A poiêtikê technê como instrumento meta-filosófico
I.
Os comentadores da Poética sempre se mostraram fascinados pela observação
misteriosa e quase apócrifa de Aristóteles a respeito da catarse,1 polarizando
o debate sobre a Poética em torno de versões mais ou menos opostas da função
meliorativa da tragédia. Habituámo-nos pois a esperar uma espécie de apologia
da poesia e deixámos de ser capazes de ler o tratado a não ser em relação a tal
pano de fundo. Salvo raríssimas excepções, toda uma longa história de dissensão
é prova aliás da larga unanimidade entre os comentadores acerca do ponto geral
da Poética. De Castelvetro a Lear, somos unânimes em discordar de entre um
conjunto de configurações rivais de uma teoria geral da catarse. Qualquer
teoria da catarse (como, de facto, qualquer teoria da mimesis trágica) deve, no
entanto, explicar a relação causal que não pode deixar de haver entre tragédias
e pessoas, de modo a que uma reacção partilhada possa verificar-se de todo. E
essa relação causal é normalmente dada por adquirida sem quaisquer outras
explicações.2
Sem dúvida que Aristóteles constrói todo o seu argumento sobre a tragédia na
suposição geral de que tal ligação existe. No entanto, compreenderemos melhor o
que está em causa se contrastarmos o naturalismo de senso comum por detrás
dessa suposição contra a noção (de origem Renascentista) de que a tragédia
aristotélica 'tem' um efeito meliorativo universalizável, e de que a katharsis
é o resultado padrão necessário produzido por tragédias perfeitas. Embora
nenhum comentador se atreva a ir tão longe quanto G.E. Lessing (para quem a
Poéticaseria tão infalível quanto os Elementos de Euclides),3 a presunção de
uma causalidade necessária, parecida com uma lei natural, está
caracteristicamente presente nas leituras do texto de Aristóteles desde as suas
primeiras traduções modernas.4 Ao contrário da maioria dos seus leitores
modernos, no entanto, Aristóteles não chega a propor tal ideia: "A tragédia,
então, é a imitação de uma acção ... com incidentes que provocam temor e
piedade, mediante os quais é produzida a catarse de tais emoções".5 Ora, de 'A
causa B' não se segue que 'A causa B necessariamente'.
A noção de que 'A causa B necessariamente' subjaz àquilo que descreverei de
seguida, de uma maneira, receio, excessivamente esquemática, como a
configuração das leituras habituais dos capítulos 4 e 9 da Poética. Estes
capítulos são quase sempre lidos reciprocamente e de acordo com um raciocínio
cuja paráfrase mais simplificada poderia ter o aspecto da seguinte lista de
manobras. Em geral, (1) as pessoas gostam de aprender (manthanein) e admirar
coisas (thaumazein);6 e, em particular, tal como Aristóteles insiste na
Retórica, (2) elas têm prazer naquilo que aprendem e que são levadas a perceber
através do contacto com imitações: nas suas palavras, manthanein kai
sullogizesthai.7 (3) Num sentido minimal, nisso consiste, então, o prazer que a
poesia lhes dá.8 Ora, uma vez que a poesia de algum modo representa o
universal, ta kathoulou,9 (4) o que aprendemos com a tragédia será, pois,
universal nalgum sentido. Assim, (5) se a catarse está ligada ao prazer próprio
da tragédia e é o efeito necessário, o fim último, se quisermos, do tipo
perfeito de enredos trágicos (o que melhor 'representa' o universal), então (6)
a catarse está ligada à 'transmissão' (i.e. à revelação ou clarificação)10 de
alguma coisa universal nalgum sentido, e.g. certa verdade geral acerca da
'condição humana'. Por analogia com as recomendações de Aristóteles na parte
final da Políticaacerca dos benefícios de formas entretenimento musical,11
sugere-se, nesse sentido, que (7) assistir a boas tragédias permite que os
espectadores treinem as suas emoções e aptidões intelectuais e morais, o que os
prepara para a vida moral "sorvendo o sumo sem morder a casca",12 para usar uma
metáfora adequada de Gerald Else. (8) Por outro lado, talvez seja esse o caso
ainda que, como observou Lear, os espectadores de tragédias que Aristóteles
tinha em mente já estivessem para lá da necessidade ou mesmo da possibilidade
de qualquer treino moral;13 e nesse caso não-morder-a-casca significa apenas
que, na tragédia, "A vida é vivida em pleno, imaginariamente, mas sem
arriscarmos seja o que for".14
A família de interpretações do capítulo 9 da Poética a que pertence a proposta
de Lear de que a mimese nos permite experimentar possibilidades "fora do plano
comum" (tal como o "alívio de 'descarregar' [certas] emoções num ambiente
seguro")15 dá uma inflexão modal à famosa distinção de Aristóteles entre poesia
e história, como se ficção fosse realmente apenas aquilo que está em causa. Tal
distinção16 tem menos que ver com ficção, ou apenas com ficção, no entanto, do
meu ponto de vista, do que com o que Aristóteles entenderia por representação
de carácter, ēthos. Por outras palavras, tem que ver com o género de unidade de
carácter que uma boa tragédia permite representar. A poesia representa
'universais' e a história 'particulares'; mas por "universal" entende-se
"aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verosimilhança ou a
necessidade",17 formulação que reitera os critérios adoptados por Aristóteles
na definição de carácter no capítulo 6. "Carácter", explica Aristóteles, "é o
que revela qual a decisão [prohairesis], como naqueles casos em que a escolha
não é óbvia, e, por isso, não exprimem carácter as palavras nas quais quem fala
não aceita nem recusa coisa alguma".18 Para Aristóteles, o ēthosemerge nas
escolhas tornadas evidentes pelas acções de pessoas, pelo que escolhem dizer ou
não dizer, pelo que escolhem fazer ou não, e tais escolhas, tais palavras, tais
acções, emergem sempre, como nos é também explicado na Ética a Nicómaco, como
próprias de um 'género de' (hoios) pessoa:19 a "tragédia é a imitação de uma
acção e, através desta, principalmente, dos agentes".20 O único lado
'universal' daquilo que a poesia representa ("aquilo que certa pessoa dirá ou
fará, de acordo com a verosimilhança ou a necessidade")21 é que, por assim
dizer, na maior parte dos casos, 'este género de pessoa age assim e assim'.
Por outro lado, Aristóteles esclarece que "a tragédia não é a imitação dos
homens, mas das acções e da vida", da "felicidade e infelicidade", que está nas
acções e não nas qualidades das pessoas. O carácter é uma "qualidade" (poios)
dos personagens mas não é isso que os torna felizes ou infelizes: o que os
torna felizes ou infelizes são as suas acções.22 (E.g. mesmo a pessoa prudente
pode errar e ser infeliz.) O principal objectivo da tragédia é, por isso, o de
representar a estrutura das acções adequadamente, ou melhor, o de representar
adequadamente a estrutura de um certo tipo de acções: acções nas quais uma
pessoa cai em desgraça por um erro próprio23 (hamartia). Por outras palavras, o
objectivo da tragédia não é o de imitar pessoas, mas a tragédia representa
pessoas enquanto agentes, e, apenas enquanto agentes, pessoas com determinadas
qualidades. É por isso que "os caracteres são abrangidos pelas acções",24 o que
também significa, no entanto, que uma mera escolha isolada não nos dá acesso ao
'género de' agente, ao carácter, de certa personagem. É preciso uma acção
completa (uma acção capturada sob uma narrativa racional e verosímil) para que
as qualidades do agente se tornem inteligíveis, para que se perceba que este ou
aquele 'género de' agente age coerentemente assim e assim.25 Até mesmo os
caracteres incoerentes (como e.g. a Ifigénia de Eurípides, da Ifigénia em
Áulide, diz-nos Aristóteles) devem pois ser representados, de acordo com o
princípio geral de verosimilhança e necessidade, como "coerentemente
incoerentes".26 Tal apenas se obtém mediante a unidade de acção conseguida por
um enredo (mythos) adequado, e é por esta razão que "o enredo é (...) o
princípio e como que a alma da tragédia".27
Em suma, a inflexão modal habitualmente adoptada na interpretação da distinção
entre poesia e história, tornando-a numa questão de distinguir entre ficção e
não-ficção, e, em última análise, numa discussão sobre os benefícios de
actividades relacionadas com ficção (o assunto central de qualquer teoria da
catarse), perde de vista o ponto filosófico talvez mais interessante: o de
'como dar inteligibilidade a caracteres?', i.e. como dar inteligibilidade a que
'géneros' de agentes, na maior parte dos casos, agem 'assim e assim'. A
resposta de Aristóteles é a de que um certo tipo de narrativas se oferece como
recurso técnico mais adequado para dar inteligibilidade à existência 'de
géneros' de agentes, um tipo de narrativas que se caracteriza por respeitar
certos princípios técnicos, que lhes confere uma unidade de sentido alcançada
"sem explicação verbal"28 e em relação à qual se verifica, por outro lado, uma
reacção partilhada. O longo debate sobre a Poética desde o Renascimento
entende-a, em geral, como uma tentativa de Aristóteles de responder à pergunta:
'Como produzir uma certa reacção partilhada?', na suposição de que tal efeito
da tragédia seria benéfico a uma escala comunitária. Uma poiêtikê technê teria
pois uma função ética e mesmo política. Do ponto de vista que estou a tentar
descrever, a função da poiêtikê technê é, por contraste, a de um vocabulário
puramente conceptual sob o qual várias questões normalmente desligadas entre si
podem ser descritas num mesmo plano, numa continuidade. Por exemplo, tal
vocabulário permite descrever no mesmo plano explicativo a existência de uma
convergência ou uma partilha de reacções morais em relação a certas coisas, o
reconhecimento partilhado de certas possibilidades, e ainda as causas (a
explicação) dessa partilha de reacções. Podemos assim admitir que uma poiêtikê
technê(como explicação para uma partilha de reacções) constitui também um modo
indirecto de dar inteligibilidade à existência de um ethos comum em comunidades
humanas. Nas secções seguintes tentarei explicar porquê.
II.
Na secção anterior vimos as razões pelas quais Aristóteles considera o enredo
(mythos) como que a alma da tragédia. Na sua opinião, a melhor espécie de
tragédia é ainda aquela em que "tudo é peripécia e reconhecimento"29 (i.e.
'tudo' o que importa).30 É então como se o reconhecimento-com-peripécia fosse a
alma do enredo: a minha primeira tarefa nesta secção será a de tentar
explicitar esta ideia, começando pelos princípios mais básicos.
O reconhecimento, anagnorisis, é a "passagem da ignorância para o
conhecimento"31 associada por Aristóteles ao cerne de todo o enredo: metabolê,
a mudança que separa o nó (desis) de um desenlace (lysis).32 Todo o argumento
da Poéticaparece ser orientado por tentativas de explicitar esta 'mudança', que
é ao mesmo tempo a distinção mais panorâmica e geral feita a respeito de
enredos. Numa boa tragédia, tal corresponde a uma viragem da felicidade para a
infelicidade dos caracteres produzida por uma "mudança dos acontecimentos para
o seu reverso", a que Aristóteles dá a designação técnica de peripécia,
peripeteia.33 A peripécia, viragem que abre o desenlace, deve já resultar do
próprio nó, em vez de surgir ex machina, defende Aristóteles, para quem a
estipulatividade injustificada de certas soluções narrativas é uma forma de
irracionalidade própria apenas de "maus poetas".34 De preferência, "Não deve
haver nas tragédias nada de irracional, e, se houver, que seja fora da
tragédia, como no Édipo de Sófocles",35 esclarece a propósito, dando como
exemplos de o que entende por irracional (alogon) certos gestos típicos de
estipulação autoral ou ex machina mediante os quais se torna muito conspícua a
falta de ligação explicativa, na cadeia dos acontecimentos, entre nó e
desenlace.36 Não apenas a peripécia deve resultar do enredo, mas também o
reconhecimento (que pode ou não acompanhar tal peripécia no desenlace, e que
pode ou não estar ligado a ela, caso a acompanhe), também o reconhecimento deve
nascer da peripécia, e, portanto, na melhor das hipóteses, deve decorrer do
próprio enredo. Do ponto de vista de Aristóteles, a cadeia de acontecimentos
gerada pela mudança deve, de acordo com um princípio de verosimilhança e
necessidade, como uma cadeia de inferências bem formada, levar à cena de
reconhecimento.
O exemplo perfeito e clássico deste género de encadeamento, a que chama
"tragédia complexa", é para Aristóteles o da ligação entre o reconhecimento de
Édipo, na tragédia de Sófocles, e a cena na qual "o mensageiro que chega com a
intenção de [o] alegrar (...) e de o libertar dos seus receios em relação à
mãe, (...) [produz] o efeito contrário",37 gerando uma cadeia de revelações que
leva Édipo a compreender que é o causador involuntário da sua própria desgraça.
A par do reconhecimento de Édipo o reconhecimento mais ou menos simultâneo38
das causas da acção por parte dos espectadores, e o espanto associado a esta
nova percepção da acção como um todo (alcançado "sem explicação verbal"),39
parecem estar ligados à produção das emoções a cuja 'remoção' ou
'extravasamento', para facilitar, chamamos catarse. Aristóteles observa que as
emoções de "temor e compaixão (...) são muito [mais] facilmente suscitadas
quando se processam contra a nossa expectativa, por uma relação de causalidade
entre si. Desta forma," continua, "a imitação será mais surpreendente do que se
surgisse do acaso e da sorte, pois os factos acidentais causam mais admiração
quando parece que acontecem de propósito".40
É interessante que, para delimitar e explicitar o aspecto das tragédias no
centro das suas atenções, i.e. o que se passa na 'mudança', Aristóteles recorra
na Poética à mesma analogia que usa de passagem na Metafísicapara sugerir que
quando "uma dificuldade no nosso pensamento aponta para um 'nó'no objecto",
superar essa dificuldade é como "desatar um nó".41 Na Poética, Aristóteles não
se cansa de tentar capturar a intuição de fundo de que a representação de um
certo tipo de cenas de reconhecimento 'produz' ou está ligada à experiência de
libertação de uma sobrecarga emocional, gerada nos espectadores por aquilo que
poderíamos descrever como as suas expectativas mais ou menos difusas acerca da
violação de certos laços cometida na ignorância (o objecto do erro do herói,
hamartia: tipicamente, a causa da sua queda em desgraça. Parece haver uma
ligação estreita entre as nossas expectativas sobre esse erro, que são primeiro
geradas e depois confirmadas pela própria acção, e as expectativas difusas do
próprio herói a esse respeito. Os "receios [de Édipo] em relação à mãe"42 não
apenas não são no vazio como são basicamente os mesmos que os de qualquer
espectador comum. É sobre essas expectativas que se formam as emoções dos
espectadores.) Não nos devemos esquecer, por outro lado, de uma suposição mais
geral de Aristóteles, para a qual Jonathan Lear também nos chama a atenção,43
de que, tal como a actividade do professor se opera nos alunos, a actividade do
poeta se opera "nalgum paciente 'não ocorre desligada de um sujeito, sendo de A
sobre B".44 Quer dizer, a agênciado poeta opera-se naqueles sobre os quais a
sua actividade recai: na paciência dos espectadores, por assim dizer. Muito a
propósito, Aristóteles observa, no capítulo 24, que um dos talentos de Homero
era nada menos que o de conduzir "as nossas mentes" a inferências erróneas,45
nomeadamente em cenas de reconhecimento inadequadas baseadas "num falso
raciocínio do público".46 Segue-se então, talvez, que as cenas de
reconhecimento adequadas devem basear-se, podemos supor, num raciocínio
correcto por parte do público. E tal como as emoções suscitadas pela acção,
também esse raciocínio tem de nascer sobre as expectativas formadas nos
espectadores ao longo da acção. Há uma cadeia inferencial bem formada nas suas
emoções. Não é um acidente que as suas piores expectativas se verifiquem; não é
sem razão que sentem medo e piedade.
Por outro lado, não se segue, porém, que tal reacção seja necessariamente
partilhada por todos os espectadores, que seja um efeito necessário de uma boa
tragédia. (Aristóteles explica-nos na Retórica que nem todas as pessoas são
capazes de sentir as emoções suscitadas por tragédias;47 por definição, não
haverá 'catarse' para aqueles que não sentem coisa alguma). Tradicionalmente,
dá-se por adquirido que a relação entre a acção trágica e as reacções de
espectadores é uma relação causal necessária, automática, universal. Todavia,
jamais se tentou caracterizar essa relação, que me parece tudo menos
necessária. Com efeito, Aristóteles parece sugerir-nos que tal relação se
estabelece mediante uma ponte inferencial. "O espectador faz inferências
(sullogismos)", tal como explica na Retórica,48 parafraseando uma passagem do
capítulo 4 da Poética, a que já aludi (e em torno da qual a dissensão é
enorme), na qual nos diz que a razão pela qual as pessoas têm prazer em
imitações "É que [elas], quando vêm as imagens, gostam dessa imitação, pois
acontece que, vendo, aprendem e deduzem o que representa cada uma, por exemplo,
'este é aquele assim e assim'"49 ' ou como Stephen Halliwell demonstrou: "que
aquele homem ali é assim e assim".50
Dizer que "aquele homem ali é assim e assim" é possivelmente um modo abreviado
de Aristóteles se referir, tal como tentei explicar na secção anterior, a uma
revelação da inteligibilidade de um carácter, i.e. um 'género de' agente que,
na maior parte das vezes, age 'assim e assim', revelação conseguida mediante
uma representação da acção de acordo com o que é necessário ou o que acontece
na maior parte das vezes. A revelação produzida pelo reconhecimento dos
espectadores (i.e. pelas inferências aduzidas a respeito das causas da acção,
que se encadeiam num scorekeepingcontemplativo, para usar uma expressão de
Brandom) leva-os a apreender (ou representar) a acção de uma tragédia como um
todo causal unificado, ao mesmo tempo que o "nó" no objecto se desenlaça, para
continuar a usar a metáfora de Aristóteles. Que "aduzir inferências" se pareça
com "uma espécie de alívio ou uma sensação de chegada" (407a32), como nos é
dito em De Anima, sugere que há uma espécie de experiência de satisfação ou
aprazimento inferencial associada à remoção da dor suscitada pelo "nó" no
objecto. Talvez seja a isto que os comentadores se referem quando descrevem um
'prazer cognitivo' a propósito da posição de Aristóteles no capítulo 4 da
Poética. Por outro lado, o scorekeepingextático que viabiliza nos
contempladores a inteligibilidade anagnorética da acção trágica em causa ' por
palavras menos cerimoniosas, a atenção que nos agarra àquela tragédia ', não
pode estar desligado da nossa psicologia moral: não há propriamente inferências
frias para Aristóteles, mas antes tudo ao mesmo tempo. Se é que precisamos de
descrever aquilo a que ele se refere por catarse na Poética, tal não poderá ser
concebido como extravasamento ou alívio a não ser como o prazer associado a um
extravasamento ou a um alívio da experiência de tudo ao mesmo tempo: espanto
(thaumaston), temor, compaixão, elevação moral. No entanto, para o que nos
importa, não será necessário caracterizar a fundo a psicologia de tal
experiência.
Bastaria talvez sublinhar que tal género de experiência é associado por
Aristóteles a um reconhecimento por parte dos espectadores de uma boa tragédia,
um reconhecimento que revela as causas de uma certa acção e desse modo
clarifica as suas expectativas difusas a respeito dessas causas, através de um
fechamento explicativo, por assim dizer.51 Aristóteles parece partir do
princípio de que um fechamento de sentido (por outras palavras: encontrarmos
uma explicação para acidentes bizarros) alivia a sobrecarga emocional que
acompanha a indefinição de tais expectativas.52 Por outro lado, mediante este
fechamento explicativo, a acção unifica-se como uma totalidade, conferindo
inteligibilidade ao carácter, ēthos, de uma personagem, permitindo que os
espectadores o apreendam como próprio de um 'género de' pessoa: "aquele homem
ali é 'assim e assim'" (houtos ekeinos).
Mais uma vez, por 'género de' pessoa entenda-se caracteres que se distinguem
por exibirem certas qualidades morais dominantes, como tenho vindo a sugerir, e
tal como Aristóteles os parece entender na Ética a Nicómaco, onde recorre a um
procedimento explicativo tecnicamente paralelo àquele que estuda na Poética.Ao
dar inteligibilidade a caracteres mediante uma personificação de qualidades de
carácter (o indivíduo megalópsico, o indivíduo acrático, etc.), Aristóteles
obedece a um princípio de narratividade explicativa mediante o qual tal ou tal
qualidade apenas se mostra sob uma descrição verosímil das acções próprias (ou
da relação entre as acções) de quem possui uma dada qualidade, no contexto de
uma vida.53 Tal procedimento encontra numa discussão da tragédia a hipótese
prometedora de, sob um certo tipo de descrição, ou sob um certo tipo de mythos,
certas qualidades de carácter serem imediatamente claras para a grande maioria
dos espectadores, independentemente de diferenças de opinião ou
independentemente da sua relativa sofisticação intelectual.54 (Para Aristóteles
é aliás como se linguagem de mais atrapalhasse o género de fechamento
explicativo em questão.)55 Não é que o efeito da tragédia se reduza à revelação
de uma unidade de carácter imediatamente reconhecível pela maioria das pessoas
(e não necessariamente por todas), mas antes que as razões do sofrimento do
herói são partilhadas, i.e. aceites implicitamente como boas razões ou se
quisermos como as razões do sofrimento esperável de alguém na sua situação. Uso
aqui a expressão 'aceites implicitamente' uma vez que a única face desta
reacção partilhada são possivelmente os sinais externos, nem sempre presentes,
de um género de comoção tão comum que dispensa descrição, e a que nos
habituámos a dar o nome 'catarse'. (Certamente, ninguém precisa de pedir uma
segunda opinião sobre a razão de ser das emoções que uma tragédia lhe desperta:
em parte, porque não há tempo para isso, em parte porque seria estúpido e
escusado.) A questão é que seja isso o que for, para Aristóteles tal emerge ao
mesmo tempo que a nobreza de carácter (própria da "acção elevada")56 daqueles
sobre cujo sofrimento é a compaixão dos espectadores, e cuja desgraça sob as
próprias mãos, na ignorância, os enche de medo. E tal depende de estes
reconhecerem o carácter do herói não apenas como "bom", mas ainda "apropriado à
personagem", "semelhante a nós" (pois é isso que gera a compaixão e o temor)57
e, num sentido particular, semelhante a si mesmo: ele deve ser representado com
uma coerência tal que respeite um princípio de verosimilhança e necessidade. Em
suma, para Aristóteles a poesia enche-nos de coisas ' coisas agradáveis e
dolorosas (o que é "gerado pelos acontecimentos")58 ' e, a haver lugar a um
extravasamento ou alívio, tal não se desliga de um certo fechamento de sentido,
de um "raciocínio do público",59 como a percepção de que "Aquele homem ali é
'assim e assim'" (houtos ekeinos).60
III.
A razão pela qual Aristóteles não explica o que quer dizer com 'catarse' na
Poética' um lapso tão incaracterístico que facilmente o confundimos com um
facto filológico ' é possivelmente a de que não é realmente importante
descrever a fundo a psicologia da catarse (e muito menos a sociologia ou a
ideologia da catarse). Bastaria mencionar que uma reacção partilhada ocorre,
isto é, que alguma coisa é partilhada por 'nós'. Por si só, isso é prova
suficiente de que as pessoas partilham expectativas, mas também de que
partilham expectativas em relação a certas coisas.
Será difícil não dar pelo 'nós' que paira sobre todo o argumento de
Aristóteles, manifestando-se de vez em quando em referências correntes ao
'nosso espírito', a homens 'melhores que nós' e 'piores que nós', 'semelhantes
a nós', ou simplesmente como nós. Quão semelhantes são, porém, tais criaturas,
e que medida de semelhança é aqui a de Aristóteles? As suas transições
demasiado rápidas entre uma acepção étnica e uma acepção universal (quer dizer,
entre 'nós-qua-atenienses' por oposição a 'eles-qua-bárbaros',61 e 'nós-qua-
animais-assim-e-assim') parecem-nos hoje chocantes. Por alguma razão,
Aristóteles mistura os dois sentidos, o que torna qualquer tentativa de os
distinguir entre si numa tarefa ainda mais delicada. Começando pela última
acepção, a universal, não nos surpreende sermos definidos como uma espécie
racional, tal como nos é sugerido nas passagens já aludidas do capítulo 4 da
Poética, nas quais Aristóteles conflaciona prazer e actividade inferencial,
referindo-se ainda, numa glosa óbvia da abertura da Metafísica, a um desejo
natural de aprender. Por outro lado, a mais clara qualificação da espécie feita
por Aristóteles ainda no mesmo capítulo refere-se, antes, no entanto, a sermos
os mais miméticos dos animais ("o homem é o que tem mais capacidade de
imitar").62 Aliás, é-nos explicado que é "pela imitação que [adquirimos] os
nossos primeiros conhecimentos",63 como se a formação de logos fosse causada,
i.e. explicada, em última análise, por um grau hiperdesenvolvido de capacidade
mimética. (No início da Metafísica, Aristóteles esboça também um argumento
paralelo a respeito do nosso grau desenvolvido de capacidade de memória.
Capacidade mnemónica e capacidade mimética parecem andar de mãos dadas no reino
Animalia.) Dizer que certas criaturas são racionais e dizê-las super miméticas
está longe de constituir uma oposição entre duas definições mutuamente
exclusivas. Pode ser, pelo contrário, que estas sejam duas hipóteses
reciprocamente explicativas acerca da natureza de tais criaturas. Halliwell
observa que a mesma hipótese a respeito de um elevado grau de capacidade
mimética como critério adequado de explicação para as causas do 'entendimento'
(logos) é também avançada por Pseudo-Aristóteles nos Problemas, cujo autor
parece citar a Poética. É-nos ali sugerido que a razão pela qual devemos
depositar mais confiança num ser humano do que em qualquer outro animal não é a
de apenas os homens saberem fazer contas (como Platão sugerira a Néocles), nem
a de que apenas eles acreditam em deuses, mas a de que são os mais miméticos de
entre os animais, sendo isso "que lhes permite aprender e compreender" (956a11-
14).
O mais extraordinário é talvez que Pseudo-Aristóteles sequer deposite
algumaconfiança noutros animais. Do seu ponto de vista, relações de confiança
não se restringem então a animais dotados de capacidades aritméticas, mas são
antes extensíveis, em menor grau, todavia, a criaturas sem deus, nem matemática
(e, já agora, mais ou menos previsíveis e desprovidas de linguagem). Não pode é
haver laços de confiança onde não houvesse antes expectativas, mesmo que estas
tenham um aspecto muito básico. A 'mimese' (ou na verdade um grau elevado de
capacidade mimética) parece ser, pois, o que salvaguarda e, em última análise,
explica a própria possibilidade de se formar e partilhar expectativas mais
complexas, tais como as que são requeridas pelo estabelecimento de laços de
confiança mais fortes, mais complexos e mais duradouros, ainda que estes sejam
muitas vezes largamente imperceptíveis e dados por adquiridos. Em Moral
Prejudices, Annete Baier observa que "Habitamos um clima de confiança da mesma
maneira que habitamos uma atmosfera", e que "damos por ela tal como damos pelo
ar, apenas quando este se torna escasso ou poluído".64 Poderíamos talvez
defender que a natureza hipermimética dos seres humanos é o que melhor explica
a existência de comunidades de disposições, de que a 'atmosfera de confiança'
de Baier é um exemplo perfeitamente adequado. Nesse caso, poderíamos ainda
imaginar que o logosé relativo a modos de transformar um espaço de expectativas
num espaço de razões, para usar a expressão de Sellars: i.e. modos de tornar
explícita a existência de um ethos partilhado. Num sentido minimal, um ethos
comum pode ser descrito como um conjunto de expectativas partilhadas. Todavia,
tal concepção de ethosnão faz sentido a não ser que pensemos numa comunidade
(ethnos) que o partilha. Por outras palavras, presume-se alguma forma ou
configuração social a que nos possamos referir através de expressões como, por
exemplo, 'nós-como-atenienses', etc. Ao percebermos isto, o que antes parecia
(na melhor das hipóteses) uma confusão gramatical insuperável, torna-se, de
súbito, na razão de ser do plural étnico de Aristóteles. No fim de contas, o
grau de mimeticidade nos seres humanos é em parte a condição necessária para
que se estabeleçam justamente os tipos de laços requeridos para a formação,
florescimento e durabilidade de comunidades humanas, comunidades que se moldam
e organizam em função de expectativas mais ou menos parecidas. Assim, num
sentido que a Poética ajuda a tornar claro, ou que uma poiêtikê technêajuda a
capturar, as reacções geradas em 'nós' por uma tragédia não são essencialmente
aquilo a que chamamos um efeito puramente 'estético', mas antes de mais a
expressão (evidentemente, explorada pelos poetas) de um ethos comum, de
expectativas partilhadas por uma dada comunidade. Como observa Aristóteles: "os
poetas orientam-se pelos espectadores e compõem de acordo com as suas
preferências".65
Quero agora retomar por momentos a ideia de que a expectativa de uma apologia
da poesia com a forma de uma teoria da catarse foi facilitada pelas atmosferas
intelectuais nas quais decorreu o debate sobre a katharsis trágica ao longo dos
últimos séculos. Uma boa objecção aos fins éticos tradicionalmente depositados
numa 'estética' aristotélica (aliás, ironicamente platonista) é, no entanto, a
de que tal projecto pecaria desde logo pela famosa falta de gosto de
Aristóteles, a qual embaraça muitos dos seus leitores desde o Renascimento.
Como explicar que das trinta e duas tragédias mencionadas por Aristóteles
apenas duas sobrevivem, afinal, ao teste da catarse: o Rei Édipo e a Ifigénia
entre os Tauros, de Eurípides? Historicamente e por razões pedagógicas
inclinámo-nos tipicamente a tentar extrair da Poética um certo modelo de
tragédia perfeita, e esse projecto tem dominado as nossas atenções desde que
nos lembramos. Contudo, não deveríamos perder de vista o evidente fascínio de
Aristóteles por uma enorme quantidade de exemplos de erros poéticos ' e o facto
de os considerar erros poéticos não precisa de ser tomado necessariamente como
um sintoma de falta de gosto. Os seus elogios técnicos são decerto tão
relevantes do ponto de vista filosófico (embora não, quem sabe, para a história
da literatura) quanto as suas censuras. Por exemplo, esclarecer que "homens
bons a passar da felicidade para a infelicidade (...) suscita repulsa, mas não
temor nem piedade"66 é, sem dúvida, um modo tão adequado quanto qualquer outro
para dar inteligibilidade, sob um vocabulário técnico racional, à forma como
criaturas 'como nós' partilham disposições. Por outro lado, deslocarmos a
discussão para fora do horizonte de expectativas habitual ajuda-nos, ainda, a
entender o sentido em que a discussão anterior sobre o plural fantasma da
Poéticase relaciona com uma das observações mais misteriosas de Aristóteles, a
saber, a de que "a ideia de correcção da política e da poética não é a
mesma".67
No capítulo 25, onde discute erros técnicos e soluções para esses erros,
Aristóteles vai testando diferentes fórmulas para a mesma ideia, nomeadamente
que "escrever coisas impossíveis é errar; mas está correcto (...) se o
objectivo próprio da arte for alcançado".68 Desde que o objectivo próprio da
arte seja alcançado (i.e. representar acções de tal forma que se produza uma
certa reacção partilhada), a verosimilhança pode bem ser sacrificada,69 erro a
que não nos devemos nem podemos dar ao luxo em política. A implicação
interessante é aqui a de que, apesar de tal licença poder levar os espectadores
a reconhecer ou, antes, representar coisas "impossíveis" ou "irracionais" (um
dos fortes de Homero, por exemplo), tal não constitui impedimento a uma reacção
partilhada. Daqui se segue que não obstante a verdade, falsidade ou mesmo a
irracionalidade daquilo que, dessa forma, é representado no nosso "espírito"
(psuchê), tal reacção continua a denotar a presença (activa) de uma comunidade
de emoções, disposições ou orientações para o mundo. Ora, descrever as causas
técnicas de tal partilha de reacções (projecto a que certas partes da Retórica
poderão dar um contributo valioso) é assim um modo de conferir inteligibilidade
a um ethos comum ' i.e. de o tornar explícito sob a descrição de um vocabulário
técnico racional. Esta talvez seja a única função que a poiêtikê technêpode
alguma vez ter procurado cumprir, mas é desnecessário fazer quaisquer
conjecturas a esse respeito. Também se segue, por outro lado, seja como for,
que um ethoscomum pode bem ser erróneo e ao mesmo tempo ser a expressão de um
facto do mundo. Que as expectativas partilhadas denotadas por uma reacção moral
partilhada possam ser erróneas leva-nos a suspeitar da robustez do realismo
moral normalmente imputado às posições assumidas por Aristóteles na Poética.
Embora as suas salvaguardas a respeito de uma 'correcção poética' abram as
portas à possibilidade algo remota de ilusões colectivas (por exemplo, o forte
de Houdini), não há propriamente razão para fazermos soar um alarme monista.
Para todos os efeitos, é justamente por a relação entre arte e pessoas não ser
uma relação causal necessária (ou justamente por não haver aqui uma lei) que
não nos devemos preocupar com tal coisa a que se pudesse chamar uma ilusão
universal.
Por fim, não é de admirar que o género de cenas de reconhecimento a que
Aristóteles concede prioridade técnica seja, como vimos, o reconhecimento com
peripécia.70 Recordemos que a peripécia consiste na "mudança dos acontecimentos
para o seu reverso, mas (...) de acordo com o princípio da verosimilhança e da
necessidade",71 uma mudança nos acontecimentos que vai contra (ou num sentido
especial, defrauda) as nossas expectativas normais sobre o mundo. Ao afirmar
que os incidentes que causam "temor e compaixão (...) são muito [mais]
facilmente suscitadas [ou causam muito mais impressão] quando se processam
contra a nossa expectativa" e ao mesmo tempo "por uma relação de causalidade
entre si",72 Aristóteles parece admitir, por um lado, que nunca esperamos que
alguém seja o causador acidental da sua própria desgraça, e, por outro lado,
que nos espanta sempre descobrir a fragilidade das nossas próprias
expectativas. Aquilo que a poiêtikê technê permite revelar nesses casos é,
então, não apenas que tínhamos expectativas (se quisermos: expectativas
opacas), mas, para além disso, que mesmo tais expectativas opacas têm uma forma
inerentemente racional, i.e. têm uma 'ordem natural', efeksês.73