Cuidar da pessoa com fístula arteriovenosa: modelo para a melhoria contínua
Introdução
Nas 2 últimas décadas do século xx, a prevalência da doença renal crónica (DRC)
aumentou consideravelmente nos países desenvolvidos ou em vias de
desenvolvimento, crescendo cerca de 20 a 25% na última década1. Estima-se que,
nos Estados Unidos da América (EUA), em 2030, o número de novos casos de DRC
irá exceder 450 000, e as pessoas que recebem diálise ou têm transplante renal
irão ultrapassar os 2 milhões2.
Em Portugal, os números não são tão elevados e nem sempre precisos; contudo,
não deixam de ser preocupantes. A população em diálise cresce ao ritmo de 6% ao
ano, prevendo-se que o atual número de doentes em diálise possa duplicar até
20203. Todos os anos surgem 2200 novos casos de insuficiência renal, existindo
cerca de 800 mil portugueses que sofrem de DRC3. Neste momento, existem
sensivelmente 13 mil doentes que dependem de diálise ou de transplante renal3.
Nos EUA, a DRC é considerada, atualmente, um problema de saúde pública em
virtude de determinados segmentos da população serem mais afetados do que
outros, nomeadamente: pessoas com diabetes e hipertensão; a existência de
evidência de que se fossem implementadas estratégias preventivas, poder-se-ia
reduzir substancialmente o «peso» da doença (programas educacionais); o facto
de se tratar de uma patologia com grande «peso» socioeconómico e continuar a
aumentar, apesar dos esforços realizados para a controlar; e a não existência
de estratégias preventivas2. Face a este problema, é essencial que a sociedade
enfrente os desafios crescentes e cada vez mais exigentes da DRC a nível das
implicações socioeconómicas e de saúde pública.
O acesso vascular representa uma das principais causas mobilizadoras de
recursos económicos e de hospitalizações nas pessoas em diálise4,5,6,7. Os EUA
disponibilizam aproximadamente um bilhão de dólares para a manutenção do acesso
vascular, traduzindo sensivelmente 6,7-7,9 mil dólares por doente por ano8,9, o
que significa 17% dos recursos disponibilizados para o tratamento substitutivo
hemodialítico10. Em Portugal, desconhecem-se estudos que quantifiquem o custo
das complicações do acesso, porém, segundo dados do tratamento da insuficiência
renal crónica da Sociedade Portuguesa de Nefrologia, citado por Ponce11,p.12, a
«falência do acesso vascular originaria mais de 500 internamentos/ano, ou cerca
de 3500 diárias de internamento». A fístula arteriovenosa (FAV) é considerada,
por diversas razões, o acesso vascular de excelência para a hemodiálise (HD),
em virtude de apresentar durabilidade superior; menor número de infeções, de
tromboses e de hospitalizações, bem como apresentar menor mortalidade em
comparação com os outros acessos vasculares6,12,13.
Ao longo do século xx, a literatura evidencia os contributos que o enfermeiro
proporciona na identificação de problemas e/ou complicações que possam
comprometer o acesso vascular14,15,16,17, assim como na realização de ensinos
sobre os cuidados com o acesso16,18,19, com o desígnio de contribuir para a
eficiência dos cuidados nefrológicos. As Guidelines for Vascular Access20,
recomendam que o doente deve ser ensinado a cuidar do seu acesso vascular,
nomeadamente a FAV. Assim como a European Renal Association ' European Dialysis
and Transplant Association, em 2007, enfatiza, também, a necessidade de o
enfermeiro ensinar o doente a cuidar do seu acesso vascular21. Torna-se assim
evidente a importância de promover o desenvolvimento de comportamentos de
autocuidado com a FAV pela pessoa, com o objetivo de evitar e/ou detetar
complicações precoces com o acesso vascular e de melhorar a sua qualidade de
vida.
Rastogi, Linden, Nissenson22 referem que os cuidados à população com DRC se
encontram fragmentados no pré e pós início do tratamento dialítico, não
promovendo a integralidade e inter-relação entre os diversos aspetos do
tratamento. Sousa13 compartilha da mesma opinião ao afirmar que os cuidados de
enfermagem se encontram essencialmente direcionados para as modalidades
dialíticas e suas especificidades, não integrando a pessoa no processo
terapêutico. As práticas de cuidados são efetuadas de forma isolada, em função
do estadio da doença e dos diversos aspetos que constituem o tratamento
(preparação do monitor, conexão da pessoa ao monitor, monitorização da
estabilidade hemodinâmica, entre outros) não estabelecendo a integração desses
aspetos nos cuidados de preparação, desenvolvimento e manutenção da FAV,
relacionando-os com as necessidades da pessoa.
Pretende-se com o presente artigo descrever uma estrutura conceptual de prática
de cuidados que vise a melhoria contínua das terapêuticas de enfermagem
direcionadas para a pessoa com FAV e, simultaneamente, minimize as implicações
para os sistemas de saúde de cada país. Esta estrutura emergiu do percurso de
investigação em que se pretendia conhecer as práticas de cuidados desenvolvidos
pelos enfermeiros direcionadas para a pessoa com FAV.
Material e métodos
A pesquisa é de natureza quantitativa, sendo um estudo exploratório, descritivo
e transversal. A amostra populacional foi constituída por 98 enfermeiros de
centros de diálise (instituições privadas e públicas) do Norte de Portugal, que
prestavam cuidados de enfermagem a pessoas com FAV em HD há mais de um ano. A
idade média dos participantes foi de 36,55 ± 8,62 anos, mínimo de 23 e máximo
de 62 anos; 70,5% são mulheres e 29,5% homens. Relativamente aos anos de
exercício na prestação de cuidados, a pessoa com FAV é de 8,66 ± 6,70 anos,
mínimo 1 e máximo de 35, enquanto os anos de exercício na carreira de
enfermagem é de 13,34 ± 8,28 anos, mínimo 1 e máximo 40.
A recolha de dados foi feita através de um questionário, sendo constituído por
2 partes: a primeira parte era dirigida à caracterização sociodemográfica,
enquanto a segunda parte tinha questões de resposta aberta, fechada e escala de
opinião, relacionadas com as práticas de cuidados à pessoa com FAV.
A análise foi efetuada a partir de uma grelha traçada a partir de um quadro
teórico de base, sustentando-se no pressuposto de que as intervenções de
enfermagem referentes ao acesso vascular, na pré-diálise e na diálise, deviam
ser efetuadas num continuum ao longo do processo da doença renal crónica. Foi
construída uma grelha de análise a priori, direcionada para os cuidados à
pessoa com FAV na pré-diálise e diálise. Para analisar as respostas, utilizou-
se a técnica de análise de conteúdo, permitindo a descrição sistemática dos
conteúdos das respostas e sua análise23. Após a codificação dos dados e a
respetiva seleção das unidades de registo, efetuou-se a análise categorial, a
partir da grelha previamente elaborada relativa aos cuidados a desenvolver
pelos enfermeiros. Relativamente às regras de enumeração, definiu-se a
presença/ausência das unidades de registo, a partir da categorização a priori.
Resultados
A informação evidenciada na literatura sobre os cuidados com o acesso vascular
foi articulada com a informação que emergiu da análise dos dados,
possibilitando o desenvolvimento de uma estrutura conceptual direcionada para a
prática do cuidar da pessoa com FAV (Figura 1). A estrutura conceptual integra
conceitos que se relacionam entre si, cujos objetivos se reportam à capacitação
da pessoa para o autocuidado; à identificação de complicações e realização do
tratamento. Trata-se de uma estrutura simultaneamente descritora e orientadora
dos cuidados a desenvolver pelos enfermeiros nesse contexto, permitindo a
sistematização das intervenções autónomas de enfermagem. Contribui, ainda, para
o desenvolvimento de competências cognitivas e comportamentais que permitem ao
enfermeiro, nas unidades de diálise, ser capaz de avaliar e interpretar
eficazmente os dados objetivos da FAV e do monitor, articulando-os com os dados
subjetivos obtidos pela interação com a pessoa; e possibilita que as
terapêuticas de enfermagem sejam expressas continuamente num nível elevado de
qualidade.
Figura 1. Áreas de atenção para a prática do cuidar da pessoa com fístula
arteriovenosa
Essa estrutura integra 2 áreas de atenção e cada uma dessas áreas subdivide-se
em dimensões, que por sua vez se subdividem em itens, inter-relacionando-se e
complementando-se entre si, que no seu conjunto permitem implementar
terapêuticas de enfermagem, Figura 1.
Na primeira dimensão, designada «Capacitação do Autocuidado», são decompostas
um conjunto de terapêuticas de enfermagem, a desenvolver em função do estadio
da DRC e no âmbito do ensinar, que visam promover comportamentos de autocuidado
com o existente ou futuro acesso vascular. Na segunda área, designada
«Vigilância do Acesso», são especificadas e descritas pormenorizadamente as
terapêuticas de enfermagem que contribuem para identificação precoce das
complicações da FAV. Nesta área, são enfatizadas práticas de cuidados
direcionadas para a manutenção da FAV.
Essa estrutura pretende representar uma perspetiva de globalidade nos cuidados,
integrando uma abordagem holística, que permita incluir outras áreas de atenção
direcionadas para a pessoa nas suas dimensões. São referidos alguns
pressupostos que sustentam a estrutura conceptual, nomeadamente: as pessoas
apresentam potencial para o desenvolvimento de comportamentos de autocuidado
com a FAV e a durabilidade da FAV é consequência desejável das terapêuticas de
enfermagem.
A estrutura conceptual para a prática do cuidar da pessoa com FAV, é
essencialmente uma organização teórica de áreas fundamentais na preparação,
desenvolvimento e manutenção da FAV, idealizada a nível teórico, sem estar
transposta e aplicada no contexto clínico. Descreve-se de seguida
pormenorizadamente as áreas, com as respetivas dimensões.
Capacitação do autocuidado
O autocuidado, no Canadá, é encarado como um dos «pilares» dos cuidados de
saúde e da reforma dos cuidados de saúde desse país24. É compreendido como um
meio de melhorar a qualidade dos cuidados de saúde e de contrariar a tendência
para o uso excessivo de tecnologia nos serviços de saúde24. Assim, a promoção
do autocuidado, além de ser importante para a própria pessoa, é também
relevante para os governos.
O enfermeiro tem um papel primordial na promoção do desenvolvimento de
comportamentos de autocuidado, através da informação que fornece à pessoa, com
o intuito de a incentivar a utilizar o seu potencial de aquisição de
conhecimentos, capacidades e comportamentos. Desta forma, o desenvolvimento de
comportamentos de autocuidado possibilita desenvolver competências, que
permitem a aquisição de habilidades para identificar e evitar ou detetar
situações suscetíveis de disfunção da FAV, pela pessoa.
Esta área engloba 4 dimensões definidas temporalmente em função do estadio da
doença renal crónica terminal (DRCT), sendo: Cuidados Antecipatórios na
Preparação da Fístula Arteriovenosa; Cuidados nas 48 h após a Construção da
Fístula Arteriovenosa; Cuidados Específicos com o Processo de Maturação da
Fístula Arteriovenosa e Cuidados Específicos em Programa Regular de
Hemodiálise, Figura 2. Cada dimensão é decomposta de acordo com as temáticas
centrais, consoante os ensinos a efetuar à pessoa com FAV. Para cada uma das
dimensões associaram-se categorias que, por sua vez, se subdividem em itens que
permitem, no seu conjunto, implementar intervenções ao longo do processo. O
termo dimensão representa um conjunto de cuidados de enfermagem a serem
prestados num determinado período à pessoa com FAV, para promover
comportamentos de autocuidado.
Figura 2. Estrutura descritiva das dimensões de capacitação do autocuidado
A dimensão Cuidados Antecipatórios na Preparação da Fístula Arteriovenosa
corresponde ao período de tempo desde o diagnóstico da DRC até à construção da
FAV. As terapêuticas de enfermagem, no âmbito do ensinar, iniciam-se antes da
construção do acesso vascular, com o intuito de proporcionar informação à
pessoa, para que esta possa compreender a importância do desenvolvimento de
comportamentos de autocuidado. A dimensão Cuidados nas 48 h após a Construção
da Fístula Arteriovenosa corresponde ao período de tempo desde a construção da
FAV até às 48 h após a sua construção. As terapêuticas de enfermagem, no âmbito
do ensinar, são dirigidas à aquisição de habilidades pela pessoa, com o
objetivo de evitar ou detetar precocemente a disfunção da FAV. A dimensão
Cuidados Específicos com o Processo de Maturação da Fístula Arteriovenosa
corresponde ao período de tempo desde as 48 h até à primeira punção. Nesta
fase, o enfermeiro fomenta o desenvolvimento de um conjunto de ações e
cuidados, destinados a favorecer o desenvolvimento e maturação da FAV. A
dimensão Cuidados Específicos em Programa Regular de Hemodiálise corresponde ao
período de tempo desde a primeira punção até à trombose da FAV. As terapêuticas
de enfermagem são dirigidas à manutenção do acesso vascular nas melhores
condições possíveis.
Estas 4 dimensões podem possibilitar o desenvolvimento de uma filosofia
educacional para promover comportamentos de autocuidado na pessoa com FAV em
DRCT, através do desenvolvimento de terapêuticas de enfermagem no âmbito do
ensinar, orientar, descrever e explicar.
Vigilância acesso
A literatura evidencia o contributo do enfermeiro no período pré e pós
construção e nas complicações associadas à FAV, sendo considerado um pilar
central e de extrema importância na manutenção da qualidade do acesso. O
cuidado com a FAV deve iniciar-se na fase prévia à sua construção e continuar
durante a sua realização, maturação e posterior utilização no tratamento de HD.
Esta área é constituída por 6 dimensões: Exame Físico; Parâmetros
Hemodialíticos; Cuidados na Punção; Cuidados com Hematomas/Infiltrações;
Vigilância Hemodinâmica e Cuidados na Retirada das Agulhas, Figura 3. A cada
dimensão foram associadas, de acordo com as especificidades, terapêuticas de
enfermagem com o intuito de desenvolver competências cognitivas e
comportamentais que permitam ao enfermeiro avaliar o acesso vascular.
Figura 3. Estrutura descritiva das dimensões de vigilância do acesso
Na primeira dimensão, «Exame Físico», pretende-se que o enfermeiro efetue uma
avaliação do membro do acesso ou do futuro acesso, com o intuito de obter um
conjunto de informações objetivas e subjetivas, que lhe permitam prevenir
complicações relacionadas com o acesso vascular. O exame físico compreende um
conjunto de procedimentos a serem realizados à pessoa, sendo: observação,
palpação e auscultação25. A realização do exame físico é executada antes da
construção do acesso ou após a sua realização. A avaliação dos membros
superiores tem o objetivo de identificar o membro que reúne melhores condições
para a construção da futura FAV, enquanto, após a construção, o objetivo é
detetar complicações ou situações que possam comprometer o desenvolvimento e
manutenção da FAV.
Na dimensão «Parâmetros Hemodialíticos», pretende-se que o enfermeiro
desenvolva práticas de cuidados que visem prevenir, detetar e providenciar
intervenções de emergência na hipotensão induzida pela diálise, através do
desenvolvimento de estratégias que minimizem esta complicação. Estas
estratégias integram a definição adequada do «peso seco» e a modificação da
estratégia de diálise (sódio, ultrafiltração, perfis e temperatura do
dialisante).
Na dimensão «Cuidados com a Punção», o enfermeiro tem um contributo decisivo no
momento da punção, ao identificar problemas significativos no acesso. Contudo,
a canulação do acesso vascular não se deverá limitar à técnica de punção,
outros aspetos são extremamente importantes no seu processo, nomeadamente:
identificação do fluxo sanguíneo da FAV; seleção do local de punção e do
calibre de agulhas; preparação do local de punção e técnica de punção. É
importante o enfermeiro inter-relacionar os diversos aspetos que constituem
esta dimensão, com o objetivo de desenvolver estratégias que possibilitem
salvaguardar a rede vascular da pessoa e favorecer a durabilidade do acesso
vascular.
Na dimensão «Cuidados com Hematomas/Infiltrações», pretende-se que o enfermeiro
desenvolva práticas de cuidados que visem diminuir a incidência de hematomas.
Existem um conjunto de terapêuticas de enfermagem com intuito de minimizar os
efeitos decorrentes do hematoma/infiltração e, simultaneamente, possibilitar o
cateterismo do acesso vascular com sucesso.
Na dimensão «Vigilância Hemodinâmica», solicita-se que o enfermeiro realize uma
correta monitorização dos perfis de pressões da FAV, com o intuito de detetar
precocemente a disfunção do acesso, através da interpretação eficaz dos dados
transmitidos pelo monitor. Diversos parâmetros são considerados úteis para
deteção nos processos de disfunção da FAV, nomeadamente: pressão arterial;
pressão venosa; fluxo do acesso; e taxa de recirculação.
Na dimensão «Cuidados na Retirada das Agulhas», é evidenciada a importância da
cuidadosa retirada das agulhas de HD, considerando a sua remoção tão importante
como a sua inserção, de forma a prevenir traumatismos e hematomas/infiltrações
pós-diálise. São descritas, pormenorizadamente, práticas de cuidados na
retirada das agulhas, nomeadamente a forma e ordem de retirada das agulhas de
HD, valorizando também a realização adequada da hemostase dinâmica pela pessoa
e/ou enfermeiro. A hemostase dinâmica corresponde à compressão realizada pela
pessoa, enfermeiro ou auxiliar, de forma suave, com o desígnio de evitar perdas
hemáticas e, simultaneamente, não obstruir completamente o fluxo sanguíneo do
acesso vascular.
Conclusão
Os enfermeiros são os profissionais de saúde, em virtude da natureza dos seus
cuidados, que contactam diretamente com a FAV e manipulam o acesso vascular da
pessoa com DRCT em tratamento hemodialítico. Desta forma, é essencial que estes
profissionais desenvolvam habilidades para avaliar e diagnosticar todas as
alterações que possam ocorrer com a FAV. A existência de áreas de atenção para
a prática do cuidar da pessoa com FAV facilita o desenvolvimento de
competências cognitivas e aquisição de habilidades que permitam aos enfermeiros
identificar e diagnosticar precocemente alterações no funcionamento da FAV.
A estrutura reorganiza e esquematiza as áreas de atenção em que o enfermeiro
pode contribuir para maximizar a potência da FAV e minimizar as implicações
para os sistemas de saúde de cada país. Simultaneamente, evidencia como os
profissionais de saúde, nomeadamente os enfermeiros, podem ajudar as pessoas
nas suas necessidades e, conjuntamente, contribuir para a eficiência dos
cuidados de saúde na área da nefrologia.