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EuPTCVHe0871-97212013000300006

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National varietyEu
Year2013
SourceScielo

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Nefrite intersticial aguda induzida pela piperacilina-tazobactam?

INTRODUÇÃO A nefrite intersticial aguda (NIA) representa uma causa frequente de lesão renal, geralmente associada a deterioração abrupta da função renal.

Histologicamente caracteriza-se por um infi ltrado celular intersticial (incluindo células TCD4+, macrófagos, eosinófilos e células plasmáticas) acompanhado de edema intersticial sem lesão capilar ou glomerular associada1.

As doenças auto-imunes, as infecções e os fármacos destacam-se como principais causas de NIA2. Dada a sua crescente utilização, os fármacos são actualmente os agentes etiológicos mais frequentes, dos quais são exemplo penicilinas, cefalosporinas, rifampicina, ciprofloxacina, sulfonamidas, anti-inflamatórios não esteróides, cimetidina, omeprazol e indinavir3.

A NIA provocada por fármacos é considerada uma reacção de hipersensibilidade tardia mediada por células T4,5, não dependente de dose2 e que pode tornar-se clinicamente evidente em média duas semanas após o início do tratamento6. Neste modelo de reacção presume-se que os fármacos desencadeiem reacções específicas contra os antigénios endógenos renais pela formação de reacções tipo-hapteno ou por imitação das proteínas renais nativas4,5.

O diagnóstico baseia-se numa história clínica completa tendo em conta a relação temporal entre a toma do fármaco suspeito e o início da NIA. Existem actualmente diversos algoritmos/escalas de avaliação de causalidade, sendo o algoritmo de Naranjo7, baseado na avaliação clínica, um dos mais utilizados.

A apresentação clínica da NIA caracteriza-se por febre, exantema e eosinofilia periférica num doente com evidente deterioração da função renal sem outra causa aparente de insuficiência pré e pós -renal. Contudo, a biopsia renal é o único método de diagnóstico definitivo2.

Deve-se considerar a possibilidade de biopsia renal nos casos em que não ocorre melhoria da função renal após a retirada da medicação, em que o doente está estável para suportar o procedimento e concorda com o mesmo.

As indicações de biopsia renal são a presença de proteinúria >2g/24h ou síndrome nefrótica, hematoproteinúria persistente, insuficiência renal aguda que não resolve em 3-4 semanas, insuficiência renal aguda de origem não óbvia ou com cilindros hemáticos e insuficiência renal crónica com rins de dimensões conservadas2. Caso a biopsia seja contra -indicada, o doente poderá fazer um teste terapêutico com corticóides se a suspeita clínica for forte.

As contra-indicações para a realização de biopsia são a presença de diátese hemorrágica, rim único, incapacidade de o doente cooperar no procedimento percutâneo, rins de dimensões reduzidas, hipertensão não controlada, recusa do doente e infecção urinária activa2.

Apesar de estarem bem documentadas reacções de NIA com a utilização de antibióticos beta -lactâmicos2, raros são os casos associados à administração de piperacilina-tazobactam8,9,10, uma penicilina semi-sintética de largo espectro, activa contra muitas bactérias aeróbias Gram-positivas e Gram - negativas e bactérias anaeróbias e que exerce a sua actividade bactericida pela inibição da síntese da parede celular.

A relevância deste caso clínico prende-se com o facto de a NIA representar uma causa importante de insuficiência renal aguda e colocar problemas diagnósticos fundamentalmente nos doentes polimedicados. Pretendemos igualmente alertar para a possibilidade de reacções menos frequentes relacionadas com este antibiótico em particular, cuja utilização é cada vez mais frequente em meio hospitalar.

CASO CLÍNICO Doente do sexo feminino, 61 anos, caucasiana, não fumadora, com antecedentes pessoais de obesidade (IMC= 31,6 kg/m2), doença arterial periférica grave, submetida a bypassfemoral bilateral (em 2006 e 2007), diabetes mellitustipo 2 não insulino-tratada, hipertensão arterial (ambos com cerca de 21 anos de evolução), insuficiência renal crónica e cardiopatia isquémica. Medicada diariamente com omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina, gabapentina, clopidogrel, pravastatina, amitriptilina e amlodipina. Sem queixas sugestivas de alergia respiratória, alergia alimentar ou hipersensibilidade a fármacos conhecida.

Internada no serviço de Cirurgia Vascular por isquemia crítica do membro inferior esquerdo, tendo sido submetida a arteriografia e tentativa de angioplastia, à qual sucedeu amputação da perna esquerda, por agravamento clínico.

Foi medicada desde o segundo dia de internamento com piperacilina -tazobactam 2,25g de 6/6h EV, metamizol 2g de 8/8h EV SOS e enoxaparina, para além da sua terapêutica habitual (omeprazol, metformina, glimepirida, vildagliptina, gabapentina, clopidogrel, pravastatina e amlodipina). Após três semanas de internamento iniciou quadro de exantema morbiliforme muito pruriginoso no tronco e membros, sem outras queixas associadas, nomeadamente queixas digestivas, urinárias ou cardiovasculares, a que se associou agravamento franco da função renal (aumento da creatinina de 2,0 mg/dL para 6,6 mg/dL) com concomitante acidemia metabólica e posterior eosinofilia periférica (valor máximo:1.94x109/L). O exame de urina apresentava leucocitúria, proteinúria e eritrocitúria. A ecografia renal revelou rins em topografia habitual, medindo cerca de 10,9 cm à direita e cerca de 10 cm à esquerda, com contornos bosselados, estando a espessura parenquimatosa e a diferenciação parênquimo- sinusal globalmente preservadas. Árvores excretoras renais não ectasiadas.

O antibiótico foi interrompido, a doente medicada com anti -histamínico e manteve a restante terapêutica nomeadamente o metamizol. Passada uma semana sem melhoria das queixas cutâneas e persistindo a eosinofilia periférica, foi pedida observação por Imunoalergologia. Na mesma altura iniciou febre com picos superiores a 40ºC, com fraca resposta aos antipiréticos e sem foco de infecção evidente.

Ao exame objectivo foi possível objectivar lesões descamativas, maculopapulares, de predomínio no tronco, abdómen e coxas. Apresentou -se sempre hemodinamicamente estável e com débitos urinários dentro da normalidade.

Analiticamente apresentava creatinina sérica de 5,0 mg/dL, leucocitose (18,8x10/L) e proteína C reactiva elevada (12,8mg/dL).

A associação entre lesões cutâneas, eosinofilia periférica e degradação da função renal levou a considerar o diagnóstico de nefrite intersticial alérgica, pelo que iniciou corticoterapia per oscom prednisolona 20 mg toma única durante cinco dias, seguida de diminuição progressiva da dose. Obteve-se resposta muito favorável, com desaparecimento da eosinofilia em três dias, resolução completa do quadro cutâneo ao fim de seis dias e melhoria progressiva dos valores laboratoriais com recuperação da função renal ao fim de 10 dias.

Apesar da urocultura e das hemoculturas serem negativas, a elevação dos parâmetros laboratoriais de inflamação associada a febre motivou simultaneamente o início de antibioterapia empírica com ceftriaxona, que cumpriu durante 10 dias sem reacção adversa. Ainda durante o internamento, que se prolongou por bacteriemia a Staphylococcus aureus e pneumonia nosocomial sem agente isolado, foi medicada com meropenem e linezolide sem reacção.

A Figura_1 ilustra as alterações apresentadas durante o internamento.

Após a alta, na avaliação subsequente por Imunoalergologia, não foi feita qualquer investigação a piperacilina-tazobactam, uma vez que neste tipo de reacções sempre indicação para evicção do fármaco suspeito. Contudo, foi realizada prova de provocação oral controlada com placebo com beta -lactâmico alternativo ' amoxicilina-ácido clavulânico ' que manteve durante uma semana na dose de 875 mg + 125 mg de 8/8h, sem qualquer tipo de reacção adversa, nomeadamente agravamento da função renal.

A doente recebeu indicação para manter evicção completa de piperacilina - tazobactam (cartão identificativo) com base no critério clínico de provável NIA a piperacilina-tazobactam (Quadro_1), podendo ser prescritos todos os outros beta-lactâmicos. Desde então não voltou a ter qualquer outro episódio semelhante.

DISCUSSÃO A NIA desencadeada por fármacos representa uma causa crescente de insuficiência renal aguda na prática clínica5. É particularmente difícil determinar a causa específica de insuficiência renal aguda em doentes com múltiplas patologias de base, especialmente quando sob diversos tipos de tratamentos. No presente caso clínico, a introdução de piperacilina-tazobactam veio, provavelmente, desencadear uma reacção sugestiva de NIA numa doente polimedicada e com múltipla patologia.

Outro agente nefrotóxico, o contraste utilizado durante a arteriografia, poderia estar envolvido na NIA, mas devido à relação temporal entre a administração da piperacilina -tazobactam e o agravamento clínico, bem como a sua resolução com a sua interrupção, tornam difícil esta hipótese. Outras causas de eosinofilia periférica e exantema cutâneo foram excluídas, nomeadamente a síndrome de DRESS (drug rash with eosinophilia and systemic symptoms)devido a ausência de nódulos palpáveis, envolvimento de outro órgão, resolução em <15 dias e serologias negativas associadas a um exantema maculopapular com extensão <50% da área corporal, pouco sugestivo de DRESS. A biopsia renal, que consolidaria o diagnóstico, não foi realizada, uma vez que a doente apresentou melhoria da função renal após a retirada da medicação e não podíamos excluir a hipótese de infecção urinária activa. Contudo, a clínica provável segundo o algoritmo de Naranjo7, associada a uma gradual melhoria da função renal após interrupção do fármaco e instituição de corticoterapia, reforçam o diagnóstico de NIA.

Poucos casos de NIA à piperacilina-tazobactam estão documentados até à data8,9,10e apenas no primeiro caso descrito foi realizada biopsia renal8. Nos restantes casos o diagnóstico foi estabelecido tendo em conta a clínica apresentada, não seguindo nenhum algoritmo de decisão.

Num dos casos a NIA foi interpretada como resultante de reactividade cruzada entre a piperacilina e o meropenem10.

Contudo, no presente caso clínico, a doente não sofreu reagravamento da função renal após início quer do meropenem quer do linezolide.

Sempre que surja suspeita de NIA secundária a fármacos, as medidas fundamentais passam pela identificação do fármaco suspeito e a sua suspensão. Os doentes que interrompem o tratamento antes das duas semanas do início da NIA (avaliado pelo aumento de creatinina sérica) são mais propensos a recuperar os valores basais da função renal do que os que permanecem com a terapêutica com o fármaco suspeito durante três ou mais semanas2.

No presente caso este facto torna -se particularmente relevante, uma vez que a doente apresentava insuficiência renal crónica e um agravamento da função renal poderia condicionar o início de diálise.

A utilização de corticoterapia mantém-se controversa, com estudos a apresentarem resultados contraditórios1. No presente caso, apenas com introdução de prednisolona se alcançou melhoria clínica e analítica significativa.

Neste tipo de reacção de hipersensibilidade, não são de esperar fenómenos de reactividade cruzada, pelo que os outros fármacos beta-lactâmicos são alternativas terapêuticas viáveis. Contudo, decidiu-se realizar prova de provocação oral controlada com placebo com amoxicilina-ácido clavulânico, de modo a tranquilizar a doente e cuidadores.

CONCLUSÃO O diagnóstico de nefrite intersticial alérgica é muitas vezes difícil, sendo que a lesão renal pode surgir semanas após a introdução de um fármaco.

Tendo em conta o envelhecimento populacional, o número crescente de doentes polimedicados e com múltipla patologia, torna -se cada vez mais importante a alta suspeição diagnóstica. No presente caso clínico esta hipótese foi colocada pela existência de exantema cutâneo associado a um aumento de eosinofilia periférica e agravamento da função renal três semanas após o inicio de antibioterapia com piperacilina-tazobactam.

A interrupção imediata do fármaco e a introdução de corticoterapia numa fase inicial do processo patológico possibilitaram a evolução clínica favorável apresentada pela doente.


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