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EuPTCVHe0870-71032011000600009

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National varietyEu
Year2011
SourceScielo

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Intervenção precoce no enfarte da relação

INTRODUÇÃO As estratégias de prevenção secundária têm conseguido que o impacto das doenças cardiovasculares seja cada vez menor na capacidade funcional do doente. Este tem procurado o seu médico em busca de aconselhamento relativo a actividades da vida diária, incluindo a actividade sexual.1,2No entanto, as dúvidas sobre a segurança da actividade sexual num doente com cardiopatia isquémica são tão comuns nele próprio como no seu médico. Até aos dias de hoje a abordagem da actividade sexual tem permanecido algo deficitária, quer em consultas de rotina quer no dia da alta hospitalar após um evento cardiovascular, o que tem precipitado uma crescente insegurança e desinformação do médico.1,3 Tal foi fruto de um tabu transgeracional associado à sexualidade que agora tende a apagar-se.1 Este caso clínico relevância ao aconselhamento médico. Fazendo parte do tratamento não-farmacológico, pode ser altamente terapêutico, pouco dispendioso, acessível e ter grande impacto na orientação de qualquer doente, neste caso em particular, do paciente coronário. Porém, tal como uma farmacoterapia inadequada, um aconselhamento inseguro poderá também ter efeitos laterais indesejáveis.

DESCRIÇÃO DO CASO Dados demográficos Rui (nome fictício) é um homem de 56 anos, engenheiro, natural de Vila Real e actualmente residente na Senhora da Hora. É o mais novo de três irmãos.

Actualmente, casado com Maria (nome fictício). O casal insere-se numa família nuclear, na fase VI do ciclo de Duvall.

Do seu genograma (Figura_1), realçam-se os seguintes antecedentes familiares: a mãe com Diabetes Mellitus tipo 2 e Hipertensão Arterial e o irmão mais velho com Hipertensão Arterial.

História Médica Pregressa Como antecedentes pessoais activos, Rui tem • doença coronária diagnosticada em 2009, após um quadro sugestivo de angina estável classe I (Canadian Cardiovascular Society, CCS); • hipertensão arterial essencial grau 1 (European Society of Cardiology/ European Society of Hypertension) desde 2000; • excesso ponderal.

A medicação habitual inclui lisinopril 20 mg + hidroclorotiazida 12,5 mg/dia, ácido acetilsalicílico 150 mg/dia, atenolol 50 mg/dia, rosuvastatina 10 mg/dia e nitroglicerina 0,5 mg sublingual em SOS (dor anginosa).

É ex-fumador (carga tabágica de 10 UMA durante 20 anos) e ingere 19,2 g de álcool por dia. No entanto, revela ter tido hábitos semanais de consumo excessivo de bebidas destiladas em eventos sociais, até meados de 2009.

Praticou futebol num clube regional dos 13 aos 25 anos. Desde cerca de seis meses faz uma caminhada nocturna durante 30 a 60 minutos.

A História da Doença Actual é, abaixo, dividida segundo as datas das consultas.

O raciocínio clínico desenvolvido em cada contacto com o paciente é parte integrante de cada divisão.

22/Março/2010 Vem à sua primeira consulta com a actual médica de família (MF), juntamente com sua esposa Maria. Ambos entraram recentemente para a lista de utentes, após mudança de centro de saúde e de zona residencial. O motivo desta consulta consiste em estabelecer o contacto com a nova MF e actualizar os seus perfis de saúde. É portador dos exames complementares mais recentes.

A nível subjectivo, Rui nega queixas. É questionado sobre o seu estado geral de saúde, respondendo «estou bem dentro do possível... enquanto se vai andando, é bom...» (sic). A esposa interrompe a entrevista clínica e mostra discordância. Refere que Rui tem andado mais ansioso e facilmente irritável desde meados de 2009, altura do diagnóstico da cardiopatia isquémica, e verbaliza «enerva-se com tudo e está sempre a descarregar em cima de mim...» (sic).

Rui acaba por confirmar que anda mais irritável, porém atribui tal alteração do comportamento à sua recente sobrecarga laboral. Nega perturbações do sono ou da memória. Nega sentir-se triste e desmotivado para actividades de lazer (leitura e fotografia). Iniciou novo hobbie, a pesca. Porém, abandonou um passatempo antigo: jogar xadrez com os amigos.

Sob o ponto de vista cardiovascular, encontra-se sem dor e refere nunca ter tido necessidade de recorrer à nitroglicerina, nem mesmo durante a sua caminhada diária. É inquirido sobre a história anterior que conduziu ao diagnóstico de cardiopatia isquémica. Rui documenta que em Junho/2009, após 5 minutos de jogo de futebol com amigos, desenvolveu uma dor retroesternal tipo peso, intensa, com irradiação para a metade esquerda do pescoço e que teve alívio após 5 minutos de repouso. Recorreu ao seu anterior médico de família, pelo que foi pedido um estudo que incluiu prova de esforço electrocardiográfica.

A nível objectivo nesta consulta, realça-se um aspecto cuidado e idade aparente correspondente à idade real. Apresenta TA = 124/78 mmHg, peso = 94,2 Kg, altura = 1,83 m, IMC = 28,1 Kg/m2 e perímetro abdominal = 91cm. A auscultação cardiopulmonar é normal. Sem alterações relevantes no restante exame físico.

Os exames complementares revelam um colesterol total = 182 mg/dL, HDL = 65 mg/ dL, LDL = 88 mg/dL, triglicerídeos = 143 mg/dL e hemograma e perfis renal, hepático, tiroideu sem alterações. Traz também os registos dos exames complementares de diagnóstico solicitados pelo seu anterior médico de família.

O Rx Tórax e o ECG (Junho/2009) são normais, o ecocardiograma (Junho/2009) revela uma hipertrofia ventricular esquerda e o relatório da prova de esforço electrocardiográfica (Junho/2009) indica uma presumível doença coronária aterosclerótica: «prova interrompida aos 10 min e 1 seg (estádio 4 do protocolo de Bruce; 11 METs) por dor retroesternal moderada coincidente com um infradesnivelamento de ST de 1 mm em DII, DIII e aVF».

Uma vez que o paciente se encontra com bom controlo sintomático, metabólico e tensional, o plano inclui a manutenção de atitudes e marcação de nova consulta entre três a seis meses.

22/Setembro/2010 O casal marca consulta seis meses depois. No entanto, neste dia da consulta, apenas vem a esposa e Rui falta por motivos profissionais. Maria refere preocupação com o comportamento de Rui, que continua irritável e progressivamente mais isolado, refugiando-se nas suas actividades de lazer solitárias. Conta que esta alteração comportamental causa dano na relação conjugal: « nem falamos muito, que é para não nos chatearmos...», «agora nem vai aos jantares com os amigos...», «nunca mais conseguiu ultrapassar o problema do coração... e além disso, não pára de trabalhar » (sic). É marcada nova consulta para Rui dentro de um mês, altura mais conveniente para o utente.

12/Outubro/2010 No mês seguinte, o doente vem sozinho à consulta e refere estar «saturado» da actividade profissional e de lidar com colegas de trabalho. Nega mau ambiente no local de trabalho ou problemas financeiros da empresa assim como humor deprimido, apatia ou anedonia. Contudo, documenta ele próprio um isolamento social progressivo: «ando mais neura... por isso, quero estar no meu canto e mantenho-me activo a fazer as coisas que gosto...» (sic).

Quando questionado, revela que esta alteração de comportamento teve início insidioso com o diagnóstico de doença coronária. Torna-se perceptível que este diagnóstico abalou a auto-estima de Rui quando diz: «mexeu um bocado comigo sempre me vi como um homem de ferro até pratiquei futebol durante 12 anos!».

Não esconde que tal comportamento e isolamento progressivo estejam a corroer a relação marital.

Parece claro à sua MF que este homem apresenta alguns sintomas depressivos, embora seja questionável se preenche o número suficiente de critérios para um diagnóstico de perturbação depressiva major. Estes sintomas depressivos são interpretados num contexto dependente do diagnóstico de doença coronária em meados de 2009, ao qual se associa um luto por perda da auto-imagem de pessoa saudável ou um rótulo que, aparentemente, frustra um homem que foi futebolista e que é um engenheiro com uma preenchida vida de relação.

Explicam-se, então, a etiologia e as diferentes classes da sua patologia cardíaca. Esclarece-se que a sua classificação funcional (classe I ' CCS) lhe permite continuar a desfrutar de inúmeros prazeres da sua vida e faz-se um aconselhamento genérico relativo a estilos de vida, sob o ponto de vista biopsicossocial. Sob o prisma biológico, é recomendado a privilegiar uma alimentação mediterrânica e a manter o seu exercício aeróbico (caminhada). A nível psicológico, aconselha-se que mantenha a busca de prazer em actividades de lazer, que perpetue os circuitos familiares de afecto e que procure retirar bons momentos de intimidade com a sua esposa, nomeadamente através da actividade sexual. E a nível social, sugere-se que recupere a interacção com os seus amigos, da qual retire vivências que possam ser, de algum modo, enriquecedoras.

Como parte do plano, marca-se nova consulta para o mês seguinte para reavaliação.

19/Outubro/2010 Rui vem à consulta aberta na semana seguinte, referindo sentir-se «obsessivo» e com dificuldade de concentração no trabalho. Com o adiantar da entrevista clínica, revela que relaciona o aumento da sua ansiedade basal com a preocupação relativa a actividades que possa desempenhar no seu quotidiano. E posteriormente, questiona: «mesmo a actividade sexual?!» É reforçada a resposta positiva, de acordo com o aconselhamento elaborado na consulta anterior. Rui afirma, então, que o seu médico assistente anterior o terá informado, perante o diagnóstico da doença coronária, que possuía um risco aumentado de enfarte agudo do miocárdio associado a relações sexuais e que o terá aconselhado a «ter cuidado» (sic).

O paciente refere que «não conseguirei ter relações a pensar que posso ter um enfarte... não sei bem como se tem cuidado durante as relações... nunca mais tive uma relação sexual...» Nesta consulta aberta entende-se o que perturba este paciente, desvenda-se a causa daquela alteração insidiosa do seu comportamento e compreende-se o dano prolongado na sua relação conjugal. Uma analogia oportuna é possível ser elaborada durante o raciocínio médico: tal como a artéria coronária é responsável pelo suprimento sanguíneo para o coração, a actividade sexual constitui uma importante artéria de suprimento afectivopara a relação conjugal.

O diagnóstico da doença coronária constitui, por si , um peso que comprime a auto-estima, prejudica a performance sexual e, tal como uma placa de ateroma, estenosa esta artéria da sexualidade. A recepção do aconselhamento pelo seu anterior médico funcionou como uma terapêutica não-farmacológica desadequada, criando o medo no paciente, e foi o trigger para a ruptura da placa do diagnóstico que estenosava a artéria da actividade sexual. Após esta ruptura criou-se, ao longo do tempo, um trombo de mitos, receios, ansiedade e frustração. Este trombo esteve, por sua vez, na origem do enfarte... da relação conjugal.

É retomado o aconselhamento elaborado na consulta anterior, explicando a relativa «benignidade» da classe I de angina estável para a prática da actividade sexual. É transmitido ao doente, utilizando uma linguagem ajustada, parte do conhecimento científico actual sobre a sexualidade no doente coronário.

É-lhe explicado que a actividade sexual apresenta um consumo energético médio de cerca de 3 a 5 METs (máximo na fase do orgasmo), um gasto metabólico semelhante ao da maioria das actividades do dia-a-dia,1,2,4 nomeadamente similar à exigência cardíaca subjacente à sua caminhada nocturna que tolera bem (Quadro_I).

Estudos de boa qualidade, nomeadamente case-crossover, foram realizados nos últimos anos envolvendo pacientes com doença coronária diagnosticada e sexualmente activos. Encontraram um risco relativo (RR) de EAM ˜ 2,5 para populações ocidentais5,6,7 (˜ 5,5 para uma população latina-americana)8apenas nas duas horas após início da actividade sexual, comparativamente à não-prática de actividade sexual. No entanto, o risco absoluto permanece muito baixo.

Usando os dados do estudo de Framingham e um factor de multiplicação = 2,5 (correspondente ao RR), o acto sexual eleva o risco absoluto de EAM num homem de 50 anos (não-diabético e não-fumador) de 1 para 2,5 / 1000000 / hora. No homem de 50 anos com angina estável classe I eleva esse risco de 3 para 7,5 / 1000000 / hora e naquele pós-EAM de 10 para 25 / 1000000 / hora. Os aumentos do risco absoluto são, então, modestos e têm somente uma expressão nas duas horas após o acto sexual. Não se trata de um risco que permaneça durante os milhares de horas de vida do paciente. Este RR reduz-se em doentes coronários que praticam actividade física regular (como é o caso do Rui) para um valor muito próximo de 1.5,6 Por outro lado, a sua medicação habitual é, para além de antianginosa, preventiva de eventos cardiovasculares.

Apresentando estas três razões, pelas quais o paciente não tem contra-indicação para a prática de actividade sexual, é realizada uma intervenção precoce, cujo objectivo visa eliminar parte do trombo de mitos e receios e, assim, restituir a actividade funcional sexual. É, portanto, conseguida a trombólise nesta consulta.

26/Outubro/2010 Uma semana depois Rui volta à consulta com a esposa. Refere sentir-se «muito bem» e que retomou a actividade sexual «sem percalços!» (sic).

Maria revela-se «feliz», porém mantém alguma preocupação e pergunta «não haverá mesmo risco de causar um enfarte no meu marido durante as relações sexuais?» Procurando dar a melhor resposta à questão, a evidência científica disponível sobre o tema é discutida com o casal. É explicado que um homem com 3 factores de risco (género, idade> 45 anos e hipertenso) e angina estável classe I (SCC) se classifica como de «baixo risco», segundo as Normas do Segundo Consenso de Princeton.9 Este Consenso consiste num grupo de peritos cardiologistas que estabelece que, para a abordagem da sexualidade de um doente cardiovascular, deverá ser realizada uma rigorosa avaliação clínica. Os doentes de baixo risco (Quadro_II), que representam a maioria dos doentes cardiovasculares, não apresentam qualquer contra-indicação para a prática da actividade sexual e devem ser encorajados a manter a sua actividade íntima intraconjugal. Os de risco intermédio deverão fazer uma estratificação não-invasiva (nomeadamente pela prova de esforço que documente a sua capacidade funcional), de maneira que possam ser classificados como baixo ou elevado risco. Apenas os de risco elevado deverão ter a sua actividade sexual deferida até o risco reduzir.

A prova de esforço electrocardiográfica, realizada pelo doente (apesar de este ser de baixo risco), constitui um importante factor mediador ao documentar que apenas com um exercício correspondente a 11 METs surge isquemia miocárdica, um gasto metabólico que representa o dobro do máximo exigido numa relação sexual intraconjugal.1,3 O Rui apresenta, portanto, uma boa reserva funcional.

Com esta exposição da evidência actual, procede-se, junto dos dois elementos da relação em risco, à eliminação total do trombo que obstruía parcialmente aquela artéria de suprimento afectivo. Permanecerá, embora de menor tamanho, uma placa ligeiramente obstrutiva do peso psicológico do diagnóstico da doença coronária, que provavelmente nunca será possível eliminar do seio daquele casal.

Consultas seguintes Nas consultas seguintes os dois elementos do casal aparecem sempre juntos no gabinete. Rui encontra-se de humor claramente mais elevado e refere que retomou as actividades sociais, nomeadamente o xadrez com os amigos. Maria refere que «vivemos uma espécie de segunda lua-de-mel». Conclui-se, portanto, que foi conseguida com sucesso a revascularização da actividade sexual deste casal.

COMENTÁRIO A actividade sexual constitui um aspecto importante do bem-estar biopsicossocial do indivíduo e, naturalmente, também o será para um doente com doença coronária.

O aconselhamento médico constitui parte significativa da terapêutica não- farmacológica e, quando integra insegurança e desinformação (por erro na sua transmissão ou na sua recepção), poderá ser desadequado e deletério. Neste caso em particular, originou um trombo no suprimento da afectividade deste casal e, consequentemente, um enfarte da relação conjugal.

Talvez porque a sexualidade constituiu um tabu na nossa comunidade, a sua abordagem foi deixada para segundo plano até aos dias de hoje. Tal perpetuou a desactualização e insegurança em parte da comunidade médica.1,3 Como comentário final, poder-se-á salientar a abordagem generalista dos estilos de vida, realizada na segunda consulta com o paciente. Tal aconselhamento terá tocado em diferentes aspectos de relevância segundo um modelo biopsicossocial, incluindo a actividade sexual. Acredita-se que tal abrangência terá permitido, por sua vez, abrir espaço para as dúvidas que levaram o paciente a revelar o que estaria na base da sua alteração de comportamento.

Por último, o facto do caso ter sido desenvolvido durante o seguimento por Medicina Geral e Familiar conferiu um campo de actuação mais fácil, o que terá agilizado todo este processo bem sucedido de revascularização. Na realidade, o Médico de Família tem a oportunidade de abordar diferentes elementos da família em diversos contactos, adquirindo informação adicional que lhe permitirá actuar de forma mais precoce em distintas situações clínicas. Neste caso em particular, as consultas com a esposa Maria permitiram percepcionar, de forma bem mais célere, que a afectividade daquele casal se encontrava em risco.


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