Juiz em até
menos de uma semana.
As agentes das delegacias da mulher avaliaram essa mudança de maneiras
distintas. De um lado, considerou-se que a lei não trazia mudanças
significativas no trabalho, mas apenas uma agilização no sentido de, como disse
uma delegada, "desacumular os BOs parados na delegacia". De outro, algumas
delegadas lamentavam o fato de a lei restringir o poder de coação da polícia,
desvirtuando o próprio sentido das delegacias da mulher. Um dos procedimentos
definidos pela lei consiste em autorizar penas alternativas que envolvem a
prestação de serviços à comunidade, sendo o pagamento de uma cesta básica a
pena imputada com maior freqüência aos casos de violência doméstica e de
agressões de vizinhos e parentes. Beraldo de Oliveira (2006) mostra claramente
que o processo de informalização dos procedimentos judiciais, que tinha por
objetivo maximizar a eficiência e ampliar o acesso à Justiça, acabou por
produzir um efeito de invisibilidade dos delitos cometidos. Com base em vários
episódios descritos etnograficamente, bem como em depoimentos dos agentes
envolvidos, a autora afirma que foi criada uma nova institucionalidade, cujos
resultados indicam uma tentativa persistente de retirar do âmbito penal estes
crimes em que as mulheres são vítimas. A observação dos atendimentos anteriores
às audiências preliminares revelou induções insistentes para que as mulheres
renunciassem à representação e aguardassem o prazo decadencial.14 Mais do que
isso, como mostram Debert e Beraldo de Oliveira, no fluxo do processo da
delegacia aos juizados está envolvido, de fato, um deslocamento muito maior do
que de início poderia se imaginar:
A vítima de sujeito de direitos é constituída em esposa ou
companheira; da mesma forma que o agressor passa a ser marido ou
companheiro. O crime se transforma num problema social ou num déficit
de caráter moral dos envolvidos que, na visão da justiça, pode ser
facilmente corrigido através do esclarecimento e nos casos mais
difíceis pode ser compensado com uma pequena pena. A lógica que
orienta a conciliação nos juizados implica em uma solução rápida,
simples, informal e econômica para os casos que não deveriam estar
ocupando espaço no Judiciário tampouco o tempo dos seus agentes
(2007, pp. 330-331).
Economias morais e jurídicas distintas estão em jogo nessas instituições.
Centradas no problema da "violência contra a mulher", as delegacias foram
criadas para responder a demanda de um sujeito de direitos, e suas agentes são
capazes de se indignar com o fato de a mulher abrir mão do exercício destes
direitos. Já nos juizados especiais, o juiz, "apesar de possuir um poder
simbólico maior do que as delegadas, não foi formado, não está preparado, nem é
dele esperado atentar para a questão da 'violência contra a mulher'" (Idem, p.
331).
A indignação com o modo pelo qual a violência doméstica era tratada e a visão
de que esse crime merecia um tratamento diferenciado induziram os movimentos
feministas a reivindicar mudanças que levaram à promulgação da Lei "Maria da
Penha". Como descrito no Artigo 1º, tal Lei "dispõe sobre a criação dos
Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas
de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e
familiar".
Refletir sobre as mudanças ocorridas ao longo dos vinte anos de existência das
DDMs é atentar para um duplo processo. De um lado, o processo por meio do qual
a violência entre casais, antes relegada a um problema doméstico, transformou-
se numa questão pública, pois as delegacias de defesa da mulher tiveram um
impacto importante no sentido de explicitar que tais agressões eram crimes. De
outro lado, com a criação dos Juizados Especiais Criminais, assistimos a um
processo inverso, em que os delitos voltaram a ser privatizados. A tendência
nesses juizados é ver esse tipo de criminalidade como uma questão menor a ser
resolvida em casa ou com a ajuda de psicólogos ou assistentes sociais de modo a
não atrapalhar o bom funcionamento dos tribunais. Além disso, são as vítimas
que devem decidir se as agressões e as ameaças por elas sofridas devem ser ou
não tratadas como crimes.
A Lei "Maria da Penha" foi criada justamente com o objetivo de reverter essa
situação. É muito cedo para avaliar seu impacto e seria apressado fazer
qualquer generalização, dadas as diferenças que marcam o país e o modo de
atuação, em cada contexto, das diferentes instâncias do sistema de justiça.
Contudo, o acento nessa nova figura jurídica - "violência doméstica e familiar
contra a mulher" - sugere que a lei se volta exclusivamente para o que se
configurou como a demanda da clientela das delegacias especiais. A violência
sexual em relações conjugais ou o assédio sexual não encontram guarida no
tratamento institucional, posto que a violência de gênero é subsumida ao espaço
doméstico e à esfera familiar.
Impressiona, no entanto, o caráter das críticas feitas a essa lei, sobretudo as
que se pretendem progressistas, defensoras dos direitos humanos, é pela aposta
que fazem na família e pelo alimento que fornecem às ilusões da liberdade de
escolha.
Em um artigo intitulado "Violência de gênero: o paradoxal entusiasmo pelo rigor
penal", a juíza de Direito Maria Lúcia Karan, critica a Lei "Maria da Penha"
nos seguintes termos:
O enfrentamento da violência de gênero, a superação dos resquícios
patriarcais, o fim desta ou de qualquer outra forma de discriminação
não se darão através da sempre enganosa, dolorosa e danosa
intervenção do sistema penal [...]. Esse doloroso e danoso equívoco
vem de longe. Já faz tempo que os movimentos feministas, dentre
outros movimentos sociais, se fizeram co-responsáveis pela hoje
desmedida expansão do poder punitivo. Aderindo à intervenção do
sistema penal como pretensa solução para todos os problemas,
contribuíram decisivamente para a legitimação do maior rigor penal
que, marcando legislações por todo o mundo a partir das últimas
décadas do século XX, se faz acompanhar de uma sistemática violação a
princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos
e nas Constituições democráticas [...]. A restrição e suspensão de
visitas a filhos viola o direito fundamental de crianças e
adolescentes a convivência familiar [...]. Quando se insiste em
acusar da prática de um crime e ameaçar com uma pena o parceiro da
mulher, contra a sua vontade, está se subtraindo dela, formalmente
dita ofendida, seu direito e seu anseio a livremente se relacionar
com aquele parceiro por ela escolhido. Isto significa negar-lhe o
direito à liberdade de que é titular, para tratá-la como se coisa
fosse, submetida à vontade de agentes do Estado que, inferiorizando-
a e vitimizando-a, pretendem saber o que seria melhor para ela,
pretendendo punir o homem com quem ela quer se relacionar - e sua
escolha há de ser respeitada, pouco importando se o escolhido é ou
não um "agressor" - ou que, pelo menos, não deseja que seja punido
(2007, pp. 10-11).
Não é sem razão que, tendo como referência considerações desse tipo, Carmem
Hein de Campos afirma com veemência que "o pensamento penal crítico no Brasil
é, majoritariamente, misógino" (2007, p. 1).
A defesa da mulher se reduz à exaltação ingênua da liberdade de escolha,
mesclada com a valorização da família, e, nesses termos, restabelecem-se as
hierarquias a partir das quais as mulheres eram tratadas, quando a defesa da
família dava a tônica central das decisões tomadas pelos agentes do sistema de
justiça.15
Esse retorno da família como a instituição privilegiada para garantir a boa
sociedade tem ganhado força, o que preocupa sobremaneira quando a questão de
gênero, justiça e democracia estão em pauta.16 Vale a pena discutir como a
defesa da família se combina com as ilusões da liberdade de escolha.
Da vitimização ao império da escolha
No Brasil, com toda a razão, grande parte do movimento feminista criticou a
vitimização das mulheres, que eram apresentadas como sujeitos passivos da
violência dos homens, da indústria da beleza, do sistema de justiça, da mídia e
de outras instâncias da vida social. Essa crítica foi fundamental porque
exigiu, de um lado, que a atenção se voltasse para as formas de agenciamento
das mulheres, realçando a sua capacidade de resistência aos arranjos opressivos
em diferentes contextos. De outro lado, exigiu que os autores se detivessem nas
formas específicas que a dominação assume em contextos particulares.
Entretanto, o discurso alternativo que ganha um espaço cada vez maior em
estudos de gênero, particularmente nos trabalhos sobre o sistema de justiça,
tende no limite a considerar que as mulheres que forem capazes de desenvolver
atitudes adequadas podem se livrar das práticas discriminatórias, encontrando
caminhos para restaurar direitos e práticas libertárias e vias capazes de
"empoderá-las".17 Dessa maneira, vai-se de um extremo ao outro: a visão da
mulher como puro objeto do sistema de dominação masculina é substituída pela
consideração de que as trajetórias individuais são sempre flexíveis, os
constrangimentos sociais e econômicos são de pouca monta e as desigualdades
podem ser facilmente neutralizadas. Passa-se, então, a fazer coro com os tão
aplaudidos manuais de auto-ajuda e os programas da mídia, em que basta haver
vontade e disposição para garantir o sucesso desejado. Além disso, violência,
poder e conflito transformam-se em problemas de falta de confiança e auto-
estima dos oprimidos ou, então, de dificuldade de comunicação do casal. A boa
sociedade é aquela do diálogo pautado nos valores democráticos e cristãos; a
possibilidade do diálogo é a condição necessária e suficiente de uma sociedade
justa e igualitária. É essa a tônica que, como já vimos, tem marcado o discurso
dos críticos da Lei "Maria da Penha", particularmente dos defensores do
abolicionismo penal. Celmer e Azevedo fazem as seguintes considerações sobre
essa lei:
As medidas não penais de proteção à mulher em situação de violência
[...] mostram-se providências muito mais sensatas para fazer cessar
as agressões e, ao mesmo tempo, menos estigmatizantes para o
agressor. [...] Certamente o mais adequado seria lidar com esse tipo
de conflito fora do sistema penal, radicalizando a aplicação de
mecanismos de mediação, realizados por pessoas devidamente treinadas
se acompanhadas por profissionais do Direito, Psicologia e
Assistência Social. [...] Ao invés de avançar e desenvolver
mecanismos alternativos para a administração de conflitos, vamos mais
uma vez recorrer ao mito da tutela penal, nesse caso ela própria uma
manifestação da mesma cultura que se pretende combater. [...]
[excluir] a participação da mulher na discussão do problema,
inviabiliza uma solução satisfatória para o conflito (2007, pp. 16-
17).
Alguns analistas das formas de poder e controle têm sugerido que vivemos uma
época radicalmente diferente, o que se traduz no uso de novas expressões como
"sociedades pós-disciplinares", "panóptico eletrônico", "sociedade de risco" ou
"justiça atuarial". Outros consideram que houve uma complexificação das formas
de controle, mas que isso não significa exatamente uma mudança tão radical.
O que certamente merece ser avaliado com cuidado, como mostra Nicholas Rose
(2000), é o modo como o discurso contemporâneo sobre o controle do crime
combina formas aparentemente incompatíveis na caracterização dos problemas
abordados e nas formas de solucioná-los. Propostas que enfatizam a necessidade
de indivíduos e comunidades se tornarem mais responsáveis por sua própria
segurança coexistem com argumentos a respeito da "tolerância zero".
Reivindicações de pena de morte convivem com propostas que focalizam a relação
entre agressor e vítima e buscam formas de mediação e conciliação. O interesse
pelas formas comunitárias de controle ganha cada vez mais importância com a
proposta de multas e serviços comunitários (como no caso dos Jecrims), mas, ao
mesmo tempo, se constata o aumento da população encarcerada.
Rose, no entanto, procura realçar que essas propostas e avaliações
aparentemente contraditórias têm uma mesma lógica estratégica. Inspirado em
Foucault, o autor mostra que os programas de controle da criminalidade sempre
estiveram mais vinculados com questões relacionadas à ordem moral do que
propriamente ao combate ao crime - a preocupação com a ilegalidade e o crime há
muito tempo é objeto de instituições e práticas que não são parte integrante do
sistema de justiça criminal. Seu interesse é chamar a atenção, de um lado, para
as concepções sobre o criminoso que vigoram na atualidade e, de outro, para a
redefinição operada nas diferentes instâncias do Estado que caracterizam o
"liberalismo avançado". Apesar da diversidade de concepções em vigor, as visões
contemporâneas a respeito de quem é criminoso não se restringem ao sujeito
jurídico do império da lei, nem ao sujeito biopsicológico da criminologia
positiva, mas englobam também o sujeito responsável da comunidade moral,
governado por mecanismos de autocontrole ou, então, desgovernado e, portanto,
carente de uma reabilitação terapêutica de modo a exercer o controle sobre si
mesmo.
Da mesma forma, a tendência dos governos nacionais não é mais aspirar a
condição de principais provedores da segurança. O Estado deve ser antes um
parceiro, um animador e facilitador não apenas das agências de segurança
privada, mas também de uma variedade de agentes e poderes encarregados dessa
reabilitação terapêutica. Inventa-se um conjunto de novas tecnologias com o
objetivo de promover um governo à distância, ao qual Rose chamará de
"tecnologias da liberdade".
Cada indivíduo deve ser prudentemente responsável pelo seu destino, calculando
de modo ativo o futuro e provendo sua própria segurança e a de sua família, com
a assistência de uma pluralidade de experts independentes, que se especializam
no que Rose denomina ethopolitics - políticas que procuram regenerar e reativar
valores éticos que hoje se acredita regulam a conduta individual e ajudam a
manter a ordem e a obediência à lei, prendendo os indivíduos às normas e aos
valores compartilhados, como honra, vergonha, obrigação, confiança, fidelidade
e compromisso com os outros.
Os tribunais não são mais responsáveis pela garantia da segurança dos cidadãos.
A proteção contra o risco envolve investimento em medidas capazes de operar uma
reforma moral e uma reconstrução ética dos envolvidos na criminalidade. Isso
abre espaço para um amplo espectro de técnicas psicológicas recicladas em
programas para governar os excluídos, que atuam com os juízes de modo a
aprimorar a aplicação de mecanismos de mediação de conflitos. Neles, o
pressuposto da escolha ética é central, a relação que o indivíduo estabelece
consigo mesmo é o alvo dos profissionais e o trabalho a ser feito em associação
com os diferentes especialistas é o de preparação dos indivíduos para se
tornarem livres.
Num estudo sobre os significados da linguagem do "empoderamento", Bárbara
Cruikshank (1994) analisa as novas tecnologias do self que caracterizam
programas sociais norte-americanos que se pretendem inovadores, mostrando como
a relação entre o público e o privado é neles redesenhada. A auto-estima ou o
seu déficit é considerado a fonte de uma variedade de problemas sociais. Os
movimentos da auto-estima, afirma a autora, não se limitam ao domínio do
pessoal, mas seu objetivo é uma nova política e uma nova ordem social. Eles
anunciam uma revolução, não contra o capitalismo ou o sexismo, mas contra as
formas incorretas de autogoverno. Desse ponto de vista, o ângulo da intervenção
política e social é modificado. Não são fatores estruturais como desemprego,
alcoolismo e criminalidade que devem ser resolvidos - pressuposto do welfare
state -, mas categorias individuais subjetivas como a auto-estima e o auto-
respeito de modo de modo a garantir o empowerment.
Dessa maneira a exclusão torna-se fundamentalmente uma condição subjetiva,
relacionada com o modo pelo qual as pessoas conduzem sua própria vida. A
autonomia passa a ser compreendida como capacidade de aceitar a
responsabilidade e reconhecer a sua própria forma de conluio que impede cada um
de ser o que realmente é. Só assim o indivíduo pode ser reinserido na
comunidade moral e aderir à família, ao trabalho, ao consumo e aos outros
circuitos da sociedade de controle. O "empoderamento" produz um indivíduo ativo
no império da escolha, em que cada um deve fazer o trabalho por si mesmo, não
em nome da conformidade, mas como condição para se tornar livre.
Sabe-se que a prisão não é um lugar de ressocialização e futura reintegração
social, mas um depósito de corpos para os quais os únicos investimentos estão
na redução total da possibilidade de fuga e no rigoroso sentenciamento com base
no aumento da pena.
Contudo, a alternativa ao direito penal não pode ser o rearmamento moral que os
especialistas estão propondo de modo a impor o que a antropóloga norte-
americana Laura Nader (1994) denomina "harmonia coerciva". Num movimento
similar ao que ocorre nos Estados Unidos, os Jecrims indicam que estamos
passando de uma preocupação com a justiça para uma preocupação com a harmonia e
a eficiência; de uma preocupação com a ética do certo e do errado para uma
ética do tratamento. Um modelo de justiça centrado nos tribunais, cuja lógica é
ter ganhadores e perdedores, tende a ser substituído por outro, em que o acordo
e a conciliação desenham um novo contexto em que só há vencedores. Não se trata
mais de evitar as causas da discórdia, mas a sua manifestação. Exaltam-se as
virtudes dos mecanismos alternativos regidos pela ideologia da harmonia,
criando-se um contexto de aversão à lei e de valorização do consenso. De acordo
com Nader, considerar a harmonia algo benigno é uma forma poderosa de controle
social e político. Quem está errado e age em confronto com a lei é sempre o
mais interessado numa solução conciliatória.
No caso de agressões entre casais ou gerações na família, a questão é muito
mais complicada, pois se combina com a hipocrisia da defesa da família. Não se
trata da família patriarcal, nem da família como reino de proteção e
afetividades, mas da família como única solução para o cidadão que falhou, que
é pobre e incapaz de exercer os direitos conquistados (Debert, 2001).
A importância da perspectiva relacional no tratamento da violência
Os aspectos problemáticos da formulação da Lei "Maria da Penha" já foram
suficientemente explorados. Resta destacar que a definição, em forma de lei, de
determinados abusos cometidos como "violência doméstica" encerra um paradoxo de
difícil operação: a desigualdade de poder que perpassa as relações entre as
vítimas e os agressores não se manifesta apenas nas esferas da vida doméstica,
tampouco nas posições ocupadas por homens e mulheres no núcleo familiar. Além
disso, o problema mais agudo desta lei parece ser o de confundir violência e
crime, ou de tentar subsumir o fenômeno.
Por mais bem intencionados que tenham sido os propósitos dos atores sociais
envolvidos na sua formulação e a inegável importância política de tentar
resolver a "invisibilização" e a banalidade com a qual os Jecrims atuam diante
de conflitos dessa natureza, é preciso indagar sobre os limites da esfera
judiciária no contexto observado, no sentido de atenuar, ressarcir, dar justiça
àqueles que sofrem abusos em nome da preservação de normatividades relacionadas
às configurações de gênero.
Sem a pretensão de oferecer alternativas concretas, mas com o intuito de
ampliar o debate, sobretudo no âmbito analítico, propomos uma distinção
estratégica entre crime e violência. Crime implica a tipificação de abusos, a
definição das circunstâncias envolvidas nos conflitos e a resolução destes no
plano jurídico. Violência, termo aberto aos contenciosos teóricos e às disputas
de significado, implica o reconhecimento social (não apenas legal) de que
certos atos constituem abuso, o que exige decifrar dinâmicas conflitivas que
supõem processos interativos atravessados por posições de poder desiguais entre
os envolvidos. As violências evocam uma dimensão relacional que, segundo
Foucault, estão longe de serem resolvidas pela esfera jurídica, pois tal
instância, mesmo tendo como objetivo a justiça para todos, cria, produz e
reproduz desigualdades. Com tal ponderação, não se está supondo que a Justiça e
seu escopo legal e institucional não forneçam instrumentos importantes que
organizam e definem padrões de ressarcimento, chegando a uma resolução. Além
disso, trata-se de uma arena de disputas politicamente relevante.
Estamos chamando atenção não só para o fato de que a igualdade perante a lei
jamais foi alcançada por alguma nação, como também que a própria definição de
igualdade e de acesso à justiça constitui processo aberto às disputas e aos
poderes diferenciais entre os atores sociais. Foucault também sugere que os
dispositivos que conformam os regimes de poder em sociedades como a nossa se
organizam de maneira a ocultar suas engrenagens e encobrir seu modo de se
"entranhar" no corpo social. A idéia de uma justiça igualitária baseada em
princípios ou valores universais oculta, na verdade, as desigualdades que a
Justiça produz, aquilo (e aqueles) que ela exclui ou ainda os que nem
considera. Seria fantasioso imaginar a existência de uma esfera na sociedade,
mesmo com as melhores intenções ou excelência de procedimentos, que possa atuar
com pretensões de neutralidade. Importante salientar que antes de ser uma
fantasia, a idéia da justiça para todos é uma quimera, algo que deveria ser
alcançado, corrigindo seus desacertos, cujo resultado é a dificuldade de
apreender ou mesmo decifrar os mecanismos que tornam complexas e intrincadas as
relações de violência.
Examinar as articulações entre violência e gênero permite avançar a análise
sobre as dinâmicas que configuram posições, negociações e abusos de poder nas
relações sociais, constituindo um campo vigoroso para desafiar as dificuldades
sugeridas. Ao discorrer criticamente sobre a literatura especializada sobre tal
temática no Brasil na década de 1980, Gregori (1993) observa que nos diversos
estudos desse período predominava uma tendência a alimentar ou mesmo reproduzir
a trama assimétrica que constituía as relações perpassadas pela violência. Sua
crítica foi elaborada no sentido de alertar para o efeito "vitimizador" de uma
série de "convenções" explicativas e descritivas presentes no tratamento
político e acadêmico da violência contra a mulher: ressaltavam-se situações em
que as mulheres eram vítimas diretas, e outras manifestações de violência
(contra crianças, entre mulheres, ou contra os parceiros) eram vistas como atos
de resistência, reação e reprodução de padrões de comportamento internalizados
pelas mulheres com base em regras reiteradas pelos costumes e pela tradição. De
fato, a mulher aparecia como um ser passivo, vitimado por uma situação já
determinada pela estrutura de dominação.
Os relacionamentos violentos eram descritos como uma relação típica, tomando
por base os dados majoritários do perfil dos agentes e suas relações - não era
feita, pois, uma análise das variações de natureza socioeconômica, étnica,
etária, tampouco variações de ciclo vital da família, número de filhos etc.
Além disso, a construção narrativa dessa relação típica compunha-se dos
seguintes passos: todos os gestos de abuso descritos comportavam o desrespeito,
a humilhação e eram necessariamente seguidos pelo espancamento até o
assassinato. Tais gestos eram apresentados em ordem crescente, numa espécie de
evolução dos acontecimentos que levam à morte. Os homens agem; as mulheres
sentem, reafirmando uma espécie de passividade emocional recoberta pelo medo,
pela vergonha e pelo sentimento de culpa.
Outra concepção cara nas análises em exame era a de sublinhar que a violência
ocorre como manifestação dos homens contra as mulheres, sem que fosse empregada
uma interpretação de que as hierarquias sociais acionadas nessas relações
violentas vão de encontro ao jogo entre um conjunto de atributos relativos à
masculinidade, à feminilidade e aos diferentes conteúdos associados a cada um
desses termos. De fato, vinculava-se o sexo ao gênero, construindo rígidos
pares de oposição. Entre os pólos - a mulher e o homem - existem contraste e
conflito. A partilha e o convívio entre eles eram concebidos e explicados a
partir da idéia de um sistema ideológico, qualificado de machismo, e, nesse
caso, uma noção de ideologia como falseamento.
Em Cenas e queixas, Gregori assinalou a imensa limitação de incorrer em uma
visão que enfatiza a problemática em pauta apenas a partir de convenções
explicativas que reafirmam, em vez de questionar, o dualismo entre vítima e
algoz ou, ainda, reduzem as representações das mulheres à dicotomia
tradicional/moderno. Tais dicotomias não servem como instrumento analítico
porque supõem uma coerência a cada termo da oposição, inexistente na dinâmica
que constitui as representações e as relações sociais.
Essa perspectiva crítica está em consonância com o debate proposto por algumas
teóricas do feminismo contemporâneo que questionam justamente a concepção
monolítica sobre a violência e analisam as articulações entre gênero e
violência. A bibliografia mais recente tem procurado superar certa
"neutralidade" difusa no que concerne ao problema da diferença entre os
sexos.18 Essas autoras posicionam-se contra qualquer retórica que não encare a
violência como algo en-gendered (isto é, perpassado pela assimetria sexual e de
gênero).19 A conceituação de gênero que tomamos como referência neste artigo é
aquela proposta por Judith Butler (2004), pois acreditamos ser a mais vigorosa
na interface com a violência. Butler trata o conceito em termos foucaultianos:
as regulações de gênero são organizadas em um aparato de poder por meio do qual
a produção e a normatização do masculino e do feminino tomam lugar a partir de
variadas formas, como, por exemplo, hormônios ou cromossomos.20 Trata-se de um
aparato que institui constrangimentos, mas não conduz a uma estabilidade
definitiva. Deve ser visto, nesse sentido, como um conjunto de dispositivos que
cria desigualdades de poder e, simultaneamente, está aberto a transformações.
Como bem assinala Butler, gênero é uma prática de improvisação em um cenário de
constrangimentos. Ademais, não há risco de se incorrer em tentações modernas
que conduzem ao substantivismo e aos essencialismos: ninguém faz o gênero
sozinho, ele implica uma relação, uma socialidade.21
Essa vertente de estudos sobre a violência não focaliza a questão apenas na
prefiguração dos comportamentos individuais, mas discute, problematizando, a
expansão do conceito de violência na direção dos aspectos que constituem as
práticas sociais, seguindo a tendência dos estudos pós-estruturalistas
influenciados por Foucault. Porém, essas novas teorias criticam o modo
generalista de que esse filósofo trata as assimetrias e as desigualdades de
poder relativas às diferenças sexuais. Segundo Butler (2004), Foucault
considera o gênero apenas uma entre as diversas normas de uma operação mais
ampla de regulação do poder. Para a autora, o aparato regulatório que governa o
gênero cria um regime "disciplinar" próprio. Tal ponderação, contudo, não deve
conduzir o raciocínio à armadilha de construir uma fronteira que isola o gênero
de outros marcadores de diferença (como classe, raça, etnia, idade etc), os
quais também são eixos de desigualdade. Interessa analisar as intrincadas
operações regulatórias mediante um procedimento metodológico que visa a
estabelecer interseccionalidades entre os diversos eixos e marcas.22
Outra autora que mantém uma posição crítica a Foucault é Teresa de Lauretis
(1997).23 Ela discute especificamente sua concepção de violência (e, em
particular, a relação com o poder disciplinar e com as tecnologias da
sexualidade), que não considera os recortes assimétricos configurados numa
relação de força em que um dos pólos se encontra em desigualdade. Com efeito, o
que importa, nesse caso, é a desigualdade que incide na relação entre o
feminino e o masculino, pois as representações e as práticas posicionam os
gêneros em "suportes empíricos" variados. Isso significa que, no limite, os
homens também podem ser violados, sendo seus corpos tratados como femininos.
Nesse sentido, não é suficiente abordar o problema da violência como se fosse
algo relativo ao casal, desviando o olhar das relações de poder imiscuídas
entre os envolvidos. Lauretis tem razão ao afirmar que Foucault peca por uma
análise circular que resulta numa posição política neutralizadora. A autora
toma como base as idéias apresentadas no livro História da sexualidade I - A
vontade de saber (Foucault, 1976) e, em particular, ao seu argumento sobre o
poder do Estado em normatizar a nossa vida amorosa. Ao partir da noção de que a
sexualidade é produzida discursivamente (institucionalmente) pelo poder e de
que o poder é produzido institucionalmente (discursivamente) pelas tecnologias
envolvidas na sexualidade, Foucault não abre espaço para a atuação e a
formulação concreta de um contra-discurso ou de uma contra-posição. E, para
ilustrar o efeito paradoxal dessa noção geral, Lauretis lembra o posicionamento
de Foucault a propósito do estupro: para neutralizar o poder do Estado sobre a
sexualidade, seria melhor, segundo o autor, tratar tal delito como um ato de
agressão e não como um ato de violência sexual. A abordagem proposta por
Lauretis segue a direção oposta, indicando a relevância de se considerar o
estupro a partir da noção de tecnologia de gênero, ou, mais precisamente,
apreender as técnicas e as estratégias por meio das quais o gênero é construído
e a partir das quais a violência é en-gendered.
Algumas dessas proposições tornam mais complexas as conexões entre o conceito
de violência e o de gênero, pois sugerem que a identidade dos envolvidos em uma
relação de violência é criada em meio a um movimento de espelhamento e
contrastes, e que não se esgota. Não existe categoria genérica ou essencial que
imponha aprioristicamente o traçado ou o perfil dessa identidade (Gregori,
1993). E, como bem pondera Lauretis, é preciso acentuar que a dinâmica dessas
relações é recortada pela desigualdade, por uma assimetria que, inclusive, leva
à violência.
Para pensar os paradoxos que envolvem as relações violentas, em uma abordagem
que não abandona as dinâmicas concretas e experienciais de que elas são
revestidas, adotamos a perspectiva que acredita na coexistência de vários
núcleos de significado que se sobrepõem, se misturam, e estão permanentemente
em conflito. Na situação das relações familiares, por exemplo, cruzam-se
concepções sobre sexualidade, educação, convivência e sobre a dignidade de cada
um. Cruzam-se também posições definidas por outros marcadores ou categorias de
diferenciação que implicam variadas posições de poder: geracionais ou etárias,
marcadores raciais e também os relativos à classe e à ascensão social. Exercer
uma posição é agir em função de várias dessas concepções, posições e
marcadores, combinando-os mesmo quando são conflitivos. Desse modo, importa
salientar que ao tratar de posições de gênero é preciso considerar que,
certamente, existem padrões legitimados socialmente importantes na definição de
identidades e condutas. Contudo, é preciso ter em mente que eles devem ser
vistos como construções, imagens, referências compostas e adotadas de modo
bastante complexo, pouco linear e nada fixo.
Pensar em termos relacionais implica também não reificar ou estabelecer como
determinação as assimetrias baseadas nos marcadores de gênero. De fato,
atualmente torna-se cada vez mais relevante problematizar isso que tem sido
qualificado como violência de gênero. Isso não quer dizer que os marcadores de
gênero, como categorias de diferenciação que compõem mapas hierárquicos e
constituem posições de desigualdade, não sejam fundamentais para atuar contra
dissimetrias e relações de poder e de força. Mas, convém indagar se esses
marcadores não deveriam ser articulados a outros também fundamentais, como os
de classe, os de raça e os de escolha e orientação sexual, mesmo que eles sejam
pouco evidentes quando observamos de perto os scripts que compõem as relações
violentas. Dessa complexidade deriva uma constatação que inegavelmente traz
dificuldades para a ação política, sobretudo aquelas tão sequiosas de
explicações e que buscam inimigos essenciais e permanentes. Ou seja, mulheres,
negros, índios, homossexuais, transexuais, transgêneros (bem como aquelas
pessoas que praticam transgressões às normas sexuais, mas não desejam portar
identidades) vivem em meio a relações em que as identidades vão sendo criadas
num processo permanente de espelhamento e contraste. Não existe uma categoria
genérica que imponha um perfil fixo dessa identidade. Recurso estratégico e
importante em termos políticos, ela se perfaz na trajetória e nas relações
sociais e particulares. Cabe a nós indagarmos se do ponto de vista político não
seria relevante suspeitar de categorias prévias e dadas, apontando antes e de
modo mais "certeiro" para uma aliança entre movimentos que buscam ruir as bases
da intolerância e do preconceito nas relações mais concretas, cotidianas, em
que as desigualdades e as assimetrias de poder não são apenas negociadas, podem
ser mantidas, mas também transformadas. Trata-se, a nosso ver, de garantir o
reconhecimento público (e privado) de que vivemos numa arena de disputas,
composta por variados objetos e posições de poder. Se a própria relação e
"nomeação" contrastiva e polar entre objeto e sujeito devem ser postas em
questão - objeto de discussão para artigos futuros -, nosso intento nesse texto
foi o de apoiar as posições teóricas e políticas do debate contemporâneo que
apontam na direção de consolidar o reconhecimento social e político dos
sujeitos que lutam por constituir novos âmbitos e instrumentos de poder
inovadores.
Isso não quer dizer que a aposta na mudança das instituições do sistema de
justiça criminal de modo a ampliar o seu potencial "contexto-sensitivo" não
tenha nenhum significado quando se pensa em sociedades mais afinadas com os
ideais democráticos.
Num livro sobre o pensamento de esquerda nos Estados Unidos, Richard Rorty
(1999) contrapõe campanha a movimento social, lamentando que no mundo
contemporâneo as campanhas tenham substituído a política de movimento social
que caracterizava as esquerdas nos anos de 1960. No movimento social, cada
campanha específica era vista como parte de algo muito maior: uma matriz a
partir da qual seria gerada a boa sociedade, o que exigia mudanças de ordem
estrutural. Daquela perspectiva, as campanhas tinham pouco significado em si
mesmas e eram avaliadas em termos de avanço ou retrocesso na construção das
bases de uma sociedade que almejava a reversão das desigualdades econômicas.
Para as esquerdas contemporâneas, considera Rorty, a questão central no debate
deixou de ser a estrutura econômica. Na luta pelos direitos humanos, as
esquerdas hoje permitem que a política cultural suplante a política real,
colaborando com a direita no sentido de fazer com que as questões culturais
centralizem o debate público. A defesa do multiculturalismo, da política da
diferença ou das políticas da identidade, afirma Rorty com humor, torna mais
relevante o stigma que o dinheiro. Ao contrário dos movimentos sociais, a
política de campanha tem um fim em si mesma, é algo que se pode prontamente
reconhecer e avaliar se as iniciativas tomadas foram ou não bem-sucedidas. As
campanhas de hoje não se acumulam em movimentos e não incluem entre suas
finalidades a melhoria radical da vida social; são conseqüências, segundo
Rorty, de um mundo fragmentado e da existência humana fragmentada.
Rorty deplora a substituição das campanhas pelo movimento social. Contudo, é
preciso reconhecer a atração que exerce a política de campanha, sobretudo se,
contra esse autor, pensarmos o quanto os antigos movimentos sociais tenderam a
transformar o bom no inimigo do melhor. Todos nós sabemos hoje, reavaliando a
política do movimento social, que nunca se conseguiu atingir o ótimo, ao passo
que conseguimos sacrificar muito do bom.24 Ademais, as campanhas cumprem um
papel importante no sentido de ajudar a melhorar as condições de vida: melhorar
o transporte coletivo, aumentar as vagas em escolas, fazer com que o sistema de
telefonia seja mais eficiente, inibir a corrupção e o superfaturamento, que
continua existindo em toda parte, oferecer recursos a mulheres, idosos e
crianças que ainda são vítimas de lesões corporais e ameaças. Mas se isso irá
provocar uma transformação radical na sociedade é uma outra questão. Essa não
poderia ser a intenção, nem a promessa das delegacias de defesa da mulher ou da
Lei "Maria da Penha".
NOTAS
1 Para um balanço deste debate, ver Werneck Vianna et al. (1999); sobre a
judicialização dos conflitos conjugais, ver Rifiotis (2002).
2 Trata-se da Lei Federal 11.340 sancionada pelo presidente da República em 7/
8/2006 e que entrou em vigor em 22/9/2006. Ela é conhecida como Lei "Maria da
Penha", referência cunhada por setores do movimento feminista em homenagem a
Maria da Penha, uma vítima de violência doméstica, cujo caso sofreu
significativa omissão pelas autoridades judiciais. Em 2001, a Comissão
Iteramericana de Direitos Humanos condenou o governo brasileiro por tal
omissão. Essa é a primeira lei no Brasil que trata da violência doméstica e
familiar contra a mulher.
3 A própria expressão utilizada para o reconhecimento de atores excluídos do
sistema de direitos é contingente. Termos como "camponeses" ou "favelados"
perderam a expressão política que gozavam até muito recentemente.
4 O SOS-Mulher de São Paulo foi a primeira entidade no Brasil criada por
iniciativa de vários grupos feministas em outubro de 1980 com o propósito de
prestar atendimento a mulheres vítimas de violência. Essa entidade atuou
durante três anos, atendendo as mulheres em plantões, realizando
encaminhamentos para aconselhamento jurídico e psicológico e organizando
campanhas de conscientização sobre a gravidade do problema tratado. Para maior
detalhamento, ver Pontes (1986) e Gregori (1993).
5 São inúmeras as referências bibliográficas para o acompanhamento desse
debate, em suas várias modalidades disciplinares (na arquitetura, na teoria
literária, na filosofia, na antropologia), seja na direção das propostas, seja
na das ponderações críticas. Algumas das indicações importantes na discussão da
problemática de gênero e o questionamento das antigas epistemes encontram-se,
entre outros, em Scott (1988); de Lauretis (1997); Butler (1990); Moore (1994).
Para uma discussão sobre o impacto dessa literatura sobre os estudos no Brasil,
ver Heilborn e Sorj (1999); Gregori (1999); Piscitelli (1997).
6 Antes disso, em 2002 a lei 10.455 possibilitou ao juiz, como medida cautelar,
afastar o agressor do domicílio nos casos de violência doméstica. Em 2004, a
Lei 10.886 aumentou a pena mínima de três meses para um ano nos casos de lesão
corporal em que o agressor é parente ou companheiro da vítima.
7 A primeira Delegacia de Defesa da Mulher foi criada em 1985, por iniciativa
do Conselho Estadual da Condição Feminina e pelo então Secretário Estadual da
Segurança, Michel Temer. Entre os estudos disponíveis sobre a atuação dessas
delegacias, merecem particular atenção Ardaillon (1989), Blay e Oliveira
(1986), Brandão (1997), Brocksom (2006), Carrara et al. (2002), Debert e
Gregori (2002), Gurgel do Amaral et al. (2001), Machado e Magalhães (1999),
Moraes (2006), Muniz (1996), Nelson (1996), Oliveira (2006), Rifiotis (2003),
Santos (1999); Soares (1999); Suárez e Bandeira (1999); Taube (2002).
8 A pesquisa que coordenamos no ano 2002 mostrou que há uma uniformidade muito
grande na tipificação dos crimes, apesar das diferenças entre as DDMs
pesquisadas. A grande maioria das ocorrências levadas a todas as delegacias do
país é tipificada como "lesão corporal leve" ou "ameaça".
9 Esse aspecto também estava presente nas narrativas das mulheres que
procuravam o SOS-Mulher, analisadas em estudo anterior (Gregori, 1993).
10 Um dos aspectos que chamou a atenção de Gregori é o fato de esses
depoimentos estarem sendo enunciados na forma da queixa: um tipo de narrativa
que tende a reduzir as situações de conflito e abuso vivenciadas no cotidiano
das relações interpessoais marcadas por gênero por meio de uma polarização
estática entre vítima e algoz. Os paradoxos e os efeitos não esperados desse
tipo de construção discursiva são salientados: menos do que a busca de uma
investigação, seguida pela devida punição dos responsáveis pela violência
sofrida, essas queixas enredavam as enunciantes em uma posição não muito
propícia à emancipação, porque tendia a reiterar o lugar das mulheres como
vítimas (Gregori, 1993, pp. 185-186).
11 Entrevista fornecida a Debert e Brockson em 2002.
12 Os dados sobre criminalidade reforçam essa imagem. No suplemento sobre
vitimização da pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (PNAD) de 1988,
vemos que 55% das mulheres vítimas de agressão, na região sudeste do Brasil,
foram atacadas na sua própria residência e 45%, em local público. Parentes e
conhecidos foram responsáveis por 62,29% dos ataques violentos (33,05% por
parentes e 29,24% por conhecidos). Nas agressões cometidas por parentes, 86,80%
dos casos ocorrem nas residências. Os boletins de ocorrência feitos no ano de
1991, no estado do Rio de Janeiro, mostram que 67% dos homicídios praticados
contra crianças (de zero a onze anos) foram perpetrados pela própria família
(Soares et al., 1993). O Movimento Nacional de Direitos Humanos pesquisou todos
os homicídios contra crianças e adolescentes noticiados por jornais de catorze
estados do país, de janeiro a dezembro de 1997 (três estados do Norte, seis do
Nordeste, dois do Centro Oeste, dois do Sudeste e um do Sul), e concluiu que
34,4% dos homicídios infantis foram cometidos por parentes (pais, avós, tios e
irmãos) e 4,6%, por vizinhos e amigos. O autor do crime não é conhecido em
55,3% dos casos, e 44,3% dos crimes investigados ocorreram na própria casa das
crianças (Daniela Falcão, Folha de São Paulo, 23/7/1998, p. 3.3)
13 Para a pesquisa na área de ciências sociais sobre os Jecrims, ver,
especialmente, Amorim (2003), Azevedo (2000 e 2001), Beraldo de Oliveira
(2006), Burgos (2001), Campos (2002 e 2003) Cardoso, (1996), Cunha (2001),
Debert e Beraldo de Oliveira (2007), Faisting, (1999), Kant de Lima et al.
(2001 e 2003), Sadek (2001) e Werneck Vianna et al. (1999); sobre juizados
semelhantes nos Estados Unidos, ver Cardoso Oliveira (1989)
14 Essas tentativas parecem ter tido sucesso, como indica o estudo realizado no
Jecrim de Itaquera, em que 36,4% dos casos relativos aos delitos domésticos em
que a vítima era mulher tiveram extinção de punibilidade e 40% aguardavam o
prazo decadencial. Esses dados foram coletados em 2002.
15 Sobre família e justiça penal, ver, especialmente, Corrêa (1981 e 1983),
Ardaillon e Debert (1987), Grossi (1998) e Teixeira (2004).
16 Vários autores têm mostrado que os anos de 1980 e início da década seguinte
assistiram, nos países da Europa ocidental, à emergência de uma nova agenda
moral que questionava a dependência em relação ao Estado. A preocupação com os
custos financeiros das políticas sociais levou a uma nova ênfase na família e
na comunidade como agências capazes de solucionar uma série de problemas
sociais. Uma ótica distinta da que caracterizava o papel da família em agendas
anteriores entra em jogo. No pós-guerra, considera Simon Biggs (1996), as
ideologias e as práticas do Welfare State tinham um conteúdo paternalista que
impedia o questionamento da integridade da família como instância privilegiada
para arcar com o cuidado de seus membros. Esse paternalismo foi abalado nos
anos de 1970 pelos movimentos de denúncia da violência contra a criança e a
mulher. Na agenda atual, os deveres e as obrigações da família foram
redefinidos. No Brasil, as políticas públicas voltadas para setores mais pobres
da população atualizam os papéis dos membros da família, como pode ser visto
nas políticas de renda mínima ou bolsa escola. Nesse sentido, fazem coro com a
violência familiar tratada nos Jecrims.
17 Termo derivado do inglês empowerment, usado sobretudo pela militância de
movimentos sociais para indicar a transformação do público alvo de sua ação em
sujeitos de direitos e indivíduos capazes de reverter a situação de opressão e
submissão de que são vítimas.
18 Para uma análise sobre essa tendência da bibliografia contemporânea, ver
Gordon e Breins (1983). Henrietta Moore (1994) constrói sua abordagem sobre a
violência com base em uma concepção discutida pela psicologia, segundo a qual o
que leva um indivíduo a assumir uma posição identitária tem a ver com o grau de
investimento acionado. Esse grau é concebido num processo em que o indivíduo
confronta seus compromissos emocionais e seus interesses. A violência ocorre em
função da inabilidade de se sustentar uma posição identitária de gênero, o que
resulta em crise, real ou imaginária, da auto-imagem e/ou da imagem pública que
se tem. Pode ser efeito, também, das contradições nascidas da exposição à
multiplicidade de posições. Muitos casos de violência são, segundo a autora,
resultantes da inabilidade de se controlar o comportamento sexual do outro -
comportamento que ameaça a auto-imagem e dificulta as avaliações sociais sobre
alguém. O problema desse tipo de argumento está na dificuldade de se discernir
o momento em que as frustrações em relação à auto-imagem - certamente numerosas
na dinâmica biográfica de cada indivíduo - se constituem, levando a atos de
violência. Outra fragilidade é o fato de a análise estar por demais focalizada
nas dinâmicas individuais e não - como acreditamos - em relações estabelecidas
por indivíduos. Trata-se de relações que, no mais das vezes, envolvem uma
assimetria de poder.
19 É extensa a polêmica sobre as intrincadas relações entre sexo e gênero e
suas implicações conceituais. Se o conceito de gênero foi formulado por Robert
Stoler, ainda na década de 1970, como a armadura cultural (variável e
desessencializada) que incide sobre as diferenças de sexo, na década de 1980, a
polaridade entre sexo - como algo relativo ao corpo no seu sentido biológico -
e gênero - como a força atuante e criativa da cultura - passou a ser
questionada. Tanto Lauretis, como Moore compartilham as críticas desenvolvidas
a partir da década de 1980, de modo que, quando se referem ao conceito de
gênero, pressupõem uma relação não polarizada com o conceito de sexo. Para
esclarecimento dessa discussão, ver Scott (1988), Butler (1990), Heiborn e Sorj
(1999), Gregori (1999) e Piscitelli (1997)...
20 É importante esclarecer que tais normatizações correspondem a um conjunto de
arranjos por meio dos quais a matéria prima biológica do sexo e da procriação é
modelada pela intervenção humana.
21 O aparato de gênero não age sobre um indivíduo tomado como sujeito
preexistente, mas age e forma tal sujeito (Butler, 2004, p. 42).
22 Para uma teorização consistente sobre a relação entre gênero, classe e raça
na perspectiva da interseccionalidade, ver Brah (1996).
23 Ver também o trabalho de Elisabeth Brofen (1992).
24 Para uma crítica à oposição que Rorty faz entre movimento social e campanha,
ver Bauman (1998).