Medicina centrada no paciente: melhor qualidade com menores custos
CLUBE DE LEITURA
Medicina centrada no paciente: melhor qualidade com menores custos
Patient-centered medicine: better quality and less cost
Paulo Pires*
*Interno Formação Específica de Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa - ULS
Matosinhos
Bertakis KD, Azari R. Patient-centered care is associated with decreased health
care utilization. J Am Board Fam Med 2011 May-Jun; 24 (3): 229-39.
Introdução
Ao longo dos anos um extenso corpo de literatura tem descrito e defendido uma
abordagem centrada no paciente para os cuidados médicos. Apesar de não existir
uma definição uniforme de comunicação centrada no paciente, foram desenvolvidas
diversas escalas para a medir. Estes instrumentos, em geral, medem as seguintes
competências da comunicação: colaborar na compreensão e validar a perspectiva
do paciente; compreender o paciente dentro do seu contexto psicossocial;
permitir que este conheça a sua doença e o respectivo tratamento; e criar uma
parceria com ele partilhando a decisão, poder e responsabilidade.
As organizações de saúde procuram fornecer cuidados médicos de qualidade, com
os menores custos possíveis. Neste contexto, a medicina centrada no paciente é
cada vez mais considerada como paradigma para cuidados de alta qualidade
interpessoal. Existe crescente evidência que este tipo de comunicação está
associada a uma redução da utilização de recursos de saúde. Uma possível
explicação para este facto poderá ser a redução da ansiedade dos pacientes e o
aumento da sua confiança no médico, quando participam activamente nos seus
próprios cuidados e sentem que o seu médico compreende os seus sintomas. Por
outro lado, o médico pode aumentar o seu conhecimento acerca das preocupações
do paciente quando tem este tipo de prática.
Este estudo teve como objectivo determinar se a medicina centrada no paciente
fornecida aos utentes a nível dos cuidados de saúde primários (CSP), está
associada à utilização de serviços médicos, divididos em 5 categorias: (1)
consultas nos CSP; (2) consultas por especialidades hospitalares; (3)
recorrências ao serviço de urgência; (4) hospitalizações; e (5) exames
complementares de diagnóstico. Atendendo ao conhecido impacto significativo do
estado de saúde do paciente, comportamentos de risco, características
sociodemográficas e género no recurso a cuidados de saúde, estes factores foram
controlados.
Métodos
Englobaram o estudo indivíduos adultos (excluindo grávidas) sem preferência por
um médico ou especialidade específicas que tinham pedido uma primeira consulta
no centro médico universitário. De um total de 956 indivíduos, 821 (85%)
aceitaram participar. Posteriormente estes pacientes foram divididos
aleatoriamente para atendimento por médicos de medicina familiar e medicina
interna. Esta divisão deve-se ao facto de haver claras diferenças na prática
clínica diária entre estas duas especialidades. Foram excluídos 312 (38%)
pacientes, restando 509. Os cuidados foram fornecidos por médicos internos do
2.o e 3.o anos das especialidades de Medicina Familiar (26) e Medicina Interna
(79). Cada médico observou em média 4.8 pacientes.
Antes da primeira consulta os pacientes foram entrevistados fornecendo os
seguintes dados: informações sociodemográficas; auto-percepção do estado de
saúde, utilizando o Medical Outcomes Study Short Form-36; rastreio de
alcoolismo, utilizando o Michigan Alcohol Screening Test (MAST); e história de
tabagismo. O peso e a altura do paciente também foram avaliados para determinar
o índice de massa corporal. Os médicos não tiveram conhecimento destes dados.
Todas as consultas foram filmadas durante o período de estudo de 1 ano.
A prática de medicina centrada no paciente foi determinada utilizando uma
versão modificada do Davis Observation Code (DOC). Trata-se de um método fiável
e válido para determinar o tipo de prática do médico. Os observadores
registavam a ocorrência de cada um dos 20 comportamentos clinicamente
significativos durante a visualização de intervalos de 15 segundos da consulta
médica. Para cada código, era registado o número de intervalos durante o qual o
comportamento associado era observado. Assim, este poderá ser expresso como uma
percentagem do total de todos os comportamentos do DOC observados e
interpretado como a ênfase relativa destes durante o curso da consulta. Entre
os 20 comportamentos do DOC, foram identificados 6 que medem a medicina
centrada no paciente. Com base na literatura da medicina centrada no paciente
os autores desenvolveram uma versão modificada do DOC que se foca em aspectos
chave da relação médico-paciente: compreender a doença do paciente no seu
contexto biopsicossocial; apreciar a experiencia do paciente na doença;
promover uma relação igualitária; criar uma aliança terapêutica; e reconhecer o
impacto das qualidades pessoais dos participantes na consulta. Estas dimensões
chave da medicina centrada no paciente foram identificadas em diferentes itens
do DOC e incluídas no instrumento de medição. Para cada um destes itens, o
número de intervalos durante o qual o comportamento se observou foi expresso
através da percentagem do número total de comportamentos DOC. Para avaliar a
presença de um viés de observador, aproximadamente 20% dos vídeos foram
codificados por um segundo observador, com um coeficiente de concordância de
91.6%.
Durante o período de um ano foram calculados para cada paciente o número de
consultas nos CSP, consultas hospitalares, recorrências aos serviços de
urgência, hospitalizações e uso de meios auxiliares de diagnóstico através da
revisão exaustiva dos processos clínicos.
A análise estatística utilizou modelos de regressão linear, sendo que os dados
sóciodemográficos foram utilizados para controlar as variáveis.
Resultados
Durante o período de estudo a percentagem média de cuidados centrados no
paciente nos CSP foi de 14.9%. Assim, a amostra do estudo foi dividida em 2
grupos: (1) aqueles que receberam cuidados centrados no paciente abaixo da
média anual (n=254); e (2) aqueles que receberam cuidados centrados no paciente
acima da média anual (n=255).
O total de gastos anuais de saúde por paciente para aqueles que receberam menos
cuidados centrados no paciente foi de $1435.00 em comparação com $948.00 para
aqueles que receberam mais cuidados centrados no paciente (p=0.058). A
associação entre os cuidados centrados no paciente e a utilização de serviços
médicos em cada uma das 5 categorias avaliadas durante o período de estudo foi
investigada, controlando para outras variáveis que previamente se provou terem
impacto na utilização de serviços de saúde. Os pacientes que receberam uma
percentagem superior de cuidados centrados no paciente estão associados de
forma significativa a menos consultas hospitalares (p=0.0209), menos
hospitalizações (p=0.0033) e menos exames complementares de diagnóstico
(p=0.0027). Os resultados mostraram que com o aumento dos cuidados centrados
no paciente diminui a probabilidade de utilizar especialidades hospitalares
(p=0.0417). Quando controlado para todas as outras variáveis, se os cuidados
centrados no paciente aumentarem 1%, a probabilidade de recorrer a uma
especialidade hospitalar reduz-se cerca de 3%. A prática de cuidados centrados
no paciente mostrou-se associada a uma redução do total de gastos em saúde de
forma estatisticamente significativa (p=0.0002). Tal como esperado, o sexo
feminino, idade avançada e pior estado de saúde estiveram associados ao aumento
do total de gastos em saúde.
Discussão
Este estudo demonstrou que a prática de uma medicina centrada no paciente está
associada a redução da utilização de recursos de saúde (consultas nos CSP;
consultas por especialidades hospitalares; recorrências ao serviço de urgência;
hospitalizações; e exames complementares de diagnóstico). Além disso, provou
uma associação estatisticamente significativa entre a medicina centrada no
paciente e os encargos totais com a utilização dos serviços de saúde durante o
período de 1 ano.
Num estudo prévio, Stewart et al utilizou a medida da comunicação centrada no
paciente (MCCP), bem como a percepção do paciente sobre esta prática, tendo-se
verificado que, embora a pontuação da MCCP não se tenha mostrado associada de
forma estatisticamente significativa com a utilização de cuidados de saúde, os
pacientes que perceberam que na sua consulta foi praticada uma medicina
centrada no paciente, necessitaram de menos exames complementares de
diagnóstico e foram menos referenciados a consultas hospitalares durante um
período de 2 meses. Epstein et al demonstrou resultados semelhantes. Este
estudo confirmou estes dados, com a redução dos encargos de saúde nos pacientes
que receberam mais cuidados centrados no paciente.
A forma através da qual a medicina centrada no paciente poderá levar à
diminuição da utilização de recursos de saúde ainda não está completamente
esclarecida. Tem sido demonstrado que uma abordagem centrada no paciente, que
inclui o aumento da sua participação na consulta, reduz a sua ansiedade, bem
como a sua necessidade de novas investigações e referenciações. Além disso,
quando os pacientes sentem que o seu médico tem uma compreensão clara da sua
doença e de como ela afecta a sua vida, aumentam a sua confiança no médico, o
que permite uma redução dos exames complementares de diagnóstico pedidos e
referenciações. Por outro lado, através da comunicação centrada no paciente, da
troca de informações e da gestão da incerteza, o médico poderá aumentar o seu
conhecimento sobre o paciente, o que levará a uma menor incerteza no
diagnóstico e menor necessidade de requisitar exames complementares de
diagnóstico adicionais. No caso oposto, se um paciente sentir que não está a
ser compreendido, pode expressar o seu descontentamento (através da comunicação
verbal e não verbal), aumentando potencialmente a ansiedade e incerteza do
médico e levando à realização de novos exames e referenciações.
Existem várias limitações que poderão afectar a generalização dos resultados
deste estudo. Por um lado temos o facto de o estudo original ter sido realizado
na década de 1990, e os padrões da prática clínica poderem ter mudado desde
então. Por outro, temos o facto de os médicos participantes no estudo serem
internos do 2º e 3º anos e, embora os padrões de prática profissional se
desenvolverem ao longo do internato, a prática clínica habitual dos médicos
especialistas poderá ser diferente. Além disso, os pacientes do estudo podem
representar uma população diferente daquela de outros locais.
Este estudo, no entanto, contribui fortemente para a literatura sobre
comunicação centrada no paciente e utilização dos cuidados de saúde, tendo
utilizado uma metodologia com vários pontos fortes tais como: medidas baseadas
num contínuo de cuidados ao longo de um ano; resultados baseados na observação
directa de consultas; e controlo de variáveis importantes como a escolha do
médico, tipo de consulta, estado de saúde, comportamentos de risco e
características sociodemográficas.
Conclusão
A medicina centrada no paciente pode resultar num melhor conhecimento deste,
uma maior confiança e uma menor necessidade de referenciações, exames
complementares de diagnóstico e utilização de cuidados hospitalares.
Contudo, novos estudos serão necessários para comparar este instrumento com
outras medidas de cuidados centrados no paciente (tais como a MCCP) e verificar
se essas podem replicar estes resultados noutros ambientes.
Apesar de tudo, este estudo fornece uma base consistente para a prática de uma
medicina centrada no paciente, com implicações claras num sistema de saúde que
visa fornecer cuidados de saúde personalizados e de forma custo-efectiva.
Comentário
Stewart e colaboradores, na década de 1990, definiram medicina centrada no
paciente tentando incorporar as necessidades e desejos do paciente e não se
restringindo à doença. Segundo estes autores, a medicina centrada no paciente
tem os seus princípios na antiga escola de medicina grega de Cos, que
considerava as particularidades de cada paciente na abordagem da doença, ao
contrário da escola de Cnidians, cuja preocupação era classificar as doenças de
acordo com sua taxonomia e independentemente do doente.1,2,3 Ainda de acordo
com estes autores, desde então, a dicotomia entre tratar o doente ou a doença
vem acompanhando a medicina ao longo dos séculos, com alternância da
preponderância de uma abordagem ou de outra.
Em meados do século 20, os trabalhos de Balint,4 com a valorização da escuta
para perceber o paciente e responder às suas necessidades e com a valorização
do papel do médico como agente terapêutico, questionaram o diagnóstico apenas
físico do modelo biomédico. Mais tarde, Engel,5 a partir do pressuposto de que
os modelos dominantes de organização do conhecimento e da experiência são
importantes na maneira do médico abordar o paciente, propôs o modelo
biopsicossocial. Neste modelo, o nível do sistema de onde se deve partir é
sempre a pessoa, ao contrário do modelo biomédico, em que o ponto de partida é
o corpo e a doença, com negligência da pessoa.
É a partir desses e de outros trabalhos que Stewart et al2 propõem, em 1995, a
medicina centrada no paciente como uma transformação do método clínico. Definem
os principais componentes da medicina centrada no paciente como: (1) exploração
e interpretação, pelo médico, da doença e da experiência de adoecer do
paciente, tendo esta quatro dimensões (sentimento de estar doente; ideia a
respeito do que está errado; impacto do problema na vida diária; e as
expectativas sobre o que deveria ser feito); (2) entendimento global da pessoa;
(3) procura de objectivos comuns, entre o médico e o paciente, a respeito do
problema ou dos problemas e sua orientação; (4) incorporação de medidas de
prevenção e promoção de saúde; (5) melhoria ou intensificação da relação
médico-paciente; (6) e a sua viabilidade em termos de custos e tempo.
Resumidamente, pode-se dizer que são dois os componentes principais da medicina
centrada no paciente: um deles refere-se ao cuidado da pessoa, com a
identificação das suas ideias e emoções a respeito da doença; e o segundo
refere-se à identificação de objectivos comuns entre médicos e pacientes sobre
a doença e a sua abordagem, com a partilha de decisões e responsabilidades.
Levar em consideração o desejo do paciente de obter informações e de partilhar
responsabilidades e responder apropriadamente a esse desejo também fazem parte
da prática médica centrada no paciente.3
Atendendo à crescente preocupação na criação de um sistema de saúde que vise
fornecer cuidados de saúde personalizados e de forma custo-efectiva, este
estudo fornece uma base consistente para a prática de uma medicina centrada no
paciente. Esta estará associada a uma redução dos custos em saúde e ao aumento
da qualidade dos cuidados. Contudo, este tipo de prática exige o tempo
necessário à criação de uma relação empática e estabelecimento de confiança
entre o médico e o paciente, o que nem sempre é viável na prática clínica
diária. Caberá pois aos profissionais de saúde e nomeadamente aos médicos, como
parte integrante do sistema de saúde, alertar as autoridades para estes dados,
no sentido de permitir um aumento do tempo de cada consulta, nomeadamente
através da redução do número de consultas, bem como, no caso específico da
especialidade de medicina geral e familiar, do tamanho das listas de utentes
por médico. Estas medidas poderão ter um forte impacto na prática de uma
medicina centrada no paciente, com a redução dos custos em saúde, tão procurada
nos últimos tempos. Pelo facto de estarmos numa época em que se procura medir e
quantificar tudo, mesmo depois de sabermos que uma medicina centrada no
paciente reduzirá os custos em saúde, a sua prática corrente não será
facilmente mensurável de uma forma massiva tal como são outros indicadores que
tão bem se conhece, o que poderá ser um entrave à sua promoção.
Contudo, serão necessários novos estudos que confirmem os resultados obtidos
neste trabalho, bem como a sua aplicabilidade a diferentes populações. Além
disso, seria importante integrar e generalizar o ensino da medicina centrada no
paciente na formação médica pré e pós-graduada, no sentido de uniformizar os
comportamentos e finalmente melhorar os cuidados prestados aos pacientes. Outro
dos aspectos que necessita ser bem esclarecido será se o facto da prática da
medicina centrada no paciente com redução dos gastos em saúde está realmente
associada a uma utilização mais racional dos serviços de saúde, melhoria na
qualidade de vida dos pacientes, e eventualmente redução da morbilidade e
mortalidade.