ENSAIOS DE ESTABILIZAÇÃO TARTÁRICA EM
VINHOS PORTUGUESES: ESTUDO COMPARATIVO
DA ELECTRODIÁLISE E DE UM MÉTODO
TRADICIONAL
INTRODUÇÃO
O ácido tartárico (COOH-CHOH-CHOH-COOH) é um ácido orgânico
característico dos frutos, nomeadamente da uva, encontrando-se no vinho em
concentrações consideravelmente elevadas, entre 2 e 6 g/L (Ribéreau-Gayon
et al., 1998). Durante a transformação do mosto em vinho produz-se etanol,
o que diminui a solubilidade do hidrogenotartarato de potássio (KHT), principal
sal do ácido tartárico presente no meio. Assim, o vinho encontra-se
sobressaturado em KHT, o que possibilita a ocorrência de precipitados deste
sal. Este fenómeno depende de factores como a temperatura, o teor alcoólico,
o teor em colóides protectores, a presença de núcleos de cristalização, etc. A
acrescentar a estes factores é também de referir que este sal possui uma zona
de meta-estabilidade alargada, o que torna a ocorrência de precipitações difícil
de prever (Abgueguen e Boulton, 1993).
Em face das condições físico-químicas acima descritas, um vinho não tratado
corre o risco de formação de depósitos cristalinos de KHT. Esta cristalização
é portanto perfeitamente natural, inócua para a saúde mas, se ocorrer em
garrafa prejudica a apresentação dos vinhos colocados no comércio.
A realidade mostra que a maioria dos vinhos produzidos é submetida a
tratamentos de estabilização tartárica. Os produtores-engarrafadores portugueses
utilizam para este fim principalmente o método da estabilização pelo frio, que
consiste no arrefecimento prolongado do vinho abaixo da temperatura de
cristalização do KHT, mas acima do ponto de congelação do próprio vinho.
Este tratamento destina-se a criar as condições favoráveis à precipitação do
KHT excedentário, de modo a eliminar a sobressaturação.
Encontrar o binómio tempo-temperatura ideal para esta operação, constitui
hoje em dia uma operação complicada para muitas empresas, dado que utilizam
com este fim metodologias pouco objectivas. Um outro factor de difícil
optimização nos tratamentos pelo frio consiste, por um lado, em decidir se no
tratamento se efectua ou não sementeira de cristais de KHT (núcleos de
cristalização para acelerar o tratamento), e em caso afirmativo, qual a
quantidade e granulometria.
As limitações do tratamento convencional levaram a investigação enológica
a procurar métodos de estabilização tartárica alternativos à cristalização pelo
frio, tais como a utilização de resinas de troca iónica, aplicação da electrodiálise
e adição de manoproteínas.
A electrodiálise (ED) é um processo que permite separar espécies iónicas em
solução (portanto com carga eléctrica) de moléculas neutras, através da
aplicação de um campo eléctrico. Isto é conseguido através de membranas de
permeabilidade selectiva (Gavach, 1992). As membranas utilizadas em
electrodiálise são, portanto selectivas aos iões presentes no vinho, consoante
a sua carga (Figura 1). Existem dois tipos de membrana : as catiónicas, que
são permeáveis unicamente aos catiões (K+, Na+, Ca++), e as aniónicas que são
permeáveis unicamente aos aniões (anião hidrogenotartarato, abreviadamente
designado HT-). Esta propriedade é conseguida pela introdução de grupos
químicos carregados que permanecem ligados à matriz polimérica.
Já foram efectuados numerosos estudos destinados a caracterizar o melhor
possível a sobressaturação tartárica dos vinhos, por forma a controlar a
eficiência dos tratamentos de estabilização e avaliar os riscos de cristalização.
O grande número de testes de estabilidade tartárica propostos testemunha a
complexidade do problema, bem como a dificuldade em compreender
cabalmente os fenómenos em causa (Würdig et al., 1982 ; Maujean et al.,
1985 ; Müller-Späth, 1985 ; Domeizel et al., 1992, 1993).
A possibilidade de prever o grau de desionização (diminuição percentual da
condutividade do vinho) a aplicar, e a invenção de um sistema de controlo da
electrodiálise do vinho para uma eficaz estabilização tartárica foram métodos
patenteados em França, por investigadores do INRA - Institut National de la
Recherche Agronomique (Escudier et al., 1993). Na sequência destes inventos
o INRA prosseguiu uma estratégia de estudo e ensaios sobre aplicação da
electrodiálise em diversos vinhos franceses (Cottereau, 1993 ; Moutounet et
al., 1994, 1997).
Para efectuar os ensaios de electrodiálise, escolhemos dois vinhos portugueses
de grande impacto sócio-económico : Vinhos Verdes e Vinhos do Porto. Ao
decidir estudar dois vinhos de características muito diferentes entre si (no que
respeita, por exemplo ao teor alcoólico, teor em açúcares, condutividade,
presença/ausência de gás carbónico, etc...), tivemos em mente abranger dois
casos de estudo que definem um domínio, no interior do qual se encontra uma
gama variada de outros vinhos. Simultaneamente, pretendemos abarcar dois
produtos de características completamente diferentes do que fora até agora
estudado no estrangeiro.
Do conjunto de ensaios realizados, parte dos resultados obtidos em Vinhos
Verdes (no ano de 1997) encontram-se publicados no artigo resultante de uma
comunicação apresentada no XXIII Congresso Mundial da Vinha e do Vinho
(Gonçalves et al., 1998), assim como parte dos resultados obtidos em Vinhos
do Porto (no ano de 1998) encontram-se publicados no artigo resultante de
uma comunicação apresentada no 6ème Symposium International d'nologie
(Gonçalves et al., 1999). Pretende-se com este artigo facultar ao leitor uma
perspectiva global dos resultados comuns obtidos com os dois tipos de vinho.
MATERIAL E MÉTODOS
Método de avaliação da intensidade do tratamento por electrodiálise
Antes de efectuar um tratamento por electrodiálise, é necessário conhecer a
taxa de desionização por forma a obter um vinho estável. Para obter este
parâmetro, foi utilizado o teste desenvolvido pelo INRA (França), baseado na
medição do abaixamento de condutividade do vinho a -4ºC (-9ºC, no caso
dos Vinhos do Porto), após a adição de cristais de KHT com agitação durante
4 horas (Biau e Siodlak, 1997). Os resultados são extrapolados para 24 horas
e o abaixamento de condutividade obtido é utilizado para estabelecer o valor
de condutividade a atingir pelo equipamento de electrodiálise. Este teste, que
tem como objectivo determinar o estado de instabilidade tartárica, foi efectuado
para cada lote de vinho utilizado nos ensaios.
Características da instalação de electrodiálise utilizada nos ensaios
Em todos os vinhos (Verdes e Portos), os ensaios foram realizados numa
instalação piloto composta por um empilhamento de electrodiálise clássico a
dois compartimentos, com 30 células e uma superfície útil de 3 m2 de
membranas (a concepção e construção da instalação é da responsabilidade da
empresa Eurodia Industrie, França).
Análises físico-químicas efectuadas em Vinhos Verdes
Nos Vinhos Verdes, efectuaram-se determinações de potássio, sódio, cálcio e
magnésio, por espectrofotometria de absorção atómica, segundo os
procedimentos definidos pelas Normas Portuguesas NP 3685 (CT83, 1991),
NP 3594 (CT83, 1990a), prNP 4082 (CT83, 1990b) e pelo OIV (OIV, 1990),
respectivamente.
Ainda em Vinhos Verdes, efectuaram-se determinações de ácido L(+)-tartárico
por fluxo contínuo segmentado, com base nos princípios do método de Rebelein
(Curvelo-Garcia e Godinho, 1990), do ácido L(-)-málico e do ácido L(+)láctico por fluxo contínuo segmentado (Curvelo-Garcia, 1988), respectivamente.
Dado que no meio existem aniões correspondentes a estes ácidos, os quais
constituem as espécies iónicas que atravessam efectivamente as membranas
de electrodiálise, os ácidos L(+)-tartárico, L(-)-málico e L(+)-láctico
(constituintes dos Vinhos Verdes), serão designados neste artigo anião tartarato,
anião malato, e anião lactato, respectivamente.
Análises físico-químicas efectuadas em Vinhos do Porto
Nos Vinhos do Porto, efectuaram-se determinações de potássio, sódio, cálcio
e magnésio, por espectrofotometria de absorção atómica, segundo os
procedimentos definidos pelos métodos internos do Instituto do Vinho do
Porto, MIVP-39 (IVP, 1997a), MIVP-38 (IVP, 1997b), MIVP-04 (IVP, 1997c)
e MIVP-41 (IVP, 1997d), respectivamente.
Ainda em Vinhos do Porto, efectuaram-se determinações de ácido L(+)-tartárico
pelo método químico-colorimétrico, segundo os procedimentos definidos pelo
método interno do Instituto do Vinho do Porto MIVP-35 (IVP, 1997g) e dos
sulfatos e cloretos, por fluxo contínuo segmentado (método químicocolorimétrico), segundo os princípios dos métodos internos do Instituto do
Vinho do Porto, MIVP-30 (IVP, 1997e) e MIVP-31 (IVP, 1997f),
respectivamente.
Pelas mesmas razões invocadas no parágrafo anterior, o ácido L(+)-tartárico
(constituinte dos Vinhos do Porto) será designado neste artigo anião tartarato.
Determinação da condutividade
Determinou-se a condutividade a 20ºC em todos os vinhos, antes e depois dos
diferentes tratamentos, utilizando um condutivímetro marca «CRISON», modelo
«micro CM 2201».
Ensaios realizados em Vinhos Verdes
Os ensaios foram realizados nas instalações da empresa vitivinícola Quinta do
Minho, Agricultura e Turismo, S.A. (Póvoa do Lanhoso), em Julho de 1997
e em Janeiro de 1998, tendo-se utilizado vinhos v.q.p.r.d. denominação «Vinho
Verde».
Em 1997 foram utilizados três vinhos provenientes da vindima de 1996 (dois
brancos e um tinto). Por electrodiálise foram tratados lotes de 4000 litros de
cada um destes vinhos, e paralelamente outros lotes de 4000 litros foram
tratados pelo frio, à temperatura de -4ºC durante 2 dias, com sementeira de
cristais de KHT. Por motivos logísticos neste ano não foi possível efectuar o
tratamento do Vinho Verde tinto pelo frio, que apenas sofreu o tratamento por
electrodiálise.
Em 1998 foram utilizados dois vinhos provenientes da vindima de 1997 (um
branco e um tinto). Por electrodiálise foram tratados 16000 litros do vinho
branco e 1800 litros do vinho tinto. Paralelamente, 100 litros de vinho branco
foram estabilizados pelo frio, com sementeira de cristais de KHT à temperatura
de 0ºC durante 7 dias, e 4000 litros do vinho tinto foram estabilizados à
temperatura de -2 ºC durante 2 dias, ambos com sementeira de cristais de
KHT.
Ensaios realizados em Vinhos do Porto
Foram realizados ensaios de estabilização tartárica em Fevereiro de 1998 nas
instalações da empresa vitivinícola Sandeman & Cª., S.A. (Vila Nova de
Gaia), utilizando vinhos v.l.q.p.r.d., denominação «Vinho do Porto».
Utilizaram-se três vinhos, um branco e dois tintos, designados respectivamente
«White», «Ruby» e «Reserve». Para cada vinho, lotes de 4000 litros foram
tratados por electrodiálise e paralelamente foram tratados pelo frio outros
lotes de 4000 litros, à temperatura de - 6ºC durante 7 dias, sem adição de
núcleos de cristalização de KHT.
Análise sensorial
Todos os vinhos após os tratamentos de estabilização (pelo frio e por
electrodiálise) foram submetidos a análise sensorial, por testes de prova cega
(teste triangular). Foram organizadas sessões de prova na Estação Vitivinícola
Nacional (Dois Portos), na Divisão de Vitivinicultura e Fruticultura (DRAEDM
- Quinta de Sergude - Felgueiras), e no Instituto do Vinho do Porto. O
número de provadores variou entre 5 e 14 por sessão.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apresentam-se no Quadro I os valores de condutividade dos diferentes vinhos
em função do tratamento sofrido. Verifica-se uma diminuição de condutividade
que resulta da depleção da carga iónica dos vinhos, para os dois tratamentos
em estudo.
Pela comparação das condutividades dos vinhos tratados pelo frio e por ED
conclui-se que, regra geral, a diminuição de condutividade é mais acentuada
por electrodiálise. No entanto nos ensaios de 1997 em Vinhos Verdes a
diferença é pouco significativa quando comparada com os restantes ensaios.
Pode interpretar-se este facto pela discrepância entre as temperaturas a que
foram realizados os testes de avaliação da instabilidade tartárica (que serviu
para regular o equipamento de electrodiálise) e as temperaturas a que se
realizaram os tratamentos pelo frio. Efectivamente apenas nos ensaios de
Vinhos Verdes realizados em 1997 essas temperaturas coincidiram (-4 ºC),
donde a semelhança encontrada. Pelo contrário, nos ensaios de Vinhos Verdes
de 1998 o teste foi efectuado a -4 ºC enquanto que o tratamento pelo frio foi
realizado à temperatura de 0 ºC e de -2 ºC para o vinho branco e tinto
respectivamente. De igual modo, nos ensaios com Vinho do Porto o teste foi
realizado a -9 ºC, enquanto que o tratamento pelo frio foi realizado a -6 ºC.
As Figuras 2 e 3 apresentam a variação do teor nos principais catiões e aniões
em função do tratamento, para o caso dos Vinhos Verdes, ensaios de 1997 e
1998 respectivamente.
Relativamente aos ensaios de 1997, verifica-se que, apesar dos abaixamentos
de condutividade serem semelhantes, a diminuição de potássio é mais acentuada
com o tratamento pelo frio. A menor remoção por electrodiálise é compensada
(em termos de condutividade) pela remoção de outros catiões, nomeadamente
sódio, cálcio e magnésio. Observa-se o mesmo comportamento no que diz
respeito à remoção de aniões. Ou seja, por electrodiálise, à menor remoção
de ião tartarato, corresponde uma remoção de outros iões como o malato o
que não acontece pelo frio.
Nos ensaios de 1998 em Vinhos Verdes o tratamento por electrodiálise removeu
mais potássio e tartarato devido à maior intensidade deste tratamento, resultante
da temperatura a que foi efectuado o teste de avaliação da instabilidade
tartárica. De igual modo, o tratamento por electrodiálise promoveu uma
depleção de iões sódio, cálcio, magnésio e malato, facto que não ocorreu no
tratamento pelo frio.
A Figura 4 apresenta as concentrações dos diferentes iões nos Vinhos do
Porto antes e depois dos diversos tratamentos. Observa-se um comportamento
semelhante ao verificado nos Vinhos Verdes de 1998. Os iões potássio e
tartarato sofrem uma maior depleção pelo frio, sendo os únicos iões removidos
por este tratamento. Pelo contrário a electrodiálise promove a remoção de
outros iões como o sódio, cálcio, magnésio, sulfatos e cloretos.
Tendo em consideração o conjunto dos resultados apresentados, verifica-se
que pelo frio apenas os iões potássio e tartarato são removidos. Por outro lado
a electrodiálise remove para além destes iões, outras espécies iónicas,
nomeadamente cálcio, magnésio, malato e sulfato. A explicação para estes
resultados é provavelmente a seguinte: durante o tratamento pelo frio,
produzem-se unicamente cristais de hidrogenotartarato de potássio, pelo que
a nível de catiões, apenas o potássio é retirado. Pelo contrário, as membranas
catiónicas de electrodiálise, sendo preferencialmente permeáveis ao potássio,
deixam apesar disso passar uma certa quantidade de outros catiões. Por
exemplo, a quebra observada no teor em cálcio nos vinhos tratados por
electrodiálise é considerável (reduções de 20 a 30%), consoante os vinhos.
Riponi et al., (1992), chegaram a conclusões idênticas em ensaios de
electrodiálise com vinhos italianos.
No caso dos ácidos orgânicos (aniões), observa-se um comportamento idêntico
ao caso dos catiões. Por exemplo, o frio retira apenas iões hidrogenotartarato
enquanto que a electrodiálise retira uma pequena quantidade de iões malato
do vinho. A explicação para estes resultados é a mesma que propusemos para
os catiões : pelo frio precipita-se apenas KHT, enquanto que as membranas
aniónicas deixam também passar uma pequena quantidade de ião malato,
espécie iónica quimicamente muito semelhante ao hidrogenotartarato.
Os resultados da análise sensorial mostraram que os provadores não detectaram
diferenças estatisticamente significativas entre as amostras que sofreram os
dois tratamentos (Anónimo, 2000), o que significa que nem a cristalização
pelo frio nem a electrodiálise induziram modificações nas características
organolépticas dos vinhos estudados.
CONCLUSÕES
A electrodiálise mostrou ser uma técnica extractiva fiável, que permitiu a
diminuição da carga iónica dos produtos tratados. Nos ensaios realizados
neste estudo, obteve-se a prevenção dos riscos de precipitações tartáricas em
Vinhos Verdes e Vinhos do Porto, tendo as variações dos parâmetros da
análise físico-química obtido uma situação dentro dos limites previsíveis.
Constatou-se que a aplicação da electrodiálise na estabilização tartárica de
vinhos permite remover uma maior diversidade de iões do vinho do que é
conseguido pelo tratamento convencional. Para além das reduções dos teores
em potássio e hidrogenotartarato, observou-se uma diminuição de 20 a 30%
do teor em cálcio dos vinhos, o que é reconhecido como favorável na prevenção
de precipitações tardias de tartarato neutro de cálcio.
Os resultados da prova organoléptica, sugerem que os polifenóis, a matéria
corante e os compostos voláteis foram pouco afectados pelo tratamento por
electrodiálise. Isto é perfeitamente compreensível, se tivermos em consideração
que as membranas de electrodiálise são constituídas por uma matriz densa (e
não microporosa como as membranas de filtração), o que impede a migração
de moléculas demasiado grandes ou sem carga eléctrica, tais como os
constituintes da cor, do aroma, etc.
Apesar da presença de quantidades apreciáveis de dióxido de carbono nos
Vinhos Verdes, esse facto não constituiu obstáculo ao bom desempenho do
equipamento de electrodiálise. De igual modo, a presença de quantidades
apreciáveis de açúcares redutores nos Vinhos do Porto, a sua baixa
condutividade e seu elevado teor alcoólico, não constituíram obstáculos ao
bom desempenho do equipamento de electrodiálise.
O respeito pelas características organolépticas dos vinhos estudados foi
conseguido nos dois tipos de tratamento (frio e electrodiálise).