Extracção de areia na praia de Calhetona (Ilha de Santiago, Cabo Verde):
causas, processos e consequências*
1. Introdução
A areia é um importante material inerte que tem múltiplas
aplicações, sendo porventura a mais genérica e
que envolve maiores volumes a relacionada com a
indústria da construção civil. A nível mundial, este
material tem sido amplamente utilizado no processo de
expansão urbana e industrial, criando empregos,
gerando capitais e, consequentemente, contribuindo
para o desenvolvimento da sociedade. Contudo, a sua
crescente e excessiva exploração é também causa de
diversos problemas ambientais identificados um pouco
por todo o mundo (e.g.,, Masalu, 2002; Lelles et al.,
2005; Ashraf et al., 2011).
Cabo Verde não é excepção ao modo como a extracção
de areia vem sendo feita nem às consequências que daí
advêm. Um pouco por todo o arquipélago, com particular
destaque para a Ilha de Santiago, onde se
localiza a capital do país, a extracção clandestina de
areia (e cascalho) para a construção civil tem sido realizada
nas faixas costeiras e nos leitos das ribeiras, de
forma desmedida e sem quaisquer planos de extracção e
de posterior recuperação das áreas degradadas (Gomes,
2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010; Lopes &
Cunha, 2012).
Na Ilha de Santiago, e no arquipélago de Cabo Verde
em geral, a exploração de areia era pouco significativa
até ao início dos anos 80 do Século XX, uma vez que
este inerte era utilizado apenas no revestimento das
paredes exteriores (de pedra) dos edifícios. A partir dos
anos 80, devido à migração das populações rurais para
as cidades, às remessas dos emigrantes, à melhoria das
condições de vida das populações, à mudança das técnicas
de construção e à liberalização de materiais de
construção civil, houve um enorme aumento na
construção de infra-estruturas e edifícios públicos e privados.
A utilização de areia, brita e cimento (blocos de
cimento) foi substituindo a utilização da pedra, e rapidamente
as casas de pedra se tornaram uma raridade
(Gomes, 2004).
A utilização de areia na construção civil generalizou-se
de tal modo que as consequências da sua exploração
rapidamente se tornaram bastante evidentes no arquipélago.
De facto, o impacte ambiental desta actividade
extractiva tornou-se de tal modo grave que, em 1997, o
governo cabo-verdiano se viu obrigado a criar
legislação proibindo a extracção e a exploração de areia
nas dunas, nas praias e nas águas interiores, com
excepção de casos devidamente autorizados (Decreto-Lei n.º 69/97, de 3 de Novembro).
No entanto, actualmente, e apesar da legislação e fiscalização
existentes, os problemas ambientais decorrentes
desta actividade estão ainda bem presentes, uma vez
que existem muitas pessoas que se dedicam à extracção
clandestina de areia.
A vulnerabilidade económica vivenciada pelas famílias
cabo-verdianas tem contribuído para a ineficácia da
legislação ambiental. Uma grande parte da população
vive no limiar da pobreza, pelo que a exploração de
recursos naturais tem sido utilizada de forma abusiva,
para garantir a sobrevivência de populações carenciadas
(Gomes, 2004). Paralelamente, a grande procura de
areia e brita, vem favorecendo a exploração clandestina
nas praias e ribeiras do arquipélago. Uma actividade
dominada por mulheres chefes de famílias pobres, sem
alternativas de emprego ou com baixa capacidade de
gerar auto-emprego (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira,
2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).
A Ilha de Santiago, onde reside mais de metade da
população do arquipélago, é de longe o maior mercado
de consumo de areia (Gomes, 2004; 2011). Este facto,
associado à escassez deste recurso mineral nas ilhas do
arquipélago e às difíceis condições de vida da população,
coloca as áreas extractivas das ilhas sob enorme
pressão (Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009;
Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012). De facto, segundo
Gomes (2004), actualmente, pode considerar-se que as
reservas de areia em Santiago e algumas outras ilhas se
encontram tecnicamente esgotadas. A extracção continua,
pois as areias são apanhadas, por vezes com
grande perigo, no mar ou na sequência de enxurradas
(Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010).
Em diversas ilhas do arquipélago são evidentes os
impactes ambientais negativos originados pela
extracção de areia marinha, tais como, perturbação da
linha da costa, salinização de solos agrícolas localizados
junto ao litoral, perturbação da fauna e da flora
costeiras e diminuição de espaços de lazer (Gomes,
2004, 2011; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012).
A praia de Calhetona é uma das muitas praias da Ilha de
Santiago e do arquipélago em geral, cuja degradação
está intimamente ligada à extracção da areia para a
construção civil. Assim, o presente trabalho, realizado
em 2012, teve como objectivos caracterizar a comunidade
que se dedica à extracção de areia na praia de
Calhetona, descrever a dinâmica da actividade
extractiva, avaliar a percepção que a comunidade tem
relativamente às consequências da sua actividade e descrever
os impactes ambientais resultantes da extracção
de areia.
No contexto dos arquipélagos atlânticos, a extracção
ilegal de areia nas praias não é um problema ambiental
exclusivo de Cabo Verde; também em São Tomé e
Príncipe esta actividade tem sido causadora de forte
erosão nas zonas costeiras (Costa, 2014). Nos arquipélagos
dos Açores e da Madeira, até pelas melhores
condições de vida das populações, a extracção ilegal de
areia não é um problema actual, embora possa ocorrer
pontualmente. No entanto, são bem conhecidos os
impactes ambientais negativos resultantes da extração
desregrada ocorrida durante a segunda metade do
século XX, como é o caso paradigmático da praia de
Santa Bárbara (Ilha de São Miguel, Açores) (Borges et
al., 2002).
2. Material e métodos
2.1. Área de estudo
O arquipélago de Cabo Verde, com uma superfície de
4033 km2 , situa-se no oceano Atlântico, a cerca de
450 km da costa africana, sendo constituído por dez
ilhas e alguns ilhéus (Fig. 1). A Ilha de Santiago,
integrada no conjunto das Ilhas de Sotavento (Fig. 1), é
a maior do arquipélago, com 991 km2 de superfície,
estando dividida administrativamente em nove municípios.
A praia de Calhetona localiza-se na costa nordeste
da Ilha de Santiago, no extremo sul do concelho
de São Miguel, na foz da ribeira dos Flamengos (Fig.
1). A bacia hidrográfica da ribeira de Flamengos (Fig.
1), com uma área de 30,8 km2, é uma das mais importantes
da ilha do ponto de vista dos recursos hídricos e
da produção agrícola. Os seus principais cursos de água
nascem no planalto da Serra Malagueta, com uma
altitude máxima de 1 063 m. Imediatamente a norte da
praia situa-se Ponta Calhetona, um pequeno bairro da
periferia da cidade de Calheta de São Miguel (sede do
concelho) onde reside a comunidade que se dedica à
extracção ilegal de areia na referida praia.
Figura 1 - Localização da Ilha de Santiago, da bacia hidrográfica de Flamengos, de Ponta Calhetona e da praia de Calhetona.
Em 2010, residiam no concelho de São Miguel, 15 648
habitantes, correspondentes a 5,7% da população da
ilha e 3,2% da população nacional (INE, 2010). Tratase
de uma população essencialmente rural (73,0%) e
maioritariamente feminina (55,1%) (INE, 2010).
São Miguel é um dos concelhos cabo-verdianos que
apresentam menores taxas de desemprego (4,9%), bem
abaixo da média da ilha (12,2%) e do país (16,4%),
contudo apresenta também a maior taxa de subemprego
(82,7%), muito acima da média da ilha
(54,1%) e do país (37,8%) (INE, 2014). À semelhança
do panorama nacional, o desemprego afecta mais os
homens (7,1% contra 3,8% nas mulheres), mas o subemprego
afecta mais as mulheres (86,5% contra 77,9%
nos homens) (INE, 2014).
A actividade económica, apesar da escassez e irregularidade
da precipitação, baseia-se essencialmente na
agricultura de regadio e de sequeiro. A pecuária e o
comércio são também actividades económicas importantes
no concelho, sendo a pesca um sector pouco
desenvolvido. O turismo vem ganhando espaço,
sobretudo o geoturismo e o ecoturismo.
2.2. Metodologia
Neste trabalho foi utilizada uma metodologia de estudo
de caso, maioritariamente qualitativa, tendo por base o
levantamento documental, a observação direta e a
recolha de informações através de questionário semiestruturado,
aplicado na localidade de Ponta Calhetona,
durante o mês de Fevereiro de 2012, a chefes de agregados
familiares que exercem a extracção clandestina
de areia na praia de Calhetona.
Optou-se por um questionário não muito extenso, por
forma a que os inquiridos pudessem responder sem
constrangimentos, não ocultando, assim, informações
importantes para este estudo (ver Supporting Information
I e II).
Relativamente à descrição da evolução/degradação da
praia de Calhetona nos últimos anos, na ausência de
dados cartográficos históricos, foi elaborada, com base
na memória de habitantes locais, a reconstituição do seu
aspecto físico no passado (anos 60) e efectuou-se a
comparação com a situação actual.
3. Resultados e discussão
3.1. Caracterização da comunidade
Na praia de Calhetona, a grande maioria (72%) dos
“chefes” dos agregados familiares que se dedicam à
extracção clandestina de areia são mulheres. Esta predominância
do sexo feminino, característica da actividade
extractiva em Cabo Verde, deve-se à forte emigração
da população masculina, muitas vezes deixando
para trás mulher e filhos, à baixa escolaridade e à
limitada ou nenhuma formação qualificada das
mulheres, e ainda, a outros factores sociais e culturais,
com destaque para a gravidez precoce e consequente
obrigatoriedade de assumir o papel de chefe de família
(Gomes, 2004; Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010;
Lopes & Cunha, 2012).
No que respeita à estrutura etária, verifica-se que 19
indivíduos têm idades compreendidas entre 40 e 59
anos, representando cerca de três quartos (76%) dos
inquiridos (Fig. 2). Apesar de a idade da totalidade dos
inquiridos variar entre os 20 e os 59 anos (Fig. 2), isto
não significa que apenas pessoas nesta faixa etária se
dediquem à actividade extractiva. De facto, nesta praia,
à semelhança do que ocorre em muitos outros locais da
Ilha de Santiago onde se extrai areia (Afonso & Oliveira,
2009; Lopes, 2010; Lopes & Cunha, 2012), a
extracção é efectuada por grupos familiares que
incluem crianças e idosos na sua composição.
Os inquiridos são todos naturais da freguesia de Calheta
de São Miguel e todos têm habitação própria em Ponta
Calhetona. São casas simples, algumas com sinais evidentes
de degradação, com pequenas divisões, energia
eléctrica e água canalizada e algumas com casa de
banho. Ponta Calhetona é um bairro relativamente
recente, onde a grande maioria (84%) dos inquiridos
reside há 10 a 29 anos (Fig. 3), reflectindo a migração
das populações rurais para as cidades, localizadas no
litoral, ocorrida nos finais dos anos 80 e princípios dos
anos 90.
No que concerne ao número de anos de dedicação à
extracção clandestina de areia na praia de Calhetona,
verifica-se que 16% dos inquiridos desenvolve esta
actividade há menos de 10 anos, 64% há 10 a 19 anos e
20% há 20 a 29 anos. Verifica-se assim que cerca de
dois terços dos inquiridos se iniciou nesta actividade na
década de 90, grosso modo, tirando proveito do enorme
aumento da procura de areia pela indústria de
construção civil que então se fez sentir.
As reduzidas percentagens de inquiridos com menos de
40 anos de idade (Fig. 2) e de inquiridos que se
dedicam à extracção há menos de 10 anos estão maioritariamente relacionadas com factores como a emigração,
o aumento dos níveis de escolaridade e a opção
por actividades profissionais mais seguras e legais.
Além disso, este recurso natural está (praticamente)
esgotado e a fiscalização tende a aumentar.
Figura 2 – Distribuição de idades dos inquiridos.
Figura 3 - Número de anos de residência em Ponta Calhetona.
Quanto ao grau de instrução, uma pequena minoria dos
inquiridos (16%) não possui qualquer habilitação literária,
enquanto 80% possui a instrução primária e 4%
concluiu o ensino secundário. No entanto, e apesar dos
baixos níveis de escolaridade apresentados pela grande
maioria dos inquiridos, estes revelam grande preocupação
em investir na instrução dos descendentes para
que estes possam ter melhores condições de vida no
futuro. De facto, os seus filhos e netos frequentam a
escola, em número muito significativo, do ensino básico
ao ensino superior. Aliás, no universo em estudo,
apenas uma criança em idade escolar não frequenta a
escola.
Em Cabo Verde o ensino básico é gratuito e tem uma
duração de seis anos, envolvendo crianças dos seis aos
doze anos de idade. No que diz respeito ao encargo
educativo com os descendentes que frequentam outros
graus de ensino (secundário, médio e superior), 12%
dos inquiridos afirma ter ajuda de familiares residentes
na diáspora, enquanto os restantes recorrem aos serviços
de apoio sócio-educativo ou, quando não conseguem
a comparticipação desses serviços, vendem
animais de criação (vacas, cabras, porcos) ou pedem
ajuda de familiares e amigos. Estes dados diferem dos
obtidos por Lopes (2010), junto dos agregados familiares que se dedicam à extracção de areia nas ribeiras
de Flamengos e Principal, no concelho de S. Miguel, e
na Cuba (ribeira das Pratas) no concelho de Tarrafal, os
quais revelaram que 30% dos filhos dos inquiridos não
frequentavam a escola.
Todos os inquiridos têm pelo menos dois filhos, sendo
que mais de metade (56%) tem cinco ou mais filhos.
Consequentemente, cerca de dois terços (64%) dos
agregados familiares têm, pelo menos, seis elementos
(Fig. 4). A dimensão média destes agregados familiares
(6,2 elementos) é claramente superior ao valor registado
no concelho (4,4 elementos) (INE, 2010). Os agregados
familiares dos inquiridos apresentam composição muito
diversificada, podendo incluir, para além dos inquiridos
e dos seus cônjuges, os pais e os filhos de pelo menos
um dos elementos do casal, os netos e até filhos de um
familiar ou de uma pessoa com estreita relação de amizade.
Relativamente à actividade profissional, todos os
inquiridos do género feminino afirmaram ser
domésticas, enquanto os do género masculino revelaram
desempenhar outras actividades. As actividades
“domésticas” das mulheres não se resumem apenas às
lides de casa, incluem ainda outras actividades, como
agricultura, silvicultura e pecuária. Os homens desempenham
actividades remuneradas ligadas ao sector primário,
como agricultura, pecuária e silvicultura, bem
como a outros sectores de actividade, nomeadamente,
funcionalismo público, guarda-florestal e trabalho por
conta própria (carpinteiro e pedreiro).
O processo de extracção de areia na praia da Calhetona
não está dependente da maré, pois, contrariamente ao
que acontece noutras praias da ilha, nesta a extracção
não se realiza dentro de água, mas está fortemente condicionada
pela fiscalização. Assim, a grande maioria
(88%) dos inquiridos procede à extracção do ocaso ao
raiar do dia, pois sob a “protecção” da escuridão da
noite dificilmente são detectados pelos agentes fiscalizadores
e, caso os vislumbrem ao longe, podem
esconder-se ou fugir mais facilmente. Os locais da
extracção são também cuidadosamente escolhidos, isto
é, locais onde exista areia de melhor qualidade e onde
seja maior a possibilidade de escapar às autoridades. Os
restantes 12% realizam a extracção durante o dia, pois a
necessidade torna-os menos inibidos, extraindo areia na
praia sempre que seja possível, independentemente dos
riscos corridos.
Os utensílios mais utilizados na extracção são a pá, utilizada
por 48% dos inquiridos e o balde (60%),
enquanto os mais utilizados no transporte até ao local
de armazenamento são a banheira (56%) e os sacos
(32%). Os sacos são também muito utlizados no armazenamento
do material. Por ser uma actividade clandestina,
o armazenamento é feito em lugares afastados
do local da extracção, de forma a evitar problemas com
as autoridades. A grande maioria (88%) dos inquiridos
armazena a areia nas proximidades ou mesmo no
interior de suas casas, os restantes (12%) fazem o armazenamento
noutro lugar. Este cuidado no armazenamento
da areia em lugar seguro revelado pela maior
parte dos inquiridos, contrasta com a situação relatada
por Lopes (2010), na praia de Cuba, onde a areia era
armazenada nas vizinhanças da habitação ou junto à
praia, e reflecte a maior pressão exercida pela fiscalização
na praia de Calhetona e, em menor escala, a
maior probabilidade de ocorrência de roubos.
No caso em que o armazenamento é efectuado longe da
habitação, a venda é processada directamente nesse
local, mediante a combinação estabelecida entre as
partes interessadas.
Figura 4 - Número de indivíduos por agregado familiar.
Questionados sobre os motivos da extracção de areia,
28% dos inquiridos afirma não ter outra fonte de rendimento,
estando a sua sobrevivência condicionada à
actividade extractiva. Os restantes 72% praticam a
extracção de areia para obter um rendimento suplementar.
O facto de quase três quartos dos inquiridos exercerem
actividades complementares à extracção de areia,
mostra que a venda de areia não é uma actividade rentável
a ponto de permitir melhorar as condições de vida.
De facto, aqueles que têm apenas a venda de areia como
base do sustento familiar afirmam que o lucro desta
actividade extractiva dá apenas para cobrir as necessidades
básicas da família.
Sendo uma comunidade rural, não é de estranhar que as
principais actividades complementares à extracção de
areia sejam a agricultura, a pecuária e a silvicultura.
Curiosamente, apesar da grande proximidade do mar, e
à semelhança do que ocorre no concelho, a pesca é
apenas praticada por uma minoria dos inquiridos (cerca
de 10%).
Quase todos os inquiridos (92%) afirmaram já ter sentido
algum tipo de constrangimento durante a sua actividade
clandestina, incluindo detenções e pagamento de
coimas, acidentes, doenças, roubos e agressões físicas.
Como consequência dessa actividade, cerca de dois
terços (68%) dos inquiridos já foram detidos pelas autoridades
e 80% já pagaram coimas de 1 000$00 a
2 500$00 (circa 9 a 23 €). Em caso de detenção, o indivíduo
só é libertado após o pagamento da coima.
Os acidentes foram referidos por cerca de metade
(52%) dos inquiridos, principalmente ferimentos provocados
por objectos cortantes enterrados na areia. Os
inquiridos fazem referência a um guarda, que no passado
fiscalizou a praia de Calhetona, que em locais previsivelmente
invadidos pelos extractores enterrava na
areia tábuas com pregos e anzóis atados a uma haste de
metal por linhas e espinhos de plantas, manifestamente
na tentativa de surpreender e magoar os apanhadores de
areia. Vale a pena referir que esta abordagem tão
agressiva por parte de um guarda é uma excepção à
regra, uma vez que, normalmente, a acção das autoridades
tenta ser mais pedagógica do que punitiva.
As doenças referidas por 40% dos inquiridos incluem
dores de coluna e de cabeça e febre, devida aos ferimentos
sofridos.
Os roubos são referidos por 36% dos inquiridos, ocorrendo
principalmente sobre a areia armazenada em
locais afastados da residência. Durante a noite, indivíduos
supostamente combinados com camionistas
roubam esse material. As agressões dominam a estatística
dos constrangimentos sofridos, 88% dos
inquiridos afirmam já ter sido vítimas de algum tipo de
agressão resultante de lutas entre grupos rivais (intimidação, ameaça, correctivos) e de desacatos à autoridade.
Quanto ao processo de venda, na praia de Calhetona,
como consequência da pressão da fiscalização, a areia é
predominantemente vendida ao saco. Apenas um dos
inquiridos referiu a venda à carrada como sendo a mais
frequente, mas, mesmo neste caso, a areia é transportada,
até à casa do comprador, em sacos até completar
a referida carrada. Considerando que uma Toyota
Dyna 280 tem capacidade para transportar 4500 kg a
5000 kg e que um saco de areia leva cerca de 50 kg,
para completar uma carrada, são necessários 90 a 100
sacos. A entrega da areia aos compradores é sempre
efectuada durante a noite e madrugada, de modo a
evitar as coimas e a apreensão da areia e da viatura
pelas autoridades.
Normalmente, quem compra a areia aos sacos são particulares
residentes nas redondezas. O valor a pagar por
um saco de areia é de 300$00 a 400$00 (circa 3 a 4€).
O preço pode ser mais reduzido se o comprador pretender
adquirir uma quantidade razoável de areia ou se
for um cliente regular ou alguém muito próximo do
vendedor.
Para 76% dos inquiridos, o preço de venda de uma carrada
(Toyota Dyna 280) de areia é de 7000$00 a
8000$00 (circa 64 a 73€). 20% dos inquiridos vende a
areia por mais de 8000$00 e apenas 4% a vende por
valores entre 6000$00 (circa 55€) e 7000$00.
Cerca de dois terços (68%) dos inquiridos referem que
vendem a areia a camionistas, 40% vende a
empreiteiros de construção civil e todos vendem a particulares.
Os camionistas são os grandes beneficiários
desta actividade, revendendo a areia dentro da localidade
por 15000$00 (circa 135€), isto é, praticamente
o dobro do preço pago a quem extrai a areia.
No que concerne à capacidade de carga, a Toyota Dyna
280 equivale a metade de um camião Volvo. Um
camião Volvo de areia da praia de Cuba é vendido por
10000$00 (circa 90€) (Lopes, 2010) enquanto, em
Ponta de Calhetona, uma carrada de areia de uma
Toyota Dyna 280, custa no máximo 8000$00 (circa
73€). Verifica-se, assim, que para se adquirir a quantidade
areia equivalente a um camião Volvo na praia de
Calhetona é necessário desembolsar 16000$00 (circa
145€), ou seja, a carrada é 60% mais cara nesta praia do
que na praia de Cuba.
A preferência pela Toyota Dyna 280 para o transporte
de areia em Ponta Calhetona deve-se à capacidade
destas viaturas se deslocarem facilmente pelas vielas da
localidade, apanhando o material com rapidez, e
fugindo facilmente às autoridades, devido às velocidades
que consegue atingir com o seu motor turbo.
Relativamente à percepção quanto aos impactes resultantes
da respectiva actividade extractiva na praia de
Calhetona, todos os inquiridos revelam estar plenamente
cientes de que esta tem diversos impactes
ambientais e económicos negativos.
Genericamente, os inquiridos concordam que a sua
actividade contribui para o aumento da erosão marinha
e consequente recuo da linha da costa, é responsável
pela perda da qualidade de areia da praia, é prejudicial
para a nidificação das tartarugas e para o turismo balnear
e provoca a salinização das águas subterrâneas nas
áreas próximas da praia. No entanto, os inquiridos
também são unânimes em afirmar que, para manterem
as condições de vida das suas famílias, não encontram
outra alternativa que não seja a extracção ilegal de
areia.
Esta consciência de que a actividade extractiva que
desenvolvem é prejudicial para o ambiente é comum à
maioria dos apanhadores de areia da ilha de Santiago
(Afonso & Oliveira, 2009; Lopes, 2010).
3.2. Evolução da praia de Calhetona
A extracção de areia na praia de Calhetona terá tido
início na década de 70 do século passado. Contudo,
nessa altura, os impactes ambientais eram pouco significativos.
A partir do final dos anos 80, com a migração
das populações rurais para as cidades e o consequente
crescimento da indústria da construção civil, a
extracção intensificou-se e prolongou-se, sem qualquer
regulamentação, até 1997, tendo deixado marcas profundas
na praia. Após a implementação do Decreto-Lei
nº 69/97, de 3 de Novembro, que visava disciplinar a
extracção e a exploração de areia, a praia, segundo os
habitantes locais, recuperou um pouco das características
anteriores com a reposição natural de areia, mas
ficou sempre distante do seu aspecto “original”, até
porque a extracção clandestina de areia nunca deixou de
ocorrer.
Há cerca de meio século, a praia de Calhetona estava
repleta de areia basáltica, com ausência total de cascalheiras,
cavas e penedões, e na maré baixa, a água do
mar ficava longe do grande afloramento rochoso que
actualmente divide a praia aproximadamente a meio
(Fig. 5).
Actualmente observa-se na praia de Calhetona a existência
de penedões e de uma extensa lagoa permanente,
de água salgada, paralela à costa, e o recuo da linha de
costa, particularmente visível durante a maré alta,
quando as ondas passam o referido afloramento
rochoso, dividindo a praia ao meio (Fig. 6B). Mesmo na
maré baixa, dificilmente se consegue atravessar de um
lado para outro sem se tocar na água, uma vez que as
ondas batem directamente no sopé do afloramento (Fig.
6A). Ao longo do tempo, com a contínua actividade
extractiva, o nível da areia da praia sofreu um desnivelamento
considerável, verificando-se o aumento significativo
da quantidade relativa de cascalho e a existência
de cavas resultantes da extracção recente de areia
(Supporting Information III).
Figura 5 - Aguarela de Sidney Zego representando a reconstituição do aspecto físico da praia de Calhetona nos anos 60,
durante a maré baixa. R - Grande afloramento rochoso usado como referência para evidenciar o recuo da linha de costa.
Figura 6 - Aspecto físico actual da Praia de Calhetona. A - Nível do mar na maré baixa; B - Nível do mar na maré alta e lagoa
permanente; R - Grande afloramento rochoso usado como referência para evidenciar o recuo da linha de costa.
Outro impacte negativo da extracção de areia sobre o
ambiente refere-se à desova da tartaruga. Actualmente,
a praia de Calhetona, praticamente um amontoado de
cascalheiras, não apresenta condições para a desova das
tartarugas, pois estes animais necessitam de praias com
areia abundante para depositar os seus ovos. Segundo
testemunhos de habitantes locais, no passado, as tartarugas
depositavam uma quantidade significativa de
ovos na praia de Calhetona, mas actualmente já quase
não se observa a sua presença na praia.
A formação da lagoa permanente acima referida, frente
ao mar, tem facilitado a intrusão salina, que os agricultores
identificam pelo actual “sabor amargo” da água
de rega, e a consequente salinização dos solos que se
localizam nas proximidades da praia. A qualidade de
recursos hídricos a jusante da ribeira de Flamengos inspira
cuidados das entidades competentes, no sentido de
preservar e garantir a sustentabilidade agrícola na bacia
hidrográfica dos Flamengos. Neste momento, há propriedades
agrícolas nas proximidades da praia que já
deixaram de produzir devido à salinização da água e
vários agricultores locais têm revelado a sua preocupação
em relação aos investimentos feitos nas suas
propriedades agrícolas, cujos rendimentos vêm diminuindo
gradualmente ao longo dos anos.
A extracção de areia na praia de Calhetona tem também
impacte económico negativo, nomeadamente sobre as
actividades turísticas. No passado, a praia de Calhetona
era muito frequentada por locais e turistas. A quantidade
e a qualidade da areia que ali existia proporcionavam
momentos agradáveis às pessoas, as quais
depois do banho de mar praticavam diversas modalidades
desportivas na praia. Actualmente, a única actividade
de lazer que se realiza nesta praia é a celebração
anual do Dia de Cinzas, com música, bancas de comes e
bebes e, por vezes, feira de produtos agrícolas.
A extracção de areia realizada no areal é a causa principal
da degradação das características da praia de
Calhetona. No entanto, a extracção realizada noutros
locais também contribui para essa degradação, ao
limitar a reposição natural da areia. A extracção de
areia no interior da bacia hidrográfica de Flamengos
reduz a quantidade de sedimentos que é transportada
para a praia pelas torrentes e a extracção nas praias a
norte de Calhetona reduz a quantidade de areia
arrastada para a praia, de norte para sul, pela deriva
litoral.
4. Considerações finais
A extracção ilegal de areia em Cabo Verde é tradicionalmente
dominada por mulheres, uma vez que são
elas que chefiam os grupos familiares que se dedicam a
esta actividade, no entanto, quem principalmente beneficia
com esta actividade são homens, os camionistas
que revendem a areia pelo dobro do preço que pagam às
mulheres extractoras.
O balanço entre os impactes positivos e negativos resultantes
desta actividade extractiva pende claramente para
o lado negativo. Os únicos impactes positivos são económicos,
fornecimento de areia para a indústria da
construção civil e criação de emprego. Os impactos
negativos são principalmente ambientais, a degradação
da praia, o aumento da erosão marinha, a perda de biodiversidade
e a salinização das propriedades agrícolas
vizinhas, mas também económicos, a redução da produtividade
agrícola e a redução das receitas do turismo,
ambos directamente relacionados com os impactes
ambientais, e a perda de receita fiscal. Infelizmente, os
impactes económicos positivos, de curto prazo, não são
suficientes para recuperar os impactes ambientais negativos,
de longo prazo, como os acima referidos.
O presente estudo revela, assim, o domínio do económico
sobre o sustentável, algo que tem gerado uma
relação conflituosa entre a satisfação dos interesses
individuais, a preservação dos recursos naturais e a
legislação ambiental. Neste sentido, torna-se urgente a
criação de alternativas eficazes, visando a resolução da
situação das famílias que efectuam a extracção clandestina
de areia, mas também atender à demanda desse
inerte pela indústria da construção civil.
Embora o Programa de Luta Contra a Pobreza, que
tinha como objetivo promover a redução sustentada e
durável da pobreza no país, tenha envolvido famílias
que se dedicam à extracção de areia, as medidas do
Governo, como a fiscalização das praias e a legislação
ambiental, o incentivo aos investidores privados para
importarem areia de países vizinhos ou os investimentos
na indústria de produção de inertes, não foram
ao encontro das reais necessidades da população. De
facto, estas medidas visavam acabar com a extração
ilegal de areia, mas não criavam alternativas de sobrevivência
para quem se dedica a essa actividade. E assim
sendo, a extracção clandestina de areia manteve-se bem
activa.
A própria fiscalização, seja por falta de meios, falta de
pessoal, ou simplesmente porque os agentes têm consciência
de que quem se dedica a esta actividade o faz
por não ter outras alternativas de sustento, não é eficaz.
Por exemplo, apesar da praia de Calhetona, onde a fiscalização
é muito maior do que noutros locais da ilha,
dispor de guarda permanente e onde facilmente se
conseguiria identificar os infractores, pois praticamente
todos se conhecem, a areia continua a desaparecer.
O Governo, através do ministério que tutela a área do
ambiente, as autarquias e a sociedade civil têm papel
preponderante na preservação dos recursos naturais, no
sentido de promover uma visão sustentável em qualquer
exploração. Para que tal aconteça, é necessário o acompanhamento
sistemático das actividades susceptíveis de
provocar impactes ambientais e a definição de políticas
claras vocacionadas ao poder local, envolvendo, assim,
o maior número possível de intervenientes chaves nos
projectos de desenvolvimento comunitário. A
exploração de recursos naturais requer, acima de tudo,
princípios ancorados na ética ambiental. É necessário
apostar fortemente na educação e consciencialização
dos indivíduos para a utilização racional de recursos
naturais, mas não deixando de identificar e penalizar os
infractores. Em suma, é necessário assegurar a
divulgação e o cumprimento da legislação ambiental e
criar alternativas para os indivíduos que procuram o
sustento na extracção clandestina de areia.