Reabilitação
Cuidados Continuados Pediátricos – Abordagem Multidisciplinar – Mesa Redonda
Reabilitação
Rosa Amorim1
1Assistente Graduada de Medicina Física e Reabilitação, S. Fisiatria do
Hospital Maria Pia, CHPorto
INTRODUÇÃO
A Medicina Física e de Reabilitação (MFR) é reconhecida como especialidade
médica desde há cerca de 60 anos, tendo o seu crescimento sido impulsionado
pela II Guerra Mundial, com o elevado número de jovens mutilados a necessitar
de cuidados. O mesmo se passou em Portugal durante a Guerra Colonial.
Trata-se de uma especialidade com uma visão holística do indivíduo e que tem
por objectivo o desenvolvimento do seu potencial funcional e a sua reintegração
familiar, profissional e social, tendo em conta a sua deficiência e as
limitações ambientais.
Ao longo do tempo a MFR tem vindo a evoluir de acordo com as mudanças da
sociedade em que vivemos. Assim, actualmente o seu âmbito não se limita aos
grandes traumatizados da guerra mas estende-se a áreas mais específicas, como a
reabilitação neurológica, cardíaca, reumatológica, pneumológica e pediátrica,
entre outras.
A Reabilitação Pediátrica tem como principais objectivos a habilitação/
reabilitação da criança com deficiência. A sua actividade é efectuada por uma
equipa multidisciplinar que integra diversos profissionais e que deve ser
coordenada por um médico fisiatra. Todo o trabalho dessa equipe é centrado na
criança e na família, e deve ter em conta as características e especificidades
próprias da criança e do seu desenvolvimento.
CUIDADOS CONTINUADOS
Definem-se como os cuidados de convalescença, recuperação e reintegração de
pessoas em situação de dependência,e destinam-se a pessoas de todas as idades
com dependência funcional, doença crónica ou doença incurável em estado
avançado (portal da saúde www.portaldasaude.pt).
Podem ser prestados em Unidades de internamento ' curta, média e longa duração
', Unidades de ambulatório e equipas domiciliárias, e estão organizados na Rede
Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI).
A necessidade de cuidados continuados na criança e no adolescente tem vindo a
aumentar na medida em que a taxa de sobrevivência nas situações crónicas e
incapacitantes, congénitas ou adquiridas, se elevou de forma significativa.
Doentes que há alguns anos não ultrapassavam a infância, chegam agora à
adolescência e à idade adulta colocando novas questões tanto a nível de
cuidados de saúde como de integração sócio-familiar.
INCAPACIDADE NA CRIANÇA
Nos últimos anos a classificação de incapacidade sofreu uma alteração
significativa ' até 2002 o conceito de incapacidade dependia apenas da
deficiência do indivíduo e todo o processo de reabilitação era centrado neste;
após a aprovação da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade
e Saúde (CIF) o conceito de incapacidade passou a depender também do impacto
das barreiras do ambiente nas actividades da pessoa com deficiência. A
incapacidade na criança é assim definida como a redução crónica na capacidade
de participar nas actividades normais das crianças com a mesma idade.
CAUSAS MAIS FREQUENTES DE INCAPACIDADE NA CRIANÇA E NO ADOLESCENTE
Congénitas
Paralisia Cerebral, Spina Bífida, Doenças neuromusculares, Síndromes genéticos,
Doenças metabólicas, Paralisia obstétrica do Plexo Braquial,
Adquiridas
Traumatismo Craneo-encefálico (TCE), Traumatismo Vértebro-medular (TVM),
Infecções de SNC, Patologia tumoral do SNC, AVC, Artrite Crónica Juvenil.
Todas estas situações podem originar quadros com limitação funcional a vários
níveis ' motor, sensorial, de comunicação/ linguagem, cognitivo ' com
repercussão nas actividades da vida diária da criança e no seu grau de
dependência.
Embora haja necessidades específicas relacionadas com cada uma das patologias
em questão, o seguimento da criança com deficiência grave tem muitos pontos
comuns e vários problemas idênticos podem ser encontrados em casos com
diagnósticos diversos.
PROBLEMAS COMUNS
Contracturas
A prevenção das contracturas músculo-esqueléticas é fundamental e básica em
qualquer programa de reabilitação. Elas surgem pela imobilidade associada à
deficiência motora e levam a alterações estruturais tanto do músculo
contracturado como das articulações envolvidas, com o aparecimento de fibrose e
dor. Podem ser mais graves em algumas patologias neurológicas, como nas doenças
neuromusculares, devido ao desequilíbrio muscular entre agonista/antagonista.
A mobilização passiva ou activa-assistida, conforme a situação do doente, e o
estiramento do músculo(s) em risco de contracturar devem ser efectuados
regularmente, assim como a utilização de ajudas técnicas como ortóteses
adaptadas aos segmentos que queremos posicionar (exemplo: ortóteses para
posicionamento das tíbio-társicas a 90º para evitar a postura em equinovaro).
Espasticidade
Define-se como resistência ao estiramento dependente da velocidade com que este
é executado, ou seja, há um aumento da resistência do músculo ao seu
alongamento se elevarmos a velocidade desse movimento de alongamento
(hipertonia emnavalha de ponta e mola). Faz parte do síndrome do primeiro
neurónio motor e associa-se a hiperreflexia.
É frequente em várias patologias neurológicas que condicionam deficiência
motora na criança, como a paralisia cerebral, TCE, lesões medulares ou outras
patologias que envolvam o SNC.
Pode dar origem as espasmos dolorosos, contracturas e deformidades, e
interferir a nível da marcha e nos cuidados de higiene.
No entanto a espasticidade pode trazer alguns benefícios, por exemplo, a nível
circulatório, impedindo o aparecimento de quadros de trombose venosa profunda,
frequente em doentes paralizados, diminuindo o risco de osteoporose e, em
alguns casos, permitindo a marcha ou a verticalização pela hipertonia dos
membros inferiores.
Portanto todos estes factores devem ser ponderados antes de se iniciar o
tratamento.
O tratamento da espasticidade tem várias vertentes que podem ser utilizadas em
conjunto:
Técnicas de estiramento muscular
Ortóteses e gessos
Tratamento farmacológico
Bomba de baclofeno
Rizotomia
Toxina botulínica
Problemas vertebrais
As deformidades do ráquis são frequentes em crianças e adolescentes com
deficiência motora, principalmente a escoliose, quase inevitável nas que
deambulam em cadeira de rodas. A progressão da escoliose deve-se a vários
factores, como o desequilíbrio muscular, a postura, factores biomecânicos e
estruturais.
O seu seguimento faz-se com controlo radiológico seriado, principalmente nas
fases de crescimento rápido.
As ortóteses tóraco - lombares podem ser usadas criteriosamente, nas curvas
entre os 20 e os 40 graus, desde que não agravem a função pulmonar, que nestes
doentes está já muitas vezes diminuída. É importante ter a noção de que as
ortóteses de tronco, os chamados coletes, não impedem a progressão da escoliose
mas apenas atenuam a sua progressão.
Nas curvas acima dos 30/40 graus é recomendado tratamento cirúrgico.
A hipercifose é também frequente e deve ser tratada tanto com ortóteses
cérvico-toraco-lombares como, nos casos mais graves, com cirurgia.
Na prevenção destas deformidades vertebrais é fundamental o cuidado no
posicionamento dos doentes, principalmente quando a falta de mobilidade é mais
grave. Existem modelos diversos de sistemas de posicionamento de tronco que
devem ser adaptados a cada caso e nas várias etapas do crescimento.
Úlceras de pressão
São frequentes sempre que há diminuição da mobilidade e principalmente quando
há alteração da sensibilidade, como em vários quadros neurológicos ' spina
bífida ou lesão medular traumática. Nestes últimos surgem lesões por vezes muito
graves, com atingimento de várias camadas até ao plano ósseo e que necessitam
de várias intervenções cirúrgicas e de longos períodos de imobilidade para a
sua recuperação.
É, então, fundamental investir na prevenção destas lesões, evitando as posturas
prolongadas, vigiando a pele em zonas mais susceptíveis, como proeminências
ósseas, zonas de fricção por fralda ou ortóteses, que podem não estar adequadas
devido ao crescimento da criança.
Também é importante a exposição a produtos irritantes, como urina, fezes ou
suor, e o estado nutricional da criança. Este, por sua vez, é agravado pela
perda de nutrientes através da ferida.
No tratamento, para além da eliminação da causa da pressão na pele e da limpeza
e tratamento da ferida, promovendo a cicatrização e impedindo a infecção, é
necessário manter um bom aporte nutricional e manter a zona da fralda limpa,
uma vez que grande parte destas lesões surgem nas regiões sagrada e anca.
Osteoporose
A osteoporose na criança é ainda frequentemente ignorada, principalmente se
associada a deficiência motora.
A imobilidade condicionada pela incapacidade, principalmente a incapacidade de
marcha, é o principal factor para a osteopenia na criança, muitas vezes
agravada pela própria doença (má nutrição, fraqueza muscular, medicação anti-
epiléptica, corticoesteroides).
Trata-se de uma forma de osteoporose secundária que atinge preferencialmente os
ossos longos dos membros e menos as vértebras.
São frequentes as fracturas com traumatismos minor e que muitas vezes passam
despercebidas, mais nos quadros com défice sensitivo.
Os critérios de diagnóstico da osteoporose na criança são necessariamente
diferentes dos do adulto, uma vez que na sua avaliação não podemos falar de um
pico de massa óssea, valor de densidade mineral óssea utilizado no score T na
Densitometria Óssea. A criança não atingiu esse pico e por isso a avaliação é
feita pelo score Z, valor de densidade mineral óssea comparada com indivíduos
do mesmo sexo e idade.
No entanto as unidades utilizadas são g/cm2, que é uma unidade de área. Na
criança seria desejável que o valor da DMO fosse dado em função do peso.
A existência de deformidades, principalmente a nível do colo do fémur, pode
condicionar a avaliação da DMO. Nos doentes com paralisia cerebral grave pode
ser preferível medir a DMO na extremidade distal do fémur.
Sempre que há factores de risco de osteoporose é necessário apostar na sua
prevenção.
As medidas preventivas mais importantes são:
Bom estado nutricional
Aporte adequado de cálcio e vitamina D
Diminuir a imobilidade, instituindo um programa de exercícios no sentido de
estimular a contracção muscular activa, sempre que possível, e de preferência
nos músculos antigravídicos
Promover o ortostastismo pelo maior período de tempo possível, fundamental para
o aumento da DMO; existem equipamentos para verticalização nas crianças que não
têm essa capacidade, como o plano inclinado e o standing-frame.
O tratamento farmacológico da osteoporose está muito direccionado para o
adulto, principalmente para a pós-menopausa. São raros os estudos aplicados à
criança com incapacidade motora.
Os estudos sobre o uso de bifosfonatos na criança são sobretudo feitos na
Osteogénese Imperfecta, sendo o Pamidronato o mais utilizado. Há já alguns
estudos com o alendronato.
Actualmente ainda não se sabe qual o impacto destas drogas no osso em
crescimento, uma vez que têm efeito na remodelação óssea e na cartilagem de
crescimento. O seu uso baseado apenas em dados densitométricos não está
aconselhado.
Dor
É hoje consensual que a dor, principalmente a dor crónica, em idade pediátrica
é subdiagnosticada e por isso não tratada em muitas situações. Na criança com
incapacidade esta realidade torna-se mais grave.
Existem ainda vários mitos sobre a dor na criança:
O SNC do recém-nascido ou na criança com deficiência cognitiva é demasiado
imaturo para sentir dor
As crianças com deficiência não têm uma percepção de dor igual à das crianças
normais
Se a criança não se queixa é porque não tem dor
As crianças exageram nas queixas para chamar a atenção
As drogas utilizadas no tratamento da dor têm efeitos secundários irreversíveis
no cérebro imaturo
Estes mitos têm sido desmentidos pela investigação recente.
Existem estudos que mostram que quanto mais imaturo é o SNC mais intensa é a
sensação dolorosa e de que a criança com deficiência de causa neurológica tem
maior sensibilidade à dor do que outra criança sem patologia neurológica, pela
imaturidade e desorganização do seu SNC.
Sabemos que, tanto na criança pequena como naquela com deficiência profunda, a
verbalização da dor não é possível, sendo necessário estar atento a sinais
fisiológicos (frequência cardíaca e respiratória, tensão arterial), expressão
motora (expressão facial, motricidade grosseira), alterações do comportamento
(agitação, irritabilidade) e da participação nas actividades diárias. Existem
diversas escalas para avaliação da intensidade da dor nestes doentes.
O tratamento deve ser multidisciplinar, efectuado por equipas com formação
específica em dor pediátrica. Uma das principais dificuldades actuais reside no
facto de muitas das terapêuticas utilizadas serem extrapoladas do adulto.
São necessários mais estudos orientados para a investigação da dor crónica
pediátrica.