As linguagens da democracia
Ao reconhecer o impacto de processos deflagrados nos séculos passados, e
acelerados nos últimos cinqüenta anos, as ciências sociais têm apontado a
fragmentação como a característica central das sociedades atuais. Fragmentação
estrutural, materializada na constituição de subsistemas autopoiéticos e no
descentramento das sociedades, e cultural, derivada da pluralidade competitiva
de concepções morais ou de horizontes de vida. Esta nova paisagem social,
constituída por galáxias independentes, não mais se submeteria aos modelos
democráticos e utópicos erguidos ao longo da modernidade, todos envolvidos pela
expectativa de uma unidade social e cultural tecida ao longo da história.
Admitida a obsolescência dos antigos modelos, a teoria social elege como sua
tarefa a reflexão sistemática sobre formas de vida democráticas e solidárias em
circunstâncias novíssimas e desafiadoras.
Este esforço de reinvenção democrática constitui o eixo do debate, ainda
inconcluso, entre procedimentalistas e comunitaristas, referências polares da
teoria social contemporânea. Em princípio, as teorias procedimentalistas e
comunitaristas diferenciam-se pelo peso determinante que conferem ou aos
valores partilhados ou aos procedimentos de liberdade na imaginação de formas
democráticas de vida. Aceitando o diagnóstico da fragmentação social, autores
como Habermas (2000, 2001) e Rawls (1981, 2000) insistem na democracia como o
uso público da razão, garantido por procedimentos igualitários e de liberdade.
O procedimentalismo não recusa a presença de culturas políticas ou perspectivas
morais abrangentes, incorporando-as, no entanto, como elementos subsidiários e
sustentadores dos procedimentos, a exemplo da idéia do "consenso por
justaposição" de Rawls. O comunitarismo, por sua vez, acentua a necessidade de
configurações morais partilhadas por uma comunidade para a existência de uma
democracia (Taylor, 1997). Sem estas configurações morais abrangentes, fundadas
na premissa da dignidade, igualdade e liberdade dos homens, as formas
democráticas de vida não se sustentariam ao longo do tempo. Pela sua própria
natureza, a perspectiva comunitarista tende a ressaltar a importância de
culturas políticas, ou tradições morais e éticas, na reorganização democrática
das sociedades contemporâneas, sem desconhecer o papel dos procedimentos.
O que até agora foi dito não tem a ambição de fazer justiça à amplitude e
profundidade deste debate, consistindo apenas na tentativa de construir um
horizonte para uma pergunta aparentemente esdrúxula e sem sentido: teria a
nossa tradição ou cultura política brasileira a capacidade de enriquecer a
discussão travada pelos procedimentalistas e comunitaristas? Esdrúxula porque
nos acostumamos a dar como certa a natureza antidemocrática de nossa tradição.
E sem sentido porque joga no interior de um debate teórico, autoconsciente e
sofisticado, a presença bruta de uma tradição, procedimento cuja logicidade
parece imediatamente questionável. É possível, entretanto, oferecer uma
resposta positiva à questão formulada, se descobrirmos os elementos
democráticos de nossa tradição e se reconhecermos os autores-chave do debate
contemporâneo como intérpretes e componentes de tradições políticas
específicas, às quais a nossa pode se juntar de forma legítima. É este o
percurso deste texto, divido em três movimentos e uma conclusão provisória.
Três movimentos arriscados e expostos, no âmbito restrito de um artigo, de
forma breve. O primeiro consiste na construção de um panorama a respeito dos
campos morais ou ético-políticos da modernidade. O segundo diz respeito à
experiência particular da Ibéria no início da modernidade, localizando-a neste
panorama e no momento em que a América Ibérica começa a ser construída. O
terceiro refere-se à nossa possível tradição, ou seja, à experiência brasileira
e ibero-americana em seus aspectos mais gerais. As conclusões, obviamente,
tentarão recolher os elementos centrais desses movimentos para que a indagação
sobre a nossa possível contribuição possa merecer uma resposta substantiva.
Iniciemos o primeiro movimento, tomando como ponto de partida a seguinte
hipótese: as sociedades pós-tradicionais encontram, no momento em que despedem
a tradição como fundamento do agir social, várias linguagens para a construção
de uma nova normatividade social.1 O que chamamos de modernidade ocidental,
deflagrada nos séculos XVI e XVII, pode ser entendido como um vasto processo de
subjetivização da vida (Ferry, 1990), uma vez corroído o princípio teológico,
que a tudo dava sentido, e destruídos os pressupostos objetivistas e
tradicionalistas do mundo medieval (Habermas, 2000). A sociedade moderna e
ocidental desenvolve-se ao buscar na subjetividade humana os fundamentos
normativos para a organização de sua vida e de suas expectativas utópicas,
livrando-se progressivamente dos modelos do passado.
A invenção da subjetividade, no entanto, não se desdobra de forma idêntica e
homogênea no Ocidente, produzindo tradições distintas de subjetivização da vida
e de modernização da sociedade, e modos diferentes de organização dos novos
campos morais ou éticos. Essa pluralidade inventiva pode ser capturada pela
noção de linguagem e pelo desvelamento das linguagens seminais da modernidade.
Com o olhar atento ao período de corrosão da sociedade medieval e aos séculos
iniciais do mundo moderno, Padgen (2002) encontra quatro grandes linguagens a
comandar este decisivo processo de mudança: a do aristotelismo político, a do
republicanismo clássico, a da economia política e a linguagem da ciência da
política. Como observa Eisenberg (2003), a última poderia ser considerada mais
uma metalinguagem - pois presente em todas as outras - do que uma linguagem
particular, embora ganhe particularidade na reflexão de Hamilton, debruçado
sobre a experiência norte-americana. O elenco de linguagens apontado por Pagden
pode ser alterado polemicamente para os nossos propósitos, ao se transferir o
foco da distinção do campo da história das idéias para o da teoria social.
Essa operação não traz consigo nenhum desprezo pela história ou abriga a
afirmação de seu caráter subalterno diante da sociologia. Quer apenas trazer
para um determinado campo reflexivo uma possibilidade alternativa de
diferenciação das linguagens da modernidade, que só poderá ser validada pela
produtividade de seu exercício, sem negar valor à classificação de Pagden.
Assim, a proposição deste texto é de que a pluralidade da modernidade ocidental
estaria ancorada em três grandes linguagens de subjetivização, a saber, a
linguagem do interesse, a linguagem da razão e a linguagem do sentimento - ou
do afeto -, e nos modos de articulação e hierarquização dessas linguagens na
reconstrução de novas formas de vida social. As diversas tradições e culturas
políticas do Ocidente podem ser entendidas por meio dessas linguagens e de suas
articulações, que tendem a assumir uma feição "transcendental"2 ou normativa em
experiências históricas concretas.
Tentemos entender a estrutura dessas linguagens sob a forma de tipos ideais.
Esta remissão a Weber abriga dois propósitos. Em primeiro lugar, expressa o
objetivo de estabelecer com mais nitidez um campo de reflexão próprio da
sociologia ou da teoria social. Trata-se, portanto, de uma abordagem que se
estrutura buscando encontrar os elementos básicos - por uma redução reflexiva -
das linguagens sociais, à maneira weberiana. Em segundo lugar, esta tentativa
não obedece inteiramente à perspectiva de Weber, que também encontra três
móveis fundamentais da ação humana subjetivamente orientada: a tradição, o
afeto (carisma) e a razão.3 A larga investigação de Weber, contudo, tem como
objeto uma comparação entre o Oriente e o Ocidente, motivo pelo qual não pode
dispensar a ação baseada na tradição, atribuída ao passado e característica do
Oriente. Em nosso caso, estamos tratando de sociedades pós-tradicionais, ou
seja, de sociedades que não mais se encontram determinadas por crenças e
costumes imemoriais, o que nos autoriza abandonar uma possível linguagem da
tradição, nos termos estritos de Weber. Por outro lado, na perspectiva
weberiana, as sociedades ocidentais modernas são fundamentalmente compreendidas
pela utilização do par conceitual razão/carisma (afeto), e pela fecunda
hipótese da associação entre Ocidente e racionalização. Ora, um dos objetivos
da presente reflexão é o de relativizar esta hipótese totalizadora de Weber,
acentuando a permanência e a eficácia das linguagens da razão, do afeto - que
ele de algum modo reconhece - e a elas associando a linguagem do interesse, que
ele não aceita como móvel da ação subjetivamente orientada (Bendix, 1986).
Desse modo, saímos do campo da história - dele se aproveitando ao máximo - para
o da sociologia, sob a inspiração de Weber, mas sem aceitar a sua hipótese da
racionalização da sociedade como fatalidade do Ocidente e trocando o eixo de
análise da ação subjetivamente orientada para o das linguagens.
Isto posto, é preciso ainda ressaltar um dado preliminar ao desenho típico-
ideal dessas três linguagens. Todas elas nascem de uma percepção comum aos
séculos XVI, XVII e XVIII: a do desejo humano - da cupiditas - como potência
básica e fundante da subjetividade, como força que age criativa e
construtivamente no mundo (Ansaldi, 2001). Ao esquecer-se como princípio doador
de sentido para a vida, o transcendente abre espaço para a progressiva
percepção da imanência humana. É no confronto com essa imanência, no escrutínio
da vida interna do homem, que o desejo humano adquire um protagonismo
desconhecido nas formas anteriores de vida e consciência. Ele transforma-se no
elemento radical, original e propulsor da subjetividade, e todas as linguagens
desenvolvem-se com a ambição de oferecer um sentido a esta potência imanente do
desejo, agora senhor de uma infindável produtividade ontológica. É o desejo que
faz o mundo e o homem, ou melhor, o mundo do homem - como mundo desejado e
apropriado - e é essa força que impulsiona o florescimento das diversas
linguagens, todas interessadas em enlaçar e orientar a potência do desejo para
a recriação de novas formas de vida. Esse reconhecimento da autonomia e da
produtividade do desejo humano marca o início da modernidade, na Renascença de
Maquiavel, na Reforma de Lutero, no fundo barroco de Shakespeare, Quevedo,
Gracián, Cervantes, Hobbes, Descartes, Spinoza, no mito de Don Juan, na
astuciosa reflexão de Locke e na inflacionada produção de catálogos das paixões
e dos modos de dominá-las. Diante da inquieta infinitude do desejo, as
linguagens de subjetivização do mundo ensaiam e firmam suas diferenças e
possibilidades, tentando dominá-la ou preservá-la. E nesse enfrentamento, nasce
o homem moderno (Chauí, 1990), ou melhor, os vários tipos e modos da
subjetividade humana.
Como no caso da linguagem dos interesses, que se ergue associada à idéia do
indivíduo como a agency fundamental da sociedade. A noção de indivíduo é uma
forma específica de apropriação da subjetividade humana e de fundamentação
antropológica de um determinado tipo de sociedade (Arendt, 1972). Ela emerge
quando, além da consideração de cada um como um exemplar singular da espécie,
passamos a conferir a cada homem a condição de um ser moral autônomo e
independente dos outros (Dumont, 1985). No "indivíduo" coexistiriam um "dentro"
- que o faz subsistir por si mesmo - e um "fora", os outros indivíduos e a
sociedade, nascida das relações externas entre todos, ponto também presente em
Elias (1994). Esse homem-indivíduo é transcendental e formalmente definido pela
posse de direitos negativos, que lhe asseguram a igualdade em relação aos
outros e o maior grau de liberdade possível para a perseguição dos seus
interesses, ou seja, seus fins particulares. Os direitos protegem este "dentro"
da invasão da sociedade e dos outros, transformando o indivíduo no elemento
original da sociedade.
Essa visão já se encontra em Hobbes (1974), com seu modo especial de
caracterizar o "dentro" que faz do homem um indivíduo. O elemento interno e
primeiro do homem é o desejo, a cupiditas, que preserva o seu movimento e a sua
vida. Desejo de apropriação do mundo e do que nele existe - poder, riqueza,
saber e honra -, materializado sob a forma de interesse. A potência de cada
indivíduo corresponde à capacidade de realização dos seus desejos ao longo da
vida, e o sucesso contínuo na obtenção do que os homens desejam constitui a
felicidade humana. No entanto, se a perpétua intranqüilidade de espírito
provocada pelo desejo pode nos trazer a felicidade, pode também ameaçar a
própria vida, individual ou social, ao criar o estado de guerra de todos contra
todos. Nessas circunstâncias, a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta, para usar os termos de Hobbes. O risco da dissolução
social e da miséria pode, contudo, ser cancelado por um contrato, racionalmente
construído, que institua um agente externo de controle sobre a órbita dos
indivíduos e sobre o movimento do desejo. O medo - uma forma de sentimento - é
o grande móvel do contrato racional que cria o Leviatã e o sustenta. E é esse
Estado que, pela espada, garante a existência da própria sociedade, do que é
justo e injusto, do que é bom e mau para a conservação dos homens, e obriga a
todos ao cumprimento dos contratos e pactos estabelecidos. Há, neste passo, uma
inflexão teórica decisiva que não pode ser perdida em Hobbes: a transformação
da filosofia moral em ciência do que é bom e mau, e não mais do bem e do mal.
Conseqüentemente, ele abandona a exigência de perfeição, na perspectiva de um
modelo moral tradicional, exigindo de cada homem apenas o respeito ao bom e mau
para a conservação de todos. Conservação que, por outro lado, implica em
preservar o movimento da cupiditas da multidão e de cada um, consignada na
afirmação de "o que não está proibido é permitido". O Leviatã não cancela o
desejo nem o indivíduo apetitivo e competitivo (Macpherson, 1979). Ao
contrário, ele é a sua matéria. O objetivo hobbesiano é o de evitar as
conseqüências catastróficas do desejo irrefreado, sem erigir nenhum outro valor
para a vida em comum a não ser a realização máxima do interesse de cada um e de
todos. Hobbes é, no entanto, para os nossos propósitos, a apresentação das
armas da linguagem do interesse, que se torna mais complexa pela colaboração da
perspectiva do protestantismo e de Locke.
Ao reclamar a necessidade de um controle externo, o desejo travestido de
interesse ainda não detém a capacidade de organizar uma linguagem plena de
subjetivização da vida. Este passo só será dado quando o interesse se
transformar na fonte autônoma de uma moral que controle o desejo e o vincule a
um modelo de vida boa. Ou seja, quando o controle externo se tornar habitus
internamente estabelecido e fundar a possibilidade de uma áskesis interior e
atada à própria noção de indivíduo apetitivo. Essa operação é feita por Locke,
de acordo com Taylor (1997). A perspectiva lockeana incorpora ao indivíduo
competitivo, portador irracional do desejo, os motivos de autoreforma e
autocontrole do protestantismo, lançando as bases para uma determinada economia
do corpo e dos sentimentos, para a construção do indivíduo como "ser moral",
lembrando Dumont. Séculos mais tarde, Weber irá ressaltar os frutos deste
processo de laicização do puritanismo movido pela idéia do exercício de uma
vocação no mundo (Weber, 1974). A autodisciplina protestante instala-se na
própria subjetividade, movimento característico deste mundo imanente a ser
explorado, e, afastada progressivamente de sua origem religiosa, autoriza a
definição do indivíduo como sede tanto do desejo como da capacidade de sua
domesticação e controle. O interesse afirma-se como elemento constitutivo do
indivíduo e da sociedade dos indivíduos, agora dotado do poder de se controlar
e de conviver com outros interesses. Hirschman (2002) salienta que a idéia de
interesse substituiu a velha contraposição medieval e cristã entre as paixões e
a razão, sempre a exigir uma concepção heróica de virtude para o domínio das
paixões, oferecendo ao homem comum a possibilidade de domesticá-las mais do que
de eliminá-las, num ambiente social pacífico. Embora a afirmação de Hirschman
não esteja inteiramente correta,4 ela também reconhece a natureza do interesse
como fonte moral e normativa, tocada por uma concepção modal e distanciada do
velho embate entre o bem e o mal.
Ainda em Locke podemos encontrar o médium da linguagem dos interesses, ou seja,
a mediação que permite ao interesse plasmar e justificar moralmente o mundo
social e o destino individual: o trabalho. O tema do trabalho é crucial em
Locke, tal como no protestantismo. Ele é o modo de justificação do desejo de
apropriação do mundo e de suas possibilidades. É por intermédio dele que o
interesse se materializa em propriedade e bens legítimos, assim como a
humanidade aumenta seus meios de vida e de progresso material (Macpherson,
1979). O exercício puritano de uma vocação no mundo, como acentua Weber, dá
origem a uma ética do trabalho, entendido como atividade regular, sistemática,
e modo legítimo de consecução dos interesses por parte dos indivíduos (Weber,
1974). A forma tradicional de obtenção de riquezas - o saque, a guerra, a
especulação, as modalidades compulsórias de trabalho, fundadas no domínio dos
meios de violência - dá lugar à atividade permanente, calculada, baseada numa
disciplina interna e corporal dos indivíduos. A linguagem do interesse começa a
adquirir plenitude ao associar interesse, indivíduo e uma exigente moral
subjetiva fundada no trabalho.
Para Locke, os indivíduos apetitivos dotados de uma disciplina interna são
capazes de estabelecer as bases de uma ordem social e do mercado, pela criação
do dinheiro (Locke, 1978). Mais do que isto, o dinheiro, ou a moeda, amplia a
capacidade produtiva do trabalho, e o representa em processos de troca cada vez
mais generalizados. Locke não faz do estado de guerra hobbesiano a hipótese
básica de uma vida pré-estatal. Essa já conteria, em si e autonomamente, as
condições de uma sociedade de indivíduos livres. O contrato que institui o
Estado não cria simultaneamente a sociedade, como em Hobbes, inventando apenas
meios especiais para a garantia da propriedade e da vida. O Estado não é
apresentado como um pacto originário, mas na forma de um contrato de segunda
ordem, feito para a proteção de algo preexistente a ele: o indivíduo, seus
interesses, suas propriedades e uma sociedade de indivíduos.
Lugar do desejo e de autodisciplina, este indivíduo já não reclama controles
externos, buscando tão-somente instrumentos que permitam a realização de seus
desejos redefinidos como interesses. De forma conseqüente, o Estado e o Direito
recebem apenas uma natureza formal e instrumental, vedada a sua evolução numa
direção material. O tema da justiça migra do âmbito do Estado - das antigas
Coroas - para o território do mercado, ou seja, da trama resultante da ação
simultânea dos indivíduos em busca de seus interesses. Não por acaso Locke vê a
sociedade civil resultante do pacto como uma comunidade legal desprovida de
poder, na acepção de um poder capaz de orientar material e substantivamente os
homens. O mundo legal é apenas a forma externa e positiva de expressão dos
direitos e dos controles que pertencem aos indivíduos em movimento permanente.
Sem dúvida, o direito e as instituições assim concebidos passam a exercer um
papel pedagógico de extrema eficácia, consolidando e reproduzindo a concepção
de indivíduo e de sociedade como fruto das relações individuais.
A percepção do mercado como distribuidor da justiça, já presente em Locke, dará
origem a um dos principais pressupostos da economia política, qual seja, o da
moralidade do mercado, que deve ser protegido integralmente de qualquer outra
fonte moral. De acordo com Mandeville (Goldsmith, 2002) e Bentham, a velha
idéia de justiça, ou do bem comum, dispensaria qualquer forma de regulação ou
intromissão estatal no mercado, nascendo da ação de cada indivíduo em busca do
seu interesse. Em outros termos, o bem comum seria o bem convergente produzido
pelos interesses em movimento, mas incapaz de propiciar o fundamento ou a
legitimidade da sociedade, que repousa sempre na materialidade do interesse
individual e nos instrumentos legais e formais de controle social do apetite
humano. Esta hipótese a respeito das conseqüências não intencionais das ações
humanas fundadas no interesse dispensa a vinculação de um bem comum
materialmente definido ao Estado, que se vê reduzido à condição de aparato
externo à sociedade e destinado a garantir a livre movimentação dos interesses
e dos indivíduos, pressuposto mantido mesmo na versão da liberal democracia,
como anota Habermas (1995). Nesse sentido, a utopia da linguagem dos interesses
prevê a perfeição de uma sociedade, na medida em que esta reconheça a potência
do desejo, travestido de interesse, que preserve a sua liberdade e estimule o
seu exercício, base da justiça e do progresso material, que a todos atingiria.
Nem os sentimentos nem a razão estão dispensados nesta linguagem, mas
subordinados ao interesse. A linguagem da razão é convocada de forma tríplice.
Em primeiro lugar, toda a justificação do mundo fundada no interesse deve se
dar racionalmente, sem o apelo a nenhum fundamento transcendente e sustentada
numa visão imanente do homem. Esta justificação racional do interesse envolve
uma contradição que mais tarde Kant perceberá com toda clareza, tentando
solucioná-la: se o interesse se justifica racionalmente, deveria ser a razão o
elemento fundamental da nova normatividade. Em segundo lugar, a razão é
convocada para encarnar-se em razão formal e legal, presente nas instituições.
E, finalmente, é reduzida a razão utilitária, território do cálculo individual
que submete instrumentalmente o mundo e os sentimentos aos interesses. A
transferência da razão para fora do território galileano, inspiração clara de
Hobbes, se dá pela sua fragmentação e instrumentalização, operação que não
parece capaz de completa legitimação ou consolidação da linguagem do interesse.
Em outros termos, a associação interesse/razão não se mostra suficiente para
legitimar e manter a sociedade.
Embora o ponto tenha sido insinuado em Hobbes, a necessidade de mobilização
consciente e instrumental dos sentimentos está claramente posta em Locke,
quando trata da religião. Nos primórdios da modernidade, esta identificação dos
sentimentos - e da sua eficácia - com a religião será bastante comum, e na
perspectiva lockeana ganha uma especial visibilidade, ao assinalar a
necessidade de um Cristianismo com alguns simples artigos de fé adequados às
capacidades do vulgo. De acordo com Macpherson, "o ponto de vista de Locke é de
que, sem sanções sobrenaturais, a classe operária é incapaz de seguir uma ética
racionalista" (1979, p. 237). A linguagem dos interesses admite a fratura da
sociedade, entre os que são premiados pelo mercado e os perdedores, e a
religião é convocada para o controle "interno" destes últimos. Por outro lado,
toda a operação de incorporação da autodisciplina protestante tem como objetivo
o controle dos afetos e sentimentos, ou das paixões, na terminologia negativa
da época. Mandeville desvela, na sua famosa e polêmica Fábula das abelhas, a
contradição desse programa de autocontrole e domesticação do desejo e dos
sentimentos. São os nossos vícios e paixões desregradas - a avareza, a cobiça,
a luxúria, a gula, a libertinagem etc. - que fazem a riqueza e a força da
sociedade, versão especial das conseqüências não intencionais da ação humana. O
controle, a autodisciplina, a honestidade, diz ele, provocam inevitavelmente a
miséria, o desemprego e o mal comum. A moralidade do mercado parece dispensar,
em Mandeville, o componente moral da idéia de indivíduo, possibilidade que
incomoda Adam Smith. Releituras recentes de Smith encontram uma articulação
mais complexa da linguagem dos sentimentos com a defesa do interesse e o
reconhecimento dos resultados não intencionais da ação humana (Cerqueira,
2006). Abandonando a forma canônica de interpretação do pensamento de Smith,
fundamentalmente identificado com A riqueza das nações, vários autores têm
insistido na vinculação entre a sua obra mais famosa e o livro A teoria dos
sentimentos morais, comprometido com o desenvolvimento de uma ética dos
sentimentos, fundada na simpatia.5 Se corretas, essas releituras atestam o
ponto que estamos desenvolvendo: mesmo para o pensador considerado expoente da
economia política, a explicação da sociedade de mercado não poderia desprezar a
sua justificação e correção em termos éticos ou morais, baseados no sentimento,
numa chave diferente do egoísmo cínico de Mandeville.
Na sua forma mais desenvolvida e generosa, o que orienta essa linguagem é a
idéia de um interesse bem compreendido, capaz de assegurar a liberdade de
movimento dos indivíduos e a possibilidade de cooperação entre eles. É o que
Tocqueville julga encontrar nos Estados Unidos, ou seja, a correção da
predominância do puro interesse pela presença da cooperação social, ainda que a
idéia de bem público não ganhe substância especial. Mas é ainda de Tocqueville
a aguda observação de que a legitimidade desta sociedade do interesse bem
compreendido encontra-se profundamente enraizada numa "religião civil", ou
seja, na dimensão dos sentimentos. Ele consegue surpreender e revelar a
autorepresentação mítica dos Estados Unidos, que se vê como sociedade
perfeitamente de acordo com a vontade de Deus, e a permanente disposição dos
norte-americanos para mobilizar o paradigma bíblico como inspiração de suas
festas, liturgias e representações, destinadas a estimular o desenvolvimento de
uma virtude republicana capaz de corrigir o caráter puramente competitivo do
interesse (Bellah et al., 1985; Catroga, 2005). Desse modo, não é mais o
sentimento do medo, como em Hobbes, que pode sedimentar a sociedade, mas o
compartilhamento afetivo de valores e finalidades que conferem sentido ao viver
social. É este poder da linguagem do sentimento - não previsto por Locke - que
compensa o "déficit" próprio da linguagem do interesse, cuja dinâmica,
contraditoriamente, tende a corroer e a banalizar aquilo que lhe dá
sustentação. O movimento do interesse requer e repele ao mesmo tempo o poder
integrativo da linguagem dos sentimentos e da razão, colocando sempre em risco
as formas de solidariedade social.
A linguagem da razão altera esta hierarquia fundada no interesse, assumindo
ainda a condição de linguagem dominante em relação à linguagem dos sentimentos.
Mas a mera alteração na hierarquia não explica como a razão pode se arrogar à
condição de fundamento da vida. Por comparação com a sua posição no campo
articulado pelo interesse, ela deve assumir a posição de razão normativa e
totalizante, criando seus próprios princípios e procedimentos e recusando sua
fragmentação. Podemos acompanhar o nascimento desta razão moderna em Foucault
(1967), ao flagrar com minúcia a separação entre as palavras e as coisas e a
invenção de um território autônomo das palavras, e em Koyré (2005, 1991), que
mostra a crescente destruição do kósmos e a geometrização do espaço, base de
uma nova "ciência" postulada - nem sempre de forma coerente (Feyrabend, 1989) -
por Galileu. A destruição do kósmos não significava negar a existência de uma
ordem no universo, mas a afirmação de uma ordem que podia ser conhecida
dedutivamente pela nossa razão matemática. O realismo matemático substitui a
velha física hilemórfica, atrelada à percepção de um universo finito composto
por lugares hierarquicamente dispostos, e lança os fundamentos para uma nova
concepção de razão e ciência.
Hobbes já havia incorporado a contribuição de Galileu, mas é Descartes quem
amplia decisivamente o campo dessa nova razão para além dos limites da ciência.
Por meio da dúvida metódica, instala o eu pensante como o núcleo irredutível da
subjetividade humana. Ou melhor, a subjetividade humana é redefinida como um eu
que pensa (Descartes, 2005a) e que, pelo pensamento, pode chegar a idéias
claras e distintas, reconstruindo dedutiva e verdadeiramente a ordem do mundo.
Esta potência da razão não se aplica apenas ao mundo físico e externo, mas à
própria subjetividade e ao corpo, alimentando uma moral racional destinada à
nossa perfeição e ao controle de nossas paixões e de nosso corpo. O exercício
da dúvida metódica em busca de algo irredutivelmente certo atinge não apenas as
"verdades" da filosofia, mas desautoriza ainda as sensações e os desejos do
corpo como fontes de verdade e liberdade. Taylor (1997) tem razão ao assinalar
que, em Descartes, é como se a razão se desprendesse de nós mesmos, e se
pusesse acima de nós, para comandar inteiramente a nossa vida, nossas paixões e
o nosso corpo.6 Ainda que em um livro estranhamente incoerente (2005b),
Descartes não tem dúvidas em submeter as nossas paixões e sentimentos à nossa
razão, presenteando-a com a universalidade normativa, fonte de uma moral
baseada no "certo", em detrimento do "bom" ou do "bem", finalisticamente
concebido. A dúvida cartesiana suspende o caráter descritivo e realista da
perspectiva hobbesiana, fundada no reconhecimento do desejo, responsabilizando
o eu pensante pela reconstituição racional do mundo e da realidade. A razão
torna-se fundamento da reinvenção subjetiva da vida, já investida do poder de
controlar os interesses e as paixões do corpo, de onde se originam os nossos
erros. Por outro lado, embora essa concepção moral seja tão exigente quanto a
puritana, ela não estará diretamente associada ao interesse, cujo movimento
deve também estar submetido aos ditames de uma razão moral. A operação
cartesiana dribla o desejo e o enquadra naquilo que alternativamente é posto
como a natureza de nossa subjetividade: a razão, dominadora e imperialista. O
enfrentamento do desejo não segue a estratégia do interesse, mas se organiza
pela postulação de um "outro", da razão como o núcleo de nossa subjetividade,
deslocando e ocultando o desejo.
A razão torna-se progressivamente omnicompreensiva (Cassirer, 1992),
assegurando a nossa identidade individual e a correção de nossas ações,
ganhando contornos cada vez mais exigentes em Port Royal - Pascal - no
Iluminismo, em Rousseau, em vários pensadores da Revolução Francesa e,
sobretudo, em Kant.7 Abandonando qualquer intenção de traçar uma "história" da
razão e da ciência modernas, é possível recuperar a hipótese de Padgen sobre a
linguagem da ciência, com algumas qualificações. Pela sua ambição
universalista, a linguagem da razão estará sempre recolhendo os frutos das duas
outras linguagens, reorganizando-os para reafirmar a sua universalidade. Ela
não quer ser uma metalinguagem, mas a linguagem bem compreendida por
excelência, cuja potência seria capaz de reordenar as premissas e as
expectativas das duas outras linguagens numa síntese superior.
Para os nossos propósitos, tomemos Rousseau e Kant como referências exemplares
desta ambição totalizante da razão, preservando a distinção entre eles. Num
movimento inverso àquele realizado por Hobbes e pelos contratualistas liberais,
ao estilo lockeano, Rousseau não vê no indivíduo a sede da sociabilidade ou o
alfa e o ômega do viver em sociedade. A idéia de um indivíduo cuja natureza se
materializa em diretos negativos, na propriedade ou nos interesses, lhe é
inteiramente estranha, como mostra Starobinsky (1991). Na verdade, Rousseau não
parece associar a natureza humana a nenhum traço ou característica específica,
a não ser sua plasticidade. O homem natural, tal como aparece no Discurso sobre
a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, nem é apetitivo nem
gregário, ostentando uma única e original virtude ou paixão: a piedade. Ao modo
de Spinoza, este homem natural é pura potência, e suas virtudes e faculdades
surgiram apenas "pelo concurso fortuito de várias causas que lhe eram alheias,
que poderiam jamais haver surgido e sem as quais ele permaneceria eternamente
em sua condição primitiva [...]" (Rousseau, 1989, p. 82). Mas Rousseau não
enxerga, na história humana, uma trajetória de progresso moral. Bem ao
contrário, vê precisamente este homem afetado, ao longo dos séculos, por
acontecimentos que ele não controla, por normas nascidas do interesse ou das
paixões que o transformam de um ser livre em prisioneiro dessas convenções e
acasos congelados em civilização. História como involução ou pura
irracionalidade. É nestas circunstâncias de degeneração que o contrato social
ganha toda sua luminosidade revolucionária. Ele é concebido como a interrupção
deste movimento de decadência ou de caos permanente. É um ato racional, de
recomeço de nossa história, livrando-a da condição de mera sucessão de
desastres - percepção também de Voltaire - para erguer-se como o resultado de
nossas deliberações racionais, autônomas e livres. O contrato social não redime
apenas a história, mas transubstancia este homem posto a ferros em um ser
livre, ou seja, no cidadão livre e racional. O ato de fundação da república
desnaturaliza o homem (Catroga, 2005), recriando-o na qualidade de homem
verdadeiramente social, ou melhor, como homem marcado pela verdadeira
sociabilidade inventada pela razão.8 O cidadão que, simultaneamente produz e é
produzido pelo contrato social, nada tem a ver com o indivíduo hobbesiano ou
liberal, e nem encontra nos sentimentos a sua redenção. Nada do que é visto
como prévio - seja no sentido histórico seja no sentido moral - ao contrato
pode subsistir com o poder de determinar a dinâmica de uma sociedade lastreada
no consenso racional.
Os termos do contrato social são racionais, para Rousseau, embora possam ter a
aparência de paradoxo. Por comparação com Hobbes e Locke, o contrato
rousseauniano demanda a alienação total do poder de cada um à comunidade, que
ganha assim vida própria e vontade geral, ou seja, a necessidade de sua
preservação como comunidade. Sem ela, o homem não poderia subsistir em
liberdade. É essa comunidade racionalmente autoconsciente que devolve a cada um
a condição de cidadão, habilitando-o a participar da vida social e pública
mediante direitos positivos. Analogamente ao dogma cristão da ressurreição, o
cidadão é o homem natural ressurreto e num patamar de perfeição superior, e
como ele só existe pela comunidade e na comunidade politicamente instituída, os
seus direitos fundamentais pertencem à órbita pública, e não privada. Apenas
por meio dos direitos positivos é que o cidadão, esta nova figura do homem,
pode alcançar sua plenitude e perfeição, tornando cada vez mais transparentes e
racionais as suas formas de sociabilidade. Ou melhor, é somente pelos direitos
públicos que a própria comunidade pode permanecer e evoluir como obra
permanente do consenso racional entre seus componentes.
Habermas (1995) aponta o médium fundamental desta linguagem da razão: a
comunicação entre os cidadãos autônomos da comunidade política. A comunicação
constante, e racionalmente desdobrada, ofereceria vida à comunidade e à
república. Em torno deste médium deve florescer o conjunto de virtudes
necessárias à vida política, num sentido mais heróico do que aquele previsto na
linguagem do interesse, e que será objeto de crítica de Benjamin Constant. A
disciplina exigida nesta linguagem não coincide com uma áskesis puramente
individual e necessária à realização dos interesses, mas desdobra-se como
entrega à comunidade e à sua perfeição. Nesse sentido, o contrato social não é
algo dado no passado ou encarado como ficção, mas objeto de uma permanente
reiteração pela participação dos cidadãos, que alcançam plenitude nessa
reinvenção permanente da república.
Coerentemente, o direito perde a sua natureza puramente instrumental para
tornar-se exercício racional de auto-imposição de normas e leis, entendidas
como resultados do exercício livre da razão humana, por parte dos cidadãos, e
forma de refundação permanente da comunidade. O direito é, na sua produção e na
sua validade, a garantia dessa nova sociabilidade e de um mundo novo. De modo
mais incisivo: a produção de leis racionais por cidadãos racionais e livres,
destinadas a preservar, reproduzir e aperfeiçoar a comunidade política,
atualiza e expressa a nova sociabilidade cidadã e sustenta a própria
comunidade. Hegel já percebera a novidade desta reinvenção da cidadania,
identificando nela a superação da religião como forma de automanifestação do
Espírito no seu romance histórico (Hegel, 1985). Os homens descobrem que podem
se dar sua própria lei, e a norma transcendente e religiosa esquece-se como
figura da odisséia do Espírito. A natureza, ao mesmo tempo pedagógica e fática
do direito, replica-se no próprio Estado, na medida em que é dele a tarefa de
executar as leis que preservam a sociedade e sua vontade geral. A relevância
atribuída à lei permite relativizar a afirmação de Habermas quanto ao médium
efetivo da linguagem da razão. Do mesmo modo que o trabalho exige antes a
concepção do produto - e do próprio processo de trabalho -, para se por como
médium da linguagem do interesse, o direito não pode prescindir da discussão
anterior à sua formulação, mas de fato é ele que sustenta, produz e reproduz
esse novo mundo da república. A linguagem da razão não se esgota na discussão -
no uso público da razão, como quer Habermas para o nosso presente -, mas se
completa, nas circunstâncias da moderna linguagem da razão, em um direito
material que tudo pode regular. A ambição da razão não é a discussão, mas a
norma que molda o mundo, em nome de uma comunidade entendida como sujeito.9
A indissociabilidade entre cidadão e comunidade livres repercute na posição do
interesse. Sem dúvida ele não é dispensado ou eliminado, mas não mais pode se
apresentar como o eixo de liberdades de sujeitos ou agentes solipsistas. Para a
linguagem plena da razão, ele adquire apenas a natureza de instrumento para a
realização dos fins da comunidade, invertendo a sua precedência na linguagem
dos interesses. O interesse geral - a vontade geral, o interesse comum - regula
o interesse individual e prescreve, inclusive, as condições e a legitimidade da
propriedade. Os direitos negativos, se existem, permanecem subsumidos aos
direitos positivos, diretamente vinculados a esta nova natureza humana criada
pela razão, hierarquia estabelecida por uma comunidade eticamente
autoconsciente e sabedora dos riscos do interesse. A ética do trabalho ganha
outro conteúdo em Rousseau, pouco disposto a aceitar o conflito - individual e
social - da sociedade burguesa nascente e a disciplina nele envolvida. Merquior
(1980) salienta este moderno amor pela liberdade de Rousseau e o seu desprezo
por qualquer coisa próxima da economia de mercado, razão de sua utopia agrária
do cidadão que trabalha com as próprias mãos e de seu programa de retorno à
natureza e ao seu elã, como assinala Taylor (1997). O cidadão não cancela ou
elimina o interesse próprio, mas este não pode adquirir a virulência daquele do
indivíduo da linguagem dos interesses. Do mesmo modo, o cidadão não elimina o
indivíduo, ou seja, o homem singular da república. O pressuposto é que cada
homem desfrute de autonomia diante dos outros e do Estado, ou, do contrário, a
república não se mantém e as virtudes não florescem.
Na versão rousseaniana e da Revolução Francesa, no entanto, a linguagem da
razão não parece se bastar. A questão pode ser posta da seguinte maneira: por
que entrar continuamente em um contrato social e por que obedecer à lei e às
suas finalidades? Sem dúvida, a resposta imediata da linguagem da razão seria a
de que o contrato e a obediência são racionais - porque estaríamos obedecendo a
nós mesmos -, e condição de nossa liberdade comum. Mas isso não parece
suficiente. Tanto Rousseau como a Revolução Francesa - a revolução da razão, a
revolução solar - não se mostram dispostos a abrir mão da linguagem dos
sentimentos, recorrendo à idéia de uma "religião civil" semelhante àquela dos
Estados Unidos, para santificar os termos do contrato social. Além de racional,
este deveria ser também um "contrato sentimental", uma vez que somente as
nossas paixões e sentimentos poderiam consolidar a verdadeira virtude
republicana (Catroga, 2006). A linguagem dos sentimentos, sob a forma de uma
religião civil, seria necessária para socializar e internalizar a disciplina
republicana, para a criação do patriotismo e até mesmo para justificar a morte
do cidadão pela comunidade política.
Essa nova religião civil deveria ser diferente de todas as outras existentes, e
por isso mesmo criada conscientemente para este objetivo político. Ela não
teria como objeto a verdade, existindo pela sua eficácia socializadora. Pelo
novo calendário religioso, a república seria o palco - não do teatro, gênero
adequado às monarquias - de uma sucessão de festas destinadas a aprofundar
"sentimentalmente" a natureza da democracia republicana. O cidadão seria também
responsabilidade dessa religião artificial, e ainda da escola, imaginada por
Rousseau e pelos pensadores franceses ligados à revolução, como um meio de
criação permanente desse novo tipo de homem, o cidadão republicano. Observe-se
que essa educação, tanto pela escola como pela religião civil, destina-se, não
a liberar o jogo desregrado de nossas paixões, mas à autocontenção e ao
autocontrole de nossos sentimentos, na direção que Norbert Elias aponta em O
processo civilizador (Elias, 1994).
A esta sublinguagem da razão, fortemente republicana, se junta uma outra,
formulada por Kant em reação à própria Revolução Francesa. Leitor confesso de
Rousseau, Kant tenta resolver os vários paradoxos rousseaunianos - e vários
outros desafios herdados do passado - pelo explícito desenvolvimento de "uma
razão bem compreendida". Kant retoma Descartes recusando o seu realismo
matemático e a equivalência entre o "eu pensante" e a natureza do homem, ao
promover uma "revolução copernicana" no plano da razão e da ciência. A velha
concepção da ciência, como adequação da minha razão às coisas tais como são, é
invertida: as coisas devem se submeter à minha razão, derivando dessa revolução
a necessidade de investigar o que pode a nossa subjetividade legitimamente
afirmar a respeito das coisas. A Crítica da razão pura (Kant, 1989) é este
monumental esforço para a determinação de nossa estrutura subjetiva
transcendental - constituída pela sensibilidade, pelo entendimento e pela razão
pura -, que antecede e determina a nossa experiência com o mundo. Kant não
apenas despacha a metafísica tradicional - sempre em busca do noúmeno das
coisas -, como também o realismo matemático, afirmando a ciência como o
conjunto de afirmações produzidas pelo rigoroso exercício de nossas faculdades
internas e subjetivas, cuja validade depende inteiramente das possibilidades e
dos limites próprios de nossa estrutura subjetiva transcendental. Precisamente
porque esta estrutura subjetiva seria comum ao gênero humano - ou seja, a base
de nossa unidade antropológica -, a ciência se redefine como este complexo de
afirmações rigorosas e compartilháveis, esquecida a antiga ambição de homologia
entre a nossa razão e o mundo, que habita ainda o pensamento de Descartes e o
leva a encontrar em Deus a garantia dessa unidade entre razão e mundo. Para
Kant, alma, mundo e Deus são apenas idéias reguladoras e unificadoras do
conhecimento produzido pela nossa sensibilidade e entendimento, sem que
possamos afirmar suas existências objetivas.
A conclusão da Crítica da razão prática é iniciada por uma das frases mais
belas e conhecidas da filosofia: "Duas coisas enchem o ânimo de admiração e
veneração sempre nova e crescente, quanto mais freqüente e persistentemente a
reflexão delas se ocupa: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim"
(2002, p. 255). O céu estrelado, o mundo fora de mim, é o receptáculo plástico
ao exercício da minha razão transcendental. Mas além desse mundo externo,
existe o mundo interno do homem, e é ele que abriga a possibilidade da
liberdade e da lei moral, matéria a ser examinada depois da razão pura. Além
desta, nossa subjetividade seria ainda constituída por uma vontade pura, ou
seja, pela capacidade de autodeterminação de nossas ações. Diferentemente do
mundo fora de mim, do qual não sou sujeito por não tê-lo criado, o meu mundo
interno é o território das minhas ações autônomas e da minha perfeição como
sujeito moral. Para isso, no entanto, a produção autônoma das minhas ações só
pode estar determinada por um princípio descontaminado de qualquer
contingência, por um princípio universal, racional e adequado à máxima
autonomia e espontaneidade da minha vontade pura. Este princípio é o célebre
imperativo categórico kantiano: "Age de tal modo que a máxima de tua vontade
possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal"
(Idem, p. 51), seguido do imperativo prático, que reclama nosso respeito à
humanidade que reside em nós e nos outros. Esses imperativos materializam a
vinculação da razão teórica e da razão moral, de tal maneira que esta se torna
autoconsciente de sua vinculação exclusiva a si mesma, fazendo com que a
vontade se dê sua própria norma universal, como observa Cassirer (1992). O
indivíduo se redefine agora pela sua autonomia moral e racional, e não pelos
seus desejos e interesses.
É nesses imperativos morais e racionais que se inicia uma cadeia dedutiva capaz
de estabelecer os princípios da vida em comum e da vida individual. O sujeito
livre é o que se dá esta norma universal como referência absoluta, destinada a
presidir o aprendizado eterno do indivíduo - presenteado na Crítica da razão
prática com uma alma imortal e, portanto, capaz de aprender infinitamente - e
da humanidade. Por outro lado, é o imperativo categórico que determina o
Princípio do Direito, ou seja, as nossas relações externas com os outros
homens. Por esse princípio estamos compelidos a entrar num contrato social e a
elaborar uma constituição que, na sua estrutura, deve tão-somente conter normas
universais deduzidas do imperativo categórico e do princípio do direito. Neste
ponto a observação é inevitável: para Kant, a enigmática vontade geral de
Rousseau deve ser traduzida como o fruto desse exercício permanente do
imperativo e do princípio do direito, ambos ancorados na subjetividade
transcendental e universal dos homens. Em outros termos, a vontade geral
kantiana coincide com a atualização do imperativo categórico e do princípio do
direito, racionalmente determinados. A constituição não deve expressar um
consenso dos homens - dos poucos que podem participar de sua elaboração, pelas
restrições kantianas -, mas expressar uma seqüência dedutiva e racional a
partir dos imperativos e do princípio do direito. A natureza transcendental de
nossa subjetividade, seja no plano teórico seja na dimensão moral, seria o
fundamento da vontade geral, necessariamente racional e universal.
Essa nova versão da vontade geral afasta Kant de Rousseau. Se na versão
republicana a linguagem da razão associa-se estreitamente à linguagem dos
sentimentos, em Kant a razão aproxima-se mais imediatamente da linguagem dos
interesses. No Quarto Princípio de sua Idea de una Historia universal en
sentido cosmopolita (1985), Kant reconhece o antagonismo como a estratégia
escolhida pela natureza para o desenvolvimento de todas as nossas disposições
naturais e potenciais. Ao contrário de Rousseau, a "insociável sociabilidade"
humana seria a responsável pelo progresso material da humanidade, sem o qual
estaríamos imersos numa vida arcádica e pobre. Conseqüentemente, a mais difícil
tarefa da humanidade seria a constituição de uma sociedade civil que pudesse
articular e harmonizar o antagonismo, a autonomia e vida em comum dos homens,
por intermédio do direito, ou seja, da razão materializada em direito. Nesse
passo, Kant perfila a tradição mais generosa do Liberalismo, levando-o à sua
plenitude filosófica, buscando associar a linguagem da razão e a dos
interesses.
Esta sociedade civil, no entanto, deveria ter um caráter cosmopolita, afirmação
coerente com o lugar que Kant atribui aos sentimentos, ou seja, nenhum. A
versão kantiana encontra-se pouco interessada em garantir uma comunidade
política local, organizada por fins particulares ou históricos, e que
envolveria sempre a mobilização dos sentimentos de seus componentes para a sua
reprodução. Dela é a preocupação com o desenvolvimento do gênero, unificado
pelo compartilhamento de uma subjetividade transcendental e racional, que
deveria progressivamente eliminar da vida os efeitos particulares dos nossos
sentimentos. A moralidade e a política kantiana encontram-se determinadas, como
em Descartes, pela idéia do "certo", soterrando o valor do bom e do bem, no
dizer de Taylor (1997). Mas de um "certo" ao mesmo tempo retirado da história -
e posto na subjetividade transcendental do homem - e nela jogado, como matéria
de infinito aprendizado, tema caro ao Iluminismo. O também célebre sapere aude
kantiano joga luz no médium desta versão da linguagem da razão: é a própria
razão bifurcada em lei moral, interna, e lei positiva, derivada da primeira e
por ela determinada, para as nossas relações externas. O progresso material,
provocado pelo interesse, encontra-se subordinado ao programa moral e racional
kantiano, justificando-se apenas como componente da liberdade humana. A razão é
a sua própria mediação prática.
Seja na construção rousseauniana ou na kantiana, a razão arroga sua precedência
normativa sobre as outras linguagens, do interesse e do sentimento, embora
criando sublinguagens racionais distintas. Os sentimentos e os interesses são
sempre entendidos como incapazes de produzir um modelo exigente de vida boa. A
razão é que os redime da particularidade e da acidentalidade, envolvendo-os na
ambição da universalidade e da liberdade. Redenção que se dá fundamentalmente
por normas - interiores ou exteriores -, que traduzem essa dominância da razão
e a afirmação de sua universalidade.
A linguagem dos sentimentos não se confunde com o emotivismo denunciado por
MacIntyre (2001). Sua primeira característica é um pressuposto aristotélico
claro, e atualizado para as novas circunstâncias: a natureza social dos homens
(Aristóteles, 2002, 1973). Pressuposto que recusa as imagens antropológicas das
outras duas linguagens, redefinindo o homem como um ser do desejo que existe
apenas nas suas relações e mediações sociais (Chauí, 1990), e radicalizado
modernamente pelo humanismo cívico, por Maquiavel, pelo neotomismo e pelo
barroco ibérico, por Spinoza e, mais à frente, por Marx, entre outros. Cada
homem é cupiditas em exercício, é pura potência e o nó anelante de uma complexa
e mutante trama de relações com os outros homens e a natureza. O desejo é posto
como a nossa potência, que recusa e dobra a eficácia dos modelos de pura
disciplina e repressão, e que só pode ser exercido nas nossas relações sociais.
Ele é uma força que subverte o mundo, e introduz a mutação como a marca da
história humana, como em Maquiavel e Spinoza (Negri, 2002) ou ainda em Quevedo
e no barroco (Ansaldi, 2001). Antropologia e ontologia atravessadas pelo
reconhecimento da dinamicidade do mundo, entendido como labirinto, como
território da fortuna e do exercício da virtú, radicada nas paixões e no
sentimento.
Contudo, o pressuposto da natural sociabilidade humana não é o ponto inicial de
uma cadeia de raciocínios a indicar como o homem é ou deve ser. O homem é puro
desejo, e sua verdade encontra-se na peregrinação, na ação sobre o mundo e os
outros.10 Ele se move para conservar sua vida e aumentar sua potência, segundo
Spinoza (2006, Traité de l'autorité politique, p. 924). Ou seja, para ser
livre. Do que resulta a grande questão: quais as condições para a expressão
perfeita desta potência? Na resposta, uma nova região de aproximação entre
Aristóteles, Maquiavel, Spinoza e Marx: em nenhum deles encontramos a
postulação de um conjunto de normas com a ambição de uma moral universal, como
nas outras linguagens. Para todos eles, doutrinas morais abrangentes e
universais, justificadas por definições particulares da natureza humana,
corresponderão sempre a formas de violência sobre o homem e de diminuição de
sua potência. Como, aliás, tudo o que se petrifica e erige em poder estranho ao
livre curso da potência humana.
Maquiavel celebra nos Discorsi (1979) a potência da multidão que,
revolucionariamente, tudo sacode de tempos em tempos, reinaugurando a sua força
e a abertura da vida. É isto que lhe importa, contra abstrações morais.
Potência contra poder, diz Negri, tanto no caso de Maquiavel como no de Spinoza
(Negri, 1993). A possibilidade de horizontes morais universais, erguidos por
derivação de uma determinada concepção de natureza humana, é negada por Spinoza
com o argumento de que não conhecemos perfeitamente nem nosso corpo nem a nossa
consciência, não só porque existe um "inconsciente" no corpo e na alma, mas
porque há sempre um excesso além do nosso conhecimento (Deleuze, 2002). Se
compartilhamos uma subjetividade transcendental, ela não residiria na estrutura
da razão pura, como em Kant, mas na infinitude do nosso desejo, e se podemos
aceder ao conhecimento do segundo e terceiro gêneros, isto não significa que o
plano prático da vida não seja comandado pela imaginação e pelas paixões,
fórmula spinoziana para a linguagem dos sentimentos e fundamental para a
compreensão de seu projeto democrático (Aurélio, 1998). Em Marx (1974, 1985,
1987), a prosa iridescente investe tanto contra as ficções do indivíduo como do
cidadão, e contra todas as doutrinas morais secretadas a partir delas,
denunciando-as como formas de sacralização ou petrificação de relações de poder
e exploração. A linguagem bem compreendida dos sentimentos, ao assumir
radicalmente a imanência humana, recusa e explode o "certo" e as doutrinas
morais que aspiram à transcendência, como em Kant e a moral religiosa
tradicional, ou resultantes de uma antropologia puramente estática, como no
caso da linguagem dos interesses e sua concepção do indivíduo apetitivo.
Isto não quer dizer que a linguagem dos sentimentos nada tenha a dizer a
respeito do sentido de nossas ações. A suposição do homem como potência traz
consigo a certeza de sua perfectibilidade, movimento que consiste, não na
realização de determinado modelo moral de homem, mas na preservação de sua
produtividade ontológica, na abertura permanente de sua potência. Nesse
sentido, a moral dissolve-se em ética, orientada pelo que é "bom" ou "mau",
como em Hobbes, impugnando o "certo" da linguagem da razão e o individualismo
ou o utilitarismo do horizonte moral dos interesses. Mas "bom" e "mau" em
relação a quê? Em relação às possibilidades de atualização da nossa potência
humana. Como assinala Deleuze a respeito de Spinoza, "bom" tem um duplo
sentido: o de adequado ou conveniente à nossa natureza e a acepção modal e
subjetiva, que faz um homem "bom", ou seja, "aquele que se esforça para
organizar os seus encontros, por se unir ao que convém à sua natureza, por
compor a sua relação com relações combináveis e, por esse meio, aumentar a sua
potência" (Deleuze, 2002, p. 29). A Ética de Spinoza é, nesta perspectiva, uma
tipologia dos modos de existência imanentes, fundados no bom ou no mau, que
substitui a tradicional concepção de Moral, e dissolve a "geometria" cartesiana
derivada da razão. Como em Maquiavel, mais interessado nos modos de organização
da cidade e de exercício do poder, do que na vinculação da vida política a um
horizonte moral e transcendental. Em Marx, pelo menos no jovem Marx, a crítica
ao pensamento de Hegel incide sobre o mesmo ponto: se o direito e o estado
hegelianos materializam a razão universal, em Marx o sujeito crescentemente
livre da história deve se livrar de toda a canga de instituições e prescrições
morais e legais (Moore, 1980), atualizando continuamente sua potência. A
sucessão de modos de produção, no materialismo histórico marxiano, dissolve o
bem, o mal e o certo em favor do "bom" e do "mau", aprofundando a acepção
spinoziana e a ela agregando elementos históricos e empíricos.
Mas há mais. Se a potência humana só se realiza nas relações entre os homens,
concebidas sob a forma de modos "bons" ou "maus", isto significa que a máxima
realização da potência humana só se dá pela associação livre entre eles. Porque
essa associação aumenta a potência, e portanto a liberdade, de todos. O vivere
civile recebe aqui um significado todo especial, e radicalmente democrático, no
humanismo cívico, em Maquiavel, em Spinoza e em Marx. Esta associação entre os
homens, a comunidade, não pode ser instrumentalizada para a obtenção de fins
particulares, como na linguagem do interesse. Ela é a condição da realização da
potência de todos, e sua forma própria só pode ser a democrática.
Contudo, democracia não é mais uma "forma" racional de governo, com a
capacidade de superar o tempo e comprar sua estabilidade, permanente tentação
reflexiva inspirada pelo platonismo. Pocock (1975) e Negri (2002) percebem com
clareza a corrosiva análise maquiaveliana sobre a pessimista teoria dos ciclos
de Políbio, que sempre supõe a decadência de uma forma boa de governo em outra
má. A filosofia política, mesmo humanista, irá se enredar na tentativa de
imaginar ou materializar a democracia por fora deste ciclo e do tempo, como nas
utopias do início do mundo moderno. Pois Maquiavel liquida esta percepção
cíclica do tempo político, com seu programa evasivo e utópico, concebendo a
democracia como processo de crescente afirmação da potência da multidão. O
tempo é a ocasião de realização desta potência, em luta contra as
cristalizações do poder. A democracia é a mutação, uma narrativa de liberdade
que recusa qualquer petrificação e vive de seu movimento. Ela não é a vitória
sobre o tempo e a mutação, mas a mudança permanente derivada do desejo humano
em exercício, do desejo da multidão. O desejo como programa, acentua Negri, o
mesmo de Spinoza e de Marx. Em Spinoza, a democracia não é apenas a forma de
governo que o Tratado político deixa inacabada, mas o coração mesmo de sua
Ética (2006), de sua ontologia. Novamente, é a potência da multidão, de seres
que, pela associação, ultrapassam a potência e o direito de cada um tomados
isoladamente, e fazem do mundo o produto desta força. A democracia é o conatus
feliz da multidão com o mundo, agora não mais puramente natural e objetivo, mas
marcado e produzido por esta potência e para ela. Como segunda natureza que se
transforma no livro aberto da natureza humana e de sua força, de acordo Marx
nos Manuscritos (1974). Depois de se desencantar com as revoluções políticas,
com o Estado e com Hegel, Marx descobre a democracia como o movimento
permanente do demos total, no dizer de Abensour (1998), em busca de si mesmo e
de sua realização. Prefiguração da revolução permanente que não se satisfaz com
a idéia de cidadão, encontrando na experiência concreta das revoltas de 1848 um
modo democrático de ação da multidão, já entendida na ótica do proletariado
(Marx, 1977).
Mas o foco nesse movimento da multidão, a defesa de um sujeito coletivo, de uma
totalidade, não sacrificaria a autonomia de cada homem e a sua individualidade?
Se o tema do homem considerado isoladamente não é saliente em Maquiavel, ele se
encontra claramente proposto em Spinoza: a multidão na democracia não é a massa
informe, mas o conjunto de homens que podem desenvolver em liberdade e
concórdia a sua potência, e que se valem da razão para executar - por uma
vontade constante - a legislação "razoável" da comunidade (Spinoza, 2006 -
Tratado político). Mas no próprio Tratado político parece existir uma
dificuldade em conciliar os dois pontos: o da autonomia do indivíduo e a
potência da multidão. Embora tenha já se livrado do tópos do contrato social
para a fundação da sociedade, ele parece insistir na comunidade - na nação, no
sentido próprio do século XVII - como uma "personalidade moral", à semelhança
de Suárez (1861), contra a qual inexistiria a possibilidade de independência
individual. A expressão parece antiindividualista, e curiosa por insistir no
termo "moral", que também deveria ter sido varrido de sua reflexão. Mas o
parágrafo seguinte, explosivo, cuida de estabelecer com mais precisão o
desdobrar do argumento, ao considerar a hipótese da revolta ou da oposição de
um grande número de cidadãos a um ato da legislação geral. Nesse caso, diz ele,
o direito da nação não pode se sobrepor à potência geral da multidão. Não
existe uma vontade geral que se desprega da multidão e se autonomiza
enigmaticamente, sob pena de enfraquecimento da própria potência da comunidade,
de seu desaparecimento ou substituição. Nesse sentido, a "personalidade moral"
é a multidão, ou seja, é o conjunto dos homens nas suas relações mútuas e nas
suas diferenças (Aurélio, 1998), o que equivale a deslizar o velho conceito de
moral para o mundo dos modos.
Há um andamento "sociológico" antecipado em Spinoza, recolhido e ampliado por
Marx. A potência crescente da multidão não pode ser garantida como resultado
não intencional da movimentação dos indivíduos, do mesmo modo que sua
produtividade não pode ser aprisionada no território de uma misteriosa vontade
geral. Em outras palavras, a reflexão modal da democracia não mais admite o
campo conceitual estruturado pela contraposição moral entre indivíduo e
comunidade, construída pelas duas outras linguagens. Se Spinoza deixava para
trás as marcas do barroco e descobria o capitalismo holandês como modo de
apropriação produtiva do mundo, Marx reconhece progressivamente o espírito
fáustico do capitalismo industrial e a nova abertura da potência humana
provocada por ele em relação ao passado. A perspectiva materialista, ensaiada
por Maquiavel e Spinoza, ganha todo o seu rendimento em Marx: a reflexão sobre
os modos deve incidir no desvendamento das relações que os homens estabelecem
entre si para a produção da vida e do mundo. A apropriação crítica, corrosiva,
de como o capitalismo constrói seu fetichismo e produz seus personagens, deve
anteceder a liberação da ação efetiva da multidão para se reapropriar de sua
potência. E do mundo. Antes disso, não há como falar em indivíduo ou
comunidade. Ou melhor, o modo capitalista de produção impede, tanto a
universalização real do indivíduo como a constituição democrática da
comunidade. A fratura e a exploração são constitutivas deste modo de produção,
da mesma forma que sua produtividade e eficácia.
Na perspectiva sociológica de Spinoza e Marx - como na de Tocqueville, embora
em outra chave (Werneck Vianna, 1997) - este contínuo avanço da democracia não
pode mais ser capturado do ponto de vista tradicional, ou seja, do indivíduo e
da comunidade como realidades morais. Ele só pode ser entendido e impulsionado
por um pensamento que visualize a nossa trajetória pela sucessão de "modos" de
organização social que ampliem as possibilidades do bom, e reduzam a existência
do que é mau. Modos que não mais correspondem a "totalidades objetivas"
hegelianas, incrustadas numa auto-revelação do Espírito, mas formas históricas
de relação entre os homens e que, portanto, podem receber o impacto de nossa
consciência, da potência da própria multidão. Pela sua dinâmica interna, a
linguagem bem compreendida dos sentimentos desfruta de uma enorme capacidade de
flagrar as operações de cristalização e de empoderamento das modalidades
históricas de vida em comum, tais como as idéias de indivíduo, comunidade,
constituição, comunidade jurídica. Ao mesmo tempo, é capaz de reconhecer uma
história destes modos, e da superioridade histórica de uns sobre outros. A
chave crítica aqui não se prende a modelos do passado, e nem tampouco a
horizontes utópicos predeterminados. O segredo de sua potência, da linguagem
dos sentimentos, é este compromisso com a permanente abertura da potência de
todos os homens em associação.
Por isso mesmo o andamento da história desejado pela linguagem dos sentimentos
não significa cancelar o homem singular e seus desejos. Sociologicamente, ela
não se enreda na consideração de uma natureza que garanta a cada homem uma
realidade anterior às suas relações, mas desdobra-se pela análise destas
relações. São elas que podem enriquecer ou empobrecer a potência de cada um,
entendido como parte de uma rede objetiva de vinculações e relações com os
outros e com o mundo. Como conseqüência, a natureza real do homem, aquela que
ele constrói para si ao longo da história, permanece sempre como obra aberta, e
o máximo que se pode esperar é que, em algum momento, cada homem possa
desenvolver integralmente sua personalidade, de forma livre e por fora de
qualquer concepção disciplinadora. A conhecida frase de Marx, do homem
simultaneamente caçador, pescador e crítico de arte, expressa palidamente este
desiderato de personalidade livre para cada homem, sem a necessidade de se
submeter a um modelo fixo e congelado. De certo modo, se o indivíduo resume a
perspectiva antropológica da linguagem dos interesses, se o cidadão ou o
indivíduo autodeterminado explicitam os modelos de perfeição humana da
linguagem da razão, na linguagem dos sentimentos os termos são outros. A
multidão, com sua potência e energia, e as "pessoas" - como modos desta
potência da multidão - constituem os personagens centrais da narrativa de
liberdade humana.
Tal como as outras, a linguagem dos sentimentos não expele do seu campo o
interesse ou a razão. O desejo humano, longe de reprimido, é posto como
elemento essencial e passível de cultivo, tal como em Aristóteles (MacIntyre,
2001). A vontade de apropriação do mundo é a chave da linguagem dos
sentimentos, interessada em liberar para todos o exercício desta potência que
produz e se apropria materialmente do mundo. A multidão tem o seu interesse,
material, concreto. Do mesmo modo, não esquece a razão, entendendo-a mais como
aliada do desejo do que como dele repressora e diretora, e por isso mesmo
redefinida como crítica dos modos de organização da vida e como parte da
potência humana. Se ela desconfia das grandes epifanias da razão, seu médium é
a ação humana, a ação política, capaz de sintetizar tanto as virtudes da
ciência e da técnica, para a produção do mundo, como aquelas incorporadoras da
arte, que fazem do mundo um mundo desejado.
Essas linguagens "bem compreendidas" não constituem campos incomensuráveis. Ao
contrário. As zonas de intersecção são amplas, e variadas as tentativas de
síntese, ao estilo hegeliano. Em Hegel, a plena autoconsciência do Espírito
desdobra-se pela hierarquização e articulação do sentimento - que sustenta a
família, por meio do amor -, do interesse, que comanda a sociedade civil, e da
razão, materializada no Estado e que organiza a sociedade como um todo ético -
e não moral -, fechamento de um círculo que recupera novamente os sentimentos
(Hegel, 1985). Honneth entende essa síntese hegeliana como articulação das
várias formas de reconhecimento necessárias à existência das sociedades
modernas e livres (Honneth, 2007). É impossível no espaço restrito de um artigo
detalhar e ampliar ainda mais este panorama, que deixou de lado pensadores como
Montaigne, Harrigton, Hume, Montesquieu, Saint-Simon, para citar alguns deles,
e a polêmica e corrosiva figura de Nietzsche. Do mesmo modo, não há como trazer
este quadro até o presente, embora seja oportuno lembrar que a imaginação
habermasiana, de algum modo, contempla essas três linguagens, localizando o
sentimento no mundo da vida, o interesse no sistema empobrecido pela linguagem
do dinheiro e a razão também pauperizada no sistema de poder. Para os
propósitos deste artigo, no entanto, é possível passar aos dois movimentos
finais.
O elemento inicial deste segundo movimento é uma hipótese instigante de
Tocqueville, ao analisar a origem dos Estados Unidos em A democracia na América
(1998). Segundo ele, todas as grandes tradições européias transplantadas para a
América continham em si germens democráticos, cujo desenvolvimento dependeria
do futuro. Esta hipótese, de certo modo surpreende aos que trabalham com a
velha idéia do excepcionalismo dos Estados Unidos. E abre o espaço para que a
indagação sobre os elementos democráticos da tradição ibérica, transplantada
para o Novo Mundo, possa ser respondida de modo menos preconceituoso do que o
usual.
A Ibéria dos séculos XVI e XVII pertence à jurisdição da linguagem dos
sentimentos. No longo processo da Reconquista, ela erguera sua particularidade
em relação ao restante da Europa: o territorialismo - uma crescente capacidade
de controle sobre espaços cada vez mais amplos -; uma religiosidade simples e
de fronteira, que fazia de seu movimento territorial uma cruzada contra os
infiéis; a fixidez de sua estrutura social, preservada pela capacidade de
drenar os conflitos internos para as zonas de expansão, conquistando-as para a
repetição da mesma morfologia social; a centralidade política da Coroa,
responsável pela aventura da reconquista e pela estabilidade interna da ordem
social jurisdicionalista e corporativa (Barboza Filho, 2000). Protagonista
central da expansão da Europa e do orbis terrarum ao tropeçar com a América, a
África e o Oriente, a Ibéria sente-se particularmente desafiada pela magnitude
de seu próprio movimento e por todos os processos que condenavam a velha
estrutura social do mundo medieval. Arrighi (1996) assinala a participação dos
ibéricos no primeiro grande ciclo de acumulação do capitalismo ocidental como
uma aristocracia guerreira, em aliança com os banqueiros genoveses
integralmente voltados para o lucro das operações comerciais. O que ele não
percebe é que, nestes dois séculos - os séculos de ouro -, a Ibéria se
transforma na principal potência européia, tanto por se apresentar como uma
poderosa máquina de guerra como por ser portadora de um programa de
enfrentamento de uma mutação social de proporções assustadoras.
Esse programa é dado pelo neotomismo, que se torna hegemônico na Ibéria contra
o escatologismo franciscano e a relativamente pobre reflexão humanista na
Espanha e em Portugal (Barboza Filho, 2000; Skinner, 1993; Pagden, 2002;
Domingues, 1996). O neotomismo é mais do que pura preservação da perspectiva de
Aristóteles, batizada por Santo Tomás de Aquino. É uma sistemática atualização
dos pressupostos tomistas para enfrentar um pesado conjunto de desafios: a
expansão do orbis; a infinitude do universo e uma ciência que se desprendia da
teologia; a ruptura da cristandade pelo aparecimento do protestantismo; a
América recenter inventis, com uma população marcada pela absoluta ignorância
das verdades da fé cristã; as transformações sociais e políticas enfrentadas
pela Europa, incluindo-se aí a questão dos judeus, a presença ameaçadora do
Oriente muçulmano e o papel a ser desempenhado no mundo pela própria Ibéria.
Atualização que vai além do imitatio, buscando a condição de renovatio, como
nos casos de Vitória e Suárez, maiores representantes desta tentativa de
sustentar uma visão integrada, harmônica e objetiva do universo e da vida,
contra as tendências de fragmentação em curso na sociedade européia. A
reativação da lei natural - e da hierarquia de leis do kósmos - permite ao
neotomismo a afirmação de uma racionalidade objetiva do universo, que se
desdobra sobre o próprio mundo do homem.
A universalidade e a necessidade da lei natural garantem o kósmos como um
organismo vivo e sistêmico, criado por Deus como um todo objetivo,
arquitetônico e coerente (Vitória, De potestate Ecclesia, 1934). Esta concepção
é o fundamento para a recusa da nova ciência matemática de Galileu, abrandada
pela admissão do probabilismo (Morse, 1988). É ainda lei natural, entendida
como selo impresso no interior de cada homem por Deus, que reaviva o otimismo
antropológico e metafísico dos neotomistas, em oposição às premissas da
indignidade humana e da sociedade política como instituição derivada de nossos
pecados e imperfeições, características do protestantismo. Os homens não seriam
apenas receptáculos passivos da graça divina - como queria Agostinho já no
século IV e como repetiam os protestantes -, mas co-partícipes da obra divina,
razão pela qual podem se salvar pelas suas próprias obras. Vitória antecipa e
nega uma das percepções presentes no século seguinte: Non enim homini homo
lupus est, ut ait Ovidius, sed homo (Vitória, De Indis recenter inventis,
1934). As sociedades políticas constituem "comunidades perfeitas", porque são
auto-suficientes para a consecução dos seus fins próprios, ou seja, a
atualização da velha premissa aristotélica a respeito da natureza social dos
homens e o desenvolvimento comum de suas virtudes e perfeições. Esses
pressupostos otimistas reorientam as políticas ibéricas na América, abastecem o
debate contra os protestantes, legitimam a sociedade política e as leis civis,
admitindo uma cautelosa "subjetivização" do direito em Suárez (1861), e recriam
o direito internacional, o ius gentium, adequado a uma Europa crescentemente
dividida em unidades políticas de porte médio. Mesmo afirmando a autonomia das
comunidades políticas, cuidam de preservar a sacralidade da Igreja como
mediadora entre a cidade dos homens e a cidade de Deus.
No plano interno, o neotomismo orienta o movimento ibérico para a constituição
de uma ortodoxia que busca se tornar imune ao diferente, ou seja, às "heresias"
protestantes, ao judaísmo e ao criptojudaísmo, e a tudo que pudesse ameaçar a
sua identidade e estabilidade, como anota Braudel (1984). Este otimismo inicial
do neotomismo, mais tarde reduzido em Suárez, não resiste, no entanto, ao
vendaval trazido por todas as mudanças e crises em curso na Europa. Se ele é um
programa claro da Ibéria no século XVI, o século posterior já se desenrola sob
o signo do Barroco. Fenômeno europeu (Wolfflin, 2000; Hatzfeld, 1988), o
Barroco tem um sentido particular na Ibéria, objeto da investigação de Maravall
(1986).
Em outros trabalhos, tenho sustentado o Barroco como uma forma de modernização,
de subjetivização da vida, própria da tradição ibero-americana (Barboza Filho,
2000, 2003). Ele é a última grande tentativa realizada pela Ibéria para
preservar a ordem espacial, arquitetônica e hierárquica que a orientou deste o
início da Reconquista. As coroas são as grandes artífices deste esforço,
desenvolvido pela gnose e não mais pela exegese neotomista e escolástica. O
preço desta fidelidade a uma determinada concepção de ordem social como
comunidade hierárquica e corporativa é a artificialização da tradição, o
desenraizamento da hierarquia de seu solo natural e a translação de seus
fundamentos para uma ordem política sustentada pela vontade absoluta do
soberano, com sua capacidade de inventar e dirigir subjetividades. Operação que
faz da Ibéria um experimento plenamente moderno, embora distinto daqueles
desenvolvidos em outras áreas da Europa.
É esse movimento torturado e trágico da Ibéria que se encontra magnificamente
gravado por Cervantes no D. Quixote. O Cavaleiro de Triste Figura é a
representação perfeita desta Ibéria entregue a uma sublime loucura: a
ressurreição verista do passado como forma de vida expressiva e redentora do
presente. A figura do Quixote oferece a oportunidade para explorar o modo como
a Ibéria mobilizou, para a sua entrada na modernidade, as linguagens
disponíveis para a organização da sociedade e para dar sentido à vida,
construindo a sua especificidade e a sua profundidade. Ela se lançou no mundo
moderno pela utilização da linguagem do afeto e do sentimento, recusando com
decisão as duas outras linguagens já estudadas. Ela renova a sua tradição,
mobilizando o afeto - o sentimento - como modo de revitalizar o seu passado no
presente. Resulta dessa complexa operação a importância do médium que permite
ao sentimento criar a sua própria profundidade: a religião e, em especial, a
arte. Na verdade, a arte é a grande materialização da linguagem dos sentimentos
da aventura moderna da Ibéria. É o seu poder de comoção e de comunicação, a sua
capacidade de produzir e aprofundar sentimentos, de criar os sentimentos como
modos de compartilhamento de sentido, que lhe conferem um papel especial na
Ibéria. É a morfologia da arte e as suas possibilidades - e não apenas a arte
como tal - que fazem nascer uma experiência moderna estranha aos códigos das
linguagens do interesse e da razão, que aparecem subordinadas no barroquismo
ibérico.
A artificialização da tradição pela linguagem do sentimento, ou seja, a forma
de modernização seguida pela Ibéria nos séculos XVI e XVII, envolverá um preço.
Ela estará permanentemente atravessada por aquilo que Unamuno (1992) chamará de
sentimento trágico da vida, ou seja, a terrível impossibilidade de resolver o
conflito entre valores antitéticos, impossibilidade transformada em energia
assimiladora e manancial de vida. O que importa, no entanto, é assinalar este
peso que a linguagem do sentimento é obrigada a suportar na experiência
ibérica: o de fazer o velho - a tradição - caber no novo, e de fazer este novo
vestir-se com a morfologia da tradição. Por isso mesmo seu barroquismo
consistirá numa grande operação de associação de opostos - o do velho e o do
novo, o do aparente e o do real, o do eterno e do efêmero - o que acentua a
percepção da vida como engaño e desengano, como um xadrez indecifrável. Esse
barroquismo admite o homem como cupiditas, o universo como uma trama infinita
constituída pelo jogo das potências, a mutação como condição da vida e o mundo
como teatro, como artifício que cancela a naturalidade do viver e exige a
teatralização do que se quer viver.
No entanto, o télos do barroco ibérico - a preservação da morfologia
tradicional da Ibéria - materializa-se em fechamento às possibilidades
democráticas e fáusticas da linguagem dos sentimentos. O sentimento trágico da
vida, no Barroco, nasce desta clausura ao movimento que as linguagens bem
compreendidas da modernidade procuravam executar: a liberação da potência do
desejo como desejo de produção e apropriação do mundo. Não por acaso o
estoicismo se torna uma referência fundamental. A operação de modernização
efetuada pela Ibéria consistiu num violento movimento de subjetivização das
premissas que informavam as concepções estóica e tomista do mundo, fechando-se
para os desenvolvimentos possíveis da linguagem dos sentimentos. Spinoza
percebe com acuidade os limites da experiência barroca ibérica e, embora
alimentado pelos clássicos espanhóis dos séculos de ouro, dispõe-se a este
salto para o futuro que a Ibéria não realiza (Ansaldi, 2001).
É este barroco, versão especial da linguagem dos sentimentos, que atravessa o
oceano e chega à América, tornando-se o elemento cultural dominante, a arché da
nova sociedade, de tal modo que Octávio Paz poderá dizer que aqui vivemos três
séculos de Barroco sem a ameaça do Iluminismo. Transplantado para a América, o
barroco ganha, contudo, um conteúdo próprio, e não pode ser visto como mera
continuidade em relação àquele ibérico ou europeu, como parece entender Claudio
Véliz (1994). Este é, na verdade, um ponto chave. Nem a tradição nem a religião
típicas da Ibéria puderam ser reeditadas com a mesma força configurativa na
América. Longe de forças hegemônicas, assumiam a condição de horizontes
plásticos ao saque, à negociação, à produção de acordos imprevistos nas
matrizes originais. Contra este passado esfumado, tampouco um futuro comandado
por uma exigente imaginação utópica conseguia se afirmar como horizonte de
sentido para a vida social. Nenhuma utopia moderna arrebata o coração dos
ibero-americanos, como nos casos do igualitarismo e do individualismo típicos
da experiência norte-americana. Some-se a isto a brutalidade e a violência
constitutivas dos nossos séculos iniciais: o saque dos homens, mediante a
escravidão e a servidão, o saque da natureza e a drenagem de suas riquezas para
o mundo europeu. Nesse cenário, o trabalho não se firma como médium de
apropriação do mundo, do mesmo modo que o direito, na linguagem da razão. Desse
chão "estrutural", marcado pela violência e pela subordinação, nascem apenas os
obstáculos à organização social da América, os limites à constituição de uma
sociedade minimamente ordenada e solidária.
Apesar disto e de tudo, a América foi se fazendo. Não pela tradição, pela
religião, pela utopia ou pela economia. Mas foi se erguendo, e este é seu
mistério, a sua particularidade. Se não podemos encontrar um momento fundador,
capaz de brilhar e persistir como um sol e uma fonte de sentido e de ordem,
certamente temos uma origem: um barroco destituído de metafísica, mistura de
indeterminação ética, fragmentação real e fome de sentido. O que herdamos do
barroco ibérico não foram as formas de vida e as crenças peninsulares, mas a
linguagem do sentimento, com sua natureza estética, com sua capacidade de
integrar antagonismos e diferenças, com sua veemência teatral e seu
voluntarismo. Ou seja, a nossa arché é a linguagem dos sentimentos e o médium
verista da arte, sem a percepção trágica da vida, característica do espírito
peninsular. Nascemos livres desse confronto insolúvel de valores, e sequer nos
sabíamos medievais ou modernos, obrigados pela vida e pela necessidade a
construir uma sociedade. Por isso mesmo a força do barroquismo tropical
alimenta-se de um poderoso pathos construtivista, associado à potência
integradora da linguagem dos sentimentos. A capacidade gnóstica e verista do
Barroco se reorienta decididamente para imaginar e certificar as possibilidades
de construção de uma sociedade específica e nova em relação às originais. E que
por isso mói e tritura as identidades prévias de todos os que aqui se
encontram, vindos da África, da Europa, e dos primeiros habitantes desta parte
do continente americano.
O barroquismo ibero-americano foi obrigado a levar ao limite o verismo próprio
do seu congênere peninsular: a vida social e política existe e se reproduz tão-
somente pela gestualidade voluntarista e exagerada das cerimônias teatrais, que
reúnem e interpelam periodicamente os homens. É nessa teatralização que os
ibero-americanos recolhem os arruinados pressupostos comunitaristas das antigas
tradições - dos indígenas, dos africanos e dos europeus -, reinventam
instituições já desfiguradas e fazem aparecer os precários fundamentos da ordem
social, ultrapassando os limites "estruturais" de sua organização. A sociedade
adquire realidade por meio desta movimentação verista de subjetividades,
dispensado o trabalho sistemático do lógos em favor da força aglutinadora e
oscilante do eros, do sentimento e de suas linguagens. Razão da importância,
entre nós, do extenso e intenso calendário de liturgias religiosas, políticas e
civis, substitutivas do corpo do rei e destinadas a certificar algo que não
existia natural ou espontaneamente - a própria sociedade -, artifício que
reclamava esta constante e voluntariosa reiteração. Teatralização e
"estetização" que não se prestam à reafirmação do passado, mas à abertura de
galáxias e tradições distintas, à construção e ao exercício de sinais
contundentes - igrejas, palácios, cadeias, conventos, procissões, festas,
cidades - de uma ordem fugidia e de uma nova hierarquia.
Teatralização, portanto, que não atesta uma verdade dada como preexistente, mas
que produz a sua própria verdade, como na reflexão de Spinoza. É a movimentação
constante e voluntarista que cria e mantém a sociedade, num registro especial:
é o próprio movimento, tocado pela linguagem da arte e do sentimento, que cria
a sua eficácia e a sua profundidade. O Barroco abre a todos esta possibilidade,
por cima das desigualdades econômicas e sociais, oferecendo-se a todos os
grupos e raças para exercícios de identidade e negociação, especialmente no
Brasil: na guerra contra os holandeses, nas irmandades baianas e mineiras, no
folclore, nas festas e nas variadas liturgias de certificação social. É a
linguagem dos sentimentos, com suas premissas antropológicas, com seus poderes
construtivos, com a potência da arte, que supera a crueldade e a violência para
fundar os alicerces de uma sociedade em formação.
Em As palavras e as coisas, Foucault persegue a separação entre as coisas e as
palavras, inexistente na epistéme do século XVI. Neste momento, as palavras
correspondem ao murmúrio das coisas, e o saber consiste em fazer o mundo falar,
em tentar fazer transparentes os seus segredos, presentes nas marcas que o
habitam. A esta epistéme sucede outra, que separa relativamente as coisas e as
palavras - origem dos sistemas racionais e ordenadores do século XVII -, mas
que ainda guarda a possibilidade da palavra equivaler a este murmúrio do mundo,
através da arte. Sobretudo da arte da alegoria. Don Quixote, para Foucault,
seria o personagem deste mundo onde as palavras e as coisas não se equivalem,
em que os signos já não são semelhantes aos seres, cabendo ao hidalgo a
necessidade de encontrar as provas desta vinculação, o dever de conferir
realidade aos signos desprovidos do conteúdo da narrativa. O que ele quer
encontrar, na sua figura medularmente barroca e ibérica, é o passado, as coisas
que escapam das palavras, escancarando a contradição do barroco peninsular. Na
América, o Barroco quer outra coisa: encontrar as marcas de uma realidade que
só se desdobra pelo movimento, pelo verismo. A estetização da vida é o segredo
de sua constituição na América.
O desejo de produzir e se apropriar do mundo, esterilizado na escravidão, na
servidão, no latifúndio, na subalternidade política diante da Ibéria e da
Europa, escapa para o território da arte e o institui como mundo apropriado
pela multidão, apesar de tudo. A potência da multidão dribla os entraves
estruturais e instala-se como arte que abandona a pura mímesis para a invenção
de um solo especial, onde todos podem se encontrar. Do mesmo modo que o atraso
econômico e social fazia a Alemanha evadir-se para a pura teoria, realizando no
pensamento a sua revolução burguesa, de acordo com Marx, na América a sociedade
se organiza primeiro pelo médium da arte, que cria seu espaço como espaço de
uma potência que teima no seu exercício. É na linguagem dos sentimentos que a
arquitetura, a escultura, a pintura, a música, a festa, os ritos, os cultos
religiosos adquirem esta capacidade de fabricar uma sociedade. Por isso mesmo
estetização não significará a pura evasão ou a edulcoração da miséria e da
violência. Ela é o ato de construção social, o plano material em que se anuncia
o programa total da multidão, próprio da linguagem dos sentimentos: a
apropriação do mundo que lhe está vedado pelo poder e pela exploração. E que
orienta e preside, mais do que mero processo de colonização, um real processo
de autocolonização, no caso do Brasil, como observa agudamente Eduardo Lourenço
(2001).
Não por acaso, quando escrutinado pelas lentes das linguagens do interesse e da
razão, o povo - a multidão - não aparece em nossa história, seja na colônia, no
império ou na república, inaugurada diante de um povo que aparece apenas para
se mostrar "bestializado". Quando se observa, no entanto, a nossa história
pelas lentes da linguagem dos sentimentos, o que emerge é o vulto cada vez mais
nítido desta multidão, que fez e faz do improvável a marca da sua presença e o
programa de sua potência. Longe de se consagrar à preservação de uma tradição,
constelada em torno de valores claros e objetivos comuns, o nosso barroco é
pura linguagem em movimento, é exercício infindável em busca de sentido, um
eterno presente em busca de significado, a perseguição criativa de um télos que
só se descortina na própria caminhada, parafraseando Guimarães Rosa. A América
vai se construindo no movimento, mas sem a idéia clara de futuro e sem uma
origem que lhe permita a cissiparidade, possuidora apenas das linguagens do
verismo e do sentimento. Por isso, é desejo permanente e anseio profundo de
ordem e significação, motivos que se encontram ao fundo dos movimentos de
autonomia política no século XIX e que se mantêm no século XX.
Não se trata, aqui, de desenhar um panorama idílico de nossa trajetória ibero-
americana ou brasileira, mas de destacar a linguagem que presidiu a sua
criação. E que, de um modo ou de outro, permanece como sua linguagem
predominante, razão pela qual Sérgio Buarque ressaltará a nossa cordialidade,
ou seja, a linguagem teatral dos afetos, como uma de nossas características
sociais (Holanda, 1988). Mais especificamente no caso do Brasil, é esta
linguagem que se preserva pelo concurso do romantismo, do positivismo e do
modernismo, cujas marcas continuaram fazendo da linguagem dos sentimentos o
fundo de uma cultura política e de filtragem na recepção dos ganhos reflexivos
e práticos das outras linguagens (Barboza Filho, 2003). A estetização da vida,
numa acepção ampla, é sempre a estratégia de drible na "estrutura" e reiteração
do programa de apropriação do mundo pela multidão. A importância da cultura
popular, nas suas variadas expressões em nossa vida nacional, não registra
apenas a "criatividade" do povo: ela é o médium privilegiado de reprodução e
reinvenção da linguagem dos sentimentos, com sua ambição de reabrir o mundo à
potência da multidão.
Resta assinalar um ponto a ser desenvolvido: a América ibérica nasce
fragmentada e permanece fragmentada socialmente, desde o seu início. Ela nunca
foi comandada por uma linguagem cujos princípios pudessem ser organizados com
clareza, transparência e eficácia imediata. Nem a linguagem da razão, nem a dos
interesses, a unificou, reproduzindo formas homogêneas de indivíduos e de
relações sociais. Mas talvez seja este o modo de materializar a linguagem dos
sentimentos, sem nenhuma gramática impositiva, sem nenhuma metafísica especial:
mantendo-a como linguagem que faz da mutação e da história o exercício livre,
criativo e crescente da potência da multidão. Entre nós, ela foi sempre isto: o
combustível de um processo de democratização, mesmo numa chave passiva (Werneck
Vianna, 1997), que tende a se acelerar.
Sem dúvida, essa tradição fundada na linguagem dos sentimentos encontra-se
ameaçada, seja pela sua exacerbação autoritária, seja pela eficácia das
linguagens empobrecidas do dinheiro e do poder. Nosso desafio é o de
reencontrar e revitalizar os pressupostos mais democráticos dessa tradição, a
sua capacidade de incorporação, a sua tolerância e a sua maneira de tratar as
diferenças, a sua vontade de produção e apropriação material do mundo, para que
ela possa participar mais efetivamente - relativizando a simples dicotomia
entre procedimentalismo e comunitarismo - do debate fundamental de nossos dias:
o da reconstrução de formas democráticas de vida e de solidariedade social.
Notas
1 Valho-me aqui, de modo bastante livre, do conceito de linguagem política
formulado por Pocock (2002), ampliando deliberadamente seu campo de aplicação.
2 "Transcendental" no sentido em que Wittgenstein se refere à linguagem, como
observa Taylor (1997). Sem dúvida, a discussão sobre o estatuto da linguagem é
complexa, mas fundamentalmente entendo aqui a linguagem como simultaneamente
"transcendental" e determinada pelo uso público, como no Tractatus, de
Wittgenstein.
3 Para nossos propósitos, não é necessária a distinção weberiana entre ações
racionais com respeito aos fins e aos meios, pelo menos neste momento.
4 A rigidez da contraposição entre paixões e razão depende da vertente medieval
e cristã. A perspectiva agostiniana é, nesse sentido, distinta daquela do
tomismo, para dar um exemplo. Por outro lado, não foi apenas o interesse que
redefiniu as virtudes, como veremos.
5 A título de curiosidade, também Adam Smith (1999) encontra três famílias
morais importantes em operação ao seu tempo: aquela cuja aprovação depende do
interesse, outra da razão e a última do sentimento. Sua teoria tenta sintetizar
esses três elementos básicos, atribuindo a preeminência aos sentimentos.
6 Em várias passagens das Meditações metafísicas, Descartes afirma esta
capacidade de nos olharmos de fora para a certeza de nossa natureza: "porque de
um lado tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida que sou apenas
uma coisa que pensa e não extensa [...]" (p. 118).
7 No que tange à evolução da ciência, no entanto, é preciso assinalar a
substituição do dedutivismo galileano e cartesiano pela relevância oferecida à
"experiência" como base das afirmações científicas, e o aparecimento do sistema
newtoniano que, tal como Galileu, acabará por se transformar em referência para
o pensamento filosófico e moral.
8 Essa reinvenção não dispensa a valorização do momento original, como salienta
Starobinski, nem significa desprezo pela natureza, como anota Taylor, que vê
Rousseau como um dos inspiradores da concepção romântica da natureza.
9 Na verdade, todo o objetivo de Habermas é superar esta razão subjetiva e
monológica da modernidade, pela idéia de uma razão intersubjetiva, que supõe
sempre o uso público da razão. Até mesmo por isso o direito parece mais apto a
ocupar o posto de médium da linguagem moderna da razão.
10 Séculos mais tarde, o barroco Guimarães Rosa dirá pela boca de Riobaldo:
"Digo: o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente
é no meio da travessia" (2001, p. 80).