As normas da DGS: tempo de oportunidade e responsabilidade para os médicos de
família
Durante décadas, as normas e orientações clínicas de produção nacional emitidas
pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) e pelas sociedades científicas abrangiam
áreas restritas dos cuidados de saúde e eram produzidas e actualizadas a um
ritmo lento (algumas novidades anuais e ciclos de actualização de vários anos).
No ano de 2011, porém, temos assistido a uma produção de normas da DGS a um
ritmo crescente, totalizando 39 novas normas nos primeiros nove meses do ano e
atingindo apenas no mês de Setembro o número impressionante de 23 normas
emitidas. Estas normas têm incidido sobre os mais variados campos da prática
clínica, inclusive sobre o seu próprio processo de elaboração.
A Ordem dos Médicos (OM) e a DGS celebraram, a 5 de Setembro passado, um
protocolo de colaboração na elaboração de normas e na auditoria ao seu
cumprimento.1 A OM, detendo responsabilidade oficial pela qualidade do
exercício da Medicina em Portugal, tem estado arredada das orientações à
prática clínica, pelo que se aguardam com expectativa sinais concretos desta
colaboração.
Quase em simultâneo, a 8 de Setembro, é criada, pelo Ministério da Saúde, a
Comissão Científica para as Boas Práticas Clínicas, sendo explícito no despacho
que a cria a necessidade de as normas elaboradas pela DGS passarem por
"mais que um patamar de validação científica".2 A esta comissão, em
cuja composição se saúda a presença de quatro colegas médicos de família com
reconhecido currículo académico e de investigação científica (António Faria
Vaz, Alberto Pinto Hespanhol, Jaime Correia de Sousa e Vasco Maria), são
atribuídas as funções de "emitir parecer científico, a pedido do
director-geral da Saúde, sobre o conteúdo das orientações e normas de boa
prática clínica por este elaboradas, (…) assim como sobre a sua revisão e
actualização". Menos de um mês depois da criação desta comissão, boa
parte das normas publicadas pela DGS vinha já por ela validada.
Nas normas publicadas no último mês é mencionado um período de audição pública,
sendo formalmente convidadas a emitir parecer as sociedades científicas e
estando disponível na página da DGS uma funcionalidade que permite que qualquer
pessoa participe nesta audição, avaliando e sugerindo, com a devida
fundamentação, a reformulação de aspectos menos correctos. A audição pública de
cada norma decorre num período limitado de tempo (assinalado no início do
documento) que tem oscilado entre um e dois meses após a sua publicação.
Responsáveis da DGS vieram a público frisar que estas normas não são meras
orientações clínicas mas têm carácter vinculativo (prevendo-se a investigação
de eventuais incumprimentos), referindo ainda que "destinam-se sobretudo
aos médicos dos cuidados de saúde primários, por onde passam a maioria destes
doentes".3 Sendo os médicos hospitalares também responsáveis pelo
seguimento de muitos pacientes com as patologias abrangidas pelas normas e
sabendo-se que parte significativa das prescrições medicamentosas dos médicos
de família corresponde a renovação de prescrições iniciadas em consultas
hospitalares, não se encontra justificação para esta distinção entre os médicos
alvo das normas.
Por outro lado, como bem nos lembrou André Matalon,4 "guidelines não são
godlines" e a existência de normas desde sempre suscitou debate entre os
médicos. Apresentam vantagens evidentes como: poderem facilitar práticas mais
correctas técnico-cientificamente; serem particularmente úteis nas
especialidades mais abrangentes e aos profissionais em início de actividade; e
poderem ser utilizadas pelos responsáveis técnicos e políticos como indicadores
para avaliação dos profissionais. Mas as normas também apresentam perigos como:
o enquadramento da prática médica numa perspectiva simplista, menorizando
aspectos mais complexos e de difícil descrição ou quantificação; poderem
contribuir para a burocratização do exercício; serem elaboradas por vezes com
base em consensos ou em opiniões de peritos (em lugar da melhor evidência
científica) ou sob influência de conflitos de interesse (individuais ou através
do patrocínio de sociedades científicas); ou poderem obedecer a critérios
puramente economicistas, em detrimento dos critérios clínicos que visem o bem
maior do paciente.
O não cumprimento de normas por parte dos médicos pode consistir na adopção de
práticas diversas das recomendadas ou na inércia clínica, termo usado para a
omissão de iniciar ou intensificar essas práticas.5 O mais frequente é assumir-
se que os médicos que não cumprem as normas o fazem por desconhecimento, mas
existem outras causas: a necessidade dos médicos atenderem às preferências dos
pacientes (por exemplo quando estes pedem apenas cuidados curativos e não estão
interessados na abordagem preventiva de factores de risco ou de problemas
silenciosos); dúvidas sobre a aplicabilidade a pacientes concretos de normas
elaboradas com base em ensaios clínicos sobre populações seleccionadas (ou
apenas em estudos observacionais); ou a mera discordância quanto à sua
fundamentação científica.6-10
Sendo a Medicina Geral e Familiar (MGF) tocada pela generalidade das normas que
têm sido publicadas, todos os médicos de família são convocados a lê-las, a
reflectir sobre elas e a discuti-las publicamente. Há indícios de que entre os
médicos de família portugueses existe a massa crítica necessária ao processo de
avaliação crítica e melhoria das normas da DGS.11 Saudando-se a formalização da
possibilidade de participação de qualquer médico na audição pública, torna-se,
porém, evidente que, se a produção inusitada de um tão elevado número de normas
num tão curto espaço de tempo mal permite a respectiva tomada de conhecimento
pelo seu público-alvo, muito menos permitirá, no pequeno prazo disponibilizado,
o seu estudo, discussão e avaliação.
Ainda assim, para cada norma, os médicos de família têm duas opções: a sua
incorporação na prática clínica, não cega e definitivamente, mas adequando-a a
cada paciente e a cada situação clínica; ou a discussão sobre os seus
fundamentos. E se, no contexto de produção simultânea de mais de vinte normas,
os prazos avançados para a audição pública de cada norma são uma ameaça ao seu
pleno aproveitamento, questionemos esses prazos ou usemos outros meios ou
plataformas. Individualmente ou nas nossas comunidades de práticas (grupos de
internos incluídos), nos departamentos de MGF das faculdades, no colégio de MGF
da OM ou na Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral, o momento é de
oportunidade, de muito trabalho e de uma imensa responsabilidade.