O Papel dos Produtos Finais de Glicosilação Avançada na Nefropatia Diabética
Introdução
A diabetes mellitus (DM) é uma doença crónica em larga expansão, atingindo,
actualmente, proporções de uma epidemia a nível mundial. Estimase que,
actualmente, existam cerca de 240 milhões de diabéticos em todo o mundo e que
em 2025 este número aumente para cerca de 380 milhões. Este facto deve-se,
essencialmente, à incidência crescente de diabetes mellitus tipo 2 (DM 2),
secundária ao envelhecimento, à urbanização, aos maus hábitos alimentares, ao
aumento do índice de massa corporal (IMC) e ao estilo de vida sedentário,
designadamente nas comunidades ocidentais1. Em Portugal, a prevalência estimada
de DM 2 é de 11,7%, sendo mais frequente nos homens (14,2%) do que nas mulheres
(9,5%). Foi também verificado que, a nível nacional, 34,9% da população entre
os 20 e os 79 anos tem diabetes ou pré-diabetes, sendo que 43,6% dos afectados
desconhece a sua condição2.
A nefropatia diabética (ND) constitui uma das complicações mais graves da DM
sendo a principal causa de doença renal crónica no mundo ocidental.
Actualmente, a ND afecta cerca de 15 a 25% dos diabéticos tipo 1 e 30 a 40% dos
diabéticos tipo 23.
Ao longo das últimas décadas, têm sido desenvolvidas numerosas investigações
numa tentativa de elucidar os mecanismos envolvidos no surgimento e na
progressão da ND, verificando-se que esta patologia poderá resultar da
interacção entre múltiplos factores, designadamente, genéticos, hemodinâmicos,
endócrinos e metabólicos (Figura_1)3.
Relativamente aos factores genéticos, foram detectados numerosos genes que
conferem susceptibilidade para a DM 2, nomeadamente, os envolvidos no
equilíbrio electrolítico, na produção esecreção de insulina, no ciclo celular
ena diferenciação dos adipócitos4. Na diabetes mellitus tipo 1 (DM 1), os
genes, cujo polimorfismo tem demonstrado estar associado à nefropatia, são,
entre outros, os relacionados com o sistema renina-angiotensina, com o
metabolismo glucídico e lipídico, com o stress oxidativo, com factores de
crescimento e inflamatórios5.
Os factores hemodinâmicos englobam as elevações da pressão arterial sistémica e
intraglomerular, bem como a activação de várias vias de hormonas vasoactivas
como o sistema renina--angiotensina-aldosterona (SRAA), endotelina (ET), óxido
nítrico (NO) e urotensina (UT)6.
Factores endócrinos estão também relacionados com a patogénese da ND,
nomeadamente a hormona de crescimento (GH) e o factor de crescimento
relacionado com a insulina (IGF)3.
A hiperglicemia persistente, consiste num factor crucial no desenvolvimento da
ND. Têm sido postulados quatro mecanismos através dos quais a hiperglicemia
conduz à lesão tecidular: a activação das vias dos polióisedas hexosaminas, a
activação da proteína cínase C (PKC) e a formação dos produtos finais da
glicosilação avançada (PGAs)7-9. Os PGAs constituem um grupo de diversos
compostos resultantes da glicosilação não-enzimática de proteínas, lípidos e
ácidos nucleicos. Estas reacções iniciais são reversíveis dependendo da
concentração dos diversos agentes. No entanto, se houver persistência de
elevados níveis de glicose, uma série de reacções subsequentes conduz à
formação dos PGAs. Vários compostos como a carboximetilisina e a pentosidina
são exemplos de PGAs, bem caracterizados e amplamente estudados. Os PGAs têm a
capacidade de formar ligações cruzadas entre proteínas, o que altera a sua
estrutura e função, designadamente na matriz extra-celular, na membrana basal e
no endotélio. Outra característica importante dos PGAs é a sua capacidade de
interacção com uma variedade de receptores da superfície celular, que conduz à
sua endocitose e degradação ou à activação celular de eventos pró-oxidantes e
próinflamatórios (Figura_2). Para além dos produtos formados endogenamente, os
PGAs podem também provir de fontes exógenas, como o fumo do tabaco ou o
processamento de alimentos10.
Da interacção entre os diversos mecanismos potencialmente implicados na génese
e na progressão da ND, resulta a activação de segundos mensageiros
intracelulares como a PKC e a MAP cinase (MAPK), factores de transcrição
intracelulares como o factor nuclear kb (NF-kB) e numerosos factores de
crescimento como citocinas pró-escleróticas, factor de crescimento
transformador-ß1 (TGF-ß1), factor de crescimento do tecido conjuntivo (CTGF),
factor de crescimento promotor da permeabilidade, factor de crescimento do
endotélio vascular (VEGF) e factor de crescimento derivado das plaquetas
(PDGF)3,6,11. Consequentemente, surgem alterações renais específicas a nível
funcional e morfológico. Inicialmente, surge hiperfiltração glomerular,
hipertrofia glomerular e renal, aumento da excreção urinária de albumina,
espessamento da membrana basal, expansão mesangial com a acumulação de
proteínas da matriz extra-celular, como o colagénio, a fibronectina e a
laminina. Numa fase mais avançada da nefropatia surge proteinúria, declínio da
função renal com diminuição da depuração de creatinina, glomerulosclerose e
fibrose intersticial3.
Nesta monografia pretende-se rever o papel dos PGAs na patogénese da ND,
salientando a sua interacção com outros factores igualmente implicados,
incluindo os dados que têm vindo a sugerir um potencial terapêutico da
modulação destes agentes. Para o efeito, foram pesquisados artigos científicos
na base de dados da Pubmed e da Science Direct. As palavras chave utilizadas
foram diabetic nephropathy e glycosylation end products, advanced.
Bioquímica dos produtos finais da glicosilação avançada
Os PGAs constituem uma grande variedade de substâncias formadas a partir de
reacções amino-carbonilo, não-enzimáticas, entre açúcares redutores, lípidos
oxidados, proteínas ou ácidos nucleicos12. A via clássica da reacção de
Maillard, também denominada glicosilação, inicia-se com a formação de uma base
de schiff instável, formada pela reacção entre um grupo carbonilo de um açúcar
reductor, como a glicose, e um grupoamina, proveniente, por exemplo, do
aminoácido lisina. Posteriormente, a base de schiff sofre rearranjos, tornando
essa estrutura mais estável -os produtos Amadori -actualmente conhecidos como
produtos iniciais da reacção de Maillard. A hemoglobina glicada (HbA1c) e a
frutosamina são conhecidos exemplos desses produtos. Os produtos de Amadori
possuem grupos carbonilo, que reagem com grupos aminas, dando origem aos
produtos avançados da re acção de Maillard ' PGAs12,13.
Os mecanismos alternativos de formação de PGAs incluem a chamada via do stress
carbonílico, na qual a oxidação de lípidos ou de açúcares gera compostos
intermediários altamente reactivos14. Estes produtos intermediários são
conhecidos como compostos dicarbonílicos ou oxaldeídos e são deles exemplo o
metilglioxal e o glioxal, formados por glicólise e autoxidação de glicose e que
interagem com aminoácidos para formar PGAs15. Os PGAs forma-dos a partir da
oxidação de açúcares ou de lípidos podem também ser denominados,
respectivamente, produtos da glicoxidação ou da lipoxidação avançada. Deve
salientar-se que, durante a ocorrência de algumas das reacções que levam à
formação dos PGAs, formam-se espécies reactivas do oxigénio (ROS) que
contribuem, em simultâneo, para o stress oxidativo e para a ocorrência de danos
estruturais e funcionais nas macromoléculas16,17.
A formação dos PGAs in vivopode, adicionalmente, envolver neutrófilos,
monócitos e macrófagos, os quais, após estímulo inflamatório, produzem
mieloperoxidase e a enzima NADPH oxidase, que induzem a formação de PGAs por
intermédio da oxidação de aminoácidos14.
Devido à complexidade e heterogeneidade das reacções que podem ocorrer, poucos
PGAs foram claramente identificados e quantificados em estudos laboratoriais. A
carboximetilisina (CML), a pirralina e a pentosidina são exemplos de PGAs bem
caracterizados e amplamente estudados18,19.
Metabolismo dos produtos finais da glicosilação avançada
O poolendógeno de PGAs reflecte basicamente o balanço cinético de dois
processos opostos: por um lado, a formação endógena e a absorção dos PGAs
exógenos, e por outro, a degradação e a eliminação dos PGAs20.
A formação de PGAs ocorre lentamente sob condições fisiológicas, e afecta
predominantemente moléculas com semi-vida longa, como o colagénio, exercendo,
assim, um papel importante no processo de envelhecimento21. No entanto, sob
condições de hiperglicemia ou stress oxidativo, a formação de PGAs aumenta de
forma acentuada16,22. Verifica-se que os diabéticos apresentam concentrações
séricas de PGAs significativamente mais elevadas do que os indivíduos não
diabéticos23. A HbA1c, variante de hemoglobina que possui um produto Amadori na
sua cadeia ß, reflecte a ocorrência de hiperglicemias ao longo dos últimos três
meses e, indirectamente, de glicosilação avançada, constituindo, até hoje, o
melhor indicador do controlo da diabetes24. No entanto, verifica-se que,
frequentemente, existe discrepância entre um bom controlo glicémico, avaliado
através da HbA1c e os níveis cutâneos e circulantes dos PGAs6. De facto, num
estudo efectuado em diabéticos tipo 1, os níveis cutâneos de PGAs foram
considerados um melhor predictor de progressão da ND do que a HbA1c25.
Devido à maior reactividade dos precursores dicarbonílicos derivados da glicose
e formados intracelularmente (glioxal, metilglioxal e 3-desoxiglicosona),
actualmente, considera-se que o evento primário desencadeador da formação de
PGAs intra e extra celulares é a elevada concentração de glicose
intracelular9,26. A formação dos PGAs é essencialmente endógena, no entanto,
esses produtos podem ser introduzidos no organismo através de fontes exógenas,
como o fumo do tabaco e os alimentos27,28. A formação de PGAs nos alimentos é
potenciada por métodos de confecção que utilizam altas temperaturas e humidade
reduzida, sendo os alimentos ricos em lípidos os principais contribuintes do
conteúdo dietético de PGAs29. Os PGAs provenientes da alimentação, dos quais
50-80% são absorvidos a nível intestinal, são considerados as principais fontes
exógenas de PGAs30. Os restantes são excretados através da urina, em cerca de
48 horas e em indivíduos com função renal normal14. Há evidências de que os
PGAs dietéticos se adicionam ao poolde PGAs endógenos, favorecendo o
aparecimento e a progressão das diversas complicações da Dm27,31. O fumo do
tabaco é também considerado uma importante fonte exógena de PGAs27. Durante a
combustão do tabaco, espécies reactivas de PGAs são volatilizadas, absorvidas
pelos pulmões e podem interagir com proteínas séricas32. Esse acontecimento
reflecte-se no facto de as concentrações séricas de PGAs serem
significativamente mais elevadas em fumadores do que em não fumadores33.
O organismo possui mecanismos de defesa contra a acumulação de PGAs. Os
sistemas enzimáticos capazes de influenciar o poolendógeno de PGAs incluem a
oxaldeído reductase e a aldose reductase, eficientes na eliminação de
intermediários dicarbonílicos reactivos. Os sistemas enzimáticos glioxilase I e
II, a frutosamina-3-cinase e a frutosamina oxidase são também responsáveis pela
interrupção de reacções de glicosilação em diferentes estágios34. No entanto,
em situações que condicionem o excesso de PGAs, como na DM, na hiperlipidemia,
na insuficiência renal e em indivíduos que consomem alimentos com alto teor em
PGAs, esses sistemas podem ser superados35. A remoção dos PGAs dos componentes
teciduais é realizada através da proteólise extracelular ou pelas células
scavenger, como os macrófagos, que efectuam a endocitose de PGAs através de
receptores e que, após a degradação intracelular, libertam na circulação PGA-
peptídeos solúveis e de baixo peso molecular, que são posteriormente excretados
a nível renal, tal como os intermediários altamente reactivos13. Na presença de
insuficiência renal ocorre, assim, a falha da remoção dos PGAs circulantes,
contribuindo consideravelmente para as elevadas concentrações de PGAs séricos e
teciduais que se verificam nesses doentes36. Adicionalmente, a lisozima,
proteína com reconhecida propriedade antimicrobiana, possui alta afinidade
pelos PGAs, constituindo um mecanismo adicional na remoção destes compostos14.
Associados a esses processos de formação/absorção e degradação/eliminação, os
factores genéticos podem influenciar o metabolismo dos PGAs e,
consequentemente, a predisposição para o desenvolvimento de patologias
associadas a estes compostos, comoa DM, a aterosclerose, a artrite, a
osteoporose e a doença de Alzheimer15,28. A título de exemplo, o polimorfismo
do RPGA, um dos reconhecidos receptores dos PGAs, foi associado a um ligeiro
efeito protector quanto ao desenvolvimento de nefropatia em diabéticos tipo 1,
sugerindo um importante impacto no efeito da expressão génica sobre o
desenvolvimento das complicações vasculares da diabetes37.
Mecanismos de acção dos produtos finais da glicosilação avançada
Os PGAs podem induzir dano celular através de três mecanismos. O primeiro é a
modificação de estruturas intracelulares, nomeadamente as envolvidas na
transcrição génica. O segundo mecanismo consiste na interacção dos PGAs com
proteínas da matriz extracelular, facto que vai alterar a sinalização entre as
moléculas da matriz e a célula. O terceiro mecanismo refere-se à modificação de
proteínas ou lípidos que podem ligar-se a receptores específicos, conduzindo à
produção de citocinas inflamatórias e factores de crescimento que, por sua vez,
contribuem para a ND9,13,26.
Os PGAs formados intracelularmente podem alterar as propriedades celulares
fundamentais para a homeostasia vascular, podendo chegar a reduzir 70% da
actividade mitogénica do citosol das células endoteliais38. Adicionalmente,
podem ainda ocorrer alterações genómicas após a interacção entre PGAs e
nucleotídeos, histonas ou proteínas envolvidas na transcrição do ADN celular9.
As proteínas de semi-vida longa que constituem a matriz extra celular e as
membranas basais vasculares são também susceptíveis à formação e à acumulação
dos PGAs. Para além de reduzir a actividade enzimática, a formação dos PGAs
compromete a conformação geométrica das proteínas, causando anomalias
estruturais e funcionais permanentes. Há evidências de que a formação de
ligações cruzadas entre PGAs e o colágenio tipo I ou elastina conduz ao
alargamento da área da matriz extracelular, resultando, assim, no aumento da
rigidez vascular9,38. Quando a composição da matriz extracelular glomerular é
afectada, rapidamente surge disfunção e falência orgânicas. A albumina
constitui um dos principais alvos dos PGAs. A sua glicosilação induz alterações
na conformação tridimensional, podendo daí resultar uma estrutura
característica das fibrilas de amilóide. Os depósitos locais condensados de
amilóide podem ser resistentes à acção macrofágica, promovendo a inflamação. A
inibição daglicosilação da albumina demonstrou melhorar os danos ao nível do
glomérulo e da função renal, salientando, assim, o papel central dos PGAs
circulantes39.OsPGAs interferem também nas interacções entre as células e a
matriz. Um exemplo dessa interferência consiste na diminuição da adesão das
células endoteliais, secundária às alterações causadas pelos PGAs nos domínios
de ligações celulares do colágeno tipo IV26. Entre os mecanismos através dos
quais os PGAs podem contribuir para o desenvolvimento e progressão da ND, é de
destacar a interacção desses compostos com receptores presentes na superfície
de diversos tipos celulares. Do complexo sistema de reconhecimento dos PGAs, o
receptor RPGA é provavelmente a molécula mais bem caracterizada40,41. O RPGA
pertence à superfamília das imunoglobulinas de superfície celular, com o seu
gene localizado no cromossoma 6, no complexo principal de histocompatibilidade.
As regiões para o NF-kB e para a interleucina-6 (IL6) estão localizadas no gene
promotor do RPGA, controlando a expressão desse receptor e associando o RPGA às
respostas inflamatórias. Sob condições fisiológicas, o RPGA é minimamente
expresso nos tecidos e nos vasos. No entanto, a sua expressão está aumentada
nos macrófagos, monócitos, células musculares lisas, células endoteliais e
astrócitos quando há excesso de PGAs, o que evidencia um processo de feedback
positivo38,40. A interacção PGA-RPGA nas células endoteliais activa a
transcrição do NF-kB, conduzindo ao aumento da expressão de seus genes alvo,
como a ET-1, molécula de adesão da célula endotelial-1 (VCAm-1), selectina E,
factor tecidual, trombomodulina, VEGF e de citocinas pró-inflamatórias que
incluem a interleucina-1a, a IL-6 e o factor de necrose tumoral-a (TNF-α), para
além do próprio RPGA. O bloqueio do RPGA, por sua vez, inibe a activação do NF-
kB38. Verificou-se que a presença do RPGA é fundamental no comprometimento da
resposta angiogénica na DM e que o bloqueio funcional desse receptor é capaz de
restaurar a resposta angiogénica suprimida42. Num outro estudo, a inactivação
do gene do RPGA, num modelo animal de ND, resultou na supressão significativa
das modificações renais características e evidenciou que o grau da lesão renal
era proporcional à carga genética do RPGA43.
Outros receptores, como o PGA-R1, o PGA-R2 e o PGA-R3, e os receptores
scavengerde macrófagos classe A tipos I e II, são também capazes de reconhecer
e ligar-se aos PGAs, mas não demonstraram qualquer actividade de transdução de
sinal após a interacção com os PGAs. Pelo contrário, estes receptores estão
associados à eliminação desses compostos. O denominado CD36, receptor
scavengerda classe b, também reconhece PGAs e está envolvido na depuração
desses compostos da circulação, verificando-se que a sua expressão é induzida
pelo stress oxidativo44. Os PGAs também são reconhecidos pelos receptores
scavengerclasse E, lectin-like oxidizedlDl receptor-1 (lOX-1), fasciclina,
epidermal growth factor-like(EGF), laminin-type epidermal growth factor-like
(lEGF), link domain-containing scavenger receptor-1 e 2 (FEEl1 e FEEl-2)38. A
modulação das diferentes actividades exercidas pelos receptores dos PGAs
constitui um assunto de grande interesse e tem sido associada a diversos
factores, como a concentração da glicose, a concentração de insulina, os PGAs e
as espécies reactivas de oxigénio (ROS). As medidas frequentemente utilizadas
em estudos para avaliar a modulação dos receptores dos PGAs centram-se nos
parâmetros de activação celular. A caracterização dos receptores dos PGAs, bem
como dos seus polimorfismos genéticos, têm sido elucidados e poderão contribuir
para o desenvolvimento de novas terapias anti-PGAs32.
Perspectivas terapêuticas
Uma grande variedade de compostos e estratégias tem vindo a ser estudada in
vitroe in vivo, com o objectivo de avaliar o seu potencial na prevenção e no
tratamento da ND39. Estes fármacos podem ser divididos em diferentes classes,
de acordo com o seu mecanismo de acção, nomeadamente os que inibem a formação
dos PGAs a diferentes níveis, os que quebram as ligações cruzadas entre
proteínas mediadas pelos PGAs, os que neutralizam os seus efeitos, os que
reduzem a expressão do RPGA e os que actuam indirectamente, diminuindo, por
exemplo o stress oxidativo (Tabela_1).
É importante referir que, apesar das estratégias de inibição dos PGAs
enfatizarem o papel que estes produtos têm no desenvolvimento das complicações
da DM, estes tratamentos podem também ser alvo de investigação num contexto
diferente, dado que estão também implicados nas patologias secundárias ao
processo de envelhecimento.
Inibidores da formação dos PGAs
A aminoguanidina (pimagedina) foi um dos primeiros inibidores dos PGAs a ser
estudado e crê-se que actue a nível nuclear, na formação dos intermediários
carbonílicos10.Paraalémdestaacção,acredita-sequea aminoguanidina actue
inicialmente como quelante e anti-oxidante45. Tem sido demonstrado, em estudos
animais, que a aminoguanidina previne uma grande variedade de complicações
vasculares diabéticas10e os ensaios clínicos têm demonstrado uma redução dos
PGAs com a aminoguanidina, independentemente da diminuição da HbA1c46. Em
ensaios clínicos com diabéticos tipo 1 e tipo 2, observou-se uma redução da
proteinúria e da progressão da retinopatia, apesar de não ter sido demonstrado
um benefício estatisticamente significativo na progressão danefropatia46.
Outros ensaios clínicos têm sido limitados, em resultado de preocupações que
surgem relativas à toxicidade desta substância a longo prazo, nomeadamente pela
formação de mieloperoxidase e anticorpos anti-neutrofílicos, e inclusive, em
alguns, de glomerulonefrite47.
A piridoxamina é um derivado da vitamina b6, que inibe a formação dos PGA e de
produtos lipídicos derivados da reacção de Maillard (produtos finais de
lipoxidação avançada -PlAs)48. Há evidência de que este agente possui também
efeito anti-oxidante, associado à melhoria da intolerância à glicose e da
obesidade em ratos alimentados com dieta com alto teor de gordura49. Para além
disso, a piridoxamina liga-se aos intermediários reactivos, inibindo a formação
dos PGAs e PlAs. Estudos realizados em ratazanas obesas demonstram que a
piridoxamina impede o desenvolvimento de complicações renais e vasculares48.
Outros trabalhos têm revelado que a piridoxamina impede a elevação dos PGAs a
nível renal e no soro, por antagonizar a angiotensinaII, prevenindo assim a
hipertrofia renal e reduzindo a retenção de sódio em modelos experimentais10.
Estudos de fase 2 realizados em doentes com DM 1 e DM 2, revelam que a
piridoxamina diminui a creatinina plasmática em 48% bem como a excreção
urinária de TGF-ß, sem alterar a excreção urinária de albumina50.
O OPB-9195 [(6)-2-Isopropilidenohidrazono4-oxo-tiazolidina-5-ilacetanilido], um
derivado da tiazolidina, tem demonstrado prevenir a progressão da
glomerulosclerose e reduzir a excreção urinária de albumina e a expressão renal
de TGF-ß e VEGF, em modelos animais com DM251.
Em estudos efectuados em ratazanas com DM, foi verificado que o LR-90 [metileno
bis 4,4' ' ('2 clorofenilureído fenoxisobutírico)], impede o desenvolvimento de
albuminúria e reduz a concentração séricade creatinina bem como os níveis
circulantes de PGAs, não tendo qualquer efeito no controlo glicémico. O LR-90
previne ainda a glomerulosclerose e a deposição de colagénio, em associação com
a redução da acumulação glomerular dos PGA52. Recentemente, demonstrou-se que o
lR-90 inibe a expressão do gene s100b induzida pelo RPGA e de outros genes pró-
inflamatórios em monócitos humanos53.
Quebradores de ligações cruzadas
Experiências in vitrocom o brometo de N-fenaciltiazol (BFT) demonstraram a sua
acção como quebrador de ligações cruzadas e como agente capaz de diminuir a
acumulação tecidual de PGA sem diminuir a proteinúria. Posteriormente, o AlT-
711 (3-fenacil4,5-cloreto de dimetiltiazol) ou alagébrio, um derivado mais
estável do BFT, foi desenvolvido por Alteon e utilizado em estudos com diversos
modelos de complicações diabéticas, revelando benefícios ao nível dos órgãos-
alvo. Relativamente à ND, verificou-se que o alagébrio atenua o desenvolvimento
de albuminúria em ratazanas diabéticas, diminui modestamente a pressão arterial
e reduz a formação deTGF-ß e a deposição de colagénio a nível renal54.Trabalhos
levados a cabo em ratazanas diabéticas tratadas com alagébrio durante 4 meses,
evidenciaram o aumento da solubilidade do colagénio e a redução da expressão
dos genes RPGA e PGA-R355. Num outro estudo verificou-se que o alagébrio atenua
a aterosclerose em cerca de 30%, um efeito semelhante àquele observado com a
aminoguanidina. Existem numerosos dados que sugerem que o alagébrio possui
outros mecanismos de acção para além do efeito quebrador de ligações
cruzadas56.um ensaio clínico randomizado, realizado em indivíduos hipertensos,
revelou que estes apresentaram uma redução da pressão arterial e da rigidez
arterial, após tratamento com alagébrio57. Prevê-se que, num futuro próximo, se
dê início a estudos centrados no potencial papel renoprotector do alagébrio10.
Bloqueadores do RPGA
Uma outra abordagem terapêutica que começa a ser considerada na ND envolve o
sRPGA (forma solúvel do RPGA) que bloqueia a ligação dos PGAs ao RPGA.
Permanece ainda por elucidar completamente se o sRPGA actua como antagonista
inibidor do RPGA dependente das vias de sinalização ou se actua ligando-se aos
PGAs e impedindo a sua interacção com os RPGA58. Estudos efectuados em ratos
que não expressam o RPGA sugerem que o sRPGA inibe os fenómenos dependentes do
RPGA. Nos próximos anos, crê-se que o sRPGA ou, possivelmente, um antagonista
do RPGA não-peptídico, venha a ser aplicado em ensaios clínicos10.
Outros agentes e intervenções
A benfotiamina, um derivado da vitamina b1, previne a activação das três
principais vias que causam dano pela hiperglicemia (via das hexosaminas,
formação dos PGAs e a via da PKC-DAG), por aumentar a actividade da
transcetolase, uma enzima que limita o ramo não-oxidativo da via da pentose
fosfato59. Em estudos animais, uma alta dose de tiamina e o tratamento com
benfotiamina, inibiu o desenvolvimento de microalbuminúria e a hiperfiltração
induzida pela diabetes60. Ensaios clínicos recentes demonstram que a
benfotiamina previne a disfunção endotelial macro e microvascular bem como o
stress oxidativo secundário a uma refeição com alto teor em PGAs61.
Num trabalho realizado em ratos obesos, com o objectivo de estudar o efeito da
urocortina ' peptídeo capaz de se ligar e activar os receptores tipo 1 e 2 do
factor libertador da corticotrofina (CRF) ' na ND, verificou-se que esta reduz
a acumulação dos PGAs. Apesar do mecanismo não estar ainda bem esclarecido,
crê-se que a urocortina participe na eliminação dos PGAs através dos receptores
de CRF existentes nas células de Kupffer, contribuindo para a melhoria da ND62.
Num estudo que avaliou as propriedades anti-PGAs da lisozima, verificou-se que
esta acelera o turnovercelular dos PGAs, neutraliza os sinais próinflamatórios
e reforça a eliminação renal destes produtos in vivo63.
Num estudo efectuado em ratos, em que foi induzido o aparecimento de ND através
da utilização de estreptozotocina, observou-se que a heparina de baixo peso
molecular (HBPM) exerce um efeito antagonista no RPGA, verificando-se ainda
que, com o tratamento com este anti-coagulante, ocorria uma diminuição da
proteína s100 e do TGF-ß43.
O XlF-III, um novo composto aspirina-cumarina, demonstrou reduzir os níveis de
PGAs, de TGF-ß1, de CTGF e a albuminúria, em modelos animais com ND, induzida
pela estreptozotocina64.
Os inibidores da enzima conversora da angiotensina (IECAs) e os antagonistas da
angiotensina II (ARAs), parecem diminuir a formação dos PGAs, em estudos in
vitroe em modelos animais com DM 165. Para além disso, verifica-se que os
IECAs, nomeadamente o perindopril, induzem a expressão de sRPGA, promovendo,
assim, um mecanismo adicional de inibição da lesão de órgãos-alvo10,66.
As fontes dietéticas de PGAs são actualmente consideradas como um importante
componente do poolendógeno de PGAs67, ao contrário do que ocorreu durante muito
tempo, em que este componente exógeno era praticamente ignorado por se
considerar que a sua absorção era muito precária. Em estudos realizados em
ratos, verificou-se que o consumo de alimentos ricos em PGAs contribui de forma
significativa para o desenvolvimento da ND na DM 1 e na DM 2, constatando-se
que a restrição dietética destes produtos previne o seu desenvolvimento68. Uma
dieta pobre em PGAs, administrada num ensaio clínico, resultou na diminuição no
soro dos níveis de PGAs e de marcadores inflamatórios como a proteína C
reactiva69. Nos últimos anos, estudos realizados em humanos têm demonstrado que
uma redução no consumo de PGAs, determinada pelo tempo e temperatura de
preparação dos alimentos promove a diminuição dos níveis séricos de PGAs, de
mediadores inflamatórios e de lipoproteína de baixa densidade glicada ou
oxidada em diabéticos e dos níveis circulantes de PGAs em insuficientes
renais70. Um nível seguro e óptimo para a ingestão dos PGAs dietéticos, com o
objectivo de prevenir a nefropatia diabética não foi ainda estabelecido. No
entanto, em estudos animais, a redução em 50% da ingestão dos PGAs foi
associada a níveis reduzidos de stress oxidativo, a uma menor resistência à
insulina e menor deterioração da função renal com a idade, bem como a uma maior
sobrevida67.
Tem sido dada especial atenção às dietas ricas em proteínas e pobres em
hidratos de carbono, frequentemente utilizadas para perda ponderal, pelos
diabéticos e indivíduos com doenças cardiovasculares, que são especialmente
abundantes em PGAs e que propiciam à formação de novos PGAs após serem
cozinhadas. Este tipo de padrão alimentar pode aumentar a ingestão de PGAs e
assim contribuir para o desenvolvimento de patologias a longo prazo71,72.
A formação de novos PGAs durante o processamento dos alimentos pode ser
reduzida através do recurso a técnicas de cozedura com vapor, por curtos
períodos de tempo e a baixas temperaturas, bem como através da utilização de
ingredientes ácidos como o sumo de limão ou o vinagre72.
Agentes hipoglicemiantes orais como a metformina e a pioglitazona, diminuem a
formação dos PGAs pelo facto de reduzirem a hiperglicemia, mas também têm
demonstrado inibir, in vitroe in vivo,a formação dos PGAs, a formação de pontes
cruzadas com melhoria da função endotelial, independentemente das propriedades
anti-hiperglicémicas que apresenta73,74.
Para além dos agentes descritos, existem outros em estudo, que têm demonstrado
benefícios a diferentes níveis, como por exemplo, na neuropatia diabética,
estando a ser analisado o seu potencial terapêutico na ND.
Conclusão
Os PGAs contribuem de forma clara e relevante para o aparecimento e progressão
da ND, representando um alvo promissor de novas intervenções terapêuticas.
Os tratamentos actualmente estabelecidos para ND envolvem essencialmente a
redução da pressão arterial tendo como base o bloqueio do SRAA e incluem os
IECAs e os ARAs.
Na última década, diferentes agentes têm vindo a ser testados no contexto dos
diferentes mecanismos fisiopatológicos da ND. Novas estratégias terapêuticas
que têm vindo a ser analisadas maioritariamente em contexto pré-clínico,
demonstraram ser promissoras na redução dos efeitos dos PGAs nesta patologia.
Num futuro próximo será fundamental conjugar as investigações sobre as
estratégias interventivas que actuam nos diferentes mecanismos patogénicos da
ND, no sentido de actuar numa fase ainda precoce do desenvolvimento desta
patologia, preconizando assim, a concretização de um dos grandes objectivos, se
não o principal, da medicina: a prevenção.