Caso endoscópico
O Felisberto era um rapaz de oito anos, pouco falador, que por vezes tinha
pouco apetite e que não gostava de comer carne. Apesar disso tinha bom
desenvolvimento estaturo-ponderal e psicomotor e rendimento escolar médio. Num
dos períodos de menos apetite foi observado pelo seu médico assistente, que
decidiu efectuar-lhe um estudo analítico, tendo então constatado a presença de
quadro de anemia hipocrómica e microcítica associado a valores diminuídos de
ferro sérico e ferritina, com acentuada elevação da capacidade de fixação do
ferro. Decidiu-se iniciar tratamento com ferro oral, procedeu a desparasitação
e insistiu-se na necessidade de comer carne.
Dois meses depois a anemia estava quase corrigida, os valores do ferro eram já
aceitáveis, mas o rapaz continuava a não comer carne, mastigava-a mas não a
engolia. O médico assistente decidiu suspender o tratamento com ferro oral e
insistiu na necessidade de hábitos alimentares correctos.
Alguns meses depois o Felisberto parecia um pouco pálido, pelo que repetiu o
estudo analítico e apresentava de novo anemia ferropénica. Foi então enviado
para a consulta de Hematologia Pediátrica, para esclarecimento da sua situação.
Depois de um exaustivo estudo para exclusão das principais causas possíveis
para a sua anemia, chegou-se à conclusão que provavelmente tinha perdas
digestivas, apesar da negatividade da pesquisa de sangue oculto nas fezes,
razão pela qual o doente foi observado na consulta de Gastroenterologia
Pediátrica.
Era um rapaz simpático, pouco colaborante no diálogo, com bom desenvolvimento,
que continuava a comer mal e a recusar a carne, vomitando esporadicamente
quando a mãe insistia para comer.
Não tinha antecedentes pessoais ou familiares relevantes e o seu exame
objectivo era normal.
Decidimos efectuar uma endoscopia digestiva alta que nos permitiu observar as
imagens que a seguir apresentamos e que correspondem a:
1 - Esófago normal
2 - Estenose esofágica congénita
3 - Síndroma de Plummer-Vinson
4 - Esofagite péptica grave (grau IV)
COMENTÁRIOS
As imagens que mostramos revelam efectivamente um quadro de esofagite grave,
com estenose acentuada do esófago. Observamos uma estenose com cerca de 6 mm de
diâmetro (figura 1), uma úlcera esofágica (fig.2) e o cárdia aberto em inversão
(figura 3).
Perante este quadro o doente efectuou inibidores da bomba de protões,
dilatações esofágicas e, posteriormente, foi operado, tendo efectuado uma
fundoplicatura, com resolução definitiva do seu quadro clínico, aceitando
finalmente comer carne.
A estenose congénita do esófago provoca sintomas mais precoces e não se associa
a quadro de esofagite e o Síndroma de Plummer-Vinson caracteriza-se pelo
aparecimento de estenoses em anel secundárias a acentuada e prolongada de
ciência de ferro, mas também não apresenta componente inflamatório.
Este caso merece duas chamadas de atenção: Uma criança deste grupo etário com
uma anemia por deficiência de ferro que, após responder ao tratamento com ferro
oral, tem recidiva, até prova em contrário, está a perder ferro e deve ser
enviada à consulta de Gastroenterologia. Por outro lado se mastiga a carne e
não a engole, terá provavelmente disfagia, o que nos deverá pôr na pista de um
quadro de esofagite e obrigar à realização de endoscopia.