Associação entre o ganho de peso e a prevalência e gravidade de sibilância e
asma no primeiro ano de vida
INTRODUÇÃO
As doenças que cursam com sibilância são extremamente comuns na infância, sendo
responsáveis por inúmeras consultas em serviços de emergência, hospitalizações
e gastos com medicamentos1.
Estudos prospectivos indicam que a maioria dos lactentes sibilantes apresenta
sintomas de forma transitória, evoluindo com remissão espontânea da
sibilância2,3. Entretanto, muitos lactentes apresentam quadros graves e/ou
recorrentes que, não raramente, evoluem com sequelas ou com persistência dos
sintomas4.
A asma é uma doença de alta prevalência no Brasil, acometendo cerca de 24% das
crianças em idade escolar e 19% dos adolescentes5. Apesar de não ser facilmente
diagnosticada em lactentes, a asma é um dos principais diagnósticos a ser
considerado nos lactentes com sibilância recorrente. Estima-se que um terço dos
asmáticos já apresente sintomas no primeiro ano de vida, sendo a manifestação
precoce da doença um marcador de gravidade6.
O estudo EISL (Estudio Internacional de Sibilancias en Lactantes) representa um
marco na investigação epidemiológica da sibilância e da asma em lactentes, pois
de forma pioneira estudou com método padronizado e validado7,8a prevalência e o
impacto dessas doenças em múltiplos centros da América Latina e da Europa1. Os
dados brasileiros deste estudo são derivados de sete capitais, com quase 13000
entrevistas, e claramente destacam a importância da sibilância na infância
precoce. De acordo com o estudo EISL, praticamente metade dos lactentes
brasileiros apresenta algum episódio de sibilância no primeiro ano, um quarto
apresenta quadros recorrentes e 10% recebe o diagnóstico médico de asma1. Além
de documentar o impacto da sibilância no primeiro ano de vida, o estudo EISL
também procurou identificar fatores de risco ou proteção a esses quadros.
Desta forma, as infecções respiratórias precoces, o género masculino, a
história familiar de asma e a presença de tabagismo materno na gestação e de
eczema atópico foram identificados como os principais fatores de risco,
enquanto o aleitamento materno foi fator de proteção9.
Recentemente, o ganho de peso acelerado na infância tem sido apontado como
fator de risco para diversos problemas respiratórios, como para maior
incidência de sibilância precoce10, de sintomas respiratórios na idade pré-
escolar11 e de asma na idade escolar12.
O objetivo deste estudo foi avaliar possíveis associações entre diferentes
padrões de ganho de peso no primeiro ano de vida com a prevalência e gravidade
de sibilância e asma entre os lactentes participantes do estudo EISL em sete
capitais brasileiras.
MÉTODOS
Este estudo analisou as respostas ao questionário padronizado do estudo EISL
realizado em cinco cidades brasileiras: São Paulo (SP), Recife (PE), Curitiba
(PR), Belém (PA) e Cuiabá (MT). Detalhes dos métodos do estudo EISL podem ser
consultados em publicações prévias1,7. De modo resumido, o questionário padrão
do estudo EISL foi aplicado a pais e/ou responsáveis de lactentes entre 12 e 15
meses de idade que procuravam atendimento de rotina em unidades básicas de
saúde ou compareciam em campanhas de vacinação. A aprovação do Comité de Ética
local e o consentimento informado dos pais e/ou responsáveis foram obtidos em
todos os centros participantes.
Os seguintes dados do questionário EISL foram avaliados: presença de sibilância
no primeiro ano de vida (pergunta 1), presença de sibilância recorrente no
primeiro ano de vida (três ou mais episódios, pergunta 2), necessidade de
procura de serviço de emergência para tratamento de episódio de sibilância
(pergunta 8), hospitalização por sibilância (pergunta 10) e diagnóstico médico
de asma (pergunta 11). Foram considerados como tendo sibilância grave os
lactentes com sibilância recorrente que apresentaram hospitalização por
sibilância ou mais de seis episódios de sibilância.
Também foram analisados os dados referidos de peso ao nascimento, do peso no
momento da entrevista e do tempo de aleitamento materno. Os dados de peso foram
utilizados para cálculo do Z-score(z) do peso para idade13 utilizando o
programa WHO Anthro versão 3.0.1. Os lactentes foram classificados como com
ganho de peso acelerado e ganho de peso excessivo quando a variação do Z-
scorepara idade no primeiro ano de vida foi superior a 0,67 e 2,01,
respectivamente14.
Todos os dados foram agrupados em uma planilha Excel 2007 e a análise
estatística foi feita pelo softwareIBM SPSS versão 18.0 para Windows. A
associação dos diferentes padrões de ganho de peso com os desfechos de
sibilância e asma foi avaliada pelo teste do Qui-quadrado.
Análise de regressão logística foi realizada para avaliar conjuntamente a
associação dos padrões de ganho de peso e do aleitamento materno com os
desfechos de sibilância e asma. Teste t de Student para amostras independentes
foi utilizado nas comparações das variáveis numéricas e teste de Pearson para
estudo das correlações. Considerou-se o nível de significância de 0,05 para a
rejeição da hipótese de nulidade.
RESULTADOS
Dos 10347 questionários recolhidos, 1188 foram excluídos da análise por falta
de dados sobre os pesos. Entre os 9159 lactentes avaliados, 2104 eram de São
Paulo, 788 de Recife, 2235 de Curitiba, 3023 de Belém e 1009 de Cuiabá. Do
total, 4512 (49,2%) lactentes eram do género masculino e 4051 (44,2%)
apresentaram sibilância no primeiro ano de vida. As prevalências das diferentes
questões do questionário EISL referentes à sibilância estão expostas no quadro
1. Os dados antropométricos referidos são mostrados no quadro_2. Ganho de peso
acelerado foi observado em 5097 (55,7%) lactentes e ganho de peso excessivo em
1904 (20,8%). O tempo médio de aleitamento materno referido foi de 4,6 ± 2,4
meses e 4392 (48,0%) lactentes foram amamentados até o sexto mês de vida. A
sobreposição dos valores do peso ao nascimento e do peso com um ano de vida dos
lactentes avaliados, com os valores previstos é mostrada na figura_1.
Quadro_2
Na análise univariada, o ganho de peso acelerado associou-se significativamente
com maior ocorrência de sibilância recorrente e de hospitalizações por
sibilância (quadro_3), enquanto que o ganho de peso excessivo associou-se com a
maior ocorrência de sibilância grave, hospitalizações por sibilância e
diagnóstico médico de asma (quadro_3). Nas duas análises, a presença de
aleitamento materno por pelo menos seis meses associou-se significativamente
com menor ganho de peso no primeiro ano de vida (quadro_3).
Quadro_3
O ganho de peso acelerado persistiu significativamente associado às
hospitalizações por sibilância, quando avaliado em conjunto com a presença de
aleitamento materno (pelo menos seis meses) em análise de regressão logística
(quadro_4). Nesta análise conjunta, o ganho de peso excessivo permaneceu
significativamente associado com hospitalizações por sibilância e com o
diagnóstico médico de asma (quadro_4).
Quadro_4
O ganho de peso, em Z-score, foi significativamente maior nos lactentes com
diagnóstico de asma do que nos sem este diagnóstico (média: 1,06z versus0,91z,
respectivamente; p=0,01), nos lactentes com hospitalização por sibilância
(média: 1,15z versus0,90z; p<0,001) e nos com sibilância grave (média: 1,05z
versus0,91z; p=0,01). O ganho de peso em Z-scorecorrelacionou -se negativamente
com o peso de nascimento (r= -0,60; p<0,001).
DISCUSSÃO
Neste estudo avaliámos o ganho de peso no primeiro ano de vida de um grande
número de lactentes brasileiros, selecionados de forma aleatória e distribuídos
por capitais de todas as regiões do país. Os padrões de ganho de peso na
infância têm-se alterado rapidamente nos últimos anos no Brasil. Dados da
Pesquisa Nacional de Demografia em Saúde, de 2006, mostraram que 6% das
crianças menores de um ano no Brasil são consideradas obesas, provavelmente em
decorrência de práticas inapropriadas de alimentação, como a interrupção
precoce do aleitamento materno e a introdução inadequada de alimentação
complementar15.
Mesmo assim, os achados do nosso estudo não deixaram de ser surpreendentes. A
elevada proporção de lactentes (55,7%) com ganho de peso no primeiro ano de
vida superior a 0,67 Z-scoredo peso para idade, um reconhecido ponto de corte
para se avaliar mudanças relevantes da condição nutricional16,17, associada a
uma elevada proporção de lactentes (20,8%) com ganho de peso superior a 2,01 Z-
score(o triplo do ponto de corte), claramente alertam para uma possível
epidemia de obesidade infantil no Brasil e evidenciam a necessidade da
implementação de políticas públicas de prevenção e orientação nutricional para
essa faixa etária.
O ganho de peso excessivo em fases precoces da vida tem sido considerado um dos
mais importantes fatores relacionados ao desenvolvimento de doenças crónicas
não transmissíveis. Esse período é considerado crítico, uma vez que por um lado
os sistemas e órgãos se encontram em franco crescimento e desenvolvimento, mas
ainda são imaturos.
Por isso, nesta fase, as repercussões são muito mais intensas e duradouras.
Esse conceito é chamado de programação metabólica18. Fortes evidências já
correlacionaram o ganho de peso acelerado nos primeiros anos de vida com
obesidade em fases posteriores da infância e na idade adulta16,19. A obesidade,
por sua vez, é cada vez mais relacionada com a asma, havendo um nítido
paralelismo entre o aumento da prevalência das duas doenças nas últimas
décadas20. Os mecanismos envolvidos na inter-relação entre essas duas doenças
ainda não estão totalmente esclarecidos e envolvem fatores genéticos,
hormonais, imunológicos e mecânicos21.
Além desses, a inflamação, presente nas duas doenças, tem sido descrita como um
mecanismo central na sua associação20. A obesidade é apontada como um fator de
risco para o desenvolvimento de asma22, para maior gravidade da doença23, para
maior comprometimento da função pulmonar20 e pior resposta ao tratamento21.
Poucos estudos, até o momento, avaliaram a associação entre o ganho de peso nos
primeiros anos de vida e a prevalência e gravidade de sibilância e asma.
Recentemente, van der Voort et al.publicaram os resultados do seguimento de uma
coorte de 5125 recém-nascidos holandeses acompanhados até os quatro anos de
vida11.
Nesta coorte, o ganho de peso acelerado no primeiro trimestre de vida associou-
se significativamente com maior ocorrência de sintomas respiratórios como
sibilância, dispneia e expectoração. Em outra coorte europeia, de 9806 recém-
nascidos alemães seguidos até os 10 anos de vida, também houve associação do
ganho de peso acelerado nos dois primeiros anos de vida com maior prevalência
de crianças com diagnóstico médico de asma12.
Estes achados são concordantes com os encontrados no presente estudo, aonde o
ganho de peso acelerado associou-se principalmente com as formas mais graves de
sibilância (hospitalizações e sibilância recorrente, (quadro_3). De acordo com
os nossos dados, a associação do ganho de peso no primeiro ano de vida com a
sibilância e a asma parece depender, em parte, da intensidade do ganho de peso.
Quando analisamos os lactentes com ganho de peso excessivo, encontramos maior
número de associações significativas com os desfechos de sibilância grave e
também com o diagnóstico médico de asma (quadro_3). Outros autores também já
encontraram achados semelhantes12.
O escasso número de publicações relativas à associação entre o ganho de peso
nos primeiros anos de vida e o desenvolvimento de sintomas respiratórios
dificulta análises mais conclusivas, mas, em consonância com os nossos achados,
essa associação aparentemente concentra-se em desfechos referentes à sibilância
de maior gravidade. O estudo de Paul et al.ilustra esta afirmação14. Neste
estudo, após seguimento de 197 lactentes por um período de três anos, houve
associação significativa entre o ganho de peso acelerado nos primeiros anos de
vida e a maior necessidade de corticóides orais e de visitas a serviços de
urgência para o tratamento de crises de sibilância, não havendo associação com
outros desfechos, como o número de dias livres de sintomas14. A própria coorte
alemã já citada12, não encontrou associação entre o ganho de peso no primeiro
ano de vida e a presença de sibilância, mas apenas com o diagnóstico médico de
asma. O próprio diagnóstico médico de asma, difícil de ser realizado nos
primeiros anos de vida, provavelmente reflete este mesmo achado, já que tende a
se concentrar nos lactentes que apresentam episódios de sibilância mais graves
e/ou recorrentes.
O menor crescimento pulmonar no primeiro ano de vida, observado em lactentes
com ganho de peso acelerado, foi apontado como um dos possíveis mecanismos
responsáveis pela maior morbilidade respiratória dessas crianças24. Este
mecanismo também poderia explicar a maior ocorrência de sibilância recorrente
observada em lactentes com ganho de peso acelerado após bronquiolite viral25.
Um possível viés na análise da relação entre o ganho de peso precoce e o
desenvolvimento de sibilância e asma é a presença do aleitamento materno. Sabe-
se que o aleitamento materno é um dos fatores mais importantes relacionados à
programação do ganho de peso em fases precoces da vida26. Os lactentes
amamentados crescem de forma diferente daqueles que recebem fórmulas infantis,
com tendência a ganhar menos peso, mas sem prejuízo no crescimento estatural26.
Este fato pode ser observado no nosso estudo, com prevalências de amamentação
até o sexto mês de vida significativamente menores nos lactentes com ganho de
peso acelerado ou excessivo (quadro_3). Além disso, o aleitamento materno é um
conhecido fator de proteção para sibilância nos primeiros anos de vida,
identificado pelo próprio estudo EISL9. Assim, a persistência da associação
significativa entre o ganho de peso acelerado e excessivo com hospitalizações
por sibilância e do ganho de peso excessivo com o diagnóstico médico de asma na
análise conjunta com os dados de aleitamento materno (quadro_4) reforçam a
validade dos nossos achados.
Em nosso conhecimento, este é o primeiro estudo latinoamericano a avaliar as
relações entre o ganho de peso no primeiro ano de vida e a prevalência de
sibilância e asma. A identificação de um fator de risco evitável para a asma e
para a sibilância grave pode ser particularmente importante para lactentes de
alto risco, nos quais pouco se pode atuar de forma preventiva, uma vez que os
principais fatores envolvidos ou são genéticos (historia familiar de asma, por
exemplo) ou de difícil intervenção, como as infecções virais.
A principal limitação deste estudo, em nossa opinião, foi a utilização de dados
referidos e não mensurados de peso nas análises. Seguramente a mensuração dos
valores de peso traria maior confiabilidade aos nossos achados.
No entanto, o ganho de peso dos lactentes é um dos principais indicadores de
saúde na percepção dos pais que, usualmente, o monitorizam cuidadosamente.
Em conclusão, a maioria dos lactentes avaliados no presente estudo apresentou
ganho de peso superior ao esperado durante o primeiro ano de vida. O ganho de
peso acelerado e excessivo no primeiro ano de vida foram significativamente
associados à formas mais graves de sibilância, enquanto que o ganho de peso
excessivo também foi significativamente associado ao diagnóstico médico de
asma, independentemente da presença do aleitamento materno.