Prevalência da automedicação na população estudantil do Instituto Politécnico
de Bragança
1. Introdução
Considerado um fenómeno mundial e em crescimento (Simões e Filho, 1988; Lopes,
2001) a automedicação pode definir-se como a responsabilização do indivíduo
pela melhoria da sua saúde. O cerne da questão reside no facto dos doentes
generalizarem esta prática a todas as situações de doença e julgarem ser
possuidores dos conhecimentos necessários para o seu uso de forma segura.
Arrais et al. (1997), Cerqueira et al. (2005) e Tomasi et al. (2007) definem a
automedicação como um procedimento caracterizado, fundamentalmente, pela
iniciativa de um doente, ou o seu responsável, sem prescrição profissional,
obter e utilizar um produto que acredita lhe trará benefícios no tratamento de
doenças ou alívio de sintomas. Na opinião de Segall (1990) e Filho et al.
(2002) são várias as formas da automedicação ser praticada, nomeadamente,
adquirir o medicamento sem receita médica, compartilhar remédios com outros
membros da família ou conhecidos, reutilizar antigas receitas e não cumprir a
prescrição profissional.
O uso de medicamentos sem receita médica é hoje geralmente aceite como parte
integrante do sistema de saúde. Quando praticada correctamente pode contribuir
para aliviar em termos financeiros os sistemas de saúde (Sousa, Silva e Neto,
2008). Contudo, o seu uso indiscriminado pode ser potencialmente nocivo à saúde
individual e colectiva, pois nenhum medicamento é inócuo ao organismo. O uso
indevido de substâncias e até mesmo de fármacos considerados «banais» pela
população, como os analgésicos, pode acarretar diversas consequências como
resistência bacteriana, reacções de hipersensibilidade, dependência,
sangramento digestivo, sintomas de retirada e ainda aumentar o risco para
determinadas neoplasias. Além disso, o alívio momentâneo dos sintomas encobre a
doença de base que passa despercebida e pode, assim, progredir (Vilarino et
al.,1998).
Neste contexto, considera-se pertinente a realização de um estudo que tem como
temática o autoconsumo de medicamentos nos estudantes do Instituto Politécnico
de Bragança. Esta investigação tem como objectivos:
• Determinar o número de indivíduos que recorrem à automedicação.
• Identificar os principais medicamentos não prescritos utilizados pelos
inquiridos.
• Determinar o nível de conhecimentos sobre os riscos automedicação.
Os estudantes do ensino superior formam uma comunidade jovem e potencialmente
saudável, pelo que os seus problemas de saúde e, consequentemente, o tipo de
medicamentos mais consumidos não reflectem os da população em geral. No
entanto, estão expostos a factores de risco específicos, nomeadamente, um
contínuo stresse esforço intelectual intenso, cujas repercussões na sua saúde
importa avaliar (Cabrita et al.,2001). Assim, a caracterização do padrão de
consumo de medicamentos neste grupo populacional poderá contribuir não só para
um melhor conhecimento sobre a sua saúde, mas também para a elaboração de
programas tendentes ao uso racional do medicamento nesta comunidade (Cabrita et
al.,2001).
Na opinião de Damasceno et al. (2007) as razões que levam o indivíduo à
automedicação são muitas, destacam-se a dificuldade para conseguir consulta
médica e o seu custo, a limitação do poder prescritivo relacionado a poucos
profissionais de saúde, a falta de regulamentação e fiscalização daqueles que
administram o medicamento. Contudo, a prática da automedicação pode acarretar
alguns problemas que decorrem, fundamentalmente, da utilização inadequada dos
medicamentos, consequência, na maior parte das situações, de uma informação
inadequada e insuficiente e de uma cultura fármaco terapêutica não
perfeitamente consolidada. Daí que a utilização de medicamentos não sujeitos a
receita médica obrigatória deva constituir uma responsabilidade partilhada
entre as autoridades, os doentes, os profissionais de saúde e a indústria
farmacêutica (Despacho n.o 8637/2002).Existem múltiplas campanhas
institucionais para alertar sobre os riscos da automedicação, sendo as
principais apostas a «educação para a saúde», e a «promoção de estilos de vida
saudáveis» (Peixoto, 2008).Em suma, a automedicação tem implicações clínicas,
económicas, políticas, éticas e socioculturais consideráveis e levanta questões
importantes relacionadas com a utilização racional dos medicamentos, a
educaçãopara a saúde e os direitos individuais e colectivos (Filho et
al.,2002).
2. Participantes e métodos
Foi realizado um estudo transversal randomizado, por meio de um inquérito
epidemiológico para analisar a prevalência da automedicação. Os dados foram
recolhidos no mês de Novembro de 2008. Foram entrevistados 225 alunos do
Instituto Politécnico de Bragança.
O questionário aborda questões como a escola, curso, o ano, o sexo, a prática
de automedicação, conhecimento dos efeitos adversos, os sintomas que levaram a
automedicação, a frequência do aparecimento dos efeitos adversos, quem comprou
e aconselhou os medicamentos, quantas vezes se dirigiram ao médico neste último
ano, qual o problema a tratar, o motivo da consulta e a ida ao médico tendo
como motivo consulta de rotina e há quanto tempo foi, indicação de medicamentos
e acesso à informação dos efeitos adversos destes.
A colheita dos dados realizou-se após a aprovação para aplicação do
questionário por parte dos responsáveis da Instituição.
Como se trata de uma pesquisa envolvendo seres humanos, o nosso trabalho está
de acordo com questões éticas. Deste modo as informações recolhidas são
confidenciais e não serão usadas para quaisquer outros fins.
A amostra foi escolhida de forma aleatória para as quatro escolas do Instituto
com o intuito de medir a prevalência da automedicação nos estudantes.
Após a colheita dos dados, estes foram introduzidos no programa SPSS 16.0 e
sujeitos ao seguinte tratamento estatístico: estatística descritiva, teste do
Qui-Quadrado para comparação de proporções e o teste de Mann-whitney para
comparação de medianas. A regra de decisão consistiu em rejeitar a hipótese
nula para p-value (p) inferior ao nível de significância de 5%.
3. Análise e interpretação dos resultados
A amostra é constituída por 225 académicos, sendo que 58 alunos pertencem à
Escola Superior Agrária (ESA), 54 frequentam a Escola Superior de Saúde (ESSa),
58 frequentam a Escola Superior de Educação (ESE) e finalmente, 55 dos
respondentes são alunos da Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG).
Considerando a Figura 1,é possível verificar a distribuição dos alunos por
escola e ano de escolaridade.
Figura 1
Distribuição dos alunos por escola do IPB e ano de escolaridade
Relativamente ao ano frequentado observa-se que 47,1% são alunos do 4.o ano e
em menor percentagem, cerca de 13,8% são alunos do 2.o ano. Do total de
inquiridos 158 (70,2%) pertencem ao sexo feminino e 67 (29,8%) são do sexo
masculino (Figura 2).
Figura 2
Distribuição de alunos por género
A média de idade dos respondentes é de 21,96 anos, a moda e a mediana são
iguais a 21 anos, sendo o desvio padrão de 2,9. A idade dos inquiridos está
compreendida entre os 18-40 anos, verificando-se uma maior percentagem de
inquiridos na faixa etária dos 18-22 anos (68,9%) (ver Quadro I).
Quadro I
Consumo de medicamentos sem receita médica
Do total de respondentes, 204 (90,7%) afirmaram já ter consumido medicamentos
sem receita médica. Destes, 117 (57,4%) têm conhecimentos dos possíveis efeitos
adversos. Estes resultados são semelhantes aos encontrados em diversos estudos
nacionais e internacionais, realizados em académicos e em populações adultas,
que indicam valores de automedicação acima dos 60%.
Os resultados apresentados no Quadro I mostram que é o género feminino (71,6%)
que mais consumiu medicamentos sem receita médica, mais do dobro quando
comparado com o sexo masculino (28,4%). Estes resultados vão ao encontro dos
obtidos por Sans et al. (2002) em Espanha e Bertoldi et al. (2004) no Brasil.
Por outro lado, são os alunos mais jovens (68,9% contra 31,1%) que registam o
maior consumo de medicamentos sem receita médica.
Os resultados de diversas investigações mostram que a automedicação é mais
persistente em determinados medicamentos. Deste modo, cerca de 81,8% de
inquiridos consomem Paracetamol (Ben-u-ron), 72,9% Ibuprofeno (Brufen) e cerca
de 55,1% automedicam-se com Tirotricina (Mebocaína). Em menor quantidade
destaca-se o consumo de Diclofenac (Voltaren) (19,1%), Valeriana (Valdispert)
(20,4%), Ácido ascórbico (Complexos Vitamínicos) (39,1%) e Ácido
acetilsalicílico (Aspegic) (44,9%). Do total de inquiridos 5,8% assumem
consumir outros medicamentos não sujeitos a receita médica (OMNSRM). Na Figura
3é possível visualizar a distribuição do consumo dos medicamentos não sujeitos
a receita médica pelos respondentes.
Figura 3
Consumo de medicamentos não sujeitos a receita médica
Relativamente aos motivos que levaram à prática de automedicação 83,1% dos
inquiridos não respondeu. Contudo, os sintomas incidiram em maior quantidade na
dor de cabeça (4,0%) e na febre (2,7%), indo ao encontro do consumo dos
medicamentos mais usados para estes fins (Paracetamol Ben-u-ron; Ibuprofeno
Brufen). Segundo Damasceno et al. (2007), os principais motivos que geram a
automedicação são as dores de cabeça (35,6%), as dores gerais (13,3%) e a febre
(12,4%). Shankar, Partha e Shenoy(2002) apontaram, no seu estudo, a dor de
cabeça e a febre (que contabilizaram em 60%) como principais sintomas que
levaram à automedicação.
Relativamente à compra do medicamento, verificou-se uma maior percentagem de
aquisição pelo próprio (61,8%), seguido de familiares (36%), tal como mostra a
Figura 4. Deste modo, este estudo vai ao encontro do estudo realizado por Celis
e Nava (2004). Os autores verificaram que os medicamentos são,
maioritariamente, adquiridos pelo próprio (64%), ou por terceiros cerca de 36%.
Figura 4
Quem compra o medicamento
Como se pode verificar na Figura 5,os familiares foram aqueles que mais
influenciaram o processo de compra de medicamentos (51,6%), seguindo-se a
iniciativa própria (35,1%). Estes resultados corroboram os achados de Celis e
Nava (2004), de acordo com os autores a prática da automedicação é recomendada,
principalmente, por familiares (76%), por iniciativa do próprio (15%) e por
amigos ou conhecidos (9%).
Figura 5
Quem aconselhou o uso do medicamento
Do total de inquiridos, 70 (31,1%) deslocaram-se ao posto médico neste último
ano mais de duas vezes, enquanto que 58 (25,8%) não tiveram nenhuma ida ao
médico (Quadro II).O motivo da consulta incidiu principalmente para tratar
outros problemas (54,9%) que não os ginecológicos (19,7%), respiratórios
(18,0%) ou digestivos (7,4%). Destes, 171 (76,0%) deslocaram-se ao médico para
fazer uma revisão de rotina. Para a maioria dos inquiridos a última consulta de
rotina foi ainda este ano (51,3%), e uma pequena percentagem foi há cerca de
dois anos (11,8%).
Quadro II
Idas ao médico no último ano, por género
Como se pode ver pelo Quadro IIa proporção de mulheres que procurou os serviços
de saúde foi superior à proporção de homens. O mesmo resultado foi apurado por
Bertoldi et al. (2004), o autor considera que as mulheres possuem maior
preocupação com a saúde, razão pela qual procuram mais estes serviços.
Os inquiridos consideram que os efeitos e consequências da automedicação na
população são negativos para a saúde das populações (56,8%), 20% assume não
saber sequer quais os efeitos da automedicação e, 10,4% opinam que em termos
financeiros as consequências são boas tanto para o sistema de saúde como para o
próprio indivíduo tendo em conta a dificuldade em conseguir consulta e o custo
dela. Por outro lado, o tempo de espera para uma consulta propicia e favorece a
automedicação.
Através da análise dos resultados concluiu-se que há uma elevada percentagem de
inquiridos a consumirem medicamentos sem receita médica. O mesmo se verifica
num estudo realizado por Damasceno et al. (2007), os autores concluíram que
90,6% da população consumiu medicamentos sem receita médica.A proporção de
alunos do sexo feminino em todas as classes etárias que consome medicamentos
sem receita médica é muito superior à proporção de alunos homens. Testando a
hipótese H0: O consumo de medicamentos é independente do sexo, através do teste
do Qui-Quadrado, verificou-se que, em termos estatísticos, não existe
associação entre o consumo de medicamentos sem receita médica e o género (p
value > 5%), contrariamente aos resultados obtidos por Mendes et al. (2004). Os
autores concluíram que a prevalência da automedicação foi mais elevada no
género masculino do que no género feminino, sendo a diferença estatisticamente
significativa. Figueiras, Caamono e Gestal-Otero (2000) encontraram diferenças
estatisticamente significativas entre o género e outras variáveis relativamente
à prevalência da automedicação. A taxa de prevalência da automedicação
registada por estes autores foi superior no sexo feminino, em pessoas que vivem
sozinhas e em pessoas que vivem em grandes cidades.
Verificou-se que os medicamentos mais consumidos em ambos os sexos são o
Paracetamol (Ben-u-ron), (sexo feminino, 84,1%; sexo masculino, 75,7%) e o
Ibuprofeno (Brufen) (sexo feminino, 73,9%; sexo masculino, 70,3%) enquanto que
os menos consumidos são a Valeriana (Valdispert) (sexo feminino, 22,7%; sexo
masculino, 13,5%) e o Diclofenac (Voltaren) (sexo feminino, 19,3%; sexo
masculino, 18,9%).
No que diz respeito ao conhecimento dos efeitos adversos foi testada a hipótese
de que o conhecimento dos efeitos adversos dos medicamentos é independente das
variáveis, sexo, curso e idade. Em relação ao sexo (p value= 0,359) verifica-se
não existir associação entre estas variáveis. O mesmo resultado foi verificado
para a variável idade (p value = 0,310). Já para a variável curso verificou-se
existir associação entre estas variáveis (p value = 0,045), pelo que se rejeita
H0. A percentagem de alunos que frequenta cursos da área da saúde e que possui
conhecimentos relativamente aos efeitos adversos dos medicamentos é superior
quando comparada com a percentagem de alunos de outras áreas científicas
(Figura 6).
Figura 6
Conhecimento dos efeitos adversos por curso
Relativamente à variável número de idas ao médico neste último ano, foram
feitas comparações entre grupos independentes, designadamente, o sexo, o curso
e a estrutura etária. Para tal, verificou-se a existência dos pré-requisitos
para aplicação dos testes paramétricos, a normalidade da variável dependente
«frequência de idas ao médico», através do teste de Kolmogorov-Smirnov (K-S) e
a homogeneidade das variâncias dos grupos através do teste deLevene. Estes
testes demonstram que apesar de haver homogeneidade das variâncias dos grupos,
não existe normalidade da variável dependente, logo optou-se por utilizar, como
alternativa ao teste T-Student o teste não paramétrico de Mann-Whitney. Os
resultados dos testes mostram que existem diferenças estatisticamente
significativas entre os sexos, no que diz respeito ao número de idas ao médico
no último ano (p value = 0,006). Os inquiridos do sexo feminino foram mais
vezes ao médico, neste último ano, do que os inquiridos do sexo masculino.
Relativamente aos cursos, testou-se a hipótese de o número de idas ao médico
ser igual, Os resultados dos testes não permitiram rejeitar a hipótese nula, (p
value = 0,217), pelo que se concluiu que o número de idas ao médico é igual,
independentemente, dos alunos frequentarem cursos da área de saúde ou de outras
áreas científicas.
Por fim, comparando as várias classes etárias no que diz respeito ao número de
idas ao médico os resultados provam que não existem diferenças estatisticamente
significativas, (p value = 0,618), assim sendo, concluiu-se que o número de
idas ao médico é igual independentemente da idade do inquirido.
4. Considerações finais
Este estudo mostrou que a prática da automedicação foi elevada entre os alunos
das quatro escolas do Instituto Politécnico de Bragança, não havendo diferenças
estatísticas entre o sexo e a idade com a prática de automedicação. Observou-se
que a maioria dos alunos consumiu medicamentos sem receita médica, mas apenas
42,6% do total de inquiridos conhece os possíveis efeitos adversos.
Não obstante, o consumidor final não é o único culpado por esta situação. As
farmácias, os sistemas de saúde, os meios de comunicação e a sociedade em geral
exercem uma grande e importante influência sobre o consumidor (Zubioli, 2000).
A dor de cabeça e a febre foram os principais sintomas que levaram à prática da
automedicação. Analgésicos e anti-inflamatórios foram as classes de
medicamentos mais utilizadas para aliviar esses sintomas.
Dada a elevada prevalência da automedicação registada neste estudo, será
necessária uma melhor fiscalização quanto à dispensa de medicamentos de venda
livre, uma vez que estes não estão isentos de causar efeitos adversos e
colaterais. Cabe mencionar a importância da consciencialização dos
profissionais da área de saúde na redução da prática de automedicação entre a
população, por meio de educação em saúde da comunidade e orientações quanto aos
riscos e complicações desta prática. Deste modo, é fundamental promover a
utilização racional dos medicamentos junto dos consumidores e desenvolver e
utilizar sistemas eficientes de informação e de comunicação entre médico e
profissionais de Farmácia, com o objectivo de maximizar os benefícios e reduzir
a um mínimo aceitável os riscos inerentes à utilização dos medicamentos.
Por fim, é reconfortante o facto dos estudantes do ensino superior considerarem
a automedicação um fenómeno nocivo para a sociedade, o que pode facilitar a
introdução de campanhas educativas sobre este tema e oferecer uma solução para
o futuro.