Um caso de dermatose perfurante adquirida
A Case of Acquired Perforating Dermatosis
ABSTRACT
We present a case of acquired perforating dermatosis (also known as acquired
perforating collagenosis) which is frequently associated with diabetes mellitus
and chronic renal failure. A 61 year old diabetic woman had a history of
umbilicated, pruritic papules and nodules, with a central keratotic plug,
located on the extensor surface of the lower limbs. The diagnosis of acquired
perforating dermatosis was made six years after the initial clinical
presentation. This article seeks to alert physicians to the existence of this
under-diagnosed condition with considerable psychosocial impact.
Keywords (Termos MeSH): Collagen Diseases; Skin Diseases; Diabetes Mellitus.
As doenças perfurantes são patologias em que ocorre migração transepidérmica de
componentes da matriz extracelular da derme, por inflamação e/ou degeneração.
Existem quatro tipos clássicos: Doença de Kyrle, Elastose perfurante
serpiginosa, Colagenose reactiva perfurante (CRP) e Foliculite perfurante. As
formas adquiridas são consideradas uma entidade distinta, a dermatose
perfurante adquirida (DPA).1 A sua prevalência atinge os 10% nos hemodialisados
do Reino Unido e da América do Norte.1-3 Na população diabética estima-se em
50%. No entanto, a DPA é pouco conhecida e pouco diagnosticada.2 Os principais
factores associados são a diabetes mellitus tipo 2 (DM2), a insuficiência renal
crónica (IRC), sobretudo se em hemodiálise (HD), a hipertensão arterial crónica
e a nefropatia a Imunoglobulina A.2-8 É mais comum na DM2 (72,7%) do que na DM
tipo 1 (27,3%).1,3 Surge em média 20,3 anos após o início da DM sem necessidade
de HD, 14,5 anos após o início da DM com necessidade de HD, e 5,3 anos após o
início da HD.1 Dois estudos mostraram que a grande maioria dos diabéticos
(90,9%) tem pelo menos uma complicação quando surge a CRP: nefropatia (90,9%),
retinopatia (81,8%), doença arterial periférica (45,5%) ou neuropatia
(45,5%).1,3 Nos indivíduos susceptíveis, o trauma superficial (frequentemente a
coceira devido ao prurido) provoca necrose das fibras de colagénio da derme com
consequente eliminação transepidérmica. Trata-se de um processo auto-limitado,
mas recorrente.2 A idade média de apresentação desta DPA é os 56 anos.3 As
lesões típicas são placas, pápulas e nódulos com 4 a 10 mm, que umbilicam em 3
a 5 semanas e regridem em 6 a 8 semanas, ficando com um tampão queratósico
muito aderente cujo destacamento pode sangrar. Posteriormente resta apenas uma
cicatriz ou mancha hiperpigmentada.1-5 As lesões localizam-se predominantemente
nas superfícies extensoras dos membros e das mãos (63,6%), tronco (59,1%) e
cabeça (27,3%), sendo mais frequente a localização múltipla (72,7%). Os
sintomas mais frequentemente associados são o prurido (72,7%) e a dor (9,1%).4
As lesões são reproduzíveis em 31% dos casos (fenómeno de Koebner).1-4 O
diagnóstico é clínico e histopatológico, implicando o cumprimento dos critérios
de Faver: histopatologia com eliminação transepidérmica de fibras de colagénio
necróticas basofílicas numa depressão epidérmica em forma de chávena; pápulas
ou nódulos umbilicados com centro queratósico aderente; e início depois dos 18
anos.1 O diagnóstico diferencial da CRP inclui as outras doenças perfurantes, o
prurigo nodular e o líquen plano hipertrófico.2,3 As terapêuticas disponíveis
são: emolientes;1,5 queratolíticos;2,8,9 anti-histamínicos;2,5,8 antibióticos
tópicos e per os;2 corticosteróides tópicos;1,8,9 retinóides tópicos e per
os;2,5,8,9 alopurinol;2,5,8,9 talidomida;2 psoraleno e radiação ultravioleta do
tipo A e B;1,2,5,8,9 crioterapia;1,8,9 e estimulação eléctrica dos nervos.8 A
única possível complicação é a impetiginação das lesões.1 Há casos de remissão
espontânea, após o controlo da DM, após transplante renal e após interrupção da
HD. No entanto, a recorrência é a regra.1,2,9
M é uma senhora de 61 anos, caucasiana, casada, habilitada com o 4.o ano de
escolaridade, empregada doméstica, natural de Portalegre e residente em Lisboa.
Encontra-se na fase VI do ciclo de Duvall e no 4.o nível da classificação de
Graffar. Os seus problemas de saúde relevantes incluem DM tipo 2 desde os 39
anos (sem qualquer complicação) e hipertensão arterial controlada desde os 43
anos. Aos 54 anos, M iniciou um quadro de pápulas e nódulos, com 6 a 10 mm,
umbilicados, com centro queratósico, muito pruriginosos, na face extensora da
perna direita, que cicatrizavam espontaneamente após algumas semanas com
hiperpigmentação residual. Este quadro recorria frequentemente, tendo sido
medicada com beclometasona tópica mas sem melhoria. Quatro anos depois, por
extensão do quadro à outra perna, foi enviada à consulta externa de
Dermatologia do seu hospital de referência. Dois anos mais tarde, e apesar do
seguimento regular na Dermatologia e da terapêutica com corticosteróide tópico,
o quadro aumentou de intensidade, levando M a recorrer novamente ao seu médico
de família (ver Figura 1 e 2). M encontrava-se preocupada com a natureza das
lesões e sobretudo com o impacto social das mesmas, recusando-se a usar peças
de vestuário que expusessem as pernas. Foram colocadas as hipóteses
diagnósticas de prurigo nodular e doença perfurante, tendo sido prescritos
calamina e eritromicina tópicos bem como hidroxizina oral. Concomitantemente,
foi solicitada uma biopsia cutânea noutro centro hospitalar. Quatro meses
depois, registava-se completa regressão do quadro (ver Figura 3) e a biopsia
confirmava o diagnóstico de DPA. Desde então, M sofreu apenas uma recorrência
que cedeu em poucos dias à terapêutica anteriormente prescrita.
Figura 1. Membros inferiores de M com lesões cutâneas
Figura 2. Face anterior do membro inferior direito de M com lesões cutâneas
Figura 3. Membros inferiores de M após a resolução das lesões cutâneas
O quadro clínico de M era típico de DPA. No entanto, é raro as lesões cutâneas
surgirem sem a presença de qualquer complicação da DM. Este facto, associado à
pouca divulgação desta patologia entre os profissionais de saúde, condicionou
um importante atraso no diagnóstico e na implementação de terapêutica adequada,
com prejuízo para M. Esperamos que este artigo sirva de alerta para a
existência de uma patologia pouco diagnosticada, com impacto psico-social
considerável e com perspectiva de se tornar cada vez mais prevalente devido ao
aumento da prevalência dos factores a si associados (DM, IRC, HD e hipertensão
arterial).