Editorial
Editorial
Natália Teles
A Ética tem ocupado sempre, desde a sua constituição como sabedoria na
Antiguidade até ciência social bem estruturada na época contemporânea, um lugar
importante no pensamento filosófico. Classicamente dedicada aos problemas da
moral, da virtude e do dever, diversifica-se atualmente em campos tão vastos e,
aparentemente, tão diferentes, como o ambiente, a medicina e a informática,
tendo cada vez mais vindo a ser reconhecida como necessária em todas as áreas
cien-tíficas e como fundamental para o bem comum e a sobrevivência da
Humanidade. Por seu lado, as descobertas científicas têm sido feitas devido à
curiosidade dos cientistas, à sua necessidade de atingirem novos e maiores
conhecimentos em-bora, por vezes, alguns possam ser manipulados pela
economia ou pela política. Fundamentalmente,a ciência é racional e tem
princípios de causalidade; parte do que é observável para o que é demonstrável,
provando então que é repetível e conduz a conhecimentos moralmente neutros. A
utilização desses conhecimentos é que pode levantar questões de ordem moral,
tão simples como o bem e o mal. Os problemas éticos surgiram em ciência quando,
nessa comunidade de pensantes, alguém perguntou "porquê?" e "para quem?". A
partir dessa altura a comunidade científica amadureceu, começou a organizar-se
melhor, a ter preocupações conjun-tas, essencialmente com os efeitos das
descobertas em si, tendo então delineado regras de conduta para as descobertas
científicas e os próprios profissionais. A leitura crítica do historial da
ética médica e da bioética permite compreender que conceitos como a moralidade,
que se refere à noção de "certo" e "errado" que existe em cada cultura ou
comunidade ou, por exemplo, "pessoa humana", não reúnam consenso nem sejam
estanques - são produtos da reflexão crítica sobre os problemas e práticas
morais, à luz das estruturas económicas, sociais e políticas, em cada época. A
influência das práticas religiosas e dos teólogos foi inegável, sobretudo
durante a época medieval, durante a qual pouco tempo se dedicava às atitudes
reflexivas. Progressivamente, a influência dos filósofos na ciência foi sendo
cada vez maior, assistindo-se hoje a uma inclusão quase obrigatória da bioética
em qualquer trabalho científico. A Genética Humana é disto um bom exemplo: é
uma ciência relativamente recente, o seu desenvolvimento exponencial nos
últimos anos tem permitido des-cobertas diárias de potencial e importância
enormes, pode agora explicar muitas doenças familiares e até ajudar a evitá-las
mas, principalmente, impedir a sua trans-missão à descendência. Todavia, o
entusiasmo e avanço científicos não têm porventura gerado as correspondentes
preocupações éticas, possivelmente por falta de conhecimento das fundamentações
filosóficas e de tempo para refletir, essenciais para lidar com esses assuntos.
Os testes genéticos resultantes da aplicação prática desta ciência em contínuo
desenvolvimento têm evidenciado um grande incremen-to, especialmente nos
últimos anos, devido ao aperfeiçoamento de novas tecno-logias, criado
campos de aplicação profissional cada vez mais vastos e suscitando preocupações
éticas em praticamente todos os seus aspetos. Para além de evitar
aconselhamentos genéticos diretivos, é aconselhável pensar que os testes a
efetu-ar devem, antes de mais, respeitar os direitos humanos dos seus
semelhantes, tais como a autonomia, a privacidade e a vontade, permitindo
escolhas informadas.
Para assegurar procedimentos eticamente corretos a toda a Humanidade, foi
acordada em 1948 a versão final da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
atualmente já traduzida do inglês em muitas línguas. Em 2000, a Carta dos
Direi-tos Fundamentais da União Europeia, veio reforçar a necessidade de
aplicação de vários princípios básicos, como dignidade, liberdade e equidade, e
é o primeiro documento a abordar o tema do perigo da discriminação "genética" e
práticas "eu-génicas", proibindo-as.
Na verdade, Habermas, filósofo alemão contemporâneo que se especializou na
dimensão humana da comunicação, tem alertado para aquilo que designou de
"eugenia liberal", nomeadamente no livro "O Futuro da Natureza Humana ' a
Ca-minho de uma Eugenia Liberal?", em que nos recorda que o Homem tem
tentado melhorar a "raça" humana desde tempos imemoriais ' antigamente pela
educação "moral" e atualmente pela "engenharia genética"; além disso, questiona
as razões médicas e de saúde por vezes invocadas em genética e alerta-nos para
o perigo de podermos estar a tratar os seres humanos como um simples meio para
servir os fins de outrem e, por conseguinte, negar a sua autonomia. Contrapondo
esta posição, autores como Julian Savulescu e John Harris têm defendido a
"nova" eu-genia, afirmando que os pais têm a obrigação moral de usar a
genética e as novas tecnologias para "melhorarem" as características dos seus
filhos, que designaram de "Princípio de Beneficência Procriativa". Mas excluir
os contextos de resolução de problemas médicos e proporcionar a seleção de
certas caraterísticas desejadas de um determinado genoma sem fins terapêuticos
é permitir uma eugenia positiva, pois não existe "eugenia científica", que
parece ser a linha de orientação da presente pós-modernidade. Então,
substituir-se-á a razão pela emoção, relevar-se-á o fim em detrimento do meio e
perder-se-á toda a inovação que Kant introduziu no do-mínio da moralidade,
equiparando-se a autonomia soberana à mera arbitrariedade, em que tudo poderá
ser permitido em nome da liberdade de escolha e a respon-sabilidade pelas
gerações futuras poderá ser descartada ab initio. Nesta altura do conhecimento,
deverá prevalecer o bom-senso e as leges artis ' mas é importante que a
sociedade esteja mais informada, se interrogue, participe e seja mais
críti-ca em relação à aplicação das novas tecnologias genéticas, ajudando a
definir os parâmetros de utilização dos testes genéticos cada vez mais
sofisticados para, só assim, proporcionar gerações futuras "eticamente"
determinadas.