A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de
1960
Os estudiosos da história política brasileira entre o final dos anos de 1950 e
o final da década de 1970 constantemente se deparam nos textos militares com
duas expressões a que não atribuem muita importância: "guerra revolucionária" e
"defesa da civilização cristã". Contudo, esses termos são ricos de significado,
uma vez que remetem à matriz do pensamento militar que vigorou durante pelo
menos duas décadas e marcou profundamente a visão de mundo de uma geração de
oficiais, principalmente do Exército brasileiro. Durante muito tempo a
literatura sobre essa fase histórica concentrou-se na chamada Doutrina da
Segurança Nacional, elaborada pela Escola Superior de Guerra (ESG), a partir de
finais dos anos de 1940. A essa doutrina atribui-se forte influência norte-
americana. Em contraste, a doutrina francesa da guerre révolutionnaire,
introduzida na ESG em 1959, não foi até hoje analisada em profundidade.1
Comblin e o poder militar na América Latina
O exemplo mais acabado de tal concepção é o livro do padre e professor de
teologia em Harvard, Joseph Comblin - A ideologia da segurança nacional,
publicado originalmente em francês, em 1977 (Comblin, 1980). Destinado a ter
grande influência sobre a literatura relativa às ditaduras militares do Cone
Sul, o texto é uma narrativa que acaba por simplificar em demasia a questão dos
influxos doutrinários que alimentaram os golpes militares dos anos de 1960 e
1970.
Sua tese central é simples: "É incontestável" que a doutrina que inspirou os
golpes militares "vem diretamente dos Estados Unidos. É nos Estados Unidos que
os oficiais dos exércitos aliados aos EUA aprendem-na" (Idem, p. 14). No
decorrer do livro, fica claro que para Comblin o processo histórico de
construção da mentalidade ditatorial é elementar. Segundo ele, os chefes
militares latino-americanos não tinham - e nem precisavam ter - idéia do tipo
de sociedade e de governo que iriam fundar, e sequer sabiam que iriam criar um
novo regime. O que importava eram os processos objetivos, vale dizer, "a coesão
e a força dos fatores históricos que estavam em ação, a coesão e a força do
modelo de segurança nacional", que "se realiza, de certo modo, por si mesmo,
graças a seu dinamismo interno: utiliza os generais e seus conselheiros civis e
os leva a fazer coisas com as quais jamais haviam sonhado". Nessa mecânica,
"toda a força do sistema forjado nos Estados Unidos entra em ação" (Idem, p.
71).
Tal explicação dispensa o estudo dos processos internos de construção da
mentalidade militar. Na verdade, na visão de Comblin, os setores militares que
apoiaram os golpes aparecem como uma simples marionete ideológica, sem história
política ou capacidade de gerar seus próprios mitos, doutrinas ou ideologias.
Há alguns problemas básicos nesse tipo de explicação. Em primeiro lugar, ela
parte de uma definição excessivamente genérica do ideário da segurança
nacional, tanto na forma como foi construído nos Estados Unidos, no início da
Guerra Fria, como na forma que tomou nas escolas de guerra de países como
Brasil e Argentina. Além disso, essa análise tende a perder especificidades
nacionais dos processos de construção do golpismo militar, as quais tiveram
conseqüências importantes na própria configuração das ditaduras que se
seguiram. Assim, tudo se passa como se a importação da ideologia da segurança
nacional explicasse por si só o aparecimento de Estados de segurança nacional,
cuja coesão interna tivesse sido garantida pela doutrina que lhes deu origem.
Para alguns autores, a raiz dessa confusão estaria na própria indistinção,
presente no livro de Comblin, entre ideologia e doutrina. No sentido em que a
usamos aqui, doutrina significa
[...] um conjunto de ensinamentos, com freqüência um conjunto de
princípios ou um credo. No jargão militar, usa-se tipicamente
doutrina num sentido mais limitado, para referir-se a princípios
estratégicos ou táticos particulares, como a doutrina de retaliação
maciça. Por outro lado, define-se comumente ideologia como um
conjunto generalizado de idéias políticas, uma visão de mundo, como o
liberalismo e o comunismo. Tratar doutrina, especialmente doutrina
militar, e ideologia, como termos mais ou menos intercambiáveis
obscurece a questão da relação entre os dois (Fitch, 1998, pp. 107 e
110).
Finalmente, há na análise uma proposta de periodização. Para o autor, "1961/
1962 são os anos em que o conceito (de guerra revolucionária) inicia sua
carreira triunfal nas Américas" (Comblin, 1980, p. 44). Mais adiante, ele
afirma que essa "estratégia contra-revolucionária [...] serviu sobretudo para
formar uma escolástica militar rígida, um manual de guerra revolucionária, que
se tornou, desde 1961, a base do ensinamento dado aos exércitos latino-
americanos" (Idem, p. 47).
A guerre révolutionnaire
Pelo menos no caso das Forças Armadas de dois dos mais importantes países
latino-americanos, Brasil e Argentina, as coisas não se passaram assim. Se
marcarmos a data de nascimento da era kennediana da contra-insurreição em 18 de
janeiro de 1962, quando o presidente promulgou o Memorando de Ação de Segurança
Nacional 124 (NSAM-124), podemos afirmar que, nessa data, alertar os militares
argentinos e brasileiros para a urgência de desenvolver uma doutrina de combate
à guerra subversiva seria o mesmo que ensinar o Padre-Nosso ao vigário. Antes
mesmo do triunfo da Revolução Cubana, os oficiais daqueles países tinham
buscado, por conta própria, uma doutrina de guerra mais adaptada às suas
necessidades, que os Estados Unidos não pareciam em condições de oferecer.
No processo de importação das idéias francesas, o pioneirismo coube à
Argentina. Como mostrou Ernesto López, o então coronel Carlos J. Rosas, que
acabava de regressar da França, assumiu em 1956 a subdireção da Escuela
Superior de Guerra, em Buenos Aires, dando início a um processo de redefinição
doutrinária calcado nos ensinamentos de veteranos franceses da Indochina e da
Argélia. Em 1957, o referido oficial trouxe para a ESG argentina, na qualidade
de professores e assessores da direção, quatro militares com experiência nas
guerras coloniais: os tenentes-coronéis Badie, de Naurois, Bentresque e
Nougues, que ali permaneceram até 1962 (López, 1988, pp. 137-138). Entre 1958 e
1959, a Revista de la Escuela Superior de Guerra publicaria uma série de
artigos de autoria desses assessores e de um grupo de oficiais argentinos que
havia estagiado na Europa, cujo tema central era a doutrina da guerre
révolutionnaire (Idem, p. 144).
No caso do Brasil, o coronel Augusto Fragoso pronunciou em maio de 1959 no
curso de Estado-Maior e Comando da Escola Superior de Guerra a palestra
"Introdução ao estudo da guerra revolucionária", fruto aparentemente de seus
próprios estudos diretos da produção francesa, que evidentemente começaram
algum tempo antes. O contexto mais geral em que se deu a entrada dessas idéias
no Brasil é lembrado pelo general Octavio Costa:
Nesse momento, estávamos profissionalmente perplexos, sem saber que
direção tomar. [...] Então começamos a tomar conhecimento de novas
experiências [...]. Nessa ocasião, a literatura militar francesa
[...] começa a formular um novo tipo de guerra. Era a guerra
infinitamente pequena, a guerra insurrecional, a guerra
revolucionária. [...] Isso entrou pelo canal da nossa ESG, e foi ela
que lançou as idéias sobre as guerras insurrecional e revolucionária
e passou a nelas identificar o quadro da nossa própria possível
guerra. Para nós ainda não havia guerra nuclear, a guerra
convencional já estava ultrapassada. Mas havia uma guerra que nos
parecia estar aqui dentro. [...] Isso tudo contribuiu para a
formulação da nossa própria doutrina da guerra revolucionária, que
resultou no movimento militar de 64 (D'Araujo et al., 1994, pp. 77-
78).2
No final dos anos de 1950, antes mesmo da eclosão da Revolução Cubana, os
franceses eram os únicos a tratar do tema da guerra revolucionária. Desde
meados dessa década, após a fragorosa derrota em Dien-Bien-Phu e a eclosão da
rebelião na Argélia, fortaleceu-se no Exército francês a idéia de que a razão
da derrocada na Indochina fora o fato de que a doutrina militar não estava
preparada para enfrentar um novo tipo de guerra. A principal característica
desta forma de conflito era a indistinção entre os meios militares e os não
militares e a particular combinação entre política, ideologia e operações
bélicas que ela proporcionava. Nesse quadro, a nova doutrina "oferecia um
diagnóstico e um remédio para aquilo que um influente grupo de militares de
carreira franceses via como a doença principal do mundo moderno a falência do
Ocidente em enfrentar o desafio da subversão comunista atéia" (Shy e Collier,
1986, p. 852).3
Por outro lado, mesmo depois do surgimento da doutrina norte-americana da
contra-insurreição, o Exército dos Estados Unidos não podia ocupar na mesma
medida a condição de role model gozada pelos oficiais franceses junto a seus
colegas argentinos e brasileiros. Isso, em primeiro lugar, porque a doutrina
norte-americana do começo dos anos de 1960 nunca deixou de ser um artigo de
exportação e de restrito consumo interno no interior das Forças Armadas dos
Estados Unidos, apesar da obsessão de Kennedy pelo tema. Por sua vez, o
aparelho de Estado civil não contava com agências como os serviços coloniais
britânicos e franceses, indispensáveis para integrar os aspectos políticos e
militares da guerra revolucionária.
O Exército dos Estados Unidos "desconfiava de um grupo treinado para operações
irregulares", o que se expressou anos depois, no Vietnã, nos desencontros entre
essas tropas - que operavam em estrito contacto com a Central Intelligence
Agency - e o comando do Exército. O Exército francês, ao contrário, instalou a
guerre révolutionnaire no centro de seu pensamento militar e de sua doutrina
operacional. Como reconhecem dois especialistas norte-americanos, um deles ex-
oficial no Vietnã, "no seio do corpo de oficiais franceses, surgiu uma
preocupação obsessiva no sentido de aprender as lições da guerra da Indochina,
de modo que as futuras guerras revolucionárias, já iminentes em outras partes
do Império Francês, pudessem ser vencidas" (Idem, p. 852).
Em segundo lugar, e talvez mais importante, um dos pressupostos fundamentais da
doutrina francesa era a idéia de que, se o controle das informações é o
elemento decisivo da guerra revolucionária, seria impossível combater esse tipo
de inimigo sem um comando político-militar unificado. Assim, essa doutrina
entra no campo das relações civis-militares. Ao fazê-lo, não hesita em afirmar
que, se a sociedade democrática é incapaz de fornecer ao Exército o apoio
necessário, então seria preciso mudar a sociedade, não o Exército. Na expressão
de um de seus principais teóricos, o comandante Hogard, "é tempo de perceber
que a ideologia democrática tornou-se impotente no mundo atual" (Paret, 1964,
p. 28).
Em outras palavras, a doutrina da guerre révolutionnaire trazia subjacente um
projeto de intervenção militar na sociedade que resultaria nas crises
militares de 1958, 1960, 1961 e 1962. Não por acaso, um autor como Peter Paret,
escrevendo na primeira metade dos anos de 1960, encontrava nos escritos do
general Lyautey, datados de 1891, o "anseio por uma elite regeneradora, que
testa e prova a si própria no serviço militar antes de liderar sua nação rumo a
uma nova grandeza" (Idem, p. 108). Uma mensagem que devia soar como música aos
ouvidos das correntes militares conservadoras, no Brasil e na Argentina do
final da década de 1950. Trocando em miúdos, enquanto os militares e civis
norte-americanos pareciam dizer "façam o que digo e não o que eu faço", a
doutrina francesa rezava simplesmente "façam o que digo e o que eu faço".
Há ainda outro aspecto relevante. Em exércitos como os da Argentina e do Brasil
nos anos de 1950, envolvidos cada um à sua maneira na criação de uma ideologia
militar abrangente e ambiciosa, caía como luva o exemplo francês dos
intelectuais militares que pensavam por conta própria, em pé de igualdade com
seus colegas e aliados civis, que de resto nunca faltaram. Não menos
importante, o romantismo e a mística quase religiosa que acompanhavam a
doutrina francesa também funcionaram como atrativo adicional para oficiais em
busca de uma missão para seus exércitos, no apogeu da Guerra Fria.
Enfim, a doutrina militar francesa oferecia aos militares de nossos países uma
definição flexível e funcional do inimigo a enfrentar, ao mesmo tempo em que,
no plano geopolítico, valorizava o Terceiro Mundo como cenário do confronto
mundial da Guerra Fria. Afinal, ocupava o centro dessa doutrina a idéia de que,
"enquanto os Estados Unidos e seus aliados estavam hipnotizados pela
perspectiva da guerra nuclear, o comunismo flanqueava as defesas do Ocidente a
partir do Sul, e se não fosse contido destruiria, ao fim, a civilização
ocidental" (Shy e Collier, 1986, p. 852).
Nesse quadro, o inimigo era definido de forma ampla o suficiente para servir às
mais variadas situações nacionais. A idéia geral era de que a civilização
cristã estava envolvida numa guerra permanente e mundial, em que as distinções
tradicionais entre guerra e paz passavam a ser insignificantes, assim como - na
expressão de um analista - as diferenças entre anticolonialismo, nacionalismo
anti Ocidente e comunismo. Vale dizer, o esquema francês era genérico o
suficiente tanto para permitir que o Exército argentino definisse como seu
principal inimigo o peronismo, que nada tinha a ver com o comunismo, como para
dar ao Exército brasileiro uma justificação a mais para combater os
nacionalistas ou os católicos radicais, além dos comunistas de várias feições.
Faz-se necessário, então, entender em que consistia, em linhas gerais, tal
doutrina. Para usar a definição do sociólogo Raoul Girardet, essa seria "uma
doutrina internacional capaz de efetivamente se opor às teorias marxistas-
leninistas [...] um sistema de valores suficientemente forte para unir e
estimular as energias nacionais" (Apud Paret, 1964, p. 27). O coronel Georges
Bonnet resume a questão numa fórmula simples: "guerra partisan + guerra
psicológica = guerra revolucionária". Trata-se, assim, de uma doutrina que
extraía seu nome do fenômeno que visava combater - a guerra revolucionária.
Esta, por sua vez, é definida por Girardet como "uma doutrina de guerra exposta
pelos teóricos marxistas-leninistas e explorada por movimentos revolucionários
de várias tendências" (Apud Paret, 1964, p. 143).
Esse efeito de espelho é uma das características mais particulares da doutrina
francesa. Para esta, a guerra revolucionária é diferente da guerra convencional
porque coloca o recurso às armas no final e não no começo do conflito. Ela se
constitui de um processo diversificado e prolongado, cuja evolução pode ser
dividida em cinco etapas. A primeira seria a da preparação cautelosa do terreno
que se pretende conquistar, ou seja, a população. Nessa etapa, os militantes
agem sem declarar seus objetivos. A segunda fase se expressa na constituição de
uma rede de organizações subversivas, controladas pelos militantes. Nesse
estágio, formam-se bases que subvertem a capacidade de ação governamental.
Surgem as manifestações, os tumultos e os atos de sabotagem.
A terceira etapa é marcada pela constituição de grupos armados, que iniciam
ações de menor escala, destinadas a corroer os poderes constituídos. É a fase
do terrorismo como principal método de ação. A penúltima etapa é a do
estabelecimento de zonas liberadas ou bases d'appui, onde o Exército regular
não consegue mais entrar, ao que se segue a formação de um governo provisório
que procura reconhecimento externo. Forma-se um exército regular
revolucionário. A quinta etapa significa a conquista do poder numa ofensiva
final. É fundamental notar que essas fases se sucedem muitas vezes sem
fronteiras nítidas, pois a fluidez seria a principal característica da guerra
revolucionária. De todo modo, a doutrina fornecia uma régua com a qual se podia
medir o agravamento da ameaça revolucionária (Paret, 1964, pp. 12-15). O único
modo de evitar a progressão desse processo seria derrotar os revolucionários
com suas próprias armas. Assim, no centro da doutrina da guerre révolutionnaire
aparece a idéia de guerra psicológica (Idem, pp. 21-25).
A conexão francesa
Os dois anos finais do governo Juscelino Kubitscheck foram de intensa atividade
na Escola Superior de Guerra. Como registrou um historiador dessa instituição,
"o estudo da Guerra Revolucionária, na ESG, teve início em 1959, através de uma
conferência do então coronel Augusto Fragoso, que a reproduziu, em termos
semelhantes, porém ampliados, no ano seguinte, já como general e assistente do
comando" (Arruda, 1980, p. 245). De nossa perspectiva, essa aula pode ser
considerada um marco divisório, na medida em que estabelece um ponto final no
período de indefinição no debate sobre as formas de guerra na ESG. Sua idéia-
força foi a tese de que os militares brasileiros deviam concentrar-se, daí em
diante, num "novo" tipo de guerra: "hoje, o estudo da guerra revolucionária
deve merecer, mormente em países em desenvolvimento como o nosso - importância
paralela, quando não maior, ao da guerra nuclear. É sob a forma de GR - afirma
o Cel Lacheroy - que o destino do mundo se decide na hora atual, e vai se
decidir nos próximos 20 anos!" (Estado-Maior das Forças Armadas, 1959, p. 12).
E, mais adiante: "Ao estudo da GR, muito mais que ao da chamada guerra nuclear
total, mormente nos países subdesenvolvidos, deve se dar a máxima importância"
(Idem, p. 48).
Em seu aspecto mais geral, a aula do coronel Augusto Fragoso constituiu-se numa
apresentação da literatura francesa sobre a guerra revolucionária, sem menção
aos estudos que se faziam à época na Argentina. Suas fontes principais são o
documento Contribution a une étude sur la guerre révolutionnaire, publicado
pela Escola Superior de Guerra de Paris (1955-1956); os livros do coronel
Gabriel Bonnet, Les guerres insurrectionelles et révolutionnaires (1958);4 de
Pierre Debray, La Troisiéme Guerre Mondiale (1958); de Claude Delmas, La guerre
révolutionnaire (1959) e artigos de J. Hogard, Lacheroy, Ximenes, Berteil,
Cailloux, Renaud e outros, que vieram à luz nas revistas militares francesas,
além de uma edição em francês da obra de Mao Tsé-tung, Os problemas
estratégicos da guerra revolucionária na China ([1936] 1957).
A exposição de Fragoso inicia-se com uma tentativa de distinção entre guerra
insurrecional e guerra revolucionária, na qual, com base em J. Hogard, ele
define que a GR é: 1) "a guerra da Revolução para a conquista do mundo",
enquanto as GIs podem se restringir a um país, e 2) a GR tem uma doutrina: a
marxista leninista, ao passo que as GIs "tem processos empíricos". Seu marco
histórico seria a Revolução Chinesa de 1949 e seu teórico principal, Mao Tsé-
tung. Ainda com base em Hogard, Fragoso enfatiza a ruptura da GR com a guerra
clássica, na medida em que a primeira não seria puramente militar e, em vez de
ser uma continuação da política, funcionaria como um apoio da política.
Além disso, a GR, segundo Fragoso, tem um caráter basicamente insidioso e
subliminar, apresentando como elemento-chave a atuação sobre as idéias, vale
dizer, a ação psicológica. Citando Bonnet, o coronel brasileiro retorna à já
citada fórmula que define a GR como uma combinação entre guerra partisan e
guerra psicológica. Ela seria uma guerra particular, na medida em que seu meio
principal, seu objetivo e sua arma mais importante recairiam sobre a própria
população do país-alvo. Nesse sentido, não haveria GR sem a atuação de uma
minoria militante e organizada e, em geral, sem o apoio externo. A GR tem duas
fases: a destrutiva, centrada na dissolução física e moral do corpo social, e a
construtiva, na qual surge a sociedade totalitária. Enfim, Fragoso retoma de
Hogard o esquema já citado das cinco fases.
O aspecto que mais nos interessa na palestra de 1959 é a tentativa de inserir o
Brasil no quadro geral da guerra revolucionária mundial. Com base em C.
Montirian, a idéia que percorre todo o texto é a de que a GR atua em círculos
cada vez maiores, que se afastam das fronteiras dos países socialistas. Nessa
dinâmica teria soado a hora da América Latina. Voltando ao esquema da Hogard,
Fragoso lembra que a GR pode ser dividida em duas fases maiores: a pré-
revolucionária, ou clandestina, e a revolucionária, ou ostensiva. A primeira
fase é a mais perigosa, porque nela as instituições vêem-se despreparadas para
enfrentar a ameaça subversiva. Na visão do coronel Fragoso, o Brasil do final
dos anos de 1950 já viveria o estágio pré-revolucionário (Estado-Maior das
Forças Armadas, 1959, p. 48). A partir de uma leitura particular de documentos
partidários, o texto da ESG vê na estratégia pacifista e legalista do Partido
Comunista a ante-sala da revolução violenta, distinguindo-se apenas por seu
caráter subliminar, em que se procura arregimentar o movimento nacionalista
para a Revolução.
Nesse quadro, seria impossível escapar à conclusão de que algo precisava ser
feito a fim de preparar o Estado e as Forças Armadas para enfrentar a ameaça do
inimigo interno. O problema é que as autoridades responsáveis, "em face do
direito", não dispunham "senão de campo de iniciativa muito limitada quanto à
escolha das técnicas e dos meios legais a aplicar, enquanto os revolucionários
consideram válidos todos os meios imagináveis de luta" (Idem, p. 22). Em tal
contexto, haveria urgência "para combater a subversão, para enfrentar a guerra
revolucionária, desde o seu período clandestino, de uma legislação adequada",
na medida em que "não se pode manter em relação aos militantes da guerra
revolucionária, o respeito das liberdades individuais asseguradas aos demais
cidadãos e as medidas de proteção que beneficiam, na ação judiciária, os
delinqüentes do direito comum". Diante disso, a conclusão de Fragoso é simples:
"O regime democrático característico do mundo livre, e tão prezado por todos
nós, não favorece, pelo abuso de liberdades que, via de regra, propicia ao
adversário, nem a parada preventiva, nem a resposta enérgica" (Idem, p. 40).
Por sua vez, as Forças Armadas, "organizadas essencialmente em função das
servidões da guerra clássica contra um inimigo exterior", enfrentam sérios
obstáculos para adaptar, uma vez que eclode a violência, "sua organização para
a luta contra o terrorismo urbano e os bandos guerrilheiros nos campos" (Idem,
ibidem). A partir dessa situação, um dos problemas mais difíceis no combate à
GR seria o papel a ser desempenhado diretamente pelas Forças Armadas. Algumas
conclusões, no entanto, servem de ponto de partida: de um lado, é preciso criar
serviços de informação capazes de antecipar os movimentos do inimigo interno;
de outro, cabe às Forças Armadas construir uma organização de defesa interna do
território, ao mesmo tempo em que cria unidades especialmente adestradas na
luta anti-revolucionária. Porém, antes de tudo, é necessário reconhecer que a
preparação para a guerra anti-subversiva supera as atribuições tradicionais das
Forças Armadas. A ação contra-revolucionária exigiria uma iniciativa conjunta
decidida por todos os poderes do Estado.
A ação psicológica: o público interno
Vale registrar que os estudos sobre o processo político-militar brasileiro
dessa fase parecem perder aspectos fundamentais da evolução do quadro político
das Forças Armadas. Mesmo trabalhos que se destacam pela importância que
conferem à questão militar, centram-se basicamente em seus altos escalões,
principalmente nos ministérios da Guerra, da Aeronáutica e da Marinha e nas
chefias dos quatro exércitos. Ficam de fora, assim, os processos atuantes no
campo em que, por excelência, se define a cultura militar dominante, isto é, as
escolas de comando e o estado-maior, onde efetivamente se transmitem as idéias
que perpassam toda a instituição e onde é possível medir a temperatura
ideológica da organização militar.
No final da década de 1950, apesar do quadro de divisão militar evidenciado
pela luta de personalidades e pelas disputas no Clube Militar, os corações e as
mentes de parte relevante do Exército, da Marinha e da Aeronáutica começavam a
pender decididamente para uma doutrina cujo desenlace natural era ou um governo
civil que incorporasse as visões das Forças Armadas ou um golpe militar. Para
entender esse processo, convém voltar à história especificamente militar do
período.
É verdade que uma palestra na ESG não significava necessariamente o início de
uma mudança doutrinária importante. Contudo, a conferência do coronel Augusto
Fragoso teve conseqüências institucionais que não se pode deixar de considerar.
Quatro meses depois, em 2 de setembro de 1959, o Chefe do Estado-Maior do
Exército nomeou uma comissão para estudar a programação e a coordenação da
instrução sobre guerra moderna, considerada então sob dois aspectos: guerra
atômica e guerra insurrecional (Idem, p. 5). Há indícios de que esse processo
começara antes na Marinha. De todo modo, a evolução iniciada no final do
governo JK teve continuidade até que, em 27 de julho de 1961, sob o breve
governo de Jânio Quadros, o Estado-Maior das Forças Armadas [EMFA] consolidou
em doutrina as definições esboçadas dois anos antes. Nessa data, o general
Oswaldo Cordeiro de Farias, então Chefe do EMFA, aprovou e recomendou a
conceituação de guerra insurrecional, guerra revolucionária, de subversão
(guerra subversiva), de ação psicológica, de guerra psicológica e de guerra
fria, constante no documento FA-E-01/61 (Estado-Maior das Forças Armadas,
1961).
Já em sua primeira frase, o documento estabelecia que "a doutrina militar
francesa enquadra três formas básicas de guerra" - convencional, nuclear e
subversiva -, esclarecendo a seguir que era "vasta a literatura militar
francesa sobre a última das três guerras acima". E continuava: "Sob o peso dos
acontecimentos na Ásia e na África do Norte, os pensadores militares franceses
tiveram necessidade de se embrenhar no conhecimento desta forma de guerra que,
embora possuindo raízes profundas na História, passara a ostentar uma nova
fronde, alimentada pela seiva que lhe foi ministrada, principalmente, por Karl
Marx, Lenine e Mao Tse-Tung" (Idem, p. 1).
Segundo o mesmo texto, apesar de constituir "uma excelente fonte de estudo e de
consulta", essa literatura ainda sentia falta de "uma terminologia básica
uniforme", o que vinha dando margem a divergências, "algumas vezes sérias". O
trabalho referia-se em seguida à doutrina militar norte-americana com sua
definição de três formas de guerra - convencional, nuclear e não convencional -
apenas para concluir que "a literatura militar norte-americana proporciona
parcos ensinamentos" sobre a última. Na continuação, a partir dos estudos da
"literatura militar mundial, particularmente da francesa", efetuados pela
comissão já mencionada, o documento expunha as idéias de vários autores,
classificadas em dois grupos. As "doutrinárias" cotejavam, basicamente, as
definições sobre guerra subversiva e guerra revolucionária, em autores como
Boulnoie, Bonnet, Hogard, Étienne e Souyris, ao lado da documentação da Escola
Superior de Guerra de Paris e de alguns autores norte-americanos. As
"lexicológicas" compreendiam apenas as definições sobre insurreição, subversão
e revolução encontradas nos principais dicionários da época. Em ambos os
tópicos apareciam também definições de guerra fria, ação psicológica e guerra
psicológica. A partir daí, o EMFA recomendava definir a guerra revolucionária
nos seguintes termos:
É a guerra interna, de concepção marxista-leninista e de possível
adoção por movimentos revolucionários diversos que - apoiados em uma
ideologia, estimulados e, até mesmo, auxiliados do exterior - visam à
conquista do poder através do controle progressivo, físico e
espiritual, da população sobre que é desencadeada, desenvolvendo-se
segundo um processo determinado, com a ajuda de técnicas particulares
e da parcela da população assim subvertida (Idem, p. 21).
Em contraste, a guerra insurrecional era caracterizada como a guerra interna
que obedecia a processos geralmente empíricos, vale dizer, não estava apoiada
numa ideologia. A subversão (também chamada de guerra subversiva)
corresponderia ao estágio pré-revolucionário ou de preparação da guerra
revolucionária. Enfim, definia-se a ação psicológica como o conjunto de ações
de caráter defensivo centradas na formação moral e cívica da população, a fim
de fornecer-lhe meios de fazer frente à ofensiva da subversão ou da guerra
psicológica. Esta era definida como o conjunto de ações de caráter ofensivo,
com o alvo de minar a moral das tropas e da população inimiga.
Assim, seis meses antes do ato do governo Kennedy que inaugurou a era da
contra-insurreição - o NSAM 124 -, o EMFA já dispunha de uma conceituação
básica que orientaria a evolução posterior de sua doutrina da defesa interna.
No plano doméstico, menos de um mês depois da publicação do documento do
Estado-Maior brasileiro, a crise militar em torno da renúncia de Jânio Quadros,
a resistência da Campanha da Legalidade e a posse de João Goulart contribuiriam
para consolidar as visões que aqui vimos examinando. Na verdade, a renúncia
apenas atrasou os planos em curso, no sentido de disseminação da doutrina da
guerra revolucionária nas escolas de comando e Estado-Maior. O terreno para a
semeadura já estava preparado pela publicação regular de artigos sobre o tema
em periódicos de distribuição restrita aos estados-maiores de cada força, até
aqui não mencionados na literatura. Entre estes se destacavam Mensário de
Cultura Militar (a partir da edição final de 1965, Cultura Militar), Boletim de
Cultura Militar e Boletim de Informações, todos de responsabilidade do Estado-
Maior do Exército.
Em setembro de 1961, o Mensário lançou uma segunda edição especial - a primeira
fora publicada em novembro/dezembro de 1960 - dedicada à temática da guerra
revolucionária. O importante é notar que a publicação dos textos sobre a guerra
revolucionária não apenas tinha a função de divulgar a doutrina, mas já
configurava o exercício da ação psicológica, destinada, seguindo o exemplo dos
5es Bureaux do Exército francês, a preparar ideologicamente as próprias forças,
além de "assegurar a coesão do conjunto da nação e a desenvolver em cada um a
vontade de lutar" (Paret, 1964, p. 57).
É essa a motivação mais geral do estágio sobre guerra revolucionária de agosto
de 1962, do qual participariam noventa oficiais, principalmente do Exército. Na
introdução ao novo número especial do Mensário, que publicou seu conteúdo
(Estado-Maior do Exército, 1962),5 afirmava-se: "A importância da Ação
Educacional e de Instrução contra a Guerra Revolucionária tem sido ressaltada
pelo Estado-Maior do Exército, através de Diretrizes, Programas e Conferências,
com o objetivo de preparar o Exército, psicológica e materialmente para opor-se
a qualquer tipo de ação subversiva". Ao mesmo tempo, salientava-se que as
Forças Armadas estavam "alertas e vigilantes, irmanadas pelo mesmo ideal
democrático", mas era "imprescindível que estejam esclarecidas sobre as bases
da ideologia comunista e sobre os processos e técnicas utilizados para a
consecução de seus objetivos". Nesse quadro, o objetivo desse tipo de estágio
seria elevar o padrão de instrução, "com a criação de reflexos e atitudes
adequadas".
Aparentemente, o conteúdo foi baseado nos ensinamentos do Primeiro Curso de
Guerra Contra-Revolucionária a que oficiais brasileiros assistiram na
Argentina, em outubro de 1961, juntamente com colegas de outros treze países
latino-americanos. No entanto, as aulas começam com a observação "coordenação e
adaptação de" ou "coordenação e compilação de documentação existente no EME", o
que supõe acréscimos nacionais. A palestra sobre guerra psicológica é uma
exceção, pois, proferida por um almirante, baseia-se em textos norte-
americanos. Por sua vez, a aula sobre "Guerra Revolucionária no Brasil"
destina-se a lembrar a versão do Exército sobre a "Revolução de 1935 no
Nordeste", tomada evidentemente como evidência das profundas raízes do
comunismo no país.6
O estágio parece ter conseguido os objetivos almejados, pois foi repetido em
1963, com audiência ampliada e a participação de professores de filosofia
civis, para aprofundar temas que fugiam à doutrina militar propriamente dita.
Além disso, a documentação publicada naqueles periódicos era enviada
"regularmente para os Estados-Maiores Regionais, servindo de base para a
instrução de oficiais, ao longo do ano". Assim, os ensinamentos franceses
desceram das alturas da Escola Superior de Guerra até chegar a tenentes e
sargentos - a estes, evidentemente, com os devidos cuidados, dada a situação de
efervescência política vigente nesses escalões entre 1962 e 1964. A importância
da disseminação institucional dessa doutrina para a unificação das forças
golpistas parece evidente. Vale reproduzir o testemunho de um oficial que
ocupou cargos importantes no regime do pós-64:
No início de 1964, já sentíamos que o confronto era inevitável. Do
Rio de Janeiro, em suas novas funções, o general Taurino mantinha
conversações com seus pares. Em carta que me enviou, de próprio
punho, o general Taurino dava notícia de um memorial a ser dirigido
ao Presidente da República, por intermédio do ministro da Guerra, e
que seria assinado por todos os generais da ativa dispostos a
expressar sua preocupação com os rumos que a nação estava tomando.
E continua:
No Estado-Maior do Exército, seu chefe, o general Castello Branco,
encerrara um novo simpósio sobre Guerra Revolucionária. Comunicando-
me o evento, o coronel Curvo dizia-me que o encerramento fora "a
portas fechadas e com aviso prévio de que o assunto seria secreto,
com recomendações de não se comentar o assunto". O coronel Curvo me
adiantava, porém, que "o general Castello botara o dedo na moleira,
falando claramente sobre o que estava acontecendo no país"
(Passarinho, 1996, p. 176).
A ação psicológica: o público externo
O progressivo fechamento interno foi acompanhado pela abertura da ação
psicológica ao público civil, como parte da ação psicológica golpista. Assim, a
partir de 1961, começam a ser publicados livros e panfletos destinados a um
público mais amplo, cujo primeiro exemplo foi, talvez, Democracia e comunismo,
coletânea de artigos extraídos de A Defesa Nacional, editada como "publicação
autorizada pelo Estado-Maior do Exército", sem indicação de editora ou local de
publicação. Já em 1964, o folheto de 54 páginas, Livro Branco sobre a guerra
revolucionária no Brasil, reproduz quase literalmente as discussões militares
sobre a doutrina francesa - técnicas destrutivas, técnicas construtivas, fases
de desenvolvimento, guerra psicológica, parada e resposta etc. - para em
seguida demonstrar, numa longa lista de trinta e oito episódios relativos às
greves e crises do período, que a guerra revolucionária já existia no país.7
O fundamental nesse sentido é o trânsito das idéias de dentro para fora das
Forças Armadas, o que contraria teses até hoje muito influentes que enfatizam a
dependência intelectual e política dos oficiais conservadores em relação a seus
aliados civis. Não por acaso, em outubro de 1961, ao substituir na chefia do
Estado-Maior das Forças Armadas o general Oswaldo Cordeiro de Farias, o general
Osvaldo de Araújo Mota apresentou a questão de forma um tanto cifrada:
A política social do mundo influi na doutrina militar a eleger e
determinar uma atitude a manter. Assim, se não nos faltam a nós,
militares, inteligência, observação e conhecimentos, para formular,
oportunamente, aquele conceito, dentro de nossas reais possibilidades
e dos compromissos internacionais, não nos deve faltar e nos conforta
saber que não nos faltará a constante vigilância de uma ideologia e a
contaminação de uma doutrina, que, cerceando a liberdade e ameaçando
a paz, repugna o espírito cristão de nossa gente (Apud Carone, 1985,
pp. 177-178).8
A frase tem sintaxe confusa, mas sentido claro. Inteligência, observação e
conhecimentos tinham levado os militares a buscar em suas próprias doutrinas a
justificativa para a intervenção na política. A crise da renúncia e a posse de
Goulart sob um regime parlamentarista, a volta do presidencialismo e o debate
sobre as reformas de base, tudo isso serviu para confirmar as visões
doutrinárias sobre o avanço da guerra revolucionária no Brasil.
Faltava apenas traduzir a árida linguagem dos documentos militares para o mundo
civil, se possível com o brilho da retórica parlamentar. No início de 1964,
isso se fez pela voz do presidente da União Democrática Nacional (UDN), o
partido mais importante da oposição a Goulart e o mais próximo dos militares.
Assim, embora a crônica política da época insistisse em que "o Sr. Bilac Pinto,
Presidente da UDN, assegura que restringe seus contatos à exclusiva área
política civil, jamais mantendo conversas com generais ou outras patentes das
Forças Armadas" (Castello Branco, 1975, p. 146), em discurso proferido na
Câmara dos Deputados a 23 de janeiro de 1964, ele conjurou os heróis
intelectuais dos militares para aguçar seus argumentos contra o que considerava
o avanço do golpismo do presidente da República e de seu cunhado, o deputado
federal Leonel Brizola. Sem maiores escrúpulos, citou profusamente nomes e
fontes militares já nossos conhecidos. Em seu pronunciamento de janeiro de 1964
e nos que fez em seguida, a guerre révolutionnaire saiu dos círculos militares
e entrou diretamente, como arma da guerra psicológica, no processo de agitação
civil-militar que desembocou no golpe.9
Tudo indica que o oficial de ligação entre a cúpula do Exército e a ala mais
radical da UDN foi o general Antonio Carlos Murici. De todo modo, o jornalista
Carlos Castello Branco, do Jornal do Brasil, dizia em nota publicada no mesmo
dia em que o parlamentar faria seu primeiro discurso sobre o tema na Câmara: "O
sr. Bilac Pinto, cuja atualização em matéria de terminologia política é louvada
pelo sr. Pedro Aleixo, está com a pasta abarrotada de literatura sobre a guerra
revolucionária. São Livros de Mao Tsé-Tung sobre guerrilhas, estudos do Estado-
Maior do Exército brasileiro, revistas militares norte-americanas e uma tese do
general Murici [...]" (Idem, p. 168).
A leitura da série de discursos de Bilac Pinto sobre a guerra revolucionária em
curso no Brasil permite supor que a pasta do deputado continha justamente os
documentos que analisamos neste artigo. Na abertura de sua primeira intervenção
na Câmara, o líder da UDN, conspirador histórico e aliado antigo da corrente
militar conservadora (Skidmore, 1982, p. 283), alegou que "estudos de oficiais
superiores das nossas Forças Armadas, a respeito da marcha da guerra
revolucionária no Brasil" tinham despertado sua "apreensão relativamente à
normalidade da vida constitucional do país" (Pinto, 1964, p. 63). A partir daí,
o parlamentar usou livremente os teóricos franceses como fonte para sua
pregação já francamente golpista.
Nesse sentido, o argumento central do discurso de 23 de janeiro era de que a
guerra revolucionária entrara em sua fase aguda no Brasil, a terceira etapa da
escala criada pelo coronel J. Hogard, do Exército francês.10 Com olhos na
divulgação de seu pronunciamento na imprensa, assegurada pelo apoio de grandes
jornais à mobilização golpista, Bilac Pinto descreveu em detalhe as cinco fases
de Hogard, na versão que recebeu de um artigo militar recém-publicado.11 Em
seguida, apresentou documentos referentes aos "grupos dos onze" de Leonel
Brizola como prova de que as duas etapas da GR - consolidação da infra-
estrutura e organização da rede de resistência - já tinham sido vencidas.
Diante disso, citando outro texto militar (Idem, p. 68), ele pregou a
necessidade de organizar os civis da frente anticomunista.
Ao mesmo tempo, com base em denúncia que ele próprio formulara em entrevista
amplamente divulgada nos maiores jornais do país, o deputado afirmou que o
governo estava fornecendo armamentos aos sindicatos - para uso no momento do
golpe comunista que se preparava (Idem, p. 71).12 Isso fundamentou seu
diagnóstico de que o Brasil já ingressara na terceira etapa da guerra
revolucionária, que ele complementou com os seguintes traços: "1) ampla
infiltração comunista em todos os escalões do governo; 2) infiltração comunista
nas Forças Armadas; 3) ampla e ostensiva infiltração comunista nos partidos". A
tudo isso ele acrescia a "promoção de greves, com motivação política ostensiva"
e o "controle das organizações estudantis e trabalhistas". Seu argumento final
vinha em seguida: no Brasil, a guerra psicológica estava em estado avançado e
sua mensagem central eram as reformas de base (Idem, pp. 73-76).
Depois do golpe
Nos primeiros anos após o golpe militar de 31 de março de 1964, há evidências
de que a doutrina francesa permaneceu como ponto de referência no interior das
Forças Armadas. Exemplo de tal continuidade foi o relatório final do Inquérito
Policial Militar (IPM) número 709, que investigou o comunismo no Brasil.
Redigido em maio de 1966 e publicado em fevereiro de 1967, em quatro volumes,
pela Biblioteca do Exército, dedicava o seu último tomo à "Ação violenta", com
ênfase na evolução da guerra revolucionária nos anos de 1960. O documento
partia da idéia-força de que "Guerra Revolucionária é a ação comunista pela
conquista do mundo" (IPM 709, 1967, p. 7), procurando enfatizar a centralidade
atribuída pelos comunistas às guerras de libertação nacional como principal
frente de atuação comunista e salientando a importância que o PC soviético
conferia à América Latina, como palco da revolução mundial depois da vitória da
Revolução em Cuba, em janeiro de 1959.
Ao mesmo tempo, continuaram as discussões sobre o tema no âmbito do Estado-
Maior das Forças Armadas. Foram também incorporadas as mudanças ocorridas no
seio do Movimento Comunista Internacional (MCI) na segunda metade dos anos de
1960. A conceituação básica permanecia a mesma: definia-se a Guerra
Revolucionária como "um processo permanente de subversão, conduzido por uma
adestrada minoria comunista, infiltrada nos principais setores da estrutura
administrativa e social dos países democráticos, visando à sua desagregação e
substituição por uma sociedade comunista" (Estado-Maior das Forças Armadas,
1969, p. 2). Mas o EMFA reconhecia que as divergências no MCI implicavam na
presença de estratégias revolucionárias diversas: "Enquanto Moscou prega a
conquista do poder por meios pacíficos política de coexistência pacífica,
Pequim clama que somente a guerra conduzirá à verdadeira 'Revolução Mundial'"
(Idem, p. 12). Por sua vez, o texto opunha Régis Debray, que via a guerrilha
como desencadeador de guerra revolucionária, a Mao Tse-tung e Guevara,
considerando ambos como partidários da eclosão das guerrilhas apenas em
condições favoráveis. Enfim, o documento reconhecia o debate em curso na
esquerda sobre o cenário mais favorável à guerrilha, o campo ou a cidade (Idem,
pp. 25-26).
Mas o mais significativo no texto de 1969 era sua tentativa de simplificar o
esquema das etapas da guerra revolucionária, abandonando o já mencionado quadro
das cinco etapas proposto por Hogard e centrando-se numa divisão mais simples
que propunha dois momentos principais: o da preparação e o da execução. Como se
vê no Quadro, a eclosão de ações terroristas e o desencadeamento da guerrilha
rural e urbana - que ocorreram no Brasil a partir de 1968 - eram considerados
os sinais da passagem da fase de preparação para a de execução da guerra
revolucionária. Estava dado, assim, o sinal verde para o envolvimento direto
das Forças Armadas na repressão à luta armada de esquerda.
Nesse sentido, o documento do EMFA de 1969 sobre a guerra revolucionária afirma
que "as ações repressivas não significam, obrigatoriamente, a aplicação da
expressão militar. Somente em casos de grave perturbação da ordem interna é que
caberá às Forças Armadas atuar contra as forças da subversão; embora ações
militares de apoio a outras expressões do poder possam fazer-se necessárias
desde os estágios iniciais do movimento" (Idem, p. 29). Tudo indica que o
seqüestro do embaixador norte-americano Elbrick foi o divisor de águas, o caso
de "grave perturbação da ordem interna" que conduziu inequivocamente à decisão
militar de assumir o controle e o comando das operações contra a guerrilha
urbana.
Notas
1 O primeiro autor a citar, em artigo de 1988 (pp. 238-239), a influência da
doutrina francesa no Brasil dos anos de 1960 foi Eliezer Rizzo de Oliveira.
Seguiram-se Joaquim Xavier da Silveira (1989, p. 264), o depoimento do general
Octávio Costa aos pesquisadores do CPDOC (D'Araujo et al., 1994, pp. 77-78),
Geraldo Cavagnari (1994, p. 47), Rodrigo Patto Sá Motta (2002, p. 261) e Élio
Gaspari (2003, pp. 86-87, 105, 135). Esses autores, porém, não desenvolveram o
tema.
2 Outra fonte aponta no mesmo sentido. Em A FEB por um soldado, Joaquim Xavier
da Silveira dizia: "os centros de estudos militares brasileiros passaram a
atentar para esse novo fenômeno social-militar, o que talvez venha a explicar o
movimento antiinsurrecional de março de 1964. A tão decantada influência
americana, nesse movimento político-militar, foi praticamente nula. O
historiador do futuro, no exame sereno desse episódio, irá certamente encontrar
uma certa influência francesa, pelo menos no campo doutrinário" (Silveira,
1989, p. 264). Agradeço a Amanda Mancuso a menção a essa fonte.
3 Não espanta, assim, que em maio de 1959, o coronel Augusto Fragoso assim
explicasse à sua audiência da Escola Superior de Guerra brasileira: "a
bibliografia francesa sobre a GR é, pode-se dizer, a única existente. A
bibliografia de origem norte-americana não deu até agora ao assunto a
importância merecida: nos catorze últimos números consultados da Military
Review (de janeiro de 1958 a fevereiro de 1959) não há nenhum estudo, artigo ou
tópico que fale, no título, de Guerra Revolucionária, Guerra Insurrecional ou
Guerra Subversiva" (Estado-Maior da Forças Armadas, 1959, p. 5).
4 Publicado no Brasil, em 1963, pela Biblioteca do Exército em parceria com a
editora de esquerda Civilização Brasileira, em tiragem de 9 mil exemplares,
particularmente alta para a época.
5 O curso foi reproduzido em Estado-Maior da Aeronáutica (1963), com acréscimo
de uma importante diretriz do general Humberto de Alencar Castello Branco.
6 Note-se a caracterização do episódio do levante comunista como "revolução",
para adaptá-lo melhor à doutrina francesa, e não "intentona comunista", termo
oficial do discurso militar.
7 O texto encerra-se com um apelo: "Faz este livro circular".
8 Citado a partir de matéria de O Estado de S. Paulo, de 17/10/1961.
9 Para a repercussão dos discursos, ver Carone (1985, p. 203).
10 Uma evidência de que essas idéias ainda eram desconhecidas dos civis é o
erro na grafia do nome do coronel francês J. Hogard, em artigo do tão bem
informado Carlos Castello Branco: "terceira etapa na seriação formulada por
Togard" (1975, p. 168, grifo do autor).
11 "Tenho em mãos o estudo do Tenente-Coronel Antônio Fonseca Sobrinho,
publicado pelo Estado-Maior do Exército", explicou o deputado (Pinto, 1964, p.
67).
12 A denúncia mostrou-se depois totalmente infundada e, na ocasião, foi o
principal alvo das críticas do líder do governo, o deputado Doutel de Andrade,
que exigiu repetidas vezes em plenário que Bilac dissesse onde estavam as
armas.