Biotoxinas emergentes em águas europeias e novos riscos para a saúde pública
Introdução
As intoxicações humanas causadas por biotoxinas marinhas em zonas temperadas do
planeta são habitualmente atribuídas à contaminação de moluscos bivalves com
toxinas produzidas por algumas microalgas (a maioria dinoflagelados),
componentes esporádicos da sua alimentação em certos períodos do ano 1. Na
Europa são bem conhecidos há várias décadas as síndromas 'intoxicação
paralisante por marisco (PSP) e a 'intoxicação diarreica por marisco' (DSP).
Ambas continuam nos dias de hoje a serem as principais biotoxinas habitualmente
causadoras de extensa contaminação (quer em concentração quer em duração
temporal) nos bivalves da costa continental portuguesa 2. Este fenómeno sucede
também noutras costas europeias, causando grandes prejuízos económicos a todos
os envolvidos na produção, transformação e comercialização de bivalves.
A estas síndromas juntou-se nos anos 90 a 'intoxicação por azaspirácidos' (AZP)
e a 'intoxicação amnésica por mariscos' (ASP). No entanto, a distribuição de
toxinas AZP tem afectado exclusivamente países do norte da Europa, tendo todos
os casos conhecidos de intoxicações humanas que ocorreram entre 1995 e 2000
sido devidos a bivalves contaminados oriundos da Irlanda 3. A repetição
sucessiva destes episódios deveu-se à falha nos bioensaios em ratinhos em
detectarem adequadamente níveis baixos de toxina relevantes para a saúde
humana. Não se sucederam mais intoxicações após a implementação da
cromatografia liquida acoplada a detecção por espectrometria de massa (LC-MS).
Quanto à ASP, tem afectado principalmente a indústria das vieiras, não se
conhecendo intoxicações humanas na Europa 4. Isto deve-se à lenta eliminação da
toxina amnésica dos tecidos da vieira 5. Na generalidade dos restantes bivalves
as toxinas ASP são encontradas por curtos períodos de tempo 2.
As alterações climáticas que se têm vindo a observar no planeta nas últimas
décadas foram tema recente nesta revista, relacionadas com o possível efeito na
distribuição futura das doenças parasitárias humanas 6. Uma mudança que tem
vindo a tornar-se notória na primeira década do século XXI prende-se com
alterações na distribuição de diversas espécies marinhas que são
prevalentemente tropicais, para habitates sub-tropicais como o mar
Mediterrâneo, discutida como a tropicalização do Mediterrâneo 7.
No entanto, o influxo atlântico via Estreito de Gibraltar e o aumento gradual
da temperatura superficial do mar mediterrâneo não são a única explicação para
esta alteração na biodiversidade. Pelo contrário, a análise de uma série
temporal de 61 anos frente à costa egípcia sugere a oscilação da temperatura
com o tempo em vez do aumento contínuo, cujo ciclo será muito superior a 61
anos 8.
Obras de engenharia de grande escala realizadas pelo Homem têm tido
reconhecidos impactos neste ecossistema marinho. A mais importante foi a
abertura do Canal do Suez em 1869. Desde então que progressivamente têm vindo a
ocorrer migrações de espécies aquáticas, principalmente no sentido Mar Vermelho
- Mar Mediterrâneo, conhecidas como migração Lessepsiana (derivada do nome do
engenheiro que projectou e supervisionou o Canal) 9.
Outra obra com impacto indirecto foi a Grande Barragem de Assuão, construída na
década de 1960, que alterou o regime de aporte de água doce e de sedimentos ao
Mediterrâneo oriental. Em pequena escala, temos a realização de portos de
abrigo e marinas que modificam localmente a circulação de água. Concorre ainda
a introdução intencional ou acidental de espécies exóticas através dos
incrustantes nos cascos dos navios, da água de balastro dos navios,
aquacultura, comércio de isco vivo, etc. 7.
No respeitante à saúde humana, são relevantes quer a emergência de espécies de
microalgas tóxicas 'exóticas' quer de animais portadores de biotoxinas marinhas
em águas sub-tropicais. Neste artigo pretende-se rever os diversos fenómenos
ocorridos recentemente não apenas no sul da Europa, mas também em territórios
insulares do norte de África sob administração europeia. Estes problemas são
desconhecidos pela maioria dos profissionais de saúde europeus, e podem afectar
quer residentes permanentes, quer trabalhadores e turistas frequentadores das
áreas afectadas.
Não se pretende aqui aprofundar em detalhe as toxinas envolvidas, os mecanismos
de actuação a nível molecular/celular ou os métodos de detecção, mas sim
alertar para a sua sintomatologia de modo a facilitar o seu diagnóstico.
Existem diversas revisões sobre as biotoxinas marinhas habitualmente
encontradas em zonas tropicais. Destacam-se o livro de acesso aberto da FAO 10;
diversos artigos de acesso aberto no jornal electrónicoMarine Drugs 11-15 e o
recente volume da revistaToxicon, dedicado exclusivamnte a 'Toxinas em produtos
da pesca' 16.
Ostreopsis ovatae palitoxinas
Desde os finais da década de 90 que a proliferação da microalga
tropicalOstreopsis ovata começou a ser assinalada nas costas italianas. Sansoni
et al. 17 estudaram as proliferações estivais ocorridas entre 1998 e 2001 na
Toscânia e alertaram para as graves consequências nas comunidades bentónicas,
inclusive elevada mortalidade. Ilustraram a perda de braços em estrelas- do-mar
e perda dos espinhos nos ouriços-do-mar (fig. 1). Este fenómeno teve lugar numa
área abrigada com reduzida circulação e maior aquecimento da água. Relataram
também os primeiros casos de problemas respiratórios humanos.
Figura 1 - Ouriços-do-mar afectados em diversos graus pela proliferação de
Ostreopsis ovata na Toscana, Itália. Foto: Sansoni et al., 2003
Os problemas começaram a agravar-se nos anos seguintes e a alastrarem para
outras zonas costeiras. Gallitelli et al. 18 reportaram 28 casos de problemas
respiratórios ocorridos em Bari em meados de agosto de 2003 e início de
setembro de 2004. A proliferação deOstreopsis ovata atingiu 1 milhão de células
por litro (fig. 2).
Figura 2 - Células de Ostreopsis ovata, Abruzzo, Itália. Foto: C. Ingarao
Em 2005, em redor da cidade de Génova mais de 200 pessoas que passaram algum
tempo em praias ou perto destas procuraram cuidados médicos para tratamento de
sintomas como febre (64 %), faringodinia (50 %), tosse (40 %), dispneia (39 %),
cefaleia (32 %), náusea (24 %), rinorreia (21 %), conjuntivite (16 %), vómito
(10 %), dermatite (5 %) 19,20. Dos 225 pacientes estudados, 109 apresentaram
três sintomas (febre + tosse + faringodinia; ou febre + tosse + dispneia; ou
tosse + faringodinia + dispneia); e 69 quatro sintomas (febre + tosse +
faringodinia + dispneia; ou febre + tosse + faringodinia + rinorreia; ou febre
+ tosse + dispneia + rinorreia). Não ficou ainda claro se estes efeitos se
relacionaram com a inalação de fragmentos da microalga ou de toxina dissolvida
na água presentes no aerossol marinho.
Este surto despoletou o aprofundamento científico do problema e a necessidade
da criação de um programa de vigilância adequado das águas balneares. Problemas
deste tipo apenas eram conhecidos na região do Golfo do México, causados pela
microalgaGymnodinium breve (actualmenteKarenia brevis). Esta microalga produz
as brevetoxinas, e está associada a um extenso leque de problemas desde
descolorações avermelhadas da água (conhecidas como marés vermelhas),
mortalidade de peixes e mamíferos, contaminação dos bivalves associada com o
síndroma humano NSP (intoxicação neurotóxica por marisco) e ainda problemas
respiratórios via aerossol marinho 21,22.
A palitoxina (PTX), uma das mais potentes e complexas biotoxinas marinhas, foi
originalmente descoberta, isolada e purificada a partir do coralPalythoa toxica
do Havai. A sua presença foi adicionalmente confirmada noutras espécies do
géneroPalythoa em recifes tropicais do Pacífico e Caraíbas 23. Foi ainda
encontrada noutros animais marinhos causadores de intoxicações humanas como o
peixe-papagaio e caranguejos xantídeos.
A origem da palitoxina tem sido assunto de especulação. Análogos da PTX,
designados genericamente por ostreocinas, e que poderão ser os seus
precursores, são produzidos por diversas espécies do géneroOstreopsis 24. Têm
uma elevada massa molecular (superior a 2500 u.m.a.) e apresentam hemólise
retardada inibida pela ouabaína.
Os primeiros estudos de plâncton recolhido aquando do surto de Génova
confirmaram a presença de PTX putativa 25. No estudo do plâncton recolhido no
ano seguinte percebeu-se adicionalmente a existência de um novo análogo da PTX,
designado por ovatoxina-a 26. A sua presença em culturas laboratoriais deO.
ovata confirmou a produção por esta microalga.
A Directiva 2006/7/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de Fevereiro de
2006 relativa à gestão da qualidade das águas balneares estabelece a
classificação das águas costeiras com base em dois parâmetros:Enterococos
intestinais eEscherichia coli 27. O artigo 9.º estabelece de forma vaga "Quando
o perfil das águas balneares revelar uma tendência para a proliferação de
macroalgas e/ou fitoplâncton marinho, será averiguado se a sua presença é
aceitável e serão identificados os riscos sanitários que a sua presença
representa; tomar-se-ão medidas de gestão adequadas, incluindo a informação do
público".
Devido a falta de atenção dada nesta Directiva aos problemas especificamente
causados pelas microalgas bentónicas o Ministério da Saúde e a Agência para a
Protecção do Ambiente e Serviços Técnicos italianos tomaram medidas adicionais
para proteger os residentes e defender o turismo 19,28,29. A medida mais rápida
de diagnosticar o surgimento do problema é amostrar periodicamente a água e
pesquisar o surgimento de microalgas potencialmente tóxicas comoOstreopsis.
Estabeleceram como critério o limite de 10,000 células/L deO. ovata na coluna
de água para se iniciar a monitorização de alerta. Outros sinais de alerta são
também importantes: presença de espumas, animais marinhos em sofrimento, mal
estar em banhistas. De seguida urge comunicar o risco às diversas autoridades
envolvidas e ao público. Através do link http://www.bentoxnet.it/ pode-se obter
mais detalhes sobre os especialistas italianos que investigam as microalgas
bentónicas e podem prestar auxilio nesta área.
Estes episódios do foro respiratório já ocorreram noutras regiões europeias. Em
Julho de 2006 um surto afectou mais de 50 pessoas na região espanhola de Murcia
30e, em Agosto de 2006 outro surto afectou cerca de uma centena de pessoas na
região espanhola de Almería 31. A presença deOstreopsis foi assinalada, mas não
se estabeleceu uma relação causal tão forte como nos casos italianos. E em
Villefranche sur Mer (região de Nice, França), pelo menos 10 banhistas
apresentaram irritação da pele em Julho de 2009 32.
A contaminação dos recursos alimentares por estas toxinas não parece de momento
afectar a população mediterrânica. A presença de análogos da PTX foi já
detectada em mexilhões colhidos no Mar Egeu por Aligizaki et al. 33, recorrendo
ao teste de hemólise. A presença deOstreopsis tem sido detectada desde 2003
entre Julho e Novembro, sendo coincidente com toxicidade observada no bioensaio
em ratinhos para toxinas lipofílicas (que inclui detecção simultânea de DSP,
AZP, etc.). A ausência de relatos de intoxicações poderá dever-se à proibição
de captura de mexilhões durante a presença de toxicidade detectada por
bioensaio.
Peixes-balão com tetrodotoxinas
Os peixes balão podem conter poderosas neurotoxinas, pertencentes ao grupo da
tetrodotoxina (TTX). No Regulamento (CE) N.º 853/2004 de 29 de Abril de 2004
está claramente preconizado que "não deverão ser colocados no mercado os
produtos da pesca derivados de peixes venenosos das seguintes famílias:
Tetraodontidae, Molidae, Diodontidae e Canthigasteridae" 34.
No entanto, como existe o perigo de confundir certas espécies comerciais com
estas, vamos abordar detalhadamente o caso emergente doLagocephalus sceleratus
(ouPleuranacanthus sceleratus) no Mediterrâneo, membro habitual da família
Tetraodontidae no Indo-Pacífico. Este peixe-balão tem sido associado a
episódios de intoxicação humana e a sua toxicidade estudada em exemplares
colhidos na Cidade de Suez, no Mar Vermelho 35. O primeiro relato deL.
sceleratus no Mar Mediterrâneo data de 2003, no sul do Mar Egeu, seguido pela
costa Israelita em 2005, juntamente com as primeiras intoxicações humanas 36-
38.
Desde então têm aparecido diversos exemplares de vários tamanhos, o que leva a
crer que a sua população já está bem estabelecida no mar Egeu. Tornaram-se um
assunto de relevância na imprensa grega desde 2007. A captura de juvenis deL.
sceleratus juntamente com trombeiros, bogas e peixes-rei, causou confusão
simultaneamente a pescadores e consumidores (fig. 3) 39. Felizmente isto
resultou na familiarização dos pescadores e a entrega dos exemplares deL.
sceleratus às autoridades locais.
Figura 3 - Exemplares de juvenis de Lagocephalus sceleratus capturados no Mar
Egeu, Grécia. Foto: P. Katikou
Menos afortunados foram os consumidores israelitas que experimentaram o consumo
do fígado destes peixes. Bentur et al. 36 resumiram os 13 casos de intoxicações
ocorridas entre 2005 e 2008, de pacientes de ambos os sexos com idades entre os
26 e 70 anos.
A intoxicação por tetrodotoxina depende da quantidade de toxina ingerida. Os
sintomas surgem entre 10-45 min após a ingestão, embora se conheçam casos
assintomáticos até as 3-6 horas 40. A severidade desta intoxicação foi
classificada por Fukuda e Tani em quatro graus, indo desde as parastesias orais
com ou sem vómitos (primeiro grau) até coma e paralisia da musculatura
respiratória (quarto grau). Nos pacientes israelitas observou-se o espectro
completo de toxicidade, contudo os casos mais graves não terminaram em
fatalidade 36.
O diagnóstico assenta nas manifestações clínicas típicas conjuntamente com a
relação temporal com o consumo de peixe-balão. Neste caso os consumidores não
se aperceberam do perigo. Apenas posteriormente, em onze dos casos este peixe
foi identificado com o auxílio de figuras de livros de identificação de peixes,
e apenas em dois casos foram identificados por um biólogo marinho 36. O
tratamento é geralmente de suporte, destinado a manter a respiração e
circulação adequadas. Não existe antídoto específico. Os pacientes com
intoxicações moderadas a severas devem ser admitidos na UCI. O internamento
durou entre 1 a 4 dias, tendo todos os pacientes tido alta assimtomáticos 36.
A observação frequente deL. sceleratus em águas gregas levou ao estudo da
toxicidade por bioensaio em ratinhos de algumas amostras 39. Nas duas amostras
de exemplares de pequenas dimensões (entre 5-10 e 12-16 cm de comprimento) não
foi detectada toxicidade recorrendo a esta metodologia (< 1 μg/g). Nas amostras
de maiores dimensões (uma de 16-20 cm, e três superiores a 43 cm) foi detectada
toxicidade elevada no fígado, gónadas e tracto gastrointestinal, e toxicidade
baixa na pele e músculo. No peixe de maior dimensão analisado, foi detectada
uma toxicidade no músculo de 10 μg/g, o que num consumo de 200g de carne podia
resultar na ingestão de uma dose considerada fatal de cerca de 2 mg. Por outro
lado, o consumo de menos de 10g de gónadas ou 25g de fígado poderia também ser
fatal 39.
Os resultados parecem tranquilizadores quanto à baixa toxicidade dos exemplares
de pequenas dimensões, que são os que facilmente se podem confundir com outras
espécies comerciais edíveis, embora apenas tenham sido analisadas duas amostras
de peixes, de 15 e 14 exemplares cada 39. Estes resultados são corroborados
pelo estudo da biologia e toxicidade desta espécie realizada em exemplares
colhidos no Mar Vermelho por colegas egípcios 41.
Ciguatera
Os episódios do tipo ciguatérico ocorrem geralmente entre os paralelos 35.º
Norte e 35.º Sul, especialmente nas ilhas do Mar das Caraíbas e do Indo-
Pacífico. Raramente os casos relatados ocorreram fora destas zonas, estando
geralmente relacionados com peixe importado de zonas endémicas ou com viagens
prévias, turísticas ou de negócios, a zonas endémicas. Assim se passou com os
casos registados em Espanha na década de 1990 42, França 43,44, Itália 45.
No entanto, em 2004 foi relatado pela primeira vez um caso isolado de ciguatera
nas Ilhas Canárias, envolvendo o consumo de um charuteiro (Seriola rivoliana,
designado em castelhano por medregal negro) capturado localmente (fig. 4). O
peixe de 26 Kg foi pescado em Janeiro de 2004 por mergulho 46. Foi fatiado em
filetes e congelado, sendo algumas porções consumidas uns dias mais tarde por 5
familiares. Quando procuraram auxilio hospitalar exibiam uma combinação de
manifestações características de ciguatera: gastrointestinais (diarreia [4/5];
náuseas/vómitos [3/5]; gosto metálico [1/5]), cardiológicas (perturbações ritmo
cardíaco [2/5], sistémicas (fadiga [5/5]; coceira [3/5]; tonturas [1/5]) e
neurológicas (mialgia [3/5]; parastesias periféricas [3/5]; dormência perioral
[2/5]; inversão da sensação de quente e frio [3/5]).
Figura 4 - Exemplar de charuteiro fotografado no Caniço, Madeira. Comprimento
estimado de 80 cm. Foto: F. Brandão
O que pareceu ser um caso isolado durante quatro anos deixou de o ser após os
subsequentes episódios ocorridos com peixe pescado nas Ilhas Selvagens. Em
Julho de 2008, 11 membros da tripulação de 16 indivíduos do barco de pesca Pepe
Contreras, desenvolveram forte sintomatologia neurológica e gastrointestinal
cerca de 4 horas após a ingestão de um charuteiro (Seriola sp.) de 30 kg,
capturado na Selvagem Grande 47. Foi necessário regressar rapidamente da faina
e procurar assistência hospitalar. A recuperação durou mais de 1 mês.
A sintomatologia apresentada associada ao consumo de peixe levou posteriormente
ao diagnóstico de ciguatera. A ausência de uma prova de diagnóstico específica
em humanos para ciguatera e a ampla variação sintomatológica fazem com que o
diagnóstico seja difícil, sendo principalmente clínico. No caso destes
pescadores, a inexperiência dos prestadores de cuidados de saúde levou a que a
intoxicação por ciguatera não fosse prontamente reconhecida. Devido à gravidade
da intoxicação houve quem perdesse até 8 quilos em quatro dias, levando os
jornalistas a acusar as autoridades de abafar o caso 48. Apenas quinze dias
depois foram tomadas medidas, interditando-se a pesca nas Ilhas Selvagens até à
batimétrica dos 200 m, o equivalente ao limite da jurisdição do Parque Natural
das Ilhas Selvagens.
Paralelamente, os vigilantes do Parque já tinham começado a apresentar sintomas
ligeiros, predominantemente do foro neurológico, a partir de Agosto de 2007 e
ao longo da primeira metade de 2008, num total de 6 indivíduos 47. A
sintomatologia surgiu após horas ou dias da ingestão o que dificultou uma
associação clara com o alimento causador das intoxicações, tendo-se
inicialmente suspeitado dos mantimentos levados por transporte marítimo da
Madeira, e renovados unicamente a cada três semanas aquando da rendição dos
vigilantes.
Apenas aquando do caso do Pepe Contreras se percebeu que as intoxicações dos
vigilantes seriam certamente devidas à ingestão do peixe capturado localmente.
Assim, entre as espécies possivelmente implicadas contam-se: charuteiro
(Seriola sp.), bodião (Sparisoma cretense), garoupa (Serranus atricauda),
peixe-cão (Bodianus scrofa), peixe-porco (Balistes capriscus) e pargo (Pagrus
pagrus) 47.
A sintomatologia incluiu diarreia (2/6), dores musculares/articulações (1/6),
dores de cabeça (2/6), sensibilidade nas mãos e pés (1/6), prostração (3/6),
inversão de temperatura (4/6), comichões (6/6), dormência na língua e boca (5/
6), dormência nas extremidades das mãos/pés (6/6). A diarreia ocorreu apenas em
vigilantes que relataram o consumo de charuteiro. A duração da sintomatologia
neurológica durou entre 0,5-1,5 meses. Esta sintomatologia não reapareceu desde
que o pescado capturado localmente foi excluído da sua alimentação 47.
Outras intoxicações continuaram a surgir. Nas Canárias ocorreram mais 2
episódios com charuteiros em Novembro de 2008 e em Janeiro de 2009, cerca de
20-30 pessoas foram afectadas no primeiro episódio e 10-40 no segundo 29,49. Na
Madeira outro episódio chegou aos jornais, estimando-se que pelo menos seis
pessoas foram afectadas em Maio de 2010 após consumo de charuteiro 50.
O Regulamento (CE) N.º 854/2004 de 29 de Abril de 2004 estabelece que "Devem
ser efectuados controlos para assegurar que os seguintes produtos da pesca não
sejam colocados no mercado (...) 2. Produtos da pesca que contenham biotoxinas,
tais como a ciguatera ou outras as toxinas perigosas para a saúde humana" 51.
Na ausência de regras específicas preconizadas nesta legislação europeia, os
Serviços de Pesca das Canárias actuaram de modo a prevenir a recorrência destas
intoxicações, estabelecendo limites máximos de peso por espécimen descarregado
em lota (tabela 1) 29. A Direcção Geral de Saúde Pública do Governo das
Canárias estabeleceu um Protocolo de actuação para a vigilância epidemiológica
da intoxicação por ciguatera nas Canárias, preconizando a notificação dos casos
e a recolha de restos alimentares para confirmação 52. A Direcção Regional das
Pescas da Madeira (DRPM) preconizou em 2010 a retirada em Lota dos charuteiros
com mais de 10 Kg.
Tabela 1 - Limites máximos admissíveis em lota estabelecidos pelos Serviços de
Pesca das Canárias em Maio de 2009 (CRLMB, 2009)
Nas Canárias estão também a ser testadas diversas espécies de peixes recorrendo
ao Cigua-Check® Fish Poison Test Kit (Oceanit, Havai), desenvolvido para
detectar ciguatoxinas em músculo de pescado 29. A DRPM testou com este kit de
imunoensaio um exemplar deSeriola dumerili de 71 kg, capturado nas Ilhas
Selvagens em Março de 2009, tendo apresentado uma resposta positiva 47. Este
exemplar foi posteriormente analisado por LC-MS/MS, confirmando-se a presença
de diversas ciguatoxinas 53.
Intoxicações raras
O ictiosarcotoxismo é uma intoxicação alimentar causada pela ingestão de peixe.
A ciguatera (ou CFP de ciguatera fish poisoning) é uma forma de
ictiosarcotoxismo envolvendo especialmente peixes de recifes, que afecta o
sistema nervoso periférico. Uma forma menos habitual é o ictioalienotoxismo,
caracterizado por perturbações do sistema nervoso central, especialmente
alucinações e pesadelos. Os peixes tóxicos pertencem a oito famílias, e são
herbívoros ou detritívoros, distribuindo-se pelo Indo-Pacífico e Mediterrâneo
54. Não se conhecem os agentes tóxicos, mas alguns autores têm implicado
macroalgas tóxicas da família Caulerpaceae como a origem da contaminação. No
Mediterrâneo, a maioria das intoxicações envolveu aSarpa salpa (comida na
Tunísia, França e Israel, mas não considerada edível em Itália e Espanha)
ouSiganus spp.
Os clínicos de Haro e Pommier 54 descreveram dois casos ocorridos em 1994 e
2002 e dão ênfase a que na literatura estes sintomas têm sido por vezes
reportados erroneamente como ciguatera. Esta intoxicação é por vezes
voluntária, já que estes animais são conhecidos como peixes alucinógenicos. É
importante destacar ainda no tocante ao diagnóstico da ciguatera a influencia
das diferenças geográficas. Em turistas franceses que se intoxicaram nas
Caraíbas os sintomas começaram com vómitos, dores abdominais e diarreia,
enquanto que os que se intoxicaram no Pacífico e Mar Vermelho mais de 50 % não
teve sintomas gastrointestinais, tendo os sintomas começado com sintomas
neurológicos como parastesias e diastesias 44.
Uma intoxicação humana grave classificada inicialmente como um episódio de PSP
após o consumo de búzios foi relatada em 2007 no Sistema de Alerta Rápido para
Alimentos e Rações 55. Esta classificação surgiu após o teste do alimento não
consumido através do bioensaio em ratinhos usado habitualmente para as toxinas
PSP pelo Laboratório de Saúde Pública de Málaga.
Estes búzios foram comprados no mercado de Málaga (sul de Espanha), e através
do seu registo de venda rastreou-se a sua captura à costa do Algarve. Causaram
intoxicação a uma única pessoa do sexo masculino de 49 anos de idade. O
acompanhamento deste caso pelas equipas dos Laboratórios Nacionais de
Referencia para Biotoxinas Marinhas de ambos os países apurou que se tratava da
presença de tetrodotoxinas no búzioCharonia lampas recorrendo à análise detalha
por LC-MS 56. As TTXs estavam presentes em elevada concentração na massa
visceral mas em baixa concentração no músculo.
Em exemplares desta espécie recolhidas pelo IPIMAR junto a profissionais que os
pescaram efectivamente na costa algarvia não se detectaram TTXs. Porque
permanece este tipo de intoxicações tão raro? Neste caso o paciente relatou ter
comido a massa visceral, o que não se espera que seja uma prática habitual nas
preparações culinárias habituais para búzios desta dimensão. Inclusivamente não
é de fácil remoção, encontrando-se localizada na porção distal do animal que se
encontra no interior da concha (fig. 5). Será que o búzio foi fraudulentamente
rotulado como tendo sido pescado em águas portuguesas, e a sua origem será de
outro país?
Figura 5 - Preparação de um exemplar de Charonia lampas. A massa visceral é de
difícil remoção sem destruição da concha. Foto: P. Vale
Intoxicações por gastrópodes são conhecidas noutras regiões. Os gastrópodes que
contêm TTX, foram capturados principalmente no Japão 57, mas este foi o
primeiro relato na Europa. Os gastrópodes podem também apresentar-se
contaminados com toxinas PSP, como é o caso dos abalones ou orelhas-do-mar
(Haliotis tuberculata) capturados na Galiza. Em muitos destes casos a fonte da
(s) toxina(s) não são conhecidas, suspeitando-se da interacção com bactérias
produtoras destas neurotoxinas 58.
Considerações finais
Biotoxinas marinhas como a palitoxina carecem de regulamentação na Europa ou,
no caso das tetrodotoxinas e ciguatoxinas, a sua regulamentação carece de
regras específicas de higiene e de organização dos controlos oficiais, à
semelhança das biotoxinas habituais em bivalves das costas europeias 34,51.
Estas Regras de Higiene foram modificadas posteriormente para incluir apenas os
peixes da família Gempylidae, em particular,Ruvettus pretiosus eLepidocybium
flavobrunneum, que podem ter efeitos gastrointestinais adversos se não forem
consumidos em certas condições 59. Estes efeitos advêm do elevado conteúdo em
ceras destes peixes, não digeríveis pelos humanos 60.
Outra lacuna no Regulamento (CE) n.º 854/2004 é respeitante à amostragem de
plâncton. Este especifica apenas que a monitorização de plâncton dever ser
representativa da coluna de água 51. Isto significa que uma amostra de água
colhida apenas na superfície não será representativa do alimento disponível
para os animais filtradores. Claramente que os problemas causados por
microalgas bentónicas não foram visados quando o Laboratório Comunitário de
Referencia para Biotoxinas Marinhas (CRLMB) organizou em 2001 um Grupo de
Trabalho com vista a discutir os planos de amostragem das zonas de produção
europeias de moluscos bivalves, cujas recomendações viriam mais tarde a
integrar o Regulamento (CE) n.º 854/2004.
Devido a estas lacunas, o CRLMB em colaboração com a EFSA elaborou recentemente
dois pareceres, um sobre a palitoxina 61 e outro sobre a ciguatera 62. Embora o
controle para a ciguatera já fosse preconizado, não existiam limites nem
detalhes ou requisitos específicos quanto à metodologia analítica a ser usada.
Este Painel propôs o limite de 0,01 mg equivalentes de P-CTX-1/kg de peixe para
a ciguatera 62. O outro Painel propôs o limite de 12 mg para a soma de PTX e
ostreocina-D, correspondendo a 30 mg/kg de carne de bivalve (pressupondo um
consumo de 400 g) 61.
As recentes modificações à legislação alimentar 63 excluem os gastrópodes
marinhos vivos que não se alimentam por filtração das disposições relativas à
classificação das zonas de produção aplicáveis aos moluscos bivalves vivos, e
"só podem ser colocados no mercado caso tenham sido colhidos e manuseados em
conformidade com o capítulo II, parte B, e cumpram os requisitos fixados no
capítulo V, tal como comprovado por um sistema de autocontrolos". Ora no
capítulo V constam apenas limites para toxinas PSP 34. A raridade de
intoxicações relacionadas com tetrodotoxinas na Europa ainda não levou à
elaboração de um parecer por parte da EFSA sobre as tetrodotoxinas.
A diminuição dos stocks de peixes tem estimulado o desenvolvimento da
aquacultura ou a procura de espécies menos usuais. No caso dos peixes-balão a
proibição do seu consumo não é universal. Algumas espécies aparentemente não
são tóxicas, e as espécies tóxicas são consumidas em diversas regiões 15.
Actualmente o seu consumo está proibido na Europa, não se discriminando
espécies tóxicas de não tóxicas.
Nas espécies marinhas o fígado e os ovários têm a toxicidade mais elevada,
seguidos pelos intestinos e pele. Os músculos e os testículos não são tóxicos
ou apenas fracamente tóxicos, excepto emLagocephalus lunaris andChelonodon
patoca, e são reconhecidos como edíveis em diversas espécies tóxicas pelo
Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar japonês 15.
A ciguatera parece ser o desafio mais importante e mais complexo em matéria de
segurança alimentar de produtos da pesca que nos aguarda na segunda década do
século XXI. Além de afectar actualmente os Arquipélagos das Canárias e da
Madeira, a progressiva migração de espécies sub-tropicais comoSeriola fasciata
já atingiu o Mediterrâneo oriental 64. Em um exemplar capturado no Arquipélago
da Madeira já foram detectadas toxinas ciguatéricas 53. Foi também hipotetisada
a possível presença de ciguatoxinas em peixes colhidos na costa mediterrânea de
Israel, recorrendo ao Cigua-Check® Fish Poison Test Kit 65.
Por outro lado, a principal microalga implicada na ciguatera,Gambierdiscus
toxicus, já foi detectada nas Canárias e em Creta (fig. 6) 66. Não se sabe se
oGambierdiscus das Canárias e de Creta poderão estar relacionados, ou se a
introdução no Mediterrâneo será mais um caso de migração Lessepsiana. Os
estudos morfológicos não nos indicam nada sobre a sua potencial toxicidade.
Figura 6 - Célula de Gambierdiscus toxicus, Creta, Grécia. Foto: A. Aligizaki
Proteger adequadamente o consumidor da ciguatera não é tarefa fácil. Os
programas de monitorização de moluscos bivalves têm atingido elevado sucesso
porque os bivalves têm reduzida mobilidade. Pode-se facilmente monitorizar as
microalgas tóxicas disponíveis no plâncton da coluna de água para a sua
alimentação ou, testar a parte edível numa amostra de indivíduos, sendo o seu
resultado representativo para os restantes bivalves da área envolvente. Nos
peixes deparamo-nos com uma elevada mobilidade e a representatividade das
microalgas bentónicas é mais difícil de poder dar uma pista adequada para a sua
toxicidade.
Para análise da ciguatera existem diversos métodos, recentemente revistos por
Caillaud et al. 11. Estes métodos têm sido usados essencialmente para apoiar os
diagnósticos clínicos. A sua complexidade e morosidade limitam a aplicabilidade
para prevenção de peixe tóxico chegar ao consumidor. Para prevenção, cada
exemplar de peixe deveria idealmente ser testado por um teste rápido, como o
Cigua-Check® Fish Poison Test Kit. Infelizmente, ainda não existem testes
rápidos de grande fiabilidade. Este teste pode apresentar uma elevada
percentagem de falsos positivos, o que pode levar à rejeição de muitos
exemplares de peixes de regiões insulares seguros para consumo, e que
constituem importantes fontes de proteínas obtidas localmente.
Na prática a prevenção é mais teórica do que laboratorial: evitar os grandes
peixes carnívoros de recifes, evitar consumir vísceras de peixes de recife,
evitar peixes pescados em zonas do recife reconhecidas como endémicas, consumir
apenas pequenas porções de peixes de espécies potencialmente tóxicas 12. Para
conhecer a lista dos peixes tóxicos de uma dada área é muito importante
recolher adequadamente os relatos de surtos, bem como estabelecer uma apertada
rastreabilidade dos peixes para conhecer a sua proveniência. Friedman et al. 12
reviram detalhadamente estas medidas de prevenção bem como as limitadas medidas
de tratamento conhecidas à data, como a administração de manitol nas primeiras
48-72 horas de ingestão. No entanto, num estudo com controle, não se encontrou
que o efeito do manitol fosse superior ao de uma solução salina normal no
alívio dos sintomas nas primeiras 24 horas 67.
Neste artigo abordaram-se os problemas emergentes relacionados com biotoxinas
produzidas por microalgas, mais adequadamente designadas por ficotoxinas, mas
também mais genericamente as biotoxinas produzidas por outros microrganismos,
como nos casos da contaminação dos peixes-balão. Não se abordaram animais
marinhos produtores de venenos. Relativamente a estes, as alterações climáticas
também podem causar alterações na sua abundância e distribuição. Fica aqui a
título de exemplo uma ameaça que já afecta os banhistas europeus: a maior
frequencia do aparecimento da medusa caravela-portuguesa (Physalia physalis)
nas costas atlânticas europeias 68,69. Embora mais habituais nas Caraíbas, têm
estado a surgir com maior frequência nas costas Portuguesa e do Reino Unido,
tendo causado queimaduras dolorosas em alguns banhistas.